Loucura: configurações e roupagens ao longo da história

Muito se fala sobre loucura e suas formas de manifestações nos nossos dias. Entretanto, esse debate, ao decorrer dos tempos, foi se apresentando de diversas maneiras e configurações. Em seu livro “A história da loucura na Idade Clássica” (1972), Michel Foucault apresenta quatro tipos de consciência da loucura que permearam o coletivo social. Vale ressaltar que esses tipos de consciência acerca da loucura não desapareceram, mas em determinados tempos históricos se sobrepuseram uns aos outros. Essas quatro formas de consciências da loucura não são solitárias. Cada uma delas possui como anteparo outra, justificando-se e retroalimentando-se.

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A consciência crítica da loucura não chega a ser uma definição da forma de enxergar a loucura, mas uma denúncia da loucura. Como cita Foucault (1972), essa consciência da loucura tem certeza de não estar louca, baseando-se, portanto, em certa racionalidade que foge a debates pois se vê incapacitada de argumentar mais fortemente. A segunda forma de consciência da loucura é a consciência prática. Aqui, o louco, o portador da loucura, é visto como um ser inferior à razão, sendo assim uma ameaça à ordem que a racionalidade impõe. A desordem que o louco pode provocar num sistema rigidamente estruturado é sentida como um estranho poder que deve ser silenciado. “(…) dela resta apenas a tranquila certeza de que é preciso reduzir a loucura a silêncio” (FOUCAULT, 1972).

A consciência enunciativa da loucura pode ser entendida como o “saber instintivo” que permite apontar e dizer: é um louco! Não se pode cair no erro de classificar essa forma de consciência como desqualificação ou rotulação negativa da loucura, ou do indivíduo louco. É somente o indicativo do reconhecimento da existência irrecusável e inegável da loucura em um indivíduo. É a percepção da loucura, sem que haja necessariamente um debate de valores associado a essa percepção. Por último, Foucault cita a consciência analítica da loucura. É o olhar que procura dominar a loucura.

Ao se enxergar como ser que pode distinguir a loucura, quem a percebe de forma analítica passa a eliminar o misticismo que a envolve, erradicando os supostos perigos que a loucura pode causar à ordem instituída pela racionalidade. Essa consciência analítica da loucura é a base para todos os saberes objetivos que se tem sobre a loucura nos dias atuais.

Betlhem Royal Hospital. Fonte: http://migre.me/wjKeo

Neste livro, Foucault também aborda o processo histórico da loucura, trazendo uma reflexão sobre loucura e razão do século XVIII, uma sociedade que em sua origem já caminhava para um olhar estereotipado onde emoções desordenadas eram advindas do homem irracional. Algumas questões foram postas a argumentação como: O que seria louco diante dos homens da razão? Como classificar o louco em um século em suas origens? Como apontar sem errar?

De acordo com Bauman, no pós-modernismo o homem passa a estruturar sua vida, sua trajetória de vida. À luz da racionalidade dessa nova sociedade, as escolhas desse homem que transpusessem a linha da normalidade eram classificadas como sinal de loucura. O conceito de loucura como algo que rompe a barreira da normalidade é mantida culturalmente até os dias atuais. 

Tendo como consequência dessa lógica, no capítulo da obra intitulado O Louco no Jardim das Espécies, é evidente um processo classificatório em que diversas doenças ditas mentais, cerebrais e espirituais foram classificadas arbitrariamente. Frente a essa atividade classificadora houve um choque, pois, dividir as formas de loucura conforme seus signos e suas manifestações gerava uma contradição, como se a relação de loucura com aquilo que pode apresentar de si, não fosse essencial, nem houvesse uma relação de verdade.

“Desobedecer”, Henry David Thoreau. Fonte: http://migre.me/wjJBM

Quanto à relação de loucura apresentar uma relação de verdade, cabe aqui ressaltar um “louco” que não se limitou as ordens impostas por uma sociedade capitalista da qual discordava, seu nome era Henry David Thoreau. Ele não se avalia quanto à razão da sociedade civil, mas o que julga ser correto. A verdade expressa por Thoreau é dita de forma simples em uma de suas palavras “A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer em qualquer tempo o que julgo ser correto”. Ou seja, diante do modelo capitalista, se atreveu a abandonar a cidade, a família, o luxo, as tecnologias para viver na floresta, apenas com aquilo que a natureza lhe oferecia, como os primitivos. Uma verdade expressa de acordo com suas particularidades. 

À reflexão proposta por Foucault “O que seria louco diante dos homens da razão?” cabe salientar Bauman e alguns conceitos que predominam na pós-modernidade, como o puro: considerado aquele que é civilizado; impuro: aquele que não está dentro dos conceitos da sociedade moderna, (ex: o louco), não controla as emoções e o estranho: não consegue ser visualizado, é fonte de mal estar, é o sujeito que escapa à lógica classificatória de uma sociedade.

E, além disso, é preciso repensar quanto à liberdade do sujeito, pois a sociedade caminha para um modelo classificatório dicotômico, estigmatizado e estereotipado, visualizado segundo Foucault a partir de uma percepção marginal, um ponto de vista enviesado, através de uma espécie de raciocínio instantâneo, indireto e ao mesmo tempo negativo. A loucura é o lado despercebido da ordem. Assim não cabe à sociedade o papel de julgar e classificar segundo suas próprias convicções, pois o olhar de certo ou errado transpassa gerações, culturas, lógicas políticas e sociais. A diversidade simultânea não é a única: maiores são as variações de um século para outro. Os valores éticos podem se transformar, assim como a sociedade se transforma (VALLS, 1994).

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Em Voltaire “chama-se de loucura as doenças dos órgãos do cérebro”. Dictionnaire philosophique, verbete «Loucura», Benda, I, p.285. No século XVIII havia várias formas de pensar sobre a loucura. Os casuístas e teólogos a tinham como um afastamento de alma e corpo, com isso haveria uma salvação para o louco, pois de certa forma sua alma estava distante durante o período da loucura.

Para os juízes, a opinião era a mesma, pois não era criminalizado o ato da loucura. Ambos acreditavam que durante esse período de demência, a personalidade do indivíduo se conservava intacta. Nos discursos médicos, a loucura era vista como uma perturbação da sensibilidade e os sentidos eram os culpados das loucuras. Para Voltaire, as entradas da alma estavam na forma original, e quem estava doente é o morador.

Segundo Foucault (1972) na loucura há duas estruturas que se desenvolvem em dois ciclos: causalidade e ciclo da paixão e da imagem, que seriam na essência o momento da loucura, onde há uma alteração mecânica, o demente faz coisas inimagináveis, ações feitas apenas nesses momentos, e, alterações químicas, se tornando agitados. Essas são as chamadas causas proximais, é a parte que se pode ver da doença. São as manifestações físicas das coisas internas. Na parte invisível da manifestação da doença são internalizadas imagens distorcidas que ocasionam desordens na fala e nos gestos.

Muitas pesquisas foram desenvolvidas para encontrar a causa da loucura. Bonet (1679) afirma que para cada tipo de doença era reconhecida uma forma diferente do tecido cerebral. Passando-se o tempo, novas visões foram surgindo. Para Foucault, (1972) no mundo as variações e os excessos podem provocar a loucura. Nisso, por um grande período de tempo o desatinado foi internado, para separar os considerados sensatos dos insensatos. Segundo Foucault (1972) nesse período eles eram tidos como “nada” eles não “eram” simplesmente. Com o aprisionamento, muitos perdiam a vontade de viver. O internamento não era, portanto, no sentido de aprisionar a loucura, mas sim de aprisionar uma pessoa que perdera sua qualidade de ser.

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Foucault aborda a loucura sobre diversas perspectivas, onde o mesmo cita as formas e os níveis que cada uma se apresenta, encaixando-as de acordo com suas características peculiares. No século XVIII e começo do séc. XIX, ele observou que as figuras da loucura podiam ser divididas em grupos, a saber: da demência, mania e melancolia, histeria, hipocondria. “[…]. Tentaremos mostrar como se situaram no interior da experiência do desatino; como aí conseguiram, cada uma delas, uma coesão própria e como chegaram a manifestar de modo positivo a negatividade da loucura”. (FOUCAULT, 1972, p.278).

A demência é uma das figuras da loucura caracterizada pela perda de algumas capacidades essenciais que o indivíduo precisa tanto para resolução de problemas como em relações interpessoais. Segundo o autor ela tem permanecido sobre a perspectiva da negatividade, o que a impede de ter uma representação como figura característica. De acordo com Foucault (1972) num certo sentido, a demência é, dentre todas as doenças do espírito, a que permanece mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral, da loucura experimentada em tudo aquilo que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade”.

O autor ainda ressalta “Ela não tem sintomas propriamente ditos, é antes a possibilidade aberta de todos os sintomas possíveis da loucura.” Ou seja, a demência, em sua particularidade pode apresentar-se com um leque de sintomas. Sendo assim, diversas são as causas que podem manifestar-se provocando esse estado de loucura. Ainda trazendo a questão do que pode causar a demência, seus sintomas e causas, o autor ressalta “Se o cérebro é, isoladamente, a causa da doença, pode-se procurar as origens disso inicialmente nas próprias dimensões da matéria cerebral, […]”.

A demência não organiza suas causas, ela não as localiza, não especifica suas qualidades segundo a figura de seus sintomas. Ela é o efeito universal de toda alteração possível. De certo modo, a demência é a loucura menos todos os sintomas particulares a uma forma da loucura: uma espécie de loucura em filigrana da qual transparece pura e simplesmente aquilo que a loucura é na pureza de sua essência, em sua verdade geral. A demência é tudo o que pode haver de desatinado na sábia mecânica do cérebro, das fibras e dos espíritos (FOUCAULT, 1972, p. 282).

Michel Foucault irá abordar a mania tendo como característica a audácia e o furor, já a melancolia é marcada pela tristeza, pelo medo e pensamentos fixados em um único objeto. “Enquanto o espírito do melancólico se fixa num único objeto, impondo-lhe, apenas a ele, proporções irracionais, a mania de forma conceitos e noções; ou então perdem sua congruência, os seus valores representativos são falseados, […]”. (FOUCAULT, 1972, p. 298). A histeria e hipocondria também remetem a figuras de loucura.

Torrente de Loucos, Portinari. Fonte: http://migre.me/wjJNP

Sobre a histeria, cita-se que é ardorosa por natureza, o que lhe confere uma associação mais imagética do que de enfermidade. A hipocondria está mais comumente associada a alucinações. Essas eram as figuras consideradas manifestações da loucura no séc. XVIII, às vésperas do século. XIX, onde por loucura, entendia-se a cegueira para os próprios excessos da sensibilidade (FOUCAULT, 1972, p.294).

No capítulo Médicos e Doentes, há uma reflexão sobre as doenças e curas durante o século XVIII e que a natureza era praticamente a responsável pela a cura dos males que importunavam os habitantes desse século passado. De acordo com o autor, as enfermidades que surgiram na idade média eram curadas com a panaceia (remédios extraídos da natureza), tudo que era preciso para estabelecer uma cura em qualquer indivíduo se extraia do meio ambiente.

Até mesmo o uso dos vegetais e dos sais logo era reinterpretado numa farmacopeia de estilo racionalista e colocado numa relação discursiva com as perturbações do organismo que se acredita poder curar. Logo, o que existe no mundo sendo mal haverá um antídoto para esse mal, porque ele não existe em estado simples; é sempre compensado: “Antigamente, a erva era boa para o louco e ruim para o carrasco” (FOUCAULT, 1972).

Um paciente e Asclépio entre Hermes e as Três Graças: Medicina, Panacéia e Higéia. Fonte: http://migre.me/wjOnj

Segundo Foucault, é muito estranho explicar essa loucura de medicamento, sendo que na era clássica encontravam-se fármacos em humanos e em minerais, mesmo contrariando a vontade da medicina da época que não aceitava o que a maioria dessas antíteses, instituídas todas pela loucura, não são de norma vegetal, mas de âmbito humano ou do reino mineral. “Fenômeno da alma e do corpo, estigma propriamente humano, nos limites do pecado, signo de uma decadência, mas igualmente lembrança da própria queda, a loucura só pode ser curada pelo homem e seu envoltório mortal de pecador.” (FOUCAULT, 1978, p. 333).

Nesse contexto, o autor afirma que os médicos do século XVIII protestaram contra a medicina de curandeiros, enquanto as técnicas aprendidas pelos doutores muitas vezes eram desprezadas, como veremos nessa citação em 1772, um médico de Lyon publica um texto significativo, L’Anarchie médicinale

A maior parte da medicina prática está nas mãos das pessoas nascidas fora do seio da arte; as curandeiras, as damas de misericórdia, os charlatães, os magos, os vendedores de roupa usada, os hospitaleiros, os monges, os religiosos, os droguistas, os ervatários, os cirurgiões, os farmacêuticos, tratam maior número de doentes e dão mais remédios do que os médicos (GILIBERT ,1772, p.3-4).

Para os médicos algumas das ideias terapêuticas que organizaram as curas da loucura eram a consolidação, a purificação, a imersão, a regulação do movimento. Uma vez que a loucura tanto pode ser paralisada abafada e fixação obstinada, quanto desorganização e fricção, a cura consiste em eclodir no doente um movimento que seja ao mesmo tempo regular e real, no sentido de que deverá obedecer às regras dos processos do mundo. Em visto disso, ao mesmo tempo em que é uma prática, toda cura é uma reflexão rápida sobre si mesma, sobre a doença e sobre a convivência que se estabelece entre uma e outra.

Casa de Loucos (1808/1812), Francisco de Goya. Fonte: http://migre.me/wjJWo

Que a loucura permeia a humanidade, suas nuances e performances provocando medos, misticismos, pavor e tentativa de dominação, isto é sabido. Estas configurações, entretanto, foram se modificando e assumindo novas roupagens durante o passar dos séculos. Para Foucault, o século XIV mostrou-se sensível à indefinição da loucura, acolhendo com certa indulgência (e por vezes grande curiosidade) os reveses da existência da loucura. 

Os séculos XIX e XX, ao contrário, trouxeram uma inquietação inquisitiva sobre a existência da loucura. Era preciso procurar arduamente a verdade final, a causalidade da loucura. Era preciso entendê-la, conhecê-la, revirá-la… para enfim, dominá-la. Na idade clássica, entretanto, a experiência da loucura foi rigidamente polarizada. Por um lado, tinha-se a consciência crítica e a consciência prática. Por outro, as formas de conhecimento e de reconhecimento (FOUCAULT, 1972).

Nesse ínterim,  conhecer então, esse percurso, é conhecer sobre a forma como enxergamos o louco e a loucura ao decorrer dos séculos, nos permitindo refletir sobre a estigmatização deste indivíduo e abrindo novas possibilidades de convivência e integração dele e de toda a simbologia que ele representa.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972/1978.

GILIBERT, J.E. L’Anarchie médicinale. Neufchâtel, 1772, II, p.3-4.

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 1997.

VALLS, Álvaro L. M. O Que é Ética. Coleção Primeiros Passos: Editora Brasiliense, 1994.