Filme TOC TOC: Um alerta sobre os comportamentos repetitivos

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Imagem de ivabalk por Pixabay 

Lavar as mãos excessivamente pode ser uma compulsão.

O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) é representado por um grupo diverso de sintomas que incluem pensamentos intrusivos, rituais, preocupações, obsessões e compulsões e essas obsessões ou compulsões recorrentes causam sofrimento ao indivíduo, pois consomem tempo, ficam voltando na consciência do indivíduo, sem que ele queira pensar nisso e interferem significativamente no funcionamento ocupacional das atividades do seu cotidiano.

O filme TOC TOC, apresenta de forma humorada, seis personagens, cada um com sintomas diferentes vivenciados por pessoas com TOC, e pode-se perceber que os sintomas trazem um desconforto, uma ansiedade muito grande e vão ser aliviados a partir da realização dos comportamentos repetitivos. E esses comportamentos repetitivos são as compulsões.

No decorrer do filme todos os personagens se encontram em uma clínica para uma consulta com um terapeuta, o Dr. Palomero, segundo a secretária ouve um erro no sistema e todos os pacientes compareceram no mesmo dia e horário, porém o Dr estava com o voo atrasado, todos os pacientes ficaram no mesmo ambiente e começaram a perceber que cada um deles apresentavam sintomas diferentes, eles tentam organizar a ordem que serão atendidos, mesmo sem saber o horário que o terapeuta chegaria.

Foi nesse momento que começaram a perceber e conviver com as singularidades de cada um, e em consenso foram relatando suas vivências no formato de uma terapia de grupo, porém sem o terapeuta, a história do filme mesmo de forma descontraída provocando risos, traz também uma reflexão do quanto aqueles pensamentos e rituais vivenciados por pessoas com TOC causam sofrimento, o comportamento obsessivo ex: “lavar as mãos” é uma maneira de aliviar a tensão causada pelos pensamentos compulsivos “evitar a contaminação”.

Uma compulsão, é um comportamento consciente que segue um padrão recorrente como contar, verificar ou evitar. Um indivíduo com esse transtorno percebe a irracionalidade da obsessão e sente que tanto a obsessão quanto a compulsão, são comportamentos indesejados, se após um surgimento de um pensamento intrusivo de conteúdo negativo ou até mesmo catastrófico, a pessoa obtém um alívio imediato realizando rituais ou adotando comportamento de esquiva, essa pessoa tenderá a repetir tais comportamentos no futuro e isso gera um reforço.

Cada personagem inicialmente buscava um acompanhamento individual, por N motivos, mas a cena que reúne todos os personagens em uma sala e transmite uma mensagem de solidariedade, empatia e inclusão, proporcionando ao espectador uma reflexão e compreensão dessa doença que atinge cerca de 2% da população ao longo da vida, estudos apontam que no sexo masculino é mais comum que se perceba na infância antes dos 10 anos e no sexo feminino, no final da adolescência e início da vida adulta esses sintomas são mais comuns.

A forma de apresentação das obsessões e compulsões é bem heterogênea, tais sintomas podem se sobrepor a outros e mudar com o tempo, dentre eles o mais comum está a obsessão por contaminação, na qual o indivíduo acredita estar infectado por microorganismos, rituais de limpeza de evitação compulsiva do objeto que se presume está contaminado são bem característicos nesses casos, mas não são os únicos sintomas.

O TOC faz com que o indivíduo acredite realizar de forma incompleta ou incorreta as suas ações, dessa forma os mesmos se pegam o tempo todo repetindo alguns comportamentos de forma que eles se tornam amenizadores, porém trazem prejuízo para o seu cotidiano.

O TOC representa um problema de saúde significativo, uma vez que na maior parte dos casos interferem no relacionamento social, embora devido ao seu curso crônico seja identificado com muito mais frequência na prática clínica, certas comorbidade neuropsiquiatria podem estar associadas como: distúrbio do humor, distúrbio ansiosos como; fobias e pânico, além de distúrbios de personalidade, esses são os distúrbios psiquiátricos mais encontrados em consonância com o TOC.

Segundo Torres e Smaira (2001) trata-se ainda de um transtorno muitas vezes secreto por várias pessoas, pois ocultam ao máximo seus sintomas e demoram procurar ajuda por vergonha, desinformação, ou até mesmo pela noção preservada da irracionalidade de pensamentos e comportamentos, isso se deve ás vezes pela incapacidade para modulá-los.

Foto de Amel Uzunovic

Acredita-se que pessoas com TOC apresentam um desequilíbrio na interação entre diferentes partes do cérebro

Anatomicamente acredita-se que os sintomas não necessariamente decorrem de disfunção em uma área específica cerebral, mas por um desequilíbrio na interação entre diferentes estruturas, dentre elas os circuitos que possivelmente estão associados são os circuitos pré-frontal dorso lateral, responsável pelo planejamento, execução de estratégias comportamentais, bem como pela memória operacional, cuja atribuição é a de manutenção atencional e supressão de comportamentos socialmente indesejáveis.

Em termos diagnósticos conforme a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V, 2014) as obsessões e compulsões apenas são consideradas patológicas quando consomem tempo, esse diagnóstico é fundamentalmente também baseado na entrevista Clínica.

O tratamento para o TOC em alguns casos, consiste em terapia medicamentosa com uso de inibidores seletivos da Recaptação de serotonina associado a psicoterapia, preferencialmente na abordagem comportamental, pois ela vai apoiar o cliente a encontrar estratégias como, exposição a objetos temidos, pensamentos, situações e desenvolvimento de tolerância, prevenção de rituais compulsivos, a corrigir crenças de interpretações irreais entre outras situações.

Referências

DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais [recurso eletrônico]: [American Psychiatric   Association; tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento   … et al.]; revisão técnica: Aristides Volpato Cordioli …   [et al.]. – 5. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre:   Artmed, 2014. <:https://www.academia.edu/51009051/DSM_5_Manual_Diagn%C3%B3stico_e_Estat%C3%ADstico_de_Transtornos_Mentais_2014_ >. Acessado em 12 março. 2023.

TOC TOC. Direção de Vicente Villanueva. Produção de Mercedes Gamero, Gonzalo Salazar-Simpson, Mikel Lejarza Ortiz. Intérpretes: Paco León, Alexandra Jiménez, Rossy de Palma, Oscar Martínez, Nuria Herrero, Adrián Lastra, Inma Cuevas, Ana Rujas. Roteiro: Vicente Villanueva, Laurent Baffie. Espanha: Lazona Films, 2017. (90 min.), son., color. Legendado.

TORRES, A.R.; SMAIRA, S.I. Quadro Clínico do Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Rev Bras Psiquiatria 23(supl II): 6-9, 2001.

 

 

 

 

 

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Papa Francisco e as redes sociais

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De portas abertas a todos: O legado do Papa Francisco no lema da rede social twitter?

Com o intuito de comparar mensagens de textos com o canto dos pássaros, foi criado o twitter, uma rede social que inicialmente foi utilizada pela empresa Odeo para compartilhar mensagens de textos com um grupo de pessoas específicas. Atualmente, o canto do pássaro foi levado pelo vento e alcança diariamente milhões de pessoas, aberta a todos aqueles que desejam dizer o que estão pensando.

Em todos os lugares do mundo, o twitter alcança diferentes públicos e culturas,  levando  informações, fofocas dos famosos e notícias em tempo real. Observa-se que o twitter tornou-se uma das principais ferramentas utilizadas pelas pessoas para se informarem a respeito do que está acontecendo no mundo. É possível, ainda, saber quais são os assuntos mais comentados no mundo, além de conectar pessoas e ideias desconhecidas no mundo físico. 

As redes sociais, em especial o twitter, neste século cresceram significativamente, aumentando a cada dia a sua importância vez que alcançam pessoas de todas as idades e classes sociais, localizadas em qualquer parte do mundo. Deixando de ser uma ferramenta de intuito apenas comunicativo e distrativo, passou a possuir influência político-ideológica, conforme se observa: 

Ainda sobre a importância do Twitter como ferramenta social, cita-se a enquete feita pelo site Mobilização Digital, em 2013, que constatou que a maioria das pessoas que acompanham as Manifestações Sociais informam-se via mídias sociais, tais como o Facebook e Twitter. Pode-se inferir, portanto, que o ciberespaço tornou-se fundamental nas “Novas revoluções” políticas contemporâneas, tornando-se uma nova ferramenta em um contexto hodierno para os câmbios sociais em um contexto global, oportunizando um livre acesso a informação de forma simples, o que justifica a preferência popular pela utilização da internet e suas mídias para a  tomada de ciência das notícias atuais.(EMPÓRIO DO DIREITO, 2019)

A sociedade mundial não imagina mais uma vida desconectada, onde é necessário esperar para obter informações, ou ainda utilizar de ferramentas já ultrapassadas como o fax e o jornal impresso. Uma grande parte dessa população já nasceu inserida na tecnologia, não possuindo paciência para aguardar informações ou até mesmo para se comunicar, a cada dia  a necessidade de fazer parte do ambiente virtual aumenta. Vejamos: 

As tecnologias da informação tornaram-se parte da vida diária de grande parte das pessoas. Aos principais MCM – imprensa, rádio e televisão – vieram se agregar as máquinas que agilizaram a comunicação (fax, multimídia, celulares e outras “geringonças” mais). “Neste mundo de mudanças”, novas interfaces fazem parte da dinâmica da sociedade de informação. A inclusão digital, cada vez mais se dissemina e “a troca de informações é um componente cada vez mais importante na maioria das atividades de trabalho” (STRAUBHAAR & LA ROSE, 2004. p. 1). 

Devido ao novo contexto digital, os líderes mundiais passaram a observar o comportamento social, identificar os assuntos mais relevantes e estudar as relações internacionais, através do Twitter. Nesse contexto, trazemos: 

Hodiernamente, o Twitter é uma rede social de extrema importância no mundo virtual. Em 2018, o site Itmídia divulgou que o número de usuários ativos era de 336 milhões, demonstrando a relevância dessa ferramenta. Dentre esses usuários ativos, encontram-se alguns representantes de Estados, tais como: Emmanuel Macron; Donald Trump e Nicolás Maduro.(EMPÓRIO DO DIREITO, 2019)

Os 3 líderes mundiais mais seguidos na rede social são Donald Trump, Papa Francisco e Narendra Modri, contabilizando milhões de seguidores em todo o mundo. Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, superou a marca de 52 milhões de seguidores, o Papa Francisco, o líder e chefe de Estado da Igreja Católica Apostólica Romana, com 47 milhões e Narendra primeiro-ministro indiano na marca de 42 milhões.

Mas quem é Francisco? O primeiro Papa Sul Americano é o argentino Jorge Mario Bergoglio. O Papa Francisco foi arcebispo em Buenos Aires e vivia de forma muito simples, sendo conhecido e reconhecido em sua diocese, pelo amor e cuidado aos outros, em especial aos mais necessitados. Este sempre recomendou aos sacerdotes que fossem misericordiosos, possuíssem coragem apostólica e estivessem sempre de portas abertas a todos.

Sendo um dos cinco filhos de uma dona de casa e um contabilista no caminho de ferro, neto de italianos, Bergoglio nasceu em Buenos Aires em 17 de dezembro de 1936. Após tornar-se técnico químico escolheu o caminho do sacerdócio, entrando no seminário diocesano de Villa Devoto. Após a finalização deste ciclo, foi ordenado sacerdote em 1969 e em 1992 recebeu a ordenação episcopal.

Com o passar dos anos, vivendo a missão confiada pela Igreja a ele, sua popularidade foi crescendo, devido a sua coerência de vida e radicalidade. Em 2013 com a renúncia do Papa Bento XVI, a Igreja se reuniu e Bergoglio foi eleito novo papa.

Fonte: Imagem de Günther Simmermacher por Pixabay

 

Papa Francisco em meio a multidão na Praça de São Pedro.

Escolheu, para seu pontificado, o nome Francisco, em referência a São Francisco de Assis. A Igreja católica possui como tradição a escolha de um novo nome para o Sumo Pontífice embasamento na passagem Bíblica onde Jesus Cristo fala a Simão “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”.

Com o desejo de se aproximar ainda mais dos homens, Francisco “instituiu a Secretaria para a Comunicação (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 2015) estabelecendo novos organismos, incluindo o serviço de administração digital. Atento à importância da Igreja se aproximar das pessoas a partir das mídias sociais, o papa assinalou:

 “A revolução da mídia digital das últimas décadas mostrou ser um potente meio para promover a comunhão e o diálogo dentro de nossa família humana. De fato, durante os meses de confinamento devido à pandemia, vimos claramente como as mídias digitais podem nos unir, não apenas divulgando informações essenciais, mas também preenchendo a solidão do isolamento e, em muitos casos, unindo famílias inteiras e comunidades eclesiais na oração e no culto. (VATICAN NEWS, 2022)

O Twitter do Papa representa de forma clara a difusão que as comunicações possuem, uma vez que sua conta é traduzida em 9 idiomas, sendo: inglês (conta oficial), latim, espanhol, italiano, alemão, polonês, árabe francês e português, comprovando a integração entre mídia e religião. O Papa Francisco se manifesta nas redes de forma relevante, utilizando desses recursos para difundir suas mensagens, informações e relacionar-se com o povo, abordando assuntos importantes e até polêmicos

Fonte: https://twitter.com/Pontifex

Imagem das contas oficiais do Papa Francisco no Twitter nas 9 línguas.

Observa-se ainda que as mídias de Francisco possuem como finalidade gerar a cultura do encontro, utilizando uma linguagem simples e de fácil entendimento, sendo acessível e próximo ao homem de hoje. Como um homem dos tempos modernos e conectado. O Papa faz uso da linguagem digital vez que usa hashtag como “rezemos juntos” e “evangelho de hoje”, para facilitar que as pessoas acompanhem os tópicos pelos quais mais se interessam e alcançar ainda mais.

Fonte: https://twitter.com/Pontifex

Postagem do Papa Francisco na conta de língua portuguesa usando hashtag.

Refletindo mais do que a si mesmo, o twitter do Papa Francisco representa o Estado do Vaticano, a Igreja Católica e todos aqueles que vivenciam a fé católica, indo um pouco além nota-se que apresenta o Evangelho e o pensamento do próprio Deus para aqueles que acreditam. Observa-se ainda que é visto por representantes das maiores mídias mundiais, diversas religiões e governos, possuindo grande influência social, partidária e ideológica.

Mas qual a mensagem que o Papa deseja passar nas suas redes sociais? Seu maior objetivo é anunciar o evangelho, pelo qual este deu a vida, e apresentar ao mundo a Igreja Católica Apostólica Romana. Ademais, utiliza-as ainda com intuito de comunicar esperança, conforto e positividade, além de motivar orações, se unir aos que sofrem e refletir sobre a doutrina cristã.

Fonte: https://twitter.com/Pontifex_pt

Postagem do Papa Francisco no dia 19 de fevereiro de 2023.

É possível perceber o amor empregado pelo Papa em suas mensagens, o desejo de se aproximar do povo, abertura e empenho. A postura deste em meio ao mundo digital inaugura um tempo novo na Igreja, quebrando a imagem de um evangelho desatualizado, antigo e inacessível, uma vez que “o que acontece no mundo, acontece primeiro no twitter.”

Dessa forma, ao observar que para o twitter “cada voz tem seu impacto” o Papa Francisco busca dar voz a Igreja e gritar ao mundo:

A [Igreja] Não pretende disputar poderes terrenos, mas oferecer-se como «uma família entre as famílias – a Igreja é isto –, disponível (…) para testemunhar ao mundo de hoje a fé, a esperança e o amor ao Senhor mas também àqueles que Ele ama com predileção. Uma casa com as portas abertas… A Igreja é uma casa com as portas abertas, porque é mãe». E como Maria, a Mãe de Jesus, «queremos ser uma Igreja que serve, que sai de casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater muros, semear reconciliação. (VATICAN NEWS, 2021)

Referências

A INFLUÊNCIA DO TWITTER NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS Disponível em: “https://emporiododireito.com.br/leitura/a-influencia-do-twitter-nas-relacoes-internacionais-contemporaneas” Acesso em: 01, de março de 2023.

LEMOS, Lúcia. O poder do discurso na cultura digital: o caso Twitter. Jornada internacional de estudos do discurso, v. 1, 2008.

Disponível em: “https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-07/papa-francisco-mensagem-signis-midia-digital-meio-potente-paz.html” Acesso em: 27, de fevereiro de 2023.

Disponível em “https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2021-12/igreja-como-uma-casa-de-portas-abertas-padre-gerson-schmidt.html” Acesso em: 01, de março de 2023.

 

 

 

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A infinita graça das redes sociais

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Como as redes sociais têm impactado nossas relações e a forma como enxergamos o mundo.

Em seu aclamado – e volumoso – romance Graça Infinita (Infinite Jest, 1996), o escritor e ensaísta David Foster Wallace destila sua genialidade para tratar de temas como o vício, conflitos familiares, e sobretudo a obsessão da sociedade norte-americana pelo entretenimento, isso ainda na década de 90. Para tanto, ele nos traz (dentre tantas outras) a história da disfuncional família Incandenza.

Um dos principais núcleos da narrativa, a família Incandenza apresenta em seu patriarca, James O. Incandenza, seu componente mais exótico. Cientista óptico e diretor de uma renomada academia de tênis juvenil, James é um cineasta amador que, na ânsia de criar a maior obra-prima de todos os tempos, se suicida após produzir um filme que devido à intensidade de entretenimento acaba levando seus espectadores à morte. 

Com uma escrita mordaz e extremamente irônica, o autor desenha um cenário distópico abordando através da complexa trama de personagens viciados e incompreendidos o que talvez seja o tema central de toda a obra – a solidão. Afinal, que outro motivo levaria as pessoas a essa busca descontrolada por entretenimento senão a intenção de aplacar o inescapável sentimento de solidão presente em nossa sociedade? 

Escrito no final da década de 90, quando a internet ainda não havia alcançado todo seu potencial, e principalmente antes da disseminação dos smartphones e suas redes sociais, David F. Wallace, como todo grande escritor, parece usar de seu talento para prever um cenário que se desdobraria para muito além de seu tempo. Hoje, a ideia de uma vida desconectada das redes soa absurda, senão inconcebível. Nossos celulares, sempre ao alcance da mão, acabaram por se tornar uma extensão do próprio corpo – um apêndice que desafia os limites do tempo e do espaço, nos conectando a tudo e a todos o tempo todo. O mundo, ou ao menos grande parte dele, sempre a um clique de distância. Soa tentador. 

No entanto, ao passo em que ingressamos nesse universo hiperconectado, uma parte de nós parece ficar de fora. Nossos perfis, ornamentados com filtros embelezadores, sempre presentes em lugares chiques com pratos elegantes, parecem atender a uma estética que deliberadamente abre mão da espontaneidade. Pois, se na internet podemos ser o que quiser, por que não ser feliz, bonito e bem-sucedido? Criamos então um recorte de nós mesmos, e separamos a parte que cabe nesse ideal compartilhado. Por vezes, condicionamos nossa vida fora das redes para alimentar esse outro “eu virtual”. 

Não há nada de errado em querer ser feliz, bonito e bem-sucedido. Muito pelo contrário. O problema é quando passamos a acreditar que todo mundo é assim, menos a gente. Não se pretende aqui demonizar as redes sociais, tampouco tachá-las como exclusivamente perniciosas. Elas são, no fim das contas, um local de encontro. Há que se lembrar, todavia, que o que encontramos por aqui é uma parcela da gente e do outro, muitas vezes distorcida para caber no retrato. O ser humano é, via de regra, muita coisa. Mas se limitamos nossas relações àquilo que compartilhamos nas redes, para quem confiamos a parte de nós que não cabe?

De acordo com o último grande mapeamento global de transtornos mentais, realizado pela OMS, o Brasil possui a população com a maior prevalência de transtornos de ansiedade do mundo. Muitos fatores estão relacionados com a grande incidência de transtornos de ansiedade em nossa população – dentre eles os altos índices de violência, alta taxa de desemprego e instabilidade no rumo da economia. No entanto, especialistas apontam que o uso excessivo de computadores e smartphones também explica a alta prevalência de ansiedade no Brasil. “A rede social gera uma série de cobranças nas pessoas. Você praticamente começa a querer ser magro e esportista como o influenciador.”, afirma Gerardo Maria de Araújo Filho, professor do departamento de ciências neurológicas, psiquiatria e psicologia médica da Faculdade de Medicina de Rio Preto (Famerp). 

Um estudo realizado pela Canadian Journal of Psychiatry comprovou que quanto maior o uso de telas, maior o nível de ansiedade. Ao mesmo tempo, um relatório lançado pela empresa de análise de mercado digital App Annie apontou que o Brasil lidera o pódio dos países com pessoas que mais passam tempo conectadas. Para se ter uma ideia, o brasileiro passa, em média, quase cinco horas e meia por dia diante de seus aparelhos.

Diante desses dados, é lícito supor alguma correlação entre o uso excessivo de telas e o aumento da incidência de transtornos de ansiedade, notadamente no Brasil. A interação social é reconhecidamente um importante fator de saúde para as pessoas – ao menos para a maioria. E as redes sociais alcançaram tamanho sucesso vendendo a ideia de facilitar a conexão entre pessoas – e de fato isso acontece. Porém, existe uma dinâmica de mercado por trás da atividade das redes. Além de nos conectarem com outras pessoas, elas também se dispõem a nos vender coisas que julgam ser de nosso interesse. Uma estratégia sutil, mas ameaçadora. 

Estamos sorrateiramente sugestionados sobre o que ver, o que buscar, e, acima de tudo, o que querer comprar. A tecnologia empregada nos algoritmos das redes se desenvolve cada vez mais nesse sentido. Desse modo, que tipo de relação passamos a travar nesse intrincado ambiente, que confunde amigos e consumidores? Todos já testemunharam a curiosa imagem de uma mesa repleta de pessoas, onde cada uma está envolvida com seu próprio smartphone, em uma espécie de solidão compartilhada. Talvez seja esse o retrato dos nossos tempos. 

Foto: Pixabay

Os personagens de Graça Infinita vagam pelas ruas de Los Angeles entre picos de heroína, partidas de tênis, brigas, intrigas e reflexões. Todos à procura de pertencimento. Todos, de alguma forma, sozinhos. É uma história triste, como falou seu autor durante uma entrevista. Porém abre margem para belas discussões. Quando termina seu funesto filme, James Incandenza se dá conta de que as pessoas não morrem simplesmente após assisti-lo, mas ficam tão obcecadas em revê-lo infinitas vezes que acabam se esquecendo de comer, dormir, das atividades mais elementares. Elas abrem mão do essencial em prol do entretenimento. 

Nós, seres do toque, seres de pele, do olhar e do abraço, não estaremos fazendo o mesmo ao submeter nossas relações à dinâmica dos likes, visualizações e algoritmos? Talvez o autor nos dissesse que sim, caso ainda estivesse entre nós. Pois para pertencer é preciso caber por completo, e ninguém é tão bonito, tão feliz, tão bem-sucedido, ou tão bom quanto quer parecer ser. A parte de nós que não cabe não deixa de ser nossa por não caber. Ela precisa ocupar algum espaço. Isso se torna menos difícil quando temos alguém com quem compartilhar, mas de verdade.

Referências

Wallace, David Foster. Graça Infinita. Companhia das Letras, 2014

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4ne681q64lo

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Produtividade Inteligente: Produza de maneira assertiva e previna o adoecimento mental

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A produtividade muitas vezes é percebida de uma forma equivocada pela maioria das pessoas.
Fonte: pixabay

Atualmente, vivemos em um ritmo aceleradíssimo, com muito estresse, ansiedade e sem tempo para nada. E, infelizmente, as coisas que nos fazem bem ficam em segundo plano (saúde, família, amigos, hobbies, diversão, tempo livre!). Há uma relação complexa entre produtividade e adoecimento mental que pode levar a consequências negativas significativas. Muitas pessoas sentem que precisam trabalhar constantemente e produzir mais do que nunca para se manterem competitivas em um mundo cada vez mais acelerado e competitivo. No entanto, esse tipo de pressão pode ter um impacto negativo na saúde mental.

Camargo, Izabella (2020) menciona que, as pessoas quando são excessivamente produtivas muitas vezes se sentem sobrecarregadas, ansiosas e estressadas. Elas podem trabalhar longas horas, negligenciar sua vida pessoal e se sentir incapazes de desacelerar e relaxar. Além disso, as expectativas de produtividade podem levar a sentimento de culpa, vergonha e inadequação quando as metas não são atingidas. Esse tipo de pressão constante pode levar a problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e síndrome de burnout.  No DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), a síndrome de burnout é um estado de exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional que pode levar a problemas graves de saúde mental.

Os problemas que mais acometem os docentes são transtornos psicoemocionais, tais como depressão e ansiedade, e afecções osteomusculares (Luz, 2008; Emiliano, 2008; Borsoi & Pereira, 2011). O burnout é apontado como uma síndrome singular que afeta professores em razão da natureza específica de seu trabalho. Para Carlotto (2002), trata-se de um “tipo de estresse profissional que acomete profissionais que trabalham com qualquer tipo de cuidado, havendo uma relação de atenção direta, contínua e altamente emocional com outras pessoas” (p. 190). Lacaz (2010) sintetiza essa síndrome da seguinte forma:

Está associada a sintomas relacionados à exaustão mental, emocional, fadiga e depressão. São sintomas comportamentais e mentais, e não apenas físicos, e relacionam-se ao trabalho. Tais sintomas acometem pessoas “normais” e associam-se à queda do desempenho no trabalho, causada por posturas e comportamentos negativos. As dimensões da Síndrome envolvem exaustão emocional, despersonalização e baixa realização pessoal no trabalho. (Lacaz, 2010, p. 56)

Além disso, a cultura de produtividade pode levar a um ambiente de trabalho tóxico, onde as pessoas são constantemente comparadas umas às outras e incentivadas a competir. É importante lembrar que a produtividade não é o único indicador de sucesso e que a saúde mental deve ser uma prioridade. Equilibrar o trabalho e a vida pessoal, estabelecer limites saudáveis e praticar a autocuidado são fundamentais para garantir um ambiente de trabalho saudável e produtivo. 

Ser produtivo é uma qualidade muito desejável, pois está intimamente relacionada ao lucro e crescimento seja de pessoas ou empresas.
Fonte: pixabay

Camargo, Izabella (2020) enfatiza que muitas pessoas são muito extremistas e vivem de maneira insustentável. Muito se ouve: “estuda enquanto eles dormem”, e isso acaba levando muitas pessoas a se sentirem improdutivas e frustradas por não conseguirem acompanhar ou fazer o que os outros fazem.  Muito se fala de produtividade, mas poucos se explica que a produtividade precisa ser boa para os dois lados: para quem produz e para e para quem recebe o que é produtivo. Não adianta só aprender a fazer, fazer, fazer e não se cuidar.  Pois tanto o excesso, como a falta de produtividade pode gerar sentimentos de tristeza, incapacidade, improdutividade, incompetência e isso se resultar em psicopatologias.

Camargo, Izabella (2020) cita em seu livro que geralmente temos muita pressa para tudo, mas esse ritmo já provou que não é saudável. A autora nos conduz a refletir que não funcionamos como uma máquina. Somos um ser humano e justamente por não respeitar esses parâmetros saudáveis que podemos desenvolver doenças emocionais.  Inclusive a mesma autora relata em seu livro as consequência de ter vivido uma vida sem limite e fornece ainda em seu livro, algumas dicas de produtividade inteligente que poderá ajudá-lo a maximizar o seu desempenho sem comprometer a sua saúde mental:

  • Estabeleça metas realistas: defina metas realistas para si mesmo e divida-as em tarefas menores e gerenciáveis para evitar a sobrecarga e a sensação de ser dominado pelas tarefas.
  • Priorize tarefas: planeje suas tarefas com antecedência e priorize as mais importantes ou urgentes. Isso pode ajudá-lo a se concentrar no que é mais importante, e evitar se sentir sobrecarregado.
  • Faça pausas regulares: tire pequenas pausas regularmente, mesmo que seja por alguns minutos, para desacelerar, relaxar e recarregar suas energias. Isso pode ajudá-lo a manter o foco e evitar a fadiga mental.
  • Pratique a gestão do tempo: pratique a gestão do tempo, definindo horários específicos para concluir tarefas e evitando multitarefas. Isso pode ajudá-lo a manter o foco e aumentar a eficiência.
  • Tenha uma rotina saudável: certifique-se de ter uma rotina de sono adequada, alimentação saudável, exercícios e tempo para relaxar. Isso pode ajudar a reduzir o estresse e melhorar o seu desempenho geral.
  • Use ferramentas de produtividade: use ferramentas de produtividade, como aplicativos de gerenciamento de tempo, listas de tarefas e ferramentas de colaboração para ajudar a gerenciar tarefas e projetos de forma mais eficiente.
  • Comunique-se com colegas: comunicação aberta e efetiva com colegas de trabalho e líderes de equipe é fundamental para garantir que todos estejam alinhados em relação às prioridades e prazos.
A forma como você dá pausas e descansa, também faz diferença na sua produtividade.
Fonte: pixabay

Lembre-se de que a produtividade não deve ser um estressor, mas algo que ajude a gerenciar tarefas e atingir metas de saúde e bem-estar. Ser produtivo é um processo em constante mudança. Você precisa entender a si mesmo, porque assim entenderá como as dificuldades o afetam. Assim, superará as barreiras impostas à capacidade produtiva.

Referências:

American Psychiatric Association. DSMIV:  Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais.  Lisboa: Climepsi Editores; 1996.

CAMARGO, Izabella. Dá um tempo! Como encontrar limite em mundo sem limites. 1° ed. – Rio de Janeiro: Principium, 2020.

Carlotto, M. S. (2002). Síndrome de burnout e a satisfação no trabalho: um estudo com professores universitários. In A. M. T. Benevides-Pereira (Ed.), Burnout: quando o trabalho ameaça o bem-estar do trabalhador (pp. 187-212). São Paulo: Casa do Psicólogo. Disponível em <: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S165792672013000400018 >.  Acessado em 28 fev. 2023.

Lacaz, F. A. C. (2010). Capitalismo organizacional e trabalho: a saúde do docente. Universidade e Sociedade, 19(45), 51-59. Disponível em <: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S165792672013000400018 >. Acessado em 28 fev. 2023.

Luz, M. T. (2008). Notas sobre a política de produtividade em pesquisa no Brasil: consequências para a vida académica, a ética no trabalho e a saúde dos trabalhadores. Política & Sociedade, 7(13), 205-228. Disponível em <:  http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1657-92672013000400018 >. Acessado em 28 fev. 2023.

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O Gato de Botas 2 e a representação do Puer Aeternus

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Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido. Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022

O Gato de Botas, originalmente publicado no século XVII, em 1697, pelo escritor e poeta francês Charles Perrault, é um conto que traz como personagem um esperto gato que ajuda seu dono a ter sucesso na vida.  Nesta versão cinematográfica, o estúdio da DreamWorks Animation apresenta uma adaptação do conto que vive uma nova aventura no universo Shrek quando o ousado gato fora-da-lei descobre que sua paixão pelo perigo e desrespeito pela segurança terão consequências.

O protagonista vive uma vida de prazeres, festas, bebedeiras, exibicionismo, aventuras perigosas, sem maiores preocupações, e está cada dia num lugar diferente. Expressa uma falsa humildade ao cantar “quem é o herói mais destemido”, só fazia o que lhe era conveniente, inconsequente, já que ele mesmo dizia: “Eu rio na cara da morte”, se autointitula “eterno 9 vidas”. Essas características e estilo de vida se assemelham muito com o arquétipo que Carl Jung denominou de puer aeternus, ou seja, a eterna criança.Von Franz (2005), grande continuadora do trabalho de Jung, explica que se trata de um deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina.

Ao receber a notícia do médico de que tinha morrido e, constatar que esta era sua última vida, ele se revolta e saudosamente evoca lembranças nas quais se nomeia “amado por todos, mas ninguém específico”, justamente porque não se aprofunda nas relações, não se apega a nada, nem a ninguém, não tem e nem deseja ter um porto seguro. Apesar dele não perceber e justificar dizendo que “não consegue escolher uma pessoa só”. Esses comportamentos expressam muitas características do Puer que é inconstante com seus interesses, não conseguem se encaixar num trabalho, firmar compromissos, aprofundar relações.

Para fugir da morte iminente, representada por um lobo que o perseguia, ele vai em busca de um lar estável e com uma vida cotidiana em que a rotina é algo muito presente. Justamente a rotina e monotonia, da qual o Puer foge, concluindo que aquela não é a vida que ele queria ou procurava e, que no passado, nos tempos áureos de juventude, aí sim tudo era perfeito. Ideia esta que reforça mais ainda sua recusa em envelhecer e aposentar as botas.

Em outra cena bastante simbólica do filme, Gato de Botas enterra as roupas e espada que o caracterizavam como o herói de outrora. Na cena do sepultamento ele está sozinho e chora pelo que foi um dia. Lamenta o fim de uma vida com liberdade e sem nenhum limite, pois acredita que sua história chegou ao fim e nada mais pode ser feito, porque está velho. Até que conhece um amigo diferente nessa casa em que está. Uma amizade inusitada inicia-se com Perrito, um jovem cão, que insiste em manter uma amizade com o Gato, mesmo este fazendo questão de se manter distante e declarar que o “o gato de botas só anda sozinho”, mais uma vez demonstrando outra característica do Puer que não conseguem estabelecer relações a longo prazo e estão sempre em busca de coisas novas.

Ao descobrir uma forma de encontrar uma Estrela dos Desejos – uma espécie de lâmpada mágica que realiza qualquer desejo – Gato de Botas e Perrito partem para uma aventura em busca do que ele enxerga ser a panacéia para driblar a morte e “recuperar” sua juventude. No entanto, a jornada já vem cobrando o preço das vidas superficiais e inconsequentes vividas pelo personagem. O mapa para chegar até este lugar se adapta conforme a visão do personagem e para o que ele precisa, afinal, cada um viveu a vida de um jeito e precisa se defrontar com desafios diferentes. Representando com excelência o caminho da individuação, o qual é pessoal, profundo e com o preço das escolhas feitas ao longo da caminhada.

No caminho do Gato de Botas o mapa aponta para situações muito simbólicas como o Beco da Incineração – em que ele se depara com todas as vidas que displicentemente queimou -, o Vale das Almas Perdidas – no qual ele fica diante de todos os outros “eus” que ele foi, e o Barranco Matador –  onde ele encara e duela diretamente com a morte. Ilustrando didaticamente o que Von Franz, 2005 diz que o indivíduo identificado com esse complexo não vive suas experiências totalmente, permanece “inocente”, porque vive as experiências sem estar realmente nelas.

Para o indivíduo sequestrado por este complexo, a felicidade está atrelada à uma fantasia de prazer eterno, por isso não cria raízes em lugar nenhum e está sempre em busca de algo novo que o divirta. Ele nega a passagem do tempo e em algum momento a vida cobra essa conta tornando-se insustentável esse modo pueril de vida. Neste momento, então, o Puer entra em crise, não tendo um ego fortalecido torna-se impossível sustentar uma crise, podendo assim apresentar quadros ansiosos e/ou depressivos. Como apresentado por Gato de Botas ao descobrir que não há prazer eterno e que a morte chega para todos.

No decorrer da sua caminhada, o gato se vê diante da necessidade de ter humildade para pedir ajuda e explicar o que quer, afinal, antes ele esperava ser convencido e paparicado para conseguir o que ele mesmo precisava. O Puer Aeternus geralmente possui grandes dificuldades de adaptação a situações sociais, pois ele possui um individualismo anti-social devido ao fato de se sentir alguém especial. Von Franz explica que ele não sente necessidade de adaptar-se, pois as pessoas têm que adaptar-se a um gênio como ele (VON FRANZ, 2002).

Outra expressão característica do Puer é o “Don Juanismo” em que eles sonham eternamente sonha com a mulher maternal que o tomará nos braços e realizará todos os seus desejos. Isto é frequentemente acompanhado pela atitude romântica da adolescência, o homem identificado com esse complexo só relaciona com uma mulher de forma a buscar uma substituta da mãe. Von Franz esclarece que ele não quer uma mulher, mas alguém que cuide dele com amor maternal, pois o homem dominado por esse complexo é dependente da mãe. Sintoma este claramente notado no protagonista que, numa determinada cena, se apaixona novamente por Kitty quando ela maternalmente cuida da barba branca dele.

Gato de Botas também se depara com situações inacabadas do passado, em que já havia abandonado Kitty, sua ex-parceira e atual inimiga, no altar. Apesar de muita resistência e dificuldade, percebeu a necessidade de pedir desculpas a ex-parceira que também estava no caminho em busca da Estrela dos Desejos. Astutamente, Kitty rebate dizendo que não foi abandonada no altar porque ela também não foi ao próprio casamento, já que sabia que não poderia competir com o verdadeiro grande amor do Gato de Botas: ele mesmo! Kitty percebeu esse predicado comum aos Puers, o ego inflado e a crença de que merecem tudo fácil.

A caminhada não acaba por aí, e, paulatinamente, vai transmutando o ego do protagonista que está constantemente com medo, saudosista, recordando os dias de glória. O último “desafio” intitulado de Barranco Matador se dá  no confronto com a morte que o desafia a encará-la de frente e o provoca perguntando se ele vai escolher o caminho dos covardes e fugir para ter mais vidas ou se vai lutar com coragem, convidando assim o protagonista a abandonar a neurose infantil de viver “vidas provisórias”, como nomeou H. G. Baynes.

Em uma carta, Jung escreve sobre o Puer (2005):

“Considero a atitude do puer aeternus um mal inevitável. O caráter do Puer Aeternus é de uma puerilidade que deve ser de algum modo superada. Sempre leva-o a sofrer golpes do destino que mostram a necessidade de agir de maneira diferente. Mas a razão não consegue nada nesse sentido, porque o Puer Aeternus não assume responsabilidade por sua própria vida”.

Jung sugere como cura, tanto para a mulher quanto para o homem, o trabalho. No caso da mulher, pode também ser através da maternidade.

Caminhando para a reta final da sua jornada, Gato de Botas finalmente encara seu medo e aceita o duelo, momentos antes da luta o conteúdo do seu imaginário muda substituindo o passado que ele julgava glorioso pela vida atual que ele estava vivendo no presente, ou seja, todo o caminho de individuação que ele percorreu junto com Kitty e Perrito. Finalizando magistralmente com o manejo sugerido por Jung como cura deste complexo: o estabelecimento de compromissos, o cumprimento de rotinas, a dedicar à um trabalho ou à alguém. E o protagonista decide seguir a vida ao lado de Kitty pata mansa e Perrito, sem pedir mais vida e tratando a última que lhe resta de modo mais profundo e especial.

Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido.
Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022
Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido.
Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022

Referências

FRANZ, M.-L. V. Puer Aeternus- A luta do adulto contra o paraìso da infância

. 4. ed. São Paulo: Paulus, v. 1, 2011.

GRINBERG, L. P. Jung e os arquétipos: arqueologia de um conceito. In: CALLIA, M.; FLEURY DE OLIVEIRA, M. Terra Brasilis: Pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006. p. 99-123.

HILLMAN, J. O livro do Puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 2008.

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A migração forçada no filme “Avatar: o caminho da água”

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No filme Avatar: O Caminho da Água (2022), o clã Omatikaya é novamente atacado pelos seres humanos, o Povo do Céu, que já havia invadido Pandora em Avatar (2009). Agora, outra vez em perigo, Jake Sully e Neytiri decidem ir embora com sua família buscando proteção em outro clã, o Metkayina.

A situação vivenciada pela família é de destruição do seu lar, perseguição pelo Povo do Céu e constante tensão, inclusive com ameaça direta à vida dos filhos (Neteyam, Lo’ak, Tuktirey e Kiri). Diante disso, Jake propõe que a família parta, gerando conflito com a esposa Neytiri, contudo, temendo a violência, pais e filhos reúnem o que é possível carregar e deixam a floresta rumo ao clã da água.

A motivação da partida lembra o conceito de migração forçada, sendo “o movimento migratório em que existe um elemento de coação, nomeadamente ameaças à vida ou à sobrevivência, quer tenham origem em causas naturais, quer em causas provocadas pelo homem […]” (OIM, 2009).

O filme memora a realidade de mais de 89 milhões de pessoas deslocadas à força por diversos motivos, como perseguição, conflito e violação dos direitos humanos no país de origem (UNHCR, 2021). O temor diante disso leva muitas pessoas a saírem de seus países por não contarem com sua proteção, transformando assim sua condição reconhecida como refugiada, conforme caracteriza o Estatuto dos Refugiados (1951).

Em Avatar (2022), os dois clãs são constituídos por Na’vi, povo habitante de Pandora, cada um com características próprias, como local de moradia (Omatikaya, na floresta; Metkayina, na água), constituição corporal (as caudas e os traços da pele são diferentes), hierarquia (o líder em Metkayina é Tonowari; enquanto Sully era em Omatikaya), espiritualidade, linguagem, cultura, flora e fauna.

Fonte: https://youtu.be/o5F8MOz_IDw

Quando os Sullys, denominação que a família atribui a si mesma, chegam em Metkayina são observados pelo povo local com aparente curiosidade e desconfiança. Um círculo se forma em volta deles até que o líder do clã, Tonowari, decida sobre a permanência ou não da família. Enquanto a decisão é tomada, outros Na’vi se aproximam, riem de sua constituição corporal e tecem comentários sobre eles, como a aparência dos recém-chegados, característica de discriminação. Nesse mesmo instante, outro fato da história familiar é evidenciado, os Sullys são considerados mestiços, pois são fruto da união do avatar Jake com Neytiri, Na’vi.

Após autorização de Tonowari, é atribuído a seus filhos (Tsireya, Ao’nung e Rotxo) que apresentem o modo de vida dos Metkayina aos filhos de Sully e Neytiri, igualmente os adultos fazem o mesmo. Com um local para ficar, a família e o povo do lugar possuem o desafio comum de se adaptarem a nova configuração social.

O processo de mudança cultural no qual os indivíduos são ressocializados é chamado de aculturação psicológica, termo de autoria do pesquisador Graves e mencionado por Sylvia Dantas (2017). O contato com o novo e o que deriva dele causam o estresse de aculturação, conforme relata Sylvia com base nos estudos de psicologia intercultural, e entre seus efeitos estão o sentimento de marginalização e a confusão identitária.

No filme, é possível notar dois exemplos dos efeitos citados acima. Apesar de ambos já apresentarem sinais antes da migração, são acentuados por ela: o filho mais novo Lo’ak, ao se identificar com a história de exclusão de Payakan pelos tulkun; e a filha adotiva Kiri, quando pergunta o porquê de ser daquela forma depois de não compreender o que está acontecendo com si mesma e também por outros adolescentes a acharem esquisita.

Fonte: https://www.20thcenturystudios.com/movies/avatar-the-way-of-water

Além da adaptação aos novos costumes, os adultos passam pelo desafio da mobilidade de hierarquia (antes líder do seu povo, agora Sully é refugiado) e educação dos filhos (repreendidos também pelo chefe do clã, e não somente pelos pais).

Os adolescentes sofrem bullying, são chamados de esquisitos, são motivos de riso e, pela necessidade de se sentirem aceitos, topam desafios inseguros. Os adultos precisam intervir em alguns momentos, mas conforme as relações vão se desenvolvendo, os conflitos diminuem e começa uma aproximação quando eles mesmos percebem similaridades, por exemplo: ambos precisam lidar com a responsabilidade e as expectativas de serem filhos de lideranças; e a maioria deles, exceto Tuk, está na adolescência, construindo sua própria identidade e em conflito com algumas funções atribuídas aos papéis desempenhados na família.

Diante disso, Dantas (2017) diz que existem condições mediadoras entre a aculturação e o estresse. No filme, mesmo enfrentando momentos causadores de estresse, a família tem acesso à moradia, são apresentados aos costumes, tem acesso à saúde (Kiri passa por uma convulsão e é assistida por Ronal) e meios de locomoção (os ilus) são disponibilizados para todos. Nesse sentido, é o que também estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos no artigo 25º: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários […]”.

Fonte: https://www.20thcenturystudios.com/movies/avatar-the-way-of-water

Durante todo o filme, acompanhamos a adaptação dos Sully a nova cultura, devido a migração forçada e a condição de refugiados, somada ao desafio de enfrentarem as complexidades do desenvolvimento de cada membro da família, além dela mesma enquanto um grupo com história.

Fonte: https://www.20thcenturystudios.com/movies/avatar-the-way-of-water

Ficha técnica:

Avatar: O Caminho da Água

Título original: Avatar: The Way of Water

Diretor: James Cameron

Produtores: James Cameron, Jon Landau

Elenco: Sam Worthington (Jake Sully), Zoe Saldaña (Neytiri), Stephen Lang (Coronel Miles Quaritch), Sigourney Weaver (Kiri), Kate Winslet (Ronal), Cliff Curtis (Tonowari), Jamie Flatters (Neteyam), Britain Dalton (Lo’ak), Trinity Jo-Li Bliss (Tuk), Bailey Bass (Tsireya), Filip Geljo (Aonung), Duane Evans Jr. (Rotxo), CCH Pounder (Mo’at), Jack Champion (Spider).

País: Estados Unidos

Ano: 2022

Gênero: Aventura

Referências:

AVATAR: The Way of Water. Direção: James Cameron. Produção de 20th Century Studios. Distribuição: Walt Disney Studios Motion Pictures. 2022.

DANTAS, S. Saúde mental, interculturalidade e imigração. Revista USP, [S. l.], n. 114, p. 55-70, 2017. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i114p55-70. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/142368. Acesso em: 6 fev. 2023.

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf Acesso em: 11 fev. 2023.

Estatuto dos Refugiados. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf Acesso em: 9 fev. 2023.

OIM. Organização Internacional para as Migrações. Glossário sobre migração, 2009. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/iml22.pdf. Acesso em: 6 fev. 2023.

UNHCR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dados sobre refúgio, 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/

Acesso em: 9 fev. 2023.

 

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Maternidade: escolha ou obrigação?

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Tarsila de Níchile: tarsiladenichile@gmail.com 

Santina Rodrigues: santina.rodrigues.oliveira@gmail.com 

Na sociedade em que vivemos hoje ser ou não ser mãe ainda é um tabu quase proibido de se questionar. É claro que algumas mulheres e homens podem contestar, mas a realidade é que a maior parte da sociedade, ao menos a brasileira e não só, enaltece a maternidade como destino natural da vida de uma mulher, o que pode ser visto na mídia, em comerciais com mulheres carregando seus lindos bebês no colo; ou nos finais de novela que apresentam casais formados e as mulheres grávidas; por fim, em famílias e entre amigos que normalmente perguntam: Quando virá o primeiro filho? E o segundo? Ou ainda quando lançam comentários diante de uma mulher que tem uma leve barriguinha: Está grávida de quantos meses? Ainda que muitas vezes elas possam não estar grávidas ou sequer pensando nisso… 

Estamos envoltos por uma cultura patriarcal que, de forma geral, pressiona para que todas as mulheres sejam mães e ameaçam as que não são com mensagens diretas ou subliminares do tipo: “Você só saberá o que é ser mulher de verdade quando for mãe”; “Se você não for mãe será uma mulher incompleta”; “Se você não tiver filhos irá se arrepender”; “Sem filhos quem cuidará de você na velhice?”; Por fim, a ameaça final associada ao esgotamento biológico: “Daqui a pouco seu relógio biológico vai tocar e você vai querer ter filhos e, se demorar demais, não terá mais tempo de gerá-los”. E por aí se vão as pressões implícitas (ou explícitas?) do culto à maternidade que aliás, vêm com frequência das próprias mulheres, inconscientes que estão de uma identificação sombria com o primado patriarcal. 

É claro que a maternidade é algo de suma importância para a preservação da espécie humana, sem ela nenhum de nós estaríamos aqui e a sociedade fatalmente desapareceria. E é claro, também, que muitas das mulheres experimentam momentos de felicidade sendo, entre outras coisas, mães. Mas, podemos questionar se a maternidade deveria continuar sendo pensada como destino irrefutável para todas as mulheres, independentemente de sua subjetividade. E este é o objetivo do presente artigo, afinal, nem toda mulher deseja ser mãe. No Brasil, por exemplo, segundo o artigo online da revista Bem Estar, o IBGE levantou que o arranjo familiar de casais sem filhos correspondia em 2014 a 19,9%, ou seja, 5,2% maior do que em 2004. Além disso, nem todas as mulheres podem ser mães biologicamente, e assim vemos as clínicas de fertilização terem um aumento anual no mundo da ordem de 9% (FERNANDEZ, 2019). Por fim, nem todas as que se tornam mães se sentem realizadas com a sua experiência de maternidade, como é relatado no livro “Mães Arrependidas”, 

de Orna Donath (2017). De qualquer forma, as imposições culturais valem para todas as mulheres e cabe a cada uma perceber como são afetadas e como lidar com essas exigências sociais. 

A maternidade, enquanto tema arquetípico, faz parte, além da consciência coletiva, também do inconsciente coletivo. Esse, por sua vez, possui conteúdos e modos de comportamento similares em toda a parte e em todos os indivíduos e tem a forma de categorias herdadas, as quais Jung chamou de arquétipos. Ele referiu-se aos arquétipos, também, como imagens universais, que possuem uma infinidade de aspectos, dentre eles o fato de existirem desde os tempos mais remotos, ressurgindo espontaneamente, sem a influência de uma transmissão externa. Entretanto, Jung esclarece que uma imagem primordial tem o seu conteúdo definido mais conscientemente a partir da experiência vivida de cada um. 

A psique coletiva, em parte de forma inconsciente e em parte de forma consciente, definiu culturalmente o corpo da mulher pela capacidade de conceber filhos ou não, a qual é considerada a essência de sua vida e a justificativa para sua existência, conforme os cânones do primado patriarcal. (Cf. DONATH, 2017, p. 27). No livro “Mães Arrependidas” (2017, p. 28), essa autora diz: “presume-se que a transição para a maternidade se deve estritamente ao desejo da mulher de  experimentar seu corpo, seu ser e sua vida de uma nova maneira, preferível à  anterior”. Ela continua, refletindo sobre o que a psique coletiva promete para a  futura mãe: uma feminilidade madura, uma oportunidade de evolução, um  sentimento de pertencimento, uma visita a sua própria infância, a oportunidade de  corrigir os erros de sua criação e reforçar os aspectos positivos, a criação de  vínculos mais profundos com seu parceiro, a possibilidade de ela vivenciar o amor incondicional, o fim da solidão, um envelhecimento respeitoso e até uma forma de  escapar a um hipotético presente sem sentido. A autora também toca na sombra  da psique coletiva, no que não é abertamente falado, quando menciona sobre  como as mulheres que não são mães são julgadas de forma crítica, independentemente dos motivos que tiveram para não viverem a maternidade,  seja por viverem sozinhas e não escolherem ser mães solteiras; seja por terem  limitações econômicas, físicas ou psíquicas; ou mesmo por viverem com um  parceiro que não deseja ser pai. Enfim, seja lá por qual motivo for, há sempre um  olhar de soslaio, uma inquietação no ar, um questionamento retido ou declarado direcionado à mulher que não se tornou mãe. (Cf. DONATH, 2017, p. 29).

Naturalmente, as mulheres que são “mães de ninguém” também estão  imersas na psique coletiva, sendo levadas a sentir e a questionar não só a si  mesmas, como também as demais, sobre esse tema. O termo “mães de ninguém”  tem o intuito de alterar a linguagem relacionada às “mulheres que não são mães”,  que já traz uma carga negativa e depreciativa como se algo que fosse natural às  mulheres não fosse cumprido por elas. As “mães de ninguém” buscam a  adaptação ao meio social, tentando cumprir exigências e opiniões, internas e  externas e, para isso, buscam ativamente criar uma determinada personalidade dentro deste contexto, a qual tenta e pode vir a convencer aos outros e às vezes  até a si mesmas de que são mesmo daquela maneira socialmente pré-definida.

Essa criação que cada pessoa faz ao longo do seu desenvolvimento,  principalmente na primeira metade da vida, Jung chamou de persona: uma  máscara constituída conforme os ideais normativos da consciência coletiva, que  serve para nortear a relação de cada indivíduo, particularmente, com os objetos e  espaços sociais externos. Mas, como alerta Jung, a persona não condiz  integralmente com a essência da personalidade individual. Ou seja, ela raramente  abarca quem a pessoa realmente é como um ser mais integral (Cf. JUNG, 2013,  p. 426). 

Pois, conforme ele esclarece, a persona é uma máscara da psique  coletiva, que aparenta falsamente uma individualidade, construída com base no  que as pessoas acham que são e como elas gostariam de ser vistas pelos demais  para se sentirem seguras e amadas. Entretanto, a consciência egóica do  indivíduo pode se identificar com a persona, apesar de ela não ser a verdadeira  individualidade. Isso pode ser percebido de forma indireta nos conteúdos contrastantes e compensadores do inconsciente que aparecem nos sonhos e nas  falhas de linguagem, por exemplo (Cf. JUNG, 2015, p. 47). Jung aponta ainda que: 

O indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique humana também não é algo isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo. E assim como certas funções sociais ou instintos se  opõem aos interesses dos indivíduos particulares, do mesmo  modo a psique humana é dotada de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem às necessidades  individuais. (JUNG, 2015 p.35, grifos do autor) 

Tomando por base o argumento acima de Jung, podemos entender que  quando as pessoas se identificam com a psique coletiva, elas tentam impor aos  outros as exigências do seu inconsciente, pois assim ficam com o sentimento de  uma validez geral, em função da universalidade da psique coletiva, ignorando as  diferenças das psiques individuais (Cf. JUNG, 2015, p. 40). Nas palavras de Jung  (2015, p.40) “Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual,  em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na  comunidade… As mais altas realizações da virtude, assim como os maiores  crimes são individuais”. 

Portanto, segundo Jung, quando há a identificação da  pessoa com a psique coletiva só prospera no indivíduo o que é coletivo, e então, o que for individual torna-se reprimido, podendo se tornar algo destrutivo que  adquire força por ter sido depositado inconscientemente na sombra. Isso porque  a sombra é composta pelos aspectos que consideramos que não se encaixam na  nossa persona, na imagem que gostaríamos de ter para atender às demandas  coletivas. Ela abrange os aspectos que são considerados desagradáveis ou imorais pelo nosso ego, e que por isso mesmo, gostaríamos de fingir que não  existem, por se referirem a nossas inferioridades e impulsos inaceitáveis, atos e  desejos vergonhosos, ou talvez considerados assim, ao menos em parte, por não  estarem de acordo com o que a psique coletiva entende como socialmente  honroso e adequado (Cf. HOPCKE, 95-97) 

Assim, apesar da imagem mágica que a psique coletiva impõe sobre a  maternidade, e, embora uma grande parte das mulheres encontre realização no  papel maternal, há também muitas mulheres que confundem seus reais desejos  com os da persona que construíram, além de outras que preferem ser “mães de  ninguém”, e até as que se arrependem de terem tido filhos. As ameaças dessa  imagem idealizada às mulheres que não querem ou não podem ser mães biológicas, e o silêncio que ainda predomina entre nós sobre as ansiedades,  angústias e sofrimentos relacionados à experiencia de uma maternidade real  precisam ser trazidos à luz para que possamos refletir, não só como terapeutas,  mas também como homens e mulheres. 

Essa reflexão é feita para que nós, como seres individuais e coletivos  simultaneamente, possamos ter a chance de perceber como nos sentimos e como  nos colocamos no mundo a respeito desse tabu, assim como para que possamos  ter maior consciência de como tratamos a nós mesmas, sendo mães ou não.  Refletindo sobre esse tema, podemos elaborar algumas coisas: todos temos uma  individualidade, pois a Natureza nos fez tão múltiplos quanto seres humanos  existem e assim estamos abarcados pelo nosso inconsciente e consciente  pessoais; todos estamos inseridos num contexto social e coletivo, em uma cultura  e, por isso, estamos mergulhados no inconsciente e na consciência coletivos;  assim, somos seres individuais e coletivos ao mesmo tempo e teremos situações  em nossas vidas que o nosso ser individual entrará em conflito com o nosso ser coletivo. 

Quanto mais percebermos que somos indivíduos inseridos em uma  cultura, mais podemos trazer para a luz da consciência nossos aspectos que não  se encaixam nos padrões coletivos e assim menos nos sentiremos ameaçados  por eles. Dessa forma, trabalhamos no sentido da individuação, segundo Jung  (2015 p.63-64) “de tornar-se um ser único”, cuja meta é “despojar o si-mesmo dos  invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens  primordiais”. 

Referências: 

DONATH, Orna. Mães Arrependidas Uma outra visão da maternidade. 1ª. Ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 

FERNANDEZ, Maria; SEVILLANO, Elena G. O custo de ser mãe aos 40 faz  prosperar uma bilionária indústria de reprodução assistida. El país, Madri, 22 jul  2019. Disponível em:  

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/actualidad/1563549009_803035.html#: ~:text=Aos%2040%20anos%2C%20cai%20para,o%20neg%C3%B3cio%20da% 20reprodu%C3%A7%C3%A3o%20assistida.  Acesso em: 26 dez 2020 

HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de C.G. Jung. 3.ed. Petrópolis:  Vozes, 2012 

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

 ______Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ______O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

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Por que acreditamos em fake news e como combatê-las: um olhar sobre os vieses cognitivos

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Uma grande quantidade de informações que nós temos contato diariamente não são verdadeiras. Conheça porque acreditamos em fake news e como podemos combatê-la.

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O acesso a informações e notícias está mais fácil

O termo “Fake News” tem sido amplamente divulgado e debatido, visto que é algo que impacta as opiniões e comportamentos das pessoas. As fake news descrevem histórias e manchetes sensacionalistas ou enganosas que circulam pelas redes sociais. Embora o conceito de notícias falsas não seja novo, a forma como a sociedade consome tecnologia e mídias sociais facilitou a disseminação de informações falsas em escala global. Segundo o Centro de Tecnologia da Informação e Sociedade da Califórnia, as consequências desse fenômeno vão de manipulação da opinião pública à instabilidade política. Neste cenário, a implicação da psicologia ao estudo desse fenômeno é importante porque ela pode apresentar uma compreensão aprofundada sobre esta temática e colaborar para o seu enfrentamento.

Por que acreditamos nas fake news? Na psicologia do ser humano existe algo chamado viés cognitivo, que permite que as pessoas criem atalhos e padrões mentais para conseguir pensar e executar diversas atividades no dia a dia. Esse processo biológico é o que permite o aprendizado de padrões de comportamento. Exemplos como chegar na faculdade ou como escrever, para não ter a necessidade de aprender todas essas informações continuamente, são formas como esse aprendizado se torna útil. Uma vez que esse processo é algo que acontece em milésimos de segundo, é possível que alguns erros resultam disso.

Outro aspecto psicológico interligado às fake news, é o uso da  manipulação de emoções em manchetes para ampliar o alcance, e o ato das pessoas de não lerem o que a matéria ou artigo diz. De acordo com princípios do Behaviorismo e Análise Comportamental, a memória é influenciada pela emoção, aquilo que elicia uma resposta emotiva, pode ser associado aos comportamentos. Muitas fake news geram medo e engajam reações rápidas, sendo um contexto favorável para  a sensação de pânico na população. Outra emoção comumente eliciada, é a raiva, a partir da apresentação da informação de uma forma que cria um senso de urgência nas pessoas, podendo facilitar comportamentos agressivamente.

Uma característica psicológica muito importante para entender as fake news é o viés de confirmação. Neste tipo de viés, as pessoas tendem a procurar e acreditar em informações que confirmam suas crenças e essas informações apelam para tais crenças porque existe essa tendência de acreditar no que suporta tais visões. Esses aspectos são parte da individualidade de cada pessoa, mas se associam a interesses coletivos, como assuntos sobre religião, política, ciência etc. Um dos perigos desse viés é a interpretação pouco acurada da realidade, principalmente em contextos sociais e políticos em que as notícias inflamam ou suprimem conflitos sociais.

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Aplicativos de comunicação ampliam o alcance das fake news

Um setor diretamente impactado pelas fake news é o governo. A intencionalidade de governos e pessoas tem de ser analisada para entender o impacto social que as fake news produzem. A política é o principal motivador da geração dessas notícias, o que gera a polarização de opiniões e mobiliza a população, levando à manifestações violentas, como o caso Pizzagate. Neste caso, ocorreu a disseminação de uma teoria da conspiração envolvendo tráfico humano e a candidata à presidência dos estados unidos Hillary Clinton foi antecedente ao disparo de tiros dentro de uma pizzaria de Washington. Nesse contexto, algumas comunidades da extrema direita americana utilizaram das  redes sociais, contexto em que pessoas de vários países, bem como robôs (robôs-bots) divulgaram essa notícia falsa.

O exemplo mais recente das consequências da fake news está na atual guerra entre a Ucrânia e a Rússia, em que mídias sociais espalham conteúdos enganosos dos dois lados, o que pode gerar efeitos catastróficos para a população, de acordo com pesquisadores de Cambridge. Não saber se uma notícia é real ou falsa é confuso, e fazer essa distinção é difícil, no entanto existem formas de combater esse fenômeno, como o uso de algoritmos que detectam informações falsas e as removem. Algumas redes sociais, como o Instagram utilizam desses algoritmos para rotular e avisar os usuários quando uma postagem que foi verificada é falsa.

Outra forma de combate é a alfabetização midiática, que se tornou essencial para crianças e jovens que estão cada vez mais inseridos na tecnologia e no mundo da internet. Essa alfabetização é a capacidade de acessar e analisar informações e redes sociais de uma forma crítica para que os indivíduos possam se inserir na sociedade através das mídias. É um conceito importante para a psicologia porque as relações estão cada vez mais envoltas na tecnologia, assim como a subjetividade é influenciada por ela.

Para além das abordagens reativas, é necessária uma análise do sujeito sobre a ótica das consequências das fake news, como isso impacta a confiança? Como isso impacta a democracia? O que muda quando o sujeito é exposto a fake news por muito tempo? A tecnologia, sendo a maior propagadora disso tudo e mudando a forma de raciocínio, pode resolver esse problema?

A solução mais prudente é pensar de forma crítica sobre a veracidade das informações antes de compartilhá-las e se atentar a características dessas notícias, como sites que parecem ter credibilidade mas não tem, em vez de www.globo.com estar acessando www.globo.com.co. Uma outra recomendação muito relevante é o site https://www.aosfatos.org/, um site brasileiro de checagem e investigação de notícias. É importante saber quais canais de notícias são confiáveis e não extremistas, a verificação de fatos pode diminuir a incidência desses casos. Também existem jogos que ensinam sobre notícias falsas ao colocar o usuário em contato com a possibilidade de produzir sua própria notícia, assim se familiarizando com o processo de manipulação e podendo reconhecê-lo mais facilmente.

 

REFERÊNCIAS

Center for Information Technology & Society; Santa Barbara, CA; < https://www.cits.ucsb.edu/fake-news/why-we-fall > Acesso em 24/02/2023.

Center for Information Technology & Society; Santa Barbara, CA; < https://www.cits.ucsb.edu/fake-news/danger-social > Acesso em 28/02/2023

Center for Information Technology & Society; Santa Barbara, CA; <https://www.cits.ucsb.edu/fake-news/protecting-ourselves-teach >  Acesso em 28/02/2023

Jenny Gross;; 20/01/2023 <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/01/como-a-finlandia-esta-ensinando-uma-geracao-a-detectar-desinformacao.shtml> Acesso em 28/02/2023

SaraBrown;Cambridge,MA;6/04/2022;<https://mitsloan.mit.edu/ideas-made-to-matter/russia-ukraine-war-social-media-stokes-ingenuity-disinformation> Acesso em 28/02/2023

SPINELLI, Egle Müller. Comunicação, Consumo e Educação: alfabetização midiática para cidadania. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 44, p. 127-143, 2021.

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A invisibilização de mulheres lésbicas pela heterossexualidade compulsória

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A heterossexualidade compulsória refere-se a uma série de comportamentos, regras coletivas e imposições determinadas por papéis sociais estabelecidos historicamente para os indivíduos, estes atrelados à heteronormatividade. Historicamente, esses padrões apresentam-se como regras sociais em que o gênero e a sexualidade são direcionados para a heterossexualidade como a única forma possível de existência para a manutenção desse sistema heteronormativo.

Louro (2009) descreve que a heterossexualidade é uma construção social que exige investimentos e esforços criteriosamente elaborados para colocar em funcionamento sua normatização. As forças regulatórias que produzem as masculinidades e feminilidades sob a ótica heteronormativa afirmam que a única forma de atração sexual legítima é entre um homem (pênis/masculino) e uma mulher (vagina/feminino).

Fonte: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

23ª Parada do Orgulho LGBT em Brasília.

Enraizada, a heteronormatividade é indutiva ao pensamento de que somente o relacionamento heterossexual, entre um homem e uma mulher cisgêneros, é considerado correto e normal, portanto estabelece-se como norma social que impacta de forma biopsicossocial os seres humanos que estão em contrapartida a essa norma. Nesse sentido, a sociedade compreende a heterossexualidade como superior e, em consequência, ocorre a marginalização de outras orientações sexuais.

Como consequência, estar fora desse padrão acarreta na construção histórica e fomento da homofobia, forma de preconceito que inferioriza homossexuais e a lesbofobia, que violenta mulheres lésbicas de diversas formas, desde agressões verbais, psicológicas, até violências físicas e homicídios.

A heterossexualidade é uma imposição social submetida através de diversas maneiras para influenciar e determinar que os seres humanos sejam obrigados a serem heterossexuais por ser percebida como a única forma correta de relação amorosa. Conforme Miskolci (2011), a diretriz heteronormativa induz que todos os sujeitos, independente da orientação sexual, adotem o modelo hegemônico da heterossexualidade supostamente por ser uma ordem social do que é correto e natural do que se espera ao curso da vida.

            Esse modelo é organizacional, político, imposto e naturalizado historicamente e violenta todas as mulheres, pois determina desde o que deve-se vestir até comportamentos de supervalorização dos homens e relacionamentos com eles com o intuito servi-los, satisfazê-los e de invisibilizar quem não seguem esse padrão, a exemplo das mulheres lésbicas cisgênero e transsexuais, bissexuais ou que não performam feminilidade. Nesse contexto, as mulheres lésbicas são violentadas de forma biopsicossocial ao longo de toda a vida e não possuem espaço para existir, sendo silenciadas em todos os espaços sociais.

  A heteronormatividade é um sistema mantido por padrões sociais embasada em um discurso evolutivo de possibilidade de procriação, na instituição do casamento, na submissão da mulher, o que contribui para que sua essência seja apagada e ela não tenha propriedade do seu corpo, sendo uma forma evidente de controle. Pode-se perceber que seu intuito, em suma, resulta na apropriação pessoal e coletiva pelos homens em quesito de gênero, sexualidade e existência das mulheres.

            De acordo com Butler, 1994:36-37 […} o que a pessoa sente, como age e como expressa sua sexualidade em articulação e consonância com o gênero. Há uma causalidade e identidade particulares que se estabelecem na coerência do gênero, ligada à heterossexualidade compulsória.

Entendendo a sociedade de forma sociocultural hétero-cis normativa, com padrões de comportamentos, identidades e performances de gênero e sexualidade pré-determinados antes mesmo do nascimento dos seres humanos, a influência que a heterossexualidade compulsória atinge na vida das mulheres lésbicas é contínua e resulta em um sofrimento infindável gerado pelo sentimento de não pertencimento e invisibilização do existir.

Portanto, ainda que menos discutida do que deveria, a imposição da heterossexualidade compulsória e opressões e violências ocasionadas por ela na vida de mulheres lésbicas está presente em um contexto histórico-político em que a ideia da heterossexualidade retira o poder existir e também a liberdade das mulheres de forma estrutural.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith .1994. Gender as Performance. Radical Philosophy, a Journal of socialist & feminist philosophy, 67, Summer, p.32/39.

COUTO JUNIOR, D. R. “Aí que acaba meu mar de rosas e começa o meu calvário: gênero, sexualidade e o aprendizado com a diferença. Periferia, vol. 9, núm. 2, pp. 59-79, 2017. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

 

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