Do Desabrigo à Confiança: Daseinsanalyse e Terapia

O livro de Bilê Tatit Sapienza, denominado – Do desabrigo à confiança: daseinsanalyse e terapia. São Paulo: Escuta, 2007, presta uma contribuição à fundamentação terapêutica do Daseinsanalyse, prática clínica fundada por Medard Boss (1903-1990), médico psiquiatra, por alguns anos aluno de Martin Heidegger e, analisando de Sigmund Freud (FREITAS, 2014).

Boss foi admirador do interesse clínico persistente de Freud pelos casos de seus pacientes; também foi influenciado pelos pensamentos existenciais de Heidegger, lançados em questionamentos filosóficos como: “poder-ser futuro que ainda não é, marcados por um passado que não é mais, limitados pela transitoriedade do presente que se doa”. Compreendeu que a partir das reflexões filosófica existencial o método de investigação da ciência natural não dava a dimensão de investigação necessária que o humano necessitava, conforme Freitas (2014).

Sapienza (2007, p. 11) contextualiza que “a palavra Dasein, ser-aí, designa aquele ente para o qual ‘ser’ é sempre questão; aquele ente que é o ‘ai’ onde se ‘da’ ‘ser’, aquele cujo modo de ser é ser sempre ‘ai’ (grifos autor)”. O autor pergunta – “Aí onde? Respondendo: no mundo”. Então a palavra Dasein trata-se da existência humana no mundo.

O autor avisa aos psicólogos iniciantes que a fenomenologia e a Daseinsanalyse, pode parecer um pensamento livre e envolvente com questões envolventes, como: “que demais é tudo isso! A gente vai longe pensando o que é pensar! No que é ser! No que é existir! No ser lançado” (p. 12). A finitude da existência humana potencializa o valor da vida.

Sapienza (2007) consegue abordar assuntos difíceis, cuja compreensão filosófica costuma ser árdua e distanciada duma prática aplicável, levando o leitor a contextos significativos onde os termos específicos da filosofia de Heidegger aparecem com muita propriedade, inseridos, permitindo a compreensão do seu sentido sem exigir o conhecimento de definições prévias, articulando tanto no âmbito da ontologia fundamental quanto no da experiência existencial do paciente e do terapeuta.

Sapienza (2007 apud FREITAS, 2014) faz uma costura entre o pensamento heideggeriano com a prática da Daseinsanalyse, explicitando a necessidade e dificuldade de trabalhar sem o amparo de teorias explicativas. Abarcando somente os fenômenos que se dão na vida dos pacientes, tendo, portanto, como referência a condição ontológica da existência em Dasein, somente neste sentido aportada na incerteza.

Essa maneira de estar com o paciente é algo que conquistamos aos poucos, pois a tendência mais comum do psicólogo é querer fazer o Diagnóstico. […] O terapeuta não está ali lidando com um psiquismo, querendo explicar como e por que ele funciona de uma tal forma. Ali ele se encontra com a existência de um ser humano que quer ser compreendido por alguém e quer se compreender melhor. Esse modo do terapeuta estar na sessão faz muita diferença. Isso não deve, entretanto, ser confundido com a mera expressão de um comportamento afável, de um jeito simpático de ser com o paciente (SAPIENZA, 2007, p. 14).

Sessão de psicoterapia
Fonte: http://bit.ly/2W21TNV

O trabalho da Daseinsanalyse na clínica se compromete não com as ideias filosóficas em si, mas com o cuidado com a vida efetiva, com a existência única daquela pessoa que nos procura. Ainda que tentássemos nos amparar no saber heideggeriano como instrumento seguro para o exercício do nosso trabalho clínico, fracassaríamos, visto que a própria compreensão fenomenológica da existência como essencialmente livre, esvazia a nossa possibilidade de prever, controlar ou justificar o modo como cada um vive e age. Portanto o existir humano não se submete às leis da causalidade, tampouco permite os meios teóricos como compreensão e/ou parâmetros interpretativos, conforme Freitas (2014).

Outro ponto abordado no texto que chama a atenção para aplicação clínica, enfatiza que embora a Daseisanalyse não diga respeito diretamente a fenomenologia de Hussel, essencialmente, ela fundamenta características primordiais do método fenomenológico, como: a suspensão fenomenológica “volta às coisas mesmas”. Hussel então apresenta o método que comporta dois momentos, sendo eles: a redução eidética e, a redução fenomenológica (SAPIENZA, 2007, p. 23).

O autor explica: redução eidética vem de eidos, igual à essência; quando se chega ao fenômeno imaginariamente, é retirado tudo dele, sem que com isso ele (fenômeno) deixe de ser o que é, isso é sua essência. A redução fenomenológica é “a suspensão de concepções e julgamentos prévios a respeito daquilo que se deseja investigar e procura se prender à evidência do que se apresenta para a consciência é suspenso”, o que restou foi o resíduo da redução fenomenológica, conceituado como fenômeno na consciência, conforme Sapienza (2007, p. 23-24).

Pode-se entender que o encontro terapêutico descrito por Sapienza (2007 apud FREITAS, 2014) propicia sessões ricas em possibilidades, questionamentos, reflexões e sentimentos, dentro da relação terapêutica. Daseinsanalyse, em certa medida faz surgir cumplicidade, permite o acesso a uma história possível, com fundamentos ontológicos do existir humano, que, tocado pela dor do paciente, o profissional se dispõe ao acolhimento em terapia.

Terapeuta e paciente se permitem corajosa e cuidadosamente à beira do foço da imprevisibilidade na narrativa vindoura e do desenrolar-se da história do paciente, à procura de ampliar e iluminar o acesso à sua própria existência, esperando o surgimento, ou não, de novas rearticulações de sentido capazes de permear seu mundo com uma disposição afetiva de predominante confiança (SAPIENZA, 2007 apud FREITAS, 2014).

Para encerrar esta resenha, informo que a literatura – Do desabrigo à confiança: Daseinsanalyse e terapia, foi que ampliou muito o conceito de Daseinsanalyse. As possibilidades de elaboração do texto são inúmeras, más, a ideia foi não incluir o caso clínico, fixando-se nos conceitos principais da fenomenologia, no viés Daseinanalyse. Compreendi que a terapia daseinsanalítica tem um lugar importante dentro da fenomenologia, necessitando que o profissional que a abraçar, precisará ter um aprofundamento filosófico na ontologia fundamental de Martin Heidegger; entretanto como foi explicitado no início deste texto, é conveniente ficar atento para não deixar que o encanto com as ideias acerca da existência humana ofusquem a compreensão dos fenômenos ônticos da existência única de cada paciente em terapia.

 

FICHA TÉCNICA

Nome do livro: Do Desabrigo à Confiança: Daseinsanalyse e Terapia
Editora: Escuta
Autor: Bilê Tatit Sapienza
Idioma: Português
Ano: 2007
Páginas: 132

 

REFERÊNCIAS

FREITAS, D. P. Fenomenologia em Heidegger e o desafio da clínica daseinsanalítica. Rev. latinoam. psicopatol. fundam. vol.17 no.1 São Paulo Mar. 2014.Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142014000100010, Acesso: 20.06.2018.

SAPIENZA, Bilê Tatit. Do Desabrigo à Confiança: daseinsanalyse e terapia. São Paulo: Escuta, 2007.