Um recado na geladeira deixado por Nietzsche

Por que Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) causa curiosidade e espanto até os dias atuais? Encontramos “nietzscheanos e nietzsieistas” de carteirinha, de plantão, de grandes associações. Fico com receio dessa turma com suas carteirinhas, porque na hora que se demanda alguma informação mais aprofundada sobre o filósofo, poeta e filólogo originário de uma região anexada à Prussia em 1815, o pessoal se contorce e tira o corpo fora.

Em geral, para todo e grande pensador (até para os pequenos… sejamos complacentes) é importante realizar uma mineração de dados sobre sua vida, desde os aspectos históricos e geográficos de sua região de nascença e ate de falecimento, a configuração do núcleo familiar e das amizades envolventes, a (de) formação religiosa e os ventos de mudanças de seu tempo vivido. Dados sobre o que era a aquelas regiões cujas fronteiras de desenhavam mas os conflitos culturais permaneciam latentes e muito demarcados. Escutávamos ou lemos sobre Nietzsche que passou por Rocken, Pobles, Basiléia, Bonn e vários cidades-regiões francesas.

Nietzsche viveu num dos períodos mais deliciosos da história da Europa ocidental, isto é, na segunda metade do século XVIII. Não falo isso por suspeitos gostos masoquistas… fico longe de cheiros e sabores desagradáveis. Mas na segunda metade do século XVIII a Europa Ocidental era um grande buraco a céu aberto, algumas cidades como Viena, Berlim, Paris, Londres, Hamburgo – para além dos rios abertos à toda e qualquer sujeira, aos exércitos de ratos, infestações de pragas e do odor de mijo ardido concentrado em ruelas sem sistema de esgoto – transpiravam a grande briga entre o pensamento tomista e neotomista dos seguidores do antigo regime e dos que se propunham a fazer acontecer as ventanias mudancistas do “agora já” da modernidade.

Um mundo estava em transformação muito rápida fossem nas discussões filosóficas presentes nos círculos mais abastados até o rebuliço dos movimentos arquitetônicos propositores de novas configurações e lógicas para os espaços urbanos. A arte e a estética, então, muito rebuliço. Queria ter vivido naqueles dias nos quais os passos para o subconsciente e inconsciente começavam a ocorrer, a melancolia d’alma era examinada para além dos preconceitos religiosos e as festas, regadas a muito absinto…

Berlim, segunda metade do século XIX

Claro que mitifico essa realidade. Nascer de uma família com raízes religiosas tradicionais era um martírio. Isso também foi comum a Kant. Esses rapazes tiveram essas origens próximas. Nietzsche vem de uma família luterana, cujos avos foram ministros religiosos. Além disso, com a educação de mãe e irmãs, sem uma figura paterna para equilibrar, desiquilibrou-o. Seguiu no caminho da filologia clássica e da teologia. Como bom luterano ateve-se aos escritos do apostolo Paulo pelos idos de 1864-65. Como as leituras de Schopenhaeur, já na Universidade de Leipzig, o caldo na caneca começou a derramar.

Ao trabalhar na Basiléia, adotando também a nacionalidade suíça, Nietzsche mergulha seus estudos em Heráclito e Empédocles. Anos depois se meteu como auxiliar de saúde na Guerra franco-prussiana. Um rapaz de pouco mais de 30 anos se viu frente a frente com as agruras e desgraças da guerra. Esse conjunto de situações da conjuntura europeia e influências de razões familiares acumulam-se num rapaz de saúde frágil, voz inaudível e esteticamente a possuir padrões não tão harmoniosos aos modelos de gentlemans para a época.

Fofoca sentimental: sua vida sentimental não era lá nem resolvida. Levou um grande não de Lou Andreas-Salomé, vivia sob um estado de rejeição. Pela saúde foi obrigado a deambular por cidades de temperatura mais quente como as do litoral mediterrâneo. Mas o rapaz-homem Nietzsche não aguentou o “rojão” de uma existência cheia de cobranças, de poses, de cruedade e desafetos com as fachadas pseudo estruturadas da moral dominante e dos dogmas religiosos. Afundou-se em crises de isolamento e loucura. Na verdade, sua alma transtornada explodia e isso espelhou-se muito nos escritos.

Ao ler grande parte das obras de Nietzsche sempre tive a sensação de que ao escrever ele o fazia para ser escutado ou escutar a si mesmo. Não vou fazer digressões clínicas sobre sua saúde como a suposta sífilis, o câncer no cérebro e outras sintomas; entretanto, realço que seus escritos são marcantes por trazer um espírito que sofria frente ao mundo em transformação, evidenciando uma vontade de ficar e ao mesmo tempo um sentir mal sob sua pele.

Fujo do Nietzsche dos aforismas isolados, desses que jovens e toda uma leva de adultos insatisfeitos despejam via redes sociais ou encapsularam em epígrafes das monografias, dissertações e teses. Comte-Sponvielle (2013) que aqui trago a contragosto assume que

o gênero aforístico é o mais fácil, pelo menos para o autor. È como os materiais de um livro que deixaríamos ao leitor o cuidado de continuar ou de acabar. Um pouco de elegância, um pouco de elevação, muita concisão, muito não dito, muita alusão, uma pitada de mistério ou de claro-escuro. (p.17)

E as consequências das interpretações dos aforismas ou trechos recordados de Nietzsche, a partir de leituras caolhas pelos nietzscheanos e nietzsieístas , creio que fazem os ossos do filósofo estremecerem em sua túmulo. Quando me perguntam sobre “O dia em Nietzsche chorou” de Irvin D. Yalon, ofereço uma caixa de lenços descartáveis ao leitor e ao autor do livro. Não estou preocupado com esse choro literário do autor sobre Nietzsche, o que me interessou aprender foram sobre os ataques de cólera, ira, solidão, desilusão, desesperança e até mesmo aqueles mais líricos de Friedrich.

Existem algumas questões que Nietzsche lançou em seu texto de vida e posteriormente foram publicadas e divulgadas, ampliando o espectro das polêmicas tanto são filosóficas, quando bem manejadas com rigor e conhecimento como faits divers de beira de mesa de boteco. Escuto críticas ao Cristianismo a partir de leituras de rodapé ou de orelhas de livros de comentadores de Niezsche. É jargão “Deus morreu”,  “tudo é permitido”,  “é o momento de dar vazão ao niilismo” e construções dessa natureza.

São engraçadas as colocações. Uma vez perguntei a um apaixonado por Nietzsche se ele conhecia a história da construção dos textos dos evangelhos e das epistolas (posteriores ou concomitantes), sobre a pregação do messias dos cristãos – Jesus de Nazaré –  e de seus seguidores. Em especial, cutuquei se ele conhecia algo sobre Paulo de Tarso (Πα?λος aparece nos escritos bíblicos lá na narrativa em Atos 13:6-13) . A figura possuía todo um leque de reclamações sobre dogmas, perseguições promovidas pela inquisição espanhola, encíclicas papais e polêmicas atuais sobre aspectos ritualísticos dos cristãos-católicos e utilizava Nietzsche para suas argumentações.

Sentei-a num cantinho e fiz uma mapinha básico da filosofia que escapa dos esquerdistas e direitistas de boutique (da Augusta até a Oscar Freire local…arghhh!). Mandei fazer um caminho básico do Nietzsche jovem, visitando os pré-socráticos, depois conhecendo um pouco mais sobre Sócrates, Platão e Aristóteles, aprofundando-se pela Patrística e mergulhando nos modernos, na “tchurma dos lógicos”, sem esquecer de Marx (1818-1883), Schopenhauer (1788-1860), Freud (1856-1939).

A figura me perguntou se não lhe passaria nada de Sartre, Foucault, Derrida, Deleuze, Lukács, Heller. Tenho um olhar que os mais próximos conhecem, ele é fulminante quando necessário… Houve silêncio. Disse-lhe que gostaria de ser esquecido em sua vida como professor de filosofia, odeio essa denominação, sou ex-filósofo frente aos padrões existentes (não tenho saúde nem paciência para ser mestre de conferência com meu querido prof. Cortella e a muito, felizmente, distante Tiburi têm realizado). Nós que nos propomos a ser “ensinantes” somos elaborados a partir de um barro que deve necessariamente deixar de existir na vida dos aprendizes. Adoro quando sou esquecido, mas o que ensinei fica marcado tanto para auxiliar na defesa da conservação seja das verdades ou valores ou superação de tudo isso com novas proposições.

A angústia e as “doiduras” de Nietzsche me ensinou isso. Enquanto Descartes sinalizava os pequenos passitos iniciais para delimitação daquilo que minha razão podia seccionar para analisar e o velho Kant me reequilibrava com o universo, Marx, Freud e Nietzsche tiraram o meu juízo da juventude, me mostraram que é necessário deixar de ser jovem, que nem tudo é o que aparece e que a ideologia não é todo e qualquer discurso.

Preocupação alguma tenho quando trazem o niilismo, o superhomem e as suposições nazistas em Nietzsche. Sondam as fontes, algumas delas estão minadas. A figura que ficou sentada ao meu lado queria apontar o que eu dizia. Senti-me Matusalém demais e a proibi de fazer isso.

Nietzsche não é para espíritos errantes a procura de um bom terapeuta, pessoas recém-saídas de seminários e conventos, jovens burgueses aborrecidos com o atraso da mesada, historiadores da filosofia cansados, grupos de estudantes universitários dos cursos do Reuni ou desses bacharelados interdisciplinares hibridizados.

Com Nietzsche aprendi que devo sair para cidade, para à distância ver suas luzes. De algumas cidades sai, tive vontade que as luzes se apagassem e nunca mais nelas pus os pés, outras retornei e tentei auxiliar. Mas é difícil que entendam o Menschliches, Allzumenschliches (1878). Ainda é muito difícil o que é um espírito livre das religiões e da própria ciência que se tornou esse grande transatlântico de dogmas.

Indico para os que sentam nos cantinhos comigo para conversar sobre Marx, Freud, Nietzsche, Kant: construam referências dos lugares nos quais eles pensadores passaram e viveram, entendam o espírito da época, procurem contradições e conflitos; iniciem as leituras básicas, vão de devagar. Não queira se tornar marxista, freudeano, nietzscheano-nietzscheista… aprenda a ser você mesmo e beber de cada um deles aqui lhe possa ser importante. Uma sugestão para os contextos históricos: Eric Hobsbawn e suas sobre aqueles períodos).

Com sua loucura-lirismo, sinto que, pretensiosamente ele me deixou este bilhete na geladeira de casa: Willst du nicht Aug’ und Sinn ermatten, Lauf’ auch der Sonne nach im Schatten! (An eInen Lichtfreund[1] ou Persiga pela sombra ao sol se não querer a vista e o senso cansar. Mesmo com óculo escuros trago essa máxima comigo em tempos difíceis.

Mesmo com óculo escuros trago essa máxima comigo em tempos difíceis. As loucuras e crises de Nietzsche ficam como recados na porta da minha geladeira: eu sou significante.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, A. Do corpo.São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

HOBSBAWN, E. A era das revoluções– 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

______. A era do capital – 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra, 2099.

São Paulo: Paz e Terra, 2099.

______.  A era dos impérios – 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2099.

______. A era dos extremos – O breve século XX. São Paulo: Cia. das Letras,1995.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou Helenismo e essimismo. Trad. de J. Guinsburg.. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


[1]  Aforisma 12 do Livro I, de Gaia Ciência. Original em alemão Die fröhliche Wissenschaft (1882), já tem excelente edição no Brasil publicada pela Cia da Letras em 2012.