“A identidade do sujeito é um produto das relações com os outros. Neste sentido todo indivíduo está povoado de outros grupos internos na sua história. Assim como também povoado de pessoas que o acompanham na sua solidão, em momentos de dúvidas e conflito, dor e prazer. Desta maneira estamos sempre acompanhados por um grupo de pessoas que vivem conosco permanentemente”, dizia Pichon Rivière [1].
Nesse ponto, torna-se até redundante algumas falas da psiquiatra de Kevin buscando explicar o que as atitudes do personagem já haviam deixado claro, como o diálogo entre suas personalidades, a manifestação de mais de um ao mesmo tempo, dentre outras tentativas didáticas de informar o público sobre aspectos do Transtorno Dissociativo de Identidade.
Hedwig, Patricia, Dennis e Barry.
O título do filme em português remete à teoria psicanalítica sobre a fragmentação do Ego, e olhando por esse lado, se Shyamalan tivesse explorado essa abordagem a partir da personagem da terapeuta a história poderia ter ficado ainda mais intrigante. Todavia, o foco ficou mais no campo neurocientífico das reações corporais dada a manifestação de cada personalidade, sendo pouco explorados os aspectos psicológicos que geraram a patologia. Mas, vamos falar sobre Kevin. Brilhantemente interpretado por James McAvoy, o rapaz possui em si 23 pessoas, ficando a 24ª em suspense por algum tempo, entre a fantasia e a realidade, dado o fato de nenhuma das pessoas da Horda (como prefere ser chamado o grupo) terem conhecido-a.
Dentre todas as identidades que habitam o corpo de Kevin, Dennis é a dominante, ao lado de Patricia, uma dama requintada, são eles os protetores das outras personagens consideradas mais frágeis, também são eles que sustentam a existência do monstro, nunca visto, mas que acreditam ter sido criado quando o pai de Kevin partiu em um trem, e que aguarda o momento certo para aparecer e proteger o grupo dos humanos, visto que ele é o ápice do aprimoramento dos mecanismos de segurança da psique de Kevin. Nesse ponto a história de Shyamalan ganha ares de X-Men, e o que é considerado patológico e anormal pela sociedade, de outro ponto de vista é apresentado como um ganho evolutivo para a proteção tanto física quanto psíquica do indivíduo, que de outra forma poderia ser destruído. Discussão abordada por Canguilhem [2].
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Mas, voltando à discussão sobre as identidades, cada uma surge em um momento crítico da vida de Kevin com o objetivo de protegê-lo do perigo, são partes de um Ego fragmentado que nunca conseguiu se unificar. A psicanálise de Melanie Klein [3] explica que, ao nascer o Ego rudimentar do indivíduo ainda é frágil e em formação, isto posto, diante das pressões e ameaças externas, o Ego tende a se fragmentar, gerando terreno fértil para o desenvolvimento de diversas doenças psíquicas. Para Klein, o local de fixação das doenças psíquicas estaria na posição esquizoparanoide – que termina por volta do terceiro ao quarto mês de vida – e no início da posição depressiva que a segue. Sendo assim, a origem se dá a partir dos cuidados maternos, que no caso de Kevin ficam claros terem sido precários, para não dizer maus.
Na infância que se segue, a relação entre Kevin e a mãe tem uma continuidade permeada por violência, o que favorece a fragmentação do Ego e o surgimento das diversas personalidades, uma delas é Hedwig, um garoto de nove anos assustado e que furta objetos das outras identidades para poder brincar, teme a Dennis e a Patrícia, mas confia neles e os obedece como se eles fossem o pai e a mãe que o protege das ameaças externas. Já Dennis é compulsivo por limpeza e organização, extremamente meticuloso, inteligente e forte, tem fantasias com garotas stripper, é ele o sequestrador e detentor do controle sobre o grupo, ao lado de Patrícia que, por sua vez, é uma dama requintada, elegante e também meticulosa como Dennis, se irritando até com um corte torto num sanduíche.
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Esses dois personagens reclamam serem os mais fortes, os únicos capazes de proteger Kevin, mas que foram banidos da consciência, ficando adormecidos durante muito tempo, e agora voltaram devido às neuroses [4] de Barry, o artista, designer de moda, que ficou por 10 anos com a luz, mas teve suas angústias atualizadas mediante uma provocação sexual de duas garotas.
Não conseguindo superar a situação, a libido de Kevin retorna ao ponto de fixação de onde surgiram Denis e Patrícia trazendo-os de volta para proteger os demais das ameaçadoras garotas “impuras” que o abusaram no presente, atualizando possíveis abusos sexuais e violência vivenciados na infância. A partir desta situação entende-se o sequestro planejado das duas adolescentes, entrando a terceira no caso por acidente.
Os abusos sexuais na infância de Kevin, apesar de ficarem apenas no campo da hipótese, são evidenciados na mania de limpeza de Dennis, que busca a todo o tempo se livrar das impurezas, do pó, bem como em suas fantasias eróticas com garotas dançando nuas e, também, em sua relação com a terceira personagem sequestrada por acidente. E ainda, nas angústias de Barry, no perfeccionismo de Patrícia e na crença da eliminação das garotas impuras que, de abusadoras, passam a ser alimento sagrado para o monstro.
Este, por sua vez deseja devorar seus ventres, numa alusão à figura materna que o gerou. Este ato também remete a uma atualização do Complexo de Édipo e do mito da horda primitiva de Tótem e Tabú [5], onde, ao devorar o ventre ele tanto possui a mãe quanto destrói o pai, presente neste através da semente plantada em seu útero, o que, portanto, simboliza o devorar o próprio pai, finalmente destruindo seu opositor e se apropriando de seu falo e conquistando o poder.
REFERÊNCIAS:
[1] ALONSO, A. N. D. S., Rio de Janeiro, (2003). A importância da afetividade no relacionamento professor-aluno para o sucesso do processo ensino-aprendizagem. Disponível em: http://www.avm.edu.br/monopdf/6/ADRIANA%20NASCIMENTO%20DA%20SILVA%20ALONSO.pdf.
[2] CANGUILHEM, G., (1943,1995). O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. – 4a. Ed.- Rio de Janeiro, Forense Universitária.
[3] Klein, M. (1986b). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In M. Klein (Org.), Os progressos da psicanálise (4a. ed.). Rio de Janeiro: Zahar.
CAPITÃO, Carlos Garcia; ROMARO, Rita Aparecida. Concepção Psicanalítica de Família. In: Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012.
[4] FREUD, S. (1912), Tipos de Adoecimento Neurótico. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[5] FREUD, S. (1912-1913), Tótem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos. In: Obras completas volume 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
FRAGMENTADO
Diretor: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 14