Belchior, do prestígio ao refúgio: a vida justificada por sua própria obra

Era sábado, dia 26 de outubro de 1946, quando um dos artistas de obra mais intimista e respeitada da América Latina dava as caras na cidade de Sobral, estado do Ceará. No berço de uma família musicista e apaixonada pela boemia, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, categoricamente conhecido por apenas “Belchior”, possuía em seu meio o respaldo suficiente para se encantar com o que faria por toda sua vida (ou quase toda).

Belchior por pouco não alcançou o patamar social pelo qual o conhecemos, já que quase se tornou médico, abandonando a universidade pouco tempo antes de se formar. O músico deixou de lado o curso de medicina para seguir carreira musical longe de sua terra natal, na cidade do Rio de Janeiro e que pouco tempo depois cederia o posto de residência do cantor para a metrópole São Paulo. Bel, como era carinhosamente chamado pelos fãs e pessoas próximas, construiu uma carreira sólida e encantadora aos olhos do grande público, porém certo sucesso em algumas vezes era compartilhado com polêmicas midiáticas e pessoais. Sua obra expressou muito do que foi o cantor e, da mesma forma, indicava certos comportamentos que puderam “prever” certames e tais polêmicas.

A seguir, através de partes específicas de sua discografia, será possível identificar sua tendência a certos comportamentos que o levaram a algumas polêmicas e decisões particulares:

“FOTOGRAFIA 3×4” (1976, disco “Alucinação”)

É na letra desta música em que podemos perceber vestígios sobre o que deu início a queda pessoal de Belchior, logo no início dos anos 2000. Na quinta estrofe da canção, é possível identificar: “Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem”. Foi no ano de 2005 que Bel se separou da então atual esposa Ângela e em 2006, cancelou o agendamento de seus shows ao mesmo tempo em que passou a enfrentar processos judiciais de pensão alimentícia e trabalhistas. Na época em que o disco foi lançado, Belchior tinha 30 anos de idade e talvez, através de tal letra, podemos entender resquícios do que o levou a tais processos e separação, 29 anos depois.

“Comentários a Respeito de John” (1979, “Era uma Vez um Homem e Seu Tempo”)

Esta música é uma clara referência a John Lennon, pessoa a qual Belchior possuía uma grande admiração pela filosofia de vida. Porém, já é no primeiro parágrafo e início da música que o artista expressa: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixe que eu decida a minha vida”. Apesar da homenagem, Bel interage com John Lennon em algumas ideias e esta é uma delas. A filosofia libertária e livre que John reproduzia encantava Belchior, dando origem a tal trecho. Após o divórcio, Belchior passou a seguir seu caminho longe da fama, buscando um descanso pessoal, mesmo que isso lhe custasse fome e insegurança financeira e pessoal.

“Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)” (1987, “Melodrama”)

Como já citado, “seguir seu caminho” custou deveras caro para Belchior. Passando por algumas cidades, se estabilizou de certa forma na capital gaúcha, Porto Alegre. Em “Jornal Blues“, o cantor escreveu: “Não, não quero contar vantagem mas já passei fome com muita elegância”. Na região gaúcha, Belchior se hospedou em casas de fãs ou em qualquer lugar que pudesse. Bel poderia já ter passado fome durante alguma parte de sua vida, mas não como “Belchior”, não com tamanha elegância. O artista desta vez possuía fãs e um repertório conhecido suficiente para que a o garbo se sobressaísse perante qualquer outro julgamento.

“A Palo Seco” (1974, “Belchior”)

É no seu disco de estreia que Belchior publicou o que basicamente diria a uma matéria para o “Fantástico”, programa da emissora Globo. Após muita procura da imprensa pelo “sumiço” do cantor, fãs relataram ter visto Bel no Uruguai, hospedado em um hotel. Como esperado, lá estava. Após insistência, Belchior cedeu uma entrevista para a então repórter Sônia Bridi. “Se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava… De olhos abertos lhe-direi, amigo eu me desesperava”, tal letra de “Palo Seco” não foi repetida literalmente para a jornalista, mas certamente ilustra o sentimento do cantor. Cansado dos rumos em que a vida tomava, o desespero fez com que Bel “jogasse tudo fora”, rodando pelo Brasil e o mundo em busca de paz.

“Sujeito de Sorte” (1976, “Alucinação”)

O disco “Alucinação” é talvez o mais icônico de Belchior e pela segunda vez é citado no texto. Na letra da canção “Sujeito de Sorte”, Bel demonstra otimismo com a vida. Era o segundo álbum de sua carreira e provavelmente o ápice de sua realização profissional, quando foi inserido de vez na cena nacional do MPB brasileiro, ultrapassando as barreiras do Nordeste. Em uma música de letra enxuta, é no último verso que o artista diz: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Belchior faleceu aos 70 anos de idade, em Santa Cruz do Sul, no estado do Rio Grande do Sul. Seu falecimento até hoje não possui causa oficial. Belchior não morreu, sua obra é viva, atual e reflexiva. A morte, única certeza que temos sobre a vida, nos traz a mesma certeza de que Bel vive, Bel mantém e Bel respalda o nosso contexto atual com a mesma elegância que passou fome e conquistou a América Latina.