Ao longo da história a mulher tem assumido diferentes papéis no âmbito familiar. Com as diversas configurações socioculturais, o que se entende como “ser” mulher e o que se espera dessa figura, ao mesmo tempo em que influenciam diretamente a dinâmica das relações familiares, são modificadas por ela. Neste texto serão abordados, em um contexto familiar ocidental, os papéis e funções da mulher como são apresentados na contemporaneidade e sua influência na construção psíquica dos indivíduos, bem como um panorama histórico do feminino na instituição de família como conhecemos atualmente.
Entre as teorias de origem da família, enquanto umas se fundamentam em funções biológicas e outras em funções psicossociais, o chamado “vértice evolutivo” é considerado a base para construção de teorias sobre origem e estruturação do que se entende como grupo familiar. Nele considera-se que a família e seus membros devem passar por etapas sucessivas no curso do seu desenvolvimento, como encontramos em distintas culturas no decorrer do processo civilizatório (OSORIO, 1997) [1].
Acredita-se que inicialmente as famílias se organizavam em modelos matriarcais, possivelmente por desconhecer o papel do homem na reprodução; ou em decorrência da vida nômade dos povos primitivos, onde os homens saiam á procura de alimento e os filhos ficavam sobre influência quase que exclusiva da mãe. O desenvolvimento da agricultura, o sedentarismo e a divisão de tarefas teriam sido os responsáveis pela instalação progressiva do patriarcado [1].
Com o desenvolvimento da ideia de propriedade ao longo do processo civilizatório da sociedade ocidental, a família patriarcal passa a adotar a monogamia, onde a fidelidade conjugal é condição para a garantia da legitimidade dos filhos para a transmissão de bens. Seria a família monogâmica, possivelmente, a primeira a ser fundada com base em condições sociais e não naturais, prevalecendo até hoje no mundo ocidental. A noção de propriedade se entendeu para a esposa e o contrato matrimonial passou a assumir as esferas comercial (com os dotes), místico-religiosa e de direitos civis. Porém, a coexistência primeva da composição entre as figuras de pai, mãe, e filhos, não configuraria o que se entende por família [1].
Com os mais variados modelos, as famílias atuais não se enquadram no que o senso comum, em partes, adota como “modelo”, uma vez que as definições de família (que também são variadas) descrevem as relações entre as funções de seus membros, e não quem deve ocupar essas funções. Capitão e Romaro (2012) discorrem sobre uma visão de família entendendo-a como uma referência inter-relacional para seus membros, onde se formam regras, valores e crenças em um sistema ativo em transformação permanente [2]. As mulheres contemporâneas estão inseridas nesse contexto, sendo mães, avós, filhas, tias; elas passam a ocupar “funções” e não “cargos” pré-determinados.
Bilac (2006) atribui ao pensamento feminista o trabalho do conceito de “reprodução” social, que como uma instância, seria a produção social da vida humana, em termos cotidianos e geracionais. Essa reprodução, ligada à família ou não, estaria ligada ás relações de gênero e á divisão sexual do trabalho [3]. A classe social à qual pertence a família, e o modelo familiar que se sucede, estão ligados entre si e ainda ás relações de gênero entre seus membros, influenciando na reprodução.
Dessa forma, para Bilac (2006), a variabilidade histórica da instituição família, desafia qualquer conceito geral, uma vez que o mesmo envolve aspectos econômicos, sociais, culturais, históricos e de gênero. As mudanças na organização familiar estão se dando a partir das mudanças na condição feminina, provocando uma revisão dos demais papéis na família. As diferenças entre os gêneros são socialmente construídas e normatizadas, portanto, a capacidade de (re)negociação de sujeitos individuais em um grupo social, estaria ligada a possibilidade de obliteração das diferenças de poder e desigualdade entre homens e mulheres, afetando os destinos individuais e da família na contemporaneidade [3].
Para Sarti (2006), o controle da natalidade permitiu que a mulher que reformulasse seu lugar na esfera privada e participação na esfera pública, e a individualidade (que tem cada vez mais importância na pós-modernidade) teve seu espaço para desenvolvimento, e os familiares se tornaram conflitivos na sua forma tradicional. A autoridade patriarcal e os papéis familiares se modificam, e consequentemente as relações de gênero [4].
As obrigações, direitos e deveres ficam passivos a renegociações. Esse desenvolvimento provoca uma transformação na esfera intima que potencializa o atual modelo social com a valorização da ética pessoal. A execução positiva da requalificação da “autonomia” (como condição de se relacionar com os outros de modo igualitário) possibilitaria a configuração de limites pessoais e a administração bem sucedida dos relacionamentos [4].
Com a crescente participação do feminino no mercado de trabalho e a atuação das correntes do movimento feminista, as mulheres adquirem uma nova posição na estrutura doméstica e nos vínculos com seus familiares. A crescente inclusão da mulher nos domínios públicos e a visão das representações femininas diferentes do que era o estereótipo, redefiniu o papel da mulher na família e sociedade [5]. Essas mudanças, a curto e longo prazo, afetam a sociedade intergeracionalmente, facilitando a igualdade de gêneros, de direitos e a busca pelas liberdades individuais.
Maternidade: a individualidade e os males da família contemporânea
Os aspectos desse tópico poderiam ser tratados independendo de gênero ou da família, porém como visto acima, as circunstâncias do feminino influenciaram e influenciam as dinâmicas pessoais de comportamento ao longo da história, e como citado, na contemporaneidade.
Para Campos (2012) a sociedade pós-moderna tem contribuído para que as pessoas, cada vez mais, se individualizem, assumindo posições narcísicas, e seria o papel da psicologia elucidar esse fato e se fazer presente para evitar que ele ocorra. Com a virada do milênio, as famílias se encontraram situadas em uma confusão de problemas não superados, como a própria existência de seus componentes ao se deparar com a ação do tempo [6].
Em uma adultez fragilizada, os pais cada vez mais egoístas, narcisistas e individualistas se encontram perdidos na tarefa de educar, de modo a manifestar uma negação às funções parentais. Adultos que não são referências para seus filhos impossibilitam que eles experimentam frustrações, de modo a apresentar sempre “infinitas” possibilidades aos filhos em uma busca de auto-superação e compressão de experiências. Filhos que podem fazer o que querem não são livres ou mais amados, uma vez que a construção do “eu” exige orientação e o aprendizado da renuncia [6].
De acordo com Campos (2012), pais e mães na sociedade atual estão influenciados pelas diversas mudanças sociais que contribuem para a procrastinação da formação de uma nova família [6]. Os novos papéis das mulheres e as suas novas funções na sociedade fazem com que elas passem mais tempo fora de casa, dedicando mais tempo aos seus trabalhos (assim como os trabalhadores de modo geral).
Entre outras, as características de personalidade que foram supracitadas contribuem no aumento da dificuldade amar cumulam em uma ausência constante na criação dos filhos, que por sua vez, recorrem a outros meios de aprendizado, como babás, TV, videogames e internet. A presença e interação positiva dos pais se fazem, portanto, indispensável para a formação da personalidade e caráter [6].
As mulheres devem se dedicar exclusivamente a cuidar da casa e família? As mulheres devem ter liberdade para decidir o rumo de suas vidas, assim como qualquer outra pessoa. Fala-se aqui de pais, não somente mulheres. Pessoas que optam por ter uma família devem se ater ás suas responsabilidades como provedores, visto a importância dessas figuras para o desenvolvimento humano.
A desordem nas relações familiares, para Campos (2012), causa a desordem social. As más resoluções em divórcios, assistência parental e trabalho, são um manifesto do que Bauman definiu como “tempos líquidos”, onde a solidez das relações se desmancha no ar. A ideia de supermães que tem qualidades divinas ainda assombra as mães modernas e a comum ausência de outras figuras de apoio, tornam as relações familiares devoradoras [6].
Segundo Capitão e Romaro (2012) [2], os pais transmitem uma herança de ajustamento de desejo para com a criança, que mesmo antes do nascimento já faz parte de suas fantasias, sendo a maior parte das pressões parentais direcionada para a criança com o intuito de fomentar a cumplicidade para com essas fantasias inconscientes. Dessa maneira, o desejo dos pais desde a concepção já influenciaria no desenvolvimento da criança.
De acordo com Moura (2013) [7], é a pessoa que ocupa a função materna quem escreve o primeiro capítulo da vida da criança, interpretando-a. No que concerne uma visão de si mesmo, a criança precisa do Outro para a construção de um registro imaginário, portanto, o inicio da história de vida da criança se situa no contato com o Outro, no caso, a figura dos pais. É a partir de uma identificação com os pais, que com o abandono dos “pais edípicos”, o ideal de ego se constitui como superego, uma formação intrapsíquica de censura e de auto-observação, que surge ou com o superego deles, que é adotado como modelo, servindo como referência ao ego para apreciar todas as suas realizações afetivas (CAPITÃO E ROMARO, 2012).
Os novos papéis e desafios das mulheres contemporâneas, assim como todas as mudanças, causam um impacto na sociedade e no modo como as relações humanas se dão, ultrapassando o conceito de gênero e indo para outro muito mais amplo: humanos. A dinâmica familiar está, portanto, “à mercê” de sua capacidade de redefinição, no âmbito parental, independentemente do estilo familiar.
Em um pensamento igualitário de gêneros e sexualidade somado a uma inexistência de um modelo de família ideal, pensa-se na família como primeiro contato social, onde se projeta a oportunidade de uma mentalidade grupal, e somente nessa modalidade pode-se pensar a igualdade coexistindo com as diferenças, algo fundamental para se definir o conceito de “humanidade”.
REFERÊNCIAS:
[1] OSORIO, L. C. A Família como Grupo Primordial in ZIMERMAN, D. E.; OSORIO, L. C. [et. al]. Como Trabalhamos com Grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 51-56.
[2] CAPITÃO, C. G; ROMARO, R. A. Concepção Psicanalítica da Família in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 27-33.
[3] BILAC, E. D. Família: Algumas Inquietações in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 30-37.
[4] SARTI, C. A. Família e Individualidade: Um Problema Moderno in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 42-46.
[5] ROMANELLI, G. Autoridade e Poder na Família in CARVALHO, M. C. B. A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006, p. 77.
[6] CAMPOS, D. C. “Saudade da família no futuro ou o futuro sem família?” in BAPTISTA, M; TEODORO, M. Psicologia de Família: Teoria, Avaliação e Intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012, p. 74-81.
[7] MOURA, D. F. G. Maternidade e poder. Rev. Mal-Estar Subj, Fortaleza, v. 13, n. 1-2, pp. 387-404, jun. 2013. Disponível em: <http://www.redalyc.org/pdf/271/27131673015.pdf >.