São Tibira, indígena, homossexual e o primeiro corpo a ser esmagado pela homofobia no Brasil

 São Tibira, o primeiro caso de homofobia registrado no Brasil.

“Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos, meu sangue latino, minh’alma cativa. Rompi tratados, traí os ritos…”  Secos e Molhados – Sangue Latino

Vitória Cardoso Figueira (Acadêmica de Psicologia) – vitoriacardoso@rede.ulbra.br

Em 2014, o antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), uma ONG que historicamente tem produzido dados sobre a discriminação contra a comunidade LGBTQIAP+ no Brasil, lançou um livro intitulado “São Tibira do Maranhão – 1613-1614, Índio Gay Mártir”. Este livro acendeu a luz para que enxergássemos a figura, até então, desconhecida: Tibira do Maranhão.

Tibira do Maranhão, um indígena pertencente à etnia tupinambá, foi executado em 1614 por causa de sua orientação sexual, especificamente por ser homossexual. A decisão de condenar a morte foi tomada por líderes religiosos católicos que estavam em uma missão no Brasil naquela época. Um desses líderes foi o entomólogo francês Yves d’Évreux (1577-1632), um frade capuchinho que colonizou o Brasil. D’Évreux detalha a execução de Tibira do Maranhão em seu livro intitulado “História das Coisas Mais Memoráveis ​​Acontecidas no Maranhão nos Anos de 1613-1614”.

 

Desde então, Luiz Mott tem trabalhado incansavelmente para aumentar a visibilidade desse episódio. Ele teve apoio de um líder religioso que vem de uma visão cristã independente, o arcebispo primaz da Santa Igreja Celta do Brasil, que expressou seu reconhecimento pelo martírio e pela santidade de Tibira do Maranhão. Desde que seu livro foi publicado, Mott liderou uma iniciativa para que Tibira do Maranhão fosse reconhecida não apenas como mártir, mas também como uma figura santa, assim iniciando o processo de canonização. Em 2016, as autoridades do Maranhão marcaram esse reconhecimento ao inaugurar uma placa em homenagem a Tibira na Praça Marcílio Dias, localizada em São Luís.

Uma pesquisa realizada com base nos dados do Sistema Único de Saúde (SUS) evidenciou que a cada hora uma pessoa LGBTQIAP+ é agredida no Brasil. Entre o período de 2015 e 2017 analisou-se esses dados, 24.564 notificações de violências contra pessoas da comunidade foram registradas, o que entende-se que, em média, são mais de 22 notificações por dia, ou seja, quase uma notificação por hora (PUTTI, 2020). São Tibira foi, infelizmente, o primeiro caso de homofobia registrada no Brasil, sendo um indígena morto pelas mãos de um colonizador de forma bruta, por sua etnia já era considerado por eles um ser sem notoriedade e por sua orientação, o mesmo foi condenado à morte.

Falando de identidade sexual é importante falar sobre a cisheteronormatividade, a qual é responsável por tentar ditar qual a identidade sexual e de gênero é a correta, a conformidade à cisheteronormatividade advém de uma visão do mundo cristão monoteísta (ORNELAS, 2021). Com a história do São Tibira vale analisar a colonização das sexualidades, que pode estar relacionada a dispositivos políticos, ideológicos, raciais, econômicos e científicos que estão profundamente entrelaçados (FERNANDES, 2017).

                                                                                  Fonte: Theodor de Bry/Reprodução

Cena descrita por Pietro D’Anguiera em “De Orbe Novo”, com Vasco Nuñez de Balboa assassinando o irmão de um cacique no Panamá e 40 de seus companheiros por estarem vestidos de mulher, em 1513.

Esses mecanismos afetam várias comunidades (rurais, urbanas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, entre outras) por meio da imposição da cisheteronormatividade, que é uma parte integrante da estrutura de poder colonial que molda as normas morais e familiares, bem como a divisão de papéis de gênero no trabalho. Nesse contexto, é crucial entender que a sexualidade desempenha um papel fundamental na compreensão da dinâmica colonial, abrangendo questões que vão além do âmbito estrito do sexo, como casamento, laços familiares, vida doméstica, alianças políticas, habitação e outras mais, não sendo fechado ao sexo, estrito senso (FERNANDES, 2017).

A cisheteronormatividade e a imposição compulsória da heterossexualidade, instaladas durante o período da colonização europeia, estão enraizadas em discursos e práticas religiosas, políticas e civilizacionais que se baseiam em fundamentos científicos, teológicos e socioculturais (FERNANDES, 2017). Esse processo de colonização e imposição de uma cultura dominante afeta diretamente os corpos e as identidades sexuais, planejando estabelecer uma norma moral baseada no modelo de família cristã binária e hegemônica, criando assim dinâmicas de exploração e subordinação como meio de manter o poder e preservar a cultura branca, patriarcal e heterossexual da era moderna/colonial (FERNANDES, 2017)

A colonização sexual afeta diretamente a vida dos povos originários, já que os mesmos eram obrigados a seguir as idealizações colocadas por colonizadores, como forma de apagarem suas identidades. Em uma entrevista para à Rádio CNN, Danilo Tupinikim afirma que “é sempre importante pensar no quanto a colonização afetou os povos indígenas, e com questões de gênero e sexualidade não foi diferente”.

                                                                               Fonte: Yasmin Velloso/Mídia NINJA

Povos indígenas e LGBTQIAP+ enfrentam batalha dupla contra o preconceito

O processo de colonização imposto às comunidades indígenas representou um esforço deliberado de implementação de um ‘projeto de civilização’ que envolve a negação e a destruição de suas visões de mundo e conhecimentos, abrangendo seus costumes linguísticos, hábitos alimentares, práticas educacionais, identidades sexuais, sistemas religiosos e todas as outras formas de convívio comunitário. Esse processo e projeto continuam a ter impactos significativos até os dias atuais. A perspectiva colonizadora, que se estende desde o mito renascentista do ‘bom selvagem’ até a desumanização dos povos originários, está profundamente entrelaçada com a religião cristã e sua ênfase no ‘puritanismo ocidental, que valorizava a virgindade, o celibato, o casamento e outros valores semelhantes (Trevisan, 2018).

A visão dos missionários jesuítas no Brasil foi centrada na percepção de que o corpo ameríndio era visto como refletindo uma natureza corrompida. A atenção primordial dos jesuítas recai sobre o corpo ameríndio, abordando questões como a cauinagem, a luxúria (incluindo a sodomia), a nudez, os rituais antropofágicos e a poligamia, entre outros aspectos. No entanto, para os jesuítas, essa intervenção não se limitava ao corpo físico dos indígenas, mas visava, sobretudo, à transformação da alma por meio do corpo (Fernandes, 2017).

A história de São Tibira do Maranhão, o primeiro caso de homofobia documentado no Brasil, serve como um trágico lembrete das profundas raízes da discriminação contra a comunidade LGBTQIAP+ e não só isso, como a colonização ajudou na dissipação da identidade sexual dos povos originários em nosso país. São Tibira do Maranhão está em processo de tornar-se um mártir para a história do Brasil e, de modo geral, que isso nos sirva como lembrete de que na comunidade LGTQIAP+ não existe apenas uma luta, e que há sujeitos com mais de uma luta que vai para além da homofobia.

REFERÊNCIA

 

FERNANDES, Estevão R. “Existe índio gay?”: a colonização das sexualidades indígenas no Brasil. Curitiba: Editora Prismas, 2017. 245p.

GARCIA, Amanda; VIDICA, Letícia; BRITO, Leticia. Indígenas da comunidade LGBTQ sofrem duplo preconceito. CNN Brasil. 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/indigenas-da-comunidade-lgbtq-sofrem-duplo-preconceito-afirma-ativista/>. Acesso em 13 setem. 2023.

ORNELAS, Gabriel Mattos. Se há LGBTfobia não há agroecologia: coletivos de juventudes LGBTQIAP+ e processos educativos sobre diversidade afetiva, sexual e de gênero. ReDiPE: Revista Diálogos e Perspectivas em Educação, v. 3, n. 2, p. 92-102, 2021. Disponível em: <https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/ReDiPE/article/view/1693> Acesso em 11 setem. 2023.

PUTTI, Alexandre. Um LGBT é agredido no Brasil a cada hora, revelam dados do SUS. 2020. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/diversidade/um-lgbt-e-agredido-no-brasil-a-cada-hora-revelam-dados-do-sus/>. Acesso em 11 setem. 2023.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à

atualidade. 4ª ed – Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.