A diligência – “Façamos, vamos amar”

A diligência é um substantivo feminino oriundo da palavra latim diligere que significa amar. Na língua portuguesa essa palavra possui mais de um significado. A palavra diligência refere-se a atos realizados por trabalhadores do poder judiciário fora do estabelecimento público. Refere-se também a uma carruagem movida à força animal usada em conquistas territoriais como ocorreu na história norte-americana rumo ao oeste. O filme “Stagecoach” (traduzido como “No tempo das diligências”) de Jonh Ford (1939) retrata uma diligência que carrega um grupo de pessoas para o Novo México. O enredo do filme não é importante para o propósito deste texto, mas ressalta-se a colaboração do filme para associar a diligência à alta velocidade (para os padrões dos tempos do faroeste).

Além desses significados, a diligência é definida pelo dicionário Aurélio como a “presteza em fazer alguma coisa; zelo.” O fato de a palavra presteza significar rapidez colabora também para a associação existente entre a diligência e a rapidez.

Outro significado da palavra diligência é o de antídoto contra o pecado da acídia, conhecida, erroneamente por preguiça. De acordo com “Provérbios 20-27” “O preguiçoso não assará a sua caça, mas o bem precioso do homem é ser ele diligente.”

Significados à parte, a diligência é um significante do saber humano (mesmo que pouco usado) e, portanto, amplia-se sua compreensão quando associado a outros conceitos que vão além de seus próprios significados. Um primeiro conceito com o qual pretendo discutir acerca da diligência é o de sensibilidade.

O que é a nossa sensibilidade? Talvez não se possa dizer o que ela é exatamente, como, quando apontamos a uma cadeira, dizemos que cadeira aquilo é. Mas pode-se dizer como elas funcionam, a sensibilidade e a cadeira. Algo para funcionar não precisa ter a natureza de “ser” para além do que coloca em movimento enquanto funciona. Como a um sopro, carregado sim de sua natureza corpórea, com sua massa relativa e absoluta, nossa sensibilidade existe. Além disso, nossa sensibilidade, como o sopro, congrega e está congregada a tantas outras múltiplas sensibilidades. Assim, defini-la por sua corporeidade seria perda de tempo, como se tentássemos delimitar um sopro dentro de um tornado. Nossa criatividade se constitui por nosso conjunto de sentidos, ou seja, de nossos sistemas decaptação do mundo e da integração entre eles.

Somos extremamente frágeis e podemos façanhas grandiosas. Temos tamanha capacidade de destruição que 25 anos de educação para a vida social não são, em muitos casos, suficientes, para despertar o carinho, a alegria e a prontidão social (diferente da prontidão serviçal assistencialista) de pensarmos no bem e agirmos da melhor maneira, características constantes nos diversos significados da diligência. O “pensar no bem” e o “fazer da melhor forma possível” depende de uma ética e de uma moral (depende, pois, da organização dos ajuntamentos de pessoas no mundo). O exercício ético e moral fundamentam políticas públicas, de Estado, internacionais, privadas e de base, nos campos da educação, da saúde e outros vários; fundamenta também o que divide o mundo em “pecado” e “virtudes”.

As teorias sobre os sete pecados capitais, de acordo com Jean Lauand (2004), em suas notas para a conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, são cristãs por origem. São oriundas da reflexão dos padres e monges cristãos dos primeiros séculos depois do nascimento de Cristo, em suas práticas monaquistas. O termo “capital” deriva do latimcaput, que quer dizer “cabeça”, ou seja, o pecado que está no topo e que comanda. As virtudes são os antídotos dos pecados. São atos e coisas que funcionam no sentido de reverter os processos gerados pelos pecados.

Como já dito, a diligência é o antídoto da acídia. A acídia é o pecado maior que dá origem a pecados menores como a preguiça. A acídia não é o mesmo que o “perder de tempo” da preguiça. O pecado da acídia refere-se às práticas julgadas como moralmente e eticamente contrárias ao amor; o que se perde no exercício da acídia não é somente tempo, mas também as condições que atraem o amor; perde-se vida, perde-se sensibilidade.

A pressa sim encontra lugar em nosso estilo de vida. Ela nada tem a ver com a diligência. Isso é o que nos diz Paul Lafargue, em seu livro “O direito à preguiça”. A preguiça de Lafarque é o antídoto da pressa que nos bestializa, que nos aliena, que nos prende aos nossos erros, que faz de nossa sensibilidade um instrumento mal cuidado, esquecido nas carreiras, esteiras e escadas rolantes de nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a preguiça defendida por Lafargue apresenta, em seus interstícios fundantes, em suas entranhas paradigmáticas, em seus veios de vida-saber, as condições para uma educação universal, plena e integral do ser humano, que contempla sua diversidade de maneira mais governante ao invés de mais governada. O nome do livro, com perdão pela audaciosa proposta, heurística apenas, poderia ser “Um convite à diligência”, uma vez que o autor realmente nos convida a analisarmos o porquê de fazermos o que fazemos, de pensarmos e repensarmos a forma como vivemos, exercício para a vida diligente.

Com isso, Lafargue e outros autores que refletem sobre os modos de vida que operam relações e subjetividades, nos comunica que o ser humano, independente de classe social ou etnia, é um manancial de potência de vida, é um manancial de sentir, perceber, conhecer, afetar-se, amar, emocionar-se, sofrer. Dizendo em outros termos, o convite é para olharmos o quanto de nossa vida é condição para o exercício da diligência e o quanto dessas condições nós próprios criamos. Podemos levantar a seguinte questão: como a nossa comunicação, trasvestida em seus afluentes educacionais, prisionais, sociais etc, ensina, compartilha, dissemina, cria e permite a diligência? Mais precisamente, a questão é: onde comunicamos diligência quando fazemos o que fazemos?

A vida, para comunicar a diligência, deve-se exercitar-se, às vezes a esmo, às vezes sistemática, nadando ainda na desintegração dos próprios sistemas e sentidos estabelecidos por nossos contratos sociais neuróticos, insensíveis à vida, burocráticos. Mas, se a olharmos em seus detalhes, naquilo que, imaginando nós, a vida nos queira comunicar (como se cada coisa tivesse a sua própria mensagem, a nossa vida inclusive) veremos que ela nos fala pela diligência espermatozoidal e ovular, pelos sistemas de percepção altamente qualificados no homem e pelo cuidado que tais sistemas devem receber para captarem a diversidade que o mundo nos oferece. O conjunto dessas coisas é a expressão diligente da própria vida, incluindo, ainda como exemplo, a diversidade da vida no planeta terra, ou mesmo no quintal de casa.

E tal expressão se compõe, dentre outras coisas, de exercícios que nada tem a ver com Ordem e muito menos com Progresso. A vida, para existir, supera os obstáculos que o meio lhe impõe, invariavelmente. O exercício é o elemento da diligência e é o que faz a vida. Sem exercícios nunca andaríamos e tão pouco falaríamos. E, se a vida nos fala para andarmos com seus exercícios, é que ela própria é uma diligência. E se somos feito de corpo, esses exercícios devem abarcá-lo também e, portanto, temos que fazer mais exercícios físicos, fazer mais sexo e usar mais princípios ativos; temos que andar mais, peripateticamente.

A diligência assume formas tão interessantes quanto desconhecidas; a diligência depende da sensibilidade e da vida. As formas de nossa sensibilidade e da nossa vida são orientadas pelo sistema social, em especial em suas manifestações educativas, legislativas e de controle. Tal sistema molda o sentir humano que é uma fonte de energia. Somos iguais pilhas, mas não necessariamente temos que estar “pilhados” com tanta frequência.

As formas de sensibilidade dependem do sistema de cultivo em que nos encontramos, não só das plantas, mas também de outras coisas cultiváveis, como filhos, afetos e conflitos. Os sistemas de cultivos dessas coisas todas influenciam-se e parecem ter a tendência de seguir o sistema de cultivo das plantas, no nosso caso o latifundiário. São as orientações relacionais que estão no sistema de cultivo que orientam, não sozinhas, nossa educação, nossas relações sociais, nossos exercícios de estímulo à sensibilidade, nossas concepções.

No sistema latifundiário, a aproximação entre o homem e aquilo que ele cultiva é a menor possível. O veneno e as máquinas medeiam tal relação. No caso dos filhos ocorre uma tendência parecida: os fármacos e as fichas de triagem de psicologia, medicina e outros profissionais são os instrumentos que medeiam a relação entre pais e filhos e entre professores e crianças educandas do ensino infantil. No caso dos afetos, a tendência, a mesma na relação com as crianças, é a do fármaco substituir a emoção produzida pelo nosso mundo. No caso dos conflitos, a burocracia cada vez mais entra em suas mediações, deixando-nos sem material para analisarmos nossas vidas – tudo é decidido por terceiros que decidem sobre nós.

Contrapondo ao esquema latifundiário, pode-se pensar a relação com o cultivo de outras maneiras. Pode-se num relação a partir de seus possíveis efeitos. Que efeitos teria na prática de cuidado com as crianças, com os afetos e com os conflitos uma prática de cultivo das plantas não latifundiária, pelo contrário disseminada entre a maioria? Qual seria o efeito no qual o cultivo das plantas seja criado ao costume de uma sociedade, inclusive como recurso para evitar as fomes que passam seus membros, como no caso do Brasil? O cuidado com as plantas requer o manejo da terra, das raízes e folhas. Para tal manejo se tornar capilarizado (não latifundiário), deve-se acrescer, dentre as técnicas todas oriundas do trabalho humano, um diálogo, ou seja, a comunicação, entre a planta e a pessoa, que substitua o veneno e as máquinas. Que efeito teria uma educação mais afetiva e menos adoentada no cuidado que temos com as plantas? Como lidar com a questão do controle das massas, na perspectiva de um grupo de cultivo capilarizado ao invés de latifundiário?

A prática de não aproveitar as coisas não causa problemas somente ao sistema ecológico, mas também ao nosso sentir, uma vez que não-aproveitar gera não-sensibilização, ou seja, os sentidos, a criatividade, a sensibilidade não recebem incentivos para serem usados, pois o descarte vai nos significando o eterno-retorno, e nunca um entrar-em-contato. No latifúndio, uma minoria cuida, uma maioria espera, não pratica o cultivo. As máquinas e os venenos entram em contato com a planta, nós não. Os psicólogos e médicos entram em contato com os filhos, os pais não. O trabalho que perde o sentido e a vida é aquele que se dá de forma latifundiária, onde muitos peões podem ser descartados para sustentar rainhas, torres e bispos.

Durante o trabalho de quem espera o eterno-retorno do industrializado na prateleira, o cultivo também deve ser bastante restrito: não temos tempo para cultivar as crianças e o Estado está se saindo mal com isso; não cultivamos o cuidado e a gentileza. Estamos, normalmente, estressados. Poetas vivendo a diligência da percepção humana de ser neste mundo, confundidos como loucos, dizem isso há muito tempo: “a gentileza gera gentileza”. É um saber de uma beleza incomparável! Mas isso não é importante, o sistema educacional mal consegue definir o que é gentileza!

A gentileza é uma vivência corporal, mas escutamos a todo o momento: “não entrem em contato com os corpos; não excedam no sexo, nem em quantidade e muito menos em qualidade! Não se exercitem! Trabalhem alienadamente e mantenham a Ordem e o Progresso!” Não tem nada mais patético que o lema da nossa bandeira – é anti-diligente. E o nosso afeto tão pouco é cultivado – vem em cápsulas.

Se há algo que podemos cultuar nesse mundo, como maneira de vivermos mais diligentemente, é a nossa sensibilidade, ou seja, nossa capacidade de sentir as coisas; da visão, da audição, do tato, do paladar, do olfato, passando pela raiva, pela paciência etc.

Podemos nos movimentar, mas não correr, com nossa sensibilidade e com nossa vida. Experimentando, reconhecemos a sensibilidade que se encontra no exercício da diligência e a diligência que opera no exercício da vida. O encontro dos gametas e o caminho seguido pela célula ovo até a morte do corpo, com um dia ou um século de existência, é a diligência que há na vida; é a vida sendo diligente, a diligência que, redundantemente, gera vida. O recheio disso, composto pelo incessante sentir, é a sensibilidade que mantém a vida e a diligência; depende das duas para se manter. São movimentos que se movimentam juntos.

Nota: a frase “Façamos, vamos amar” que aparece no título do texto é o nome de uma música do Chico Buarque.

Referências:

LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.

LAUAND, Jean. O Pecado Capital da Acídia na Análise de Tomás de Aquino (notas de conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, disponível em http://www.pecapi.com.br/ – Univ. Fed. do Rio Grande do Sul, setembro de 2004).