Ela e o mar: um conto sobre a paciência

Diante da vitrine, entrevendo seu reflexo distorcido pelas imagens das TVs de plasma em exposição, ela tragava o último cigarro enquanto esperava a hora de entrar.

De dia trabalhava no mercado Fast-Easy, esquina da XV de Novembro com a 7 de Setembro, como repositora. Empregada há 10 anos. Cotidiano & rotina.Tinha a vontade constante de conhecer o mar.

Após 10 horas de trabalho gostava de ir ao bar do Seo Arrigó tomar uma cerveja e ouvir os causos do Seo Vieira, botequeiro fiel e bom de prosa. Havia estudado o fundamental na mesma escola que a filha dele, Vanessa. Depois que se casou e mudou para outra cidade não se viram mais.  Estava na saidêra, não dava para se demorar muito porque a esperavam em casa.

Ela morava com o filho de 6 anos, Marco, com a irmã mais velha, Ana e com o pai, Mário, cego de um olho e um pouco surdo. Com 88 anos carregava o peso dos anos vividos e das perdas, o que o deixavam ainda mais magro, surdo e quieto. Vera cuidava da casa para Marta trabalhar fora. Marco gostava de ficar no quintal com o avô quando ele ouvia rádio.

Há sete anos atrás, no início do inverno, Marta, ao término do expediente, não foi ao bar e nem voltou para casa. A lua crescente no firmamento anunciava um clima romântico, pedindo roupa nova, perfume e coração disparado. Noite de maré alta.

Em frente ao posto de saúde 24 horas, ao lado do Fast-Easy, ela esperava roendo unhas a chegada dele. Marcaram às 9. Entre um cigarro e outro, ela distraía-se com o trânsito noturno. Seu colega de trabalho passou dizendo galanteios que se esfumaçaram na sua passagem. Mais um cigarro. Mais um retoque de batom. O relógio digital da praça marcava 9 e 22 quando ele chegou.

Era para ser algo sem importância de acordo com o que se espera de um encontro casual num bar de bairro, mas eles já se encontravam há 3 semanas, estendendo o tempo apostado e se conhecendo melhor. A saída do trabalho era aguardada com euforia silenciosa por Marta e com entusiasmo & arquitetura de seduções por Pedro. Ele era taxista e há 3 semanas fechava o expediente às 8 para não se atrasar e enfeitar com flores, as da banca da Alameda Virgínia, o esperado encontro. Pedro 28. Marta 17.

E na noite enluarada, de rosas e coração disparado, Marta engravidou. Passaram-se 3 luas quando ela sentiu os primeiros enjôos e foi quando soube e foi quando souberam que Pedro havia sofrido grave acidente no túnel Geisel, da Alameda Virgínia, e não tinha conseguido resistir. Pedro morria, enquanto seu filho crescia dentro dela. O mar arrebentando nas pedras.

Ele morreu na mesma data em que há 2 anos atrás havia morrido sua mãe, Estela. Marta perdeu a mãe e encontrou Pedro. Pedro encontrou Marta, mas se perdeu logo depois. Marta ganhou Marco e perdeu Pedro. O que o mar traz de volta?

Uma gestação em silêncio. As palavras não faziam sentido. As ditas, tampouco as ouvidas. A conversa mais íntima foi se fazendo. E do absurdo da vida, fios tangíveis foram sendo costurados.

Marta ouvia Marco e Marco compreendia Marta. Desvendavam-se, o gosto do vivo e era conhecer o mar.

Ao longo deste silêncio, esperando seu filho nascer, ela abria algumas exceções. Quando tirou a licença maternidade tinha mais tempo livre. Começou a caminhar mais pela cidade, observando as ruas, as casas, e algumas preciosidades um pouco escondidas, emergiam aos seus olhos.

E diante daquela vitrine, entrevendo seu reflexo distorcido pelas imagens da TV de plasma em exposição, Marta viu um pequeno cartaz na porta antiga ao lado da loja. Leu:

Heva
para conversar
toque a campainha

Instantaneamente instigada, Marta tocou a campainha e esperou. Ela com os pés enfiados na areia da praia. Ouviu os passos descendo a escada, a porta se abriu. Diante dela uma senhora de olhar manso e límpido a convidava para entrar. Subiram até o primeiro andar, conduzidas pelo som de Piaf vindo de uma sala mais ao fundo do corredor. Adentraram a casa de Heva – aroma alecrim – quando Marta se deparou com uma pintura na entrada:  um rosto de mulher com o terceiro olho luminoso, provocando uma atração incontrolável. Conhece? É Frida, Frida Kahlo…arranca o coração e pinta com o próprio sangue, interpôs-se Heva. Um banho de mar. Heva ofereceu-lhe um chá. Marta sentiu paz.

Este foi o primeiro encontro, de muitos outros, marcados e inesperados que acontecem até os dias de hoje.

Naquela tarde de Finados, Heva ofereceu à Marta, também, a leitura do I Ching – o livro das mutações. Em silêncio, ela perguntou e quando o pedido tornou-se claro jogou as moedas sagradas 6 vezes, perguntando a cada lance. A cada lance se desenhava uma linha.

Heva desvendava a figura formada. Este hexagrama representa um abismo perigoso adiante e uma montanha inacessível à retaguarda. Está-se cercado de obstáculos. Marta respirou profundamente.

Heva continuou…obstáculos que aparecem no decorrer do tempo, mas que podem e devem ser superados. Elas se olharam e por instantes, Marta desacreditou, tão cansada dos fatos desta vida.  E Heva afirmava: E isto requer capacidade de perseverar justo quando se tem de fazer algo, que aparentemente desvia da meta. As dificuldades provocam uma introspecção. Marta, veja só um impedimento externo torna-se uma boa oportunidade de aprendizagem.

Marta refletia relembrando os momentos de alegria misturados com as aflições, os enredos e desenredos. Emocionou-se com o que revia e ouvia ali…Heva interpretou, então, a linha da ação:Quando se encontra uma obstrução, o importante é refletir quanto ao melhor meio de lidar com ela. Para não desistir da luta, poder recuar temporariamente e esperar o momento próprio à ação parece ser mais sábio.

Marta estava deveras impressionada com a resposta a sua pergunta ao oráculo…Do que eu preciso para continuar? Um salva-vidas, uma barca de viajantes ou mais uma tempestade?

A vida em mutação, sempre. Marta precisava de força para viver, para agir, para aceitar, para não desistir, para esperar. Um pedido de não-sei-o-quê, a porta-voz de toda a humanidade. Não estamos sós. Mas, afinal, esta força já não pulsava nela?

E Heva arrematou, degustando o último gole de chá…E qual é a mãe das virtudes, Marta?

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39. Chien / Obstrução
(I Ching – O livro das mutações)