O livro de Rubem Fonseca com o título de “A grande arte” se passa nos centros da cidade carioca, Rio de Janeiro, em um cenário que denuncia veementemente as violências, inerente pelas relações sociais urbanas e pela dinâmica feroz do capitalismo, assim como a hierarquia das relações de poder. O livro narra a investigação de um caso de estupro de uma prostituta, que está sobe o comando do advogado chamado Mandrake, com o intuito de se tornar detetive.
Fonte: Freepik
O personagem desde o começo do romance é descrito em características totalmente humanas e com isso, com certos desvios de moral, como por exemplo, não conseguir se manter fiel a uma única mulher, mesmo tendo um relacionamento fechado com sua cônjuge chamada Alda. Além disso, apresenta comportamentos subversivos a uma pessoa proletária e explorada pelo sistema capitalista, pois o protagonista apresenta consciência de classe.
A linguagem coloquial usada predominantemente no livro, assim como uma brutalidade e violências nas palavras e na descrição dos cenários e pessoas, transmite certa inovação na forma de escrita, pois nunca se usou um método assim antes. Sua escrita classifica-se como romance policial, mas não se manifesta como os tradicionais, pois ao decorrer da história, o escritor explora tramas psicológicos como jogos mentais com o próprio leitor.
O autor, com sua linguagem coloquial, simples, objetiva, mas ao mesmo tempo levando o leitor a participar da história, sugere que sua forma de escrita aproxima o autor do leitor. Essa característica faz com que a história, pela linguagem e pela proximidade com o leitor, faça da leitura do livro uma viagem inesperada, despretensiosa, mas ao mesmo tempo gerando expectativas e incertezas.
Por fim, o título do livro é referente a marca “P” que o assassino faz em suas vítimas no momento do crime, pois a “arte” seria essa marca registrada associado a maestria do assassino em não deixar o mínimo de rastros, vestígios ou indícios. Contudo, ao mesmo tempo, o intuito do romance não é descrever uma história minuciosa de romance policial, mas de trazer ao leitor um labirinto psicológico, descrevendo muitas vezes a humanidade dos personagens.
FICHA TÉCNICA
Autor: Rubem Fonseca
Título: A Grande Arte
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 304 páginas
País/idioma: Brasil/português
Ano: 1990
Compartilhe este conteúdo:
Super Choque será novo ícone das discussões raciais no cinema?
Filme do herói poderá abordar pautas necessárias como as da série animada na década de 2000.
No final do mês de agosto, em um painel sobre a Milestone, divisão responsável por criar alguns dos super-heróis negros da gigante DC Comics, o cineasta Reginald Hudlin (Marshall: igualdade e justiça) e o ilustrador Denys Cowan anunciaram a produção de um filme live action do Super Choque. O herói se popularizou no Brasil com a série animada exibida na década de 2000 pelo canal de TV aberta SBT.
“Eu vou dar choque no seu sistema!”
A trilha sonora icônica e o bordão do personagem marcaram a geração que consumiu desenhos animados na TV aberta nos anos 2000. No horário do almoço muitos jovens assistiram às aventuras de Virgil Hawkins ao assumir a identidade de Super Choque para lidar com inimigos, preconceito e marginalização da população negra.
Para os jovens negros daquela época, o desenho era único no âmbito da representatividade, além de tocar fortemente e ao mesmo tempo com destreza nas pautas raciais. A representatividade trazida em “O Príncipe Dragão” e “She-Ra e as Princesas do Poder” elogiados nos dias atuais, foi explorada sem medo em “Super Choque” (Static Shock) há mais de 15 anos. Sem dúvidas, um pioneiro.
No entanto, a história de Virgil foi traçada muito antes de 2004 com o lançamento da animação. Foram Dwayne McDuffie, John Paul Leon e Denys Cowan que criaram os primeiros quadrinhos do herói em 1993 pela Milestone Comics. Devido ao licenciamento de publicação desde a criação do herói e à compra de parte dos direitos, em 2008, Super Choque foi adicionado ao universo DC, o que lhe rendeu participações em diversos quadrinhos da editora, e mais tarde em animação, no icônico desenho “Liga da Justiça: sem limites”.
Virgil Howkings
O nome do personagem foi dado em homenagem ao advogado negro estadunidense Virgil Darnell Howkings (1906-1988), pioneiro dos direitos civis, que lutou durante anos por sua admissão e de outros homens negros na faculdade de Direito da Universidade da Flórida, negada sucessivas vezes em razão apenas de sua cor. Após conseguir se graduar na Universidade de Boston, Howkings batalhou por anos para conseguir fazer o exame da Ordem dos Advogados da Flórida. Entre as tentativas de admissão e licença para atuar, foram cerca de 27 anos de luta por direitos (UNIVERSITY OF FLORIDA LEVIN COLLEGE OF LAW, 2020).
Fonte: encurtador.com.br/dlzP5
Virgil é originalmente um colegial pacífico de 15 anos que decide se vingar de um bully em uma briga de gangues, no entanto, uma intervenção policial com um gás tóxico provoca mutações e superpoderes em diversos jovens que estavam na briga. O evento é chamado de Big Bang e os jovens tornam-se os meta-humanos. Após desenvolver o poder de produzir e controlar a eletricidade, Virgil assume o manto de Super Choque (Static) para lidar com os outros meta-humanos que se envolveram no mundo ilegal.
Na série animada, Virgil vive com seu pai Robert, que trabalha em um centro comunitário, e sua irmã Sharon. Na maioria dos materiais produzidos sobre heróis, a função da família frequentemente é de pivô para arcos sobre a incapacidade do herói em protegê-los, ou motivação pelo luto em perdê-los. Em “Super Choque”, diferentemente, a família Howkings atua em diversos arcos sobre união, luto, necessidade de proteção e amor.
Após perder sua mãe, paramédica, por conta de incêndios em uma manifestação violenta na cidade quando ainda era bebê, Virgil vive a ausência e saudade da mãe constantemente. Robert precisa ser um pai solo rígido e ao mesmo tempo amoroso ao criar seus filhos; já Sharon tem de ser sua própria referência de responsabilidade constantemente. Esses elementos fazem o espectador se engajar de forma orgânica nas tramas e motivações de cada personagem.
Além disso, o melhor amigo de Virgil, “Richie”, participa de quase todos os seus episódios e possui seus próprios desafios. Richie é um garoto super inteligente e que mesmo sem ter sido exposto ao Big Bang, desenvolve seus próprios equipamentos tecnológicos e armas, se tornando o Gear, parceiro de atuação de Super Choque. A trama de Richie na série também traz à tona o racismo praticado por seu pai contra Virgil. Nas HQs da Milestone, Richie é abertamente gay e sofre com a homofobia.
Tocando nas feridas
Recentemente, a morte do ator Chadwick Boseman, interprete do Rei T’Challa de Wakanda e do Pantera Negra, demonstrou o impacto social da produção de 2018. Pantera Negra é um filme carregado de ancestralidade, poder e representatividade. Não foram poucas as imagens e relatos de adultos e crianças enlutados com a morte do ator. Chadwick doou sua imagem para a representação de um rei negro, líder de uma sociedade altamente desenvolvida, com um senso de justiça ímpar, na produção com mais atores negros da história do cinema mundial.
Esse tipo de representação nunca havia sido levada tão a sério. E é exatamente nisso que reside a responsabilidade de um live action do Super Choque. Aos produtores originais nunca faltou coragem de tocar nas escaras sociais, nesse sentido, o filme não deve voltar atrás. Aos fãs da DC e do herói resta torcer para que a Warner não use seu dedo podre como fez em Liga da Justiça. Super Choque precisa levar sua essência: falar de violência policial, de racismo e dos riscos do armamento da população para os jovens.
As manifestações gigantescas nos Estados Unidos disparadas a partir do assassinato de George Floyd pela polícia, bem como as ocorridas em razão das mortes de jovens negros pela polícia no Brasil, podem ser um indicativo de que já passou da hora do gênero de heróis parar de ignorar o que acontece na sociedade atualmente. E os heróis de rua como Super Choque, são, a meu ver, os que possuem mais potencial de exploração desses temas.
Fonte: encurtador.com.br/eqsx7
No Brasil o cenário muda? Não mesmo. Nos Estados Unidos, negros correm 2,9 vezes mais risco de serem mortos pela polícia do que brancos. No Brasil, o risco é 2,3 vezes maior (CORREIO BRASILIENSE, 2020). Douglas Martins Rodrigues, Claudia Silva Ferreira, Eduardo de Jesus Ferreira, Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo Silva de Souza, Cleiton Corrêa de Souza, Wilton Esteves Domingos Júnior, Wesley Castro Rodrigues, Evaldo Rosa dos Santos, Luciano Macedo; algumas das vidas negras tiradas pela atuação policial truculenta no Brasil nos últimos anos, e na maioria dos casos os responsáveis nunca foram penalizados devidamente (BBC BRASIL, 2020).
João Pedro Matos Pinto, 14 anos, morto com um tiro de fuzil enquanto brincava em casa. Fonte: encurtador.com.br/kGJV3
A violência contra os jovens e crianças negras carrega raízes estruturais desde o sistema escravagista, já no ventre os brasileiros negros iniciavam uma vida de opressão. Atualmente, de forma tristemente similar, os índices de mortalidade na faixa etária que compreende a adolescência são constituídos majoritariamente por jovens negros (CAMARGO; ALVES; QUIRINO, 2005; GOMES; SILVA, 2017).
No entanto, ainda que existam espacialidades “permitam” a violência homicida por intermédio da suspensão nas regulações que sustentam a cidadania (como as periferias brasileiras, ou as americanas retratadas em Super Choque), essa “permissão” é incorporada pelo discurso em formas de vida específicas (GOMES; SILVA, 2017). Nesse sentido, os assassinatos de vidas negras nas periferias e a violência contra essa população continuam impunes em razão da paralisia e cegueira social incorporada intersubjetivamente pelo racismo estrutural. Nesse âmbito, todos nós somos responsáveis.
As narrativas cinematográficas possuem grande potencial no auxílio da assimilação e conhecimento de realidades, por passarem a sensação de que a vida está na tela (BERNADET, 2017). Além das dinâmicas cognitivas e sentimentais envolvidas, deve-se considerar a linguagem cinematográfica como um recurso para o desenvolvimento de novos conhecimentos (MASTELLA et al., 2017). Para tanto, a produção de um filme sobre um ícone pop referência na infância e adolescência de uma geração têm responsabilidades não apenas com o entretenimento, mas com o cenário sociocultural no qual está imerso.
REFERÊNCIAS:
BBC BRASIL (Brasil). O desfecho de cinco casos emblemáticos de morte de negros pela polícia no Brasil. 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/o-desfecho-de-cinco-casos-emblematicos-de-morte-de-negros-pela-policia-no-brasil-10062020. Acesso em: 04 set. 2020.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. Brasiliense, 2017. Disponível em: < https://bit.ly/2RZ41Uz >. Acesso em: 06 fev. 2019.
CAMARGO, Climene Laura de; ALVES, Eloina Santana; QUIRINO, Marinalva Dias. Violência contra crianças e adolescentes negros: uma abordagem histórica. Texto & Contexto-Enfermagem, v. 14, n. 4, p. 608-615, 2005.
CORREIO BRASILIENSE (Brasília). No Brasil e nos EUA, negros correm mais risco de ser mortos pela polícia. Agência Estado. 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2020/06/14/interna_mundo,863640/brasil-e-eua-negros-correm-mais-risco-de-ser-mortos-pela-policia.shtml. Acesso em: 04 set. 2020.
GOMES, Fernando Bertani; SILVA, Joseli Maria. Necropolíticas espaciais e juventude masculina: a relação entre a violência homicida e a vitimização de jovens negros pobres do sexo masculino. GEOUSP Espaço E Tempo (Online), v. 21, n. 3, p. 703-717, 2017.
MASTELLA, Veronice et al. O CINEMA COMO UMA PRÁTICA DE ENSINO-APRENDIZAGEM. REVISTA INTERDISCIPLINAR DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO, v. 4, n. 1, 2017. Disponível em: < https://bit.ly/2E9RYjz >. Acesso em: 06 fev. 2019.
UNIVERSITY OF FLORIDA LEVIN COLLEGE OF LAW (Gainesville). VIRGIL D. HAWKINS STORY. 2020. Disponível em: https://www.law.ufl.edu/areas-of-study/experiential-learning/clinics/virgil-d-hawkins-story. Acesso em: 04 set. 2020.
Jovem é morto em supermercado no Rio… Você acha que esse crime não tem nenhuma relação com o RACISMO? Isso é mimimi? Mais do que nunca, eu preciso escrever sobre isso…
Para advogar acerca da existência do racismo no Brasil, eu poderia utilizar argumentos históricos. Citar que o racismo está diretamente ligado à história do Brasil. Afinal, a “abolição” da escravatura, simplesmente, relegou aos negros à condição de “libertos”. Mas, como a esmagadora maioria deles eram sem instrução, restou-lhes os sub-empregos, as periferias sem condições de moradia… Comprometeu-se sua DIGNIDADE… E, consequentemente, sua perspectiva positiva para o futuro. Foi um literal “Estão livres e sobrevivam como puderem”.
Eu poderia usar argumentos baseados em estatísticas que apontam, a cada 23 minutos, morrer assassinado um negro no Brasil. Ou informar que os jovens negros, ainda, são a maioria dos analfabetos e com menor inserção no nível superior, neste país. Dizer que a maioria dos encarcerados são negros… Enfim… enfim… enfim…
Familiares de Jenifer Gomes, de 11 anos, assassinada com um tiro no peito após chagar da escola, no Rio de Janeiro. Fonte: https://glo.bo/2SXcNGW
Contudo, acredito que esses argumentos não convencem àqueles que levantam a bandeira do “Brasil não é racista”. E se você é intransigente e solidificou sua opinião favorável à essa bandeira, nem precisa se dispor a comentar neste texto. Porém, se você ainda possui a capacidade de ouvir para refletir acerca de opiniões contrárias às suas, continue a leitura.
Há pessoas que defendem que ‘Só entende de racismo contra negro quem é negro”. Eu concordo e acrescento “Entende também, sobre racismo, quem convive com negros”
Então, convido-lhes a fazer um teste.
Quando você estiver nos lugares mais sofisticados na sua cidade, olhe em volta e conte quantos negros estão ao seu redor? Não vale contar o garçom, o porteiro, o frentista… Quantos negros sentados à sua mesa? Quantos?
Se você estuda em colégio, pré-vestibular ou curso superior que lhe exige alto investimento financeiro, chegue à sua sala, na segunda, e contabilize a quantidade de negros presentes. Quantos?
Feche seus olhos e imagine você, à noite, entrando na sua casa e, de repente, surge um homem. Se ele for branco, qual a sua reação? Mas e se ele for um homem negro? (Sinceridade!)
Fonte: https://bit.ly/2IiDGBh
Agora responda-me: quantas histórias de negros como a de Joaquim Barbosa, você conhece?
Então, será quem essa não é uma das causas dos negros lutarem tanto por REPRESENTATIVIDADE?
Ah! Você “até tem amigos negros”. Ok! Porém se você possuir um bom poder aquisitivo e negar o racismo, reflita acerca do seu convívio com a família desse seu amigo. Se, acaso, ele morar nesses locais, você sobe o morro ou se desloca até a periferia para os churrascos de domingo? Ou batizado do filho? Aniversário?
Acredite, se você não conhece a história e a realidade da maioria dos negros pobres deste país, eu até compreendo você negar o Racismo. Entretanto, isso não lhe obriga a jamais mudar de opinião.
Esse trágico episódio da morte no Extra suscita a necessidade de discutirmos e lutarmos contra o racismo. Sabem o que analisei desta barbárie? Vi de um lado, Davi- o segurança. Do outro lado, Pedro- o jovem assassinado. O que os dois têm em comum? O fato de serem pobres e negros. Todavia, por alguma razão, o segurança esqueceu de que ambos “estão no mesmo barco” que navega nas ondas de um racismo que ora se mostra velado, ora explícito, ora camuflado pelo descaso.
Por isso, calar, não escrever, não se manifestar é, também, se manter na janela da casa grande observando a morte de mais um negro julgado culpado, sem direito à defesa.
E eu? Nunca fui da casa grande… Por isso, lutarei ao lado daqueles a quem, infelizmente, muitos ainda consideram “senzala”.
Não ao preconceito.
Toda carne humana tem valor.
Compartilhe este conteúdo:
A carne mais barata do mercado não pode continuar sendo a carne negra
Tenho um filho de 19 anos. Ele não é dependente químico, não tem nenhuma doença mental e é extremamente pacífico. Para ter uma ideia, ele nunca provocou situações de violência na vida.
Há um ano, durante o carnaval, enquanto caminhava em Ondina com outro amigo, bem próximo a mim, ele levou um soco de alguém gratuitamente. A pessoa bateu e seguiu.
Ainda no ano passado, voltávamos para casa de minha mãe no fim de um dia comum e paramos numa baiana de acarajé para comprar uns quitutes e degustarmos juntos. Eu estava dirigindo e ele no banco de carona do nosso carro. Estacionei próximo a baiana e abaixei a cabeça para procurar o dinheiro na bolsa, enquanto ele aguardava para poder ir comprar os acarajés.
Levantei a cabeça com uma arma batendo no vidro do nosso carro, determinando que eu o abaixasse os vidros, meu filho abrisse a porta e saísse do carro. De início tomei um susto, pois tinha sido assaltada em situação parecida meses antes.
Abaixei o vidro e então entendi que eram policiais civis em uma busca. O que estava do meu lado pediu para eu ficar calma, enquanto enfiava a cabeça perguntando quem era o rapaz do meu lado. O que estava do lado do carona continuava batendo no vidro, mandando o rapaz sair do carro.
Fonte: https://goo.gl/qQiqCG
Expliquei que morávamos ali e eu só estava procurando dinheiro para MEU FILHO ir comprar acarajé. Tive que repetir diversas vezes que o rapaz ao meu lado era meu filho, tinha 19 anos e que moramos boa parte da vida no bairro. Um dos policiais, então, pediu para que o outro “deixasse” a abordagem para lá.
Foi ai que entendi o que estava acontecendo. Meu filho era um potencial suspeito porque é negro.
Todo dia antes dele sair eu observo como está vestido. Eu recrimino quando ele coloca o boné para trás. Eu pergunto se levou documento. Falo para não sair sem camisa. Eu analiso as tatuagens que quer fazer e alerto para a exposição em algumas partes do corpo. Eu não deixei ele aumentar o diâmetro do alargador na orelha.
Eu busco ele em festas de madrugada. Eu evitei que ele andasse de ônibus durante muito tempo e, mesmo quando começou a andar, monitorava se estava indo, voltando, chegando e, quando possível, ia levar, buscar…como no último carnaval quando eu sai de Vilas e fui em Ondina buscá-lo.
Eu reclamo do corte de cabelo, da calça rasgada, das fotos em que ele coloca o queixo para cima e faz “cara de mau”, das gírias em público e até de como ele fica parado na rua com as mãos no bolso.
Eu oriento a ficar longe da polícia, a responder sempre de forma branda, a atender tranquilamente as abordagens policiais nos coletivos.
Eu não queria fazer nada disso. Eu queria que ele tivesse o corpo livre para usar esteticamente como bem desejasse.
Mas ele é negro e o corpo negro do homem jovem é marcado por estereótipos e identificados pela polícia, seguranças e pelos brancos como permitidos ser violentado, agredido ou morto. E eu não quero meu filho em nenhuma dessas situações.
Fonte: https://goo.gl/7YAsYU
Talvez para você que não tenha um filho jovem negro isso não faça nenhum sentido. Talvez para você que até tenha um filho negro, mas não tenha origem ou não viva em bairros populares ou periféricos, isso pareça mimimi…Pessoas do meu mais profundo afeto já me disseram que é excesso, que eu não preciso me preocupar porque meu filho é maravilhoso. Ele próprio se chateia com meus excessos de orientação e “monitoramento”. Parece que não confio nele e em quem ele é.
Eu confio. Imensamente. E eu sei que ele é maravilhoso. O mais maravilhoso do mundo. E é verdade. O que parece excesso é zelo rotineiro. É medo das estatísticas. Eu quero que ele vá, que saia, que rode, que ande, aprenda, estude, trabalhe e se divirta. Mas quero ainda mais que ele volte sempre. Inteiro. E é dilascerante saber que eu não posso garantir isso e ter a consciência de que ele e a maioria de seus amigos estarão sempre mais vulneráveis.
INFELIZMENTE o país que a gente vive não garante a segurança de meninos como ele. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Não é a violência e insegurança. É o racismo. O racismo mata e ele está estruturalmente entranhado na nossa sociedade.
Esse textão é porque eu tô dilacerada com a morte de Pedro Gonzaga de 19 anos. Eu imagino exatamente a dor que a mãe de Pedro está sentindo porque, certamente, ela já sentiu essa dor muitas vezes ao ver seu filho ser violentado simbólica ou fisicamente, como eu.
A dor da mãe de Pedro é a minha dor. A morte de Pedro é a morte também do meu filho porque cada vez que matam um jovem preto, uma mãe preta vai morrendo mais um pouquinho.
Fonte; https://goo.gl/C3mssc
Não quero ver o mundo de vídeo que está circulando. Não tenho estômago. Não quero ouvir nenhuma defesa ou justificativa para o ato do homicida que estava exercendo o papel de segurança de uma propriedade privada e que, portanto, não tinha NENHUMA licença para deter, prender, muito menos matar. Ainda que Pedro tivesse tentado subtrair sua arma, tentado roubar ou cometido QUALQUER ato no local que o tornasse suspeito, seu assassino não poderia ter sequer agredido-o, quanto mais matado-o sufocado.
Eu só queria abraçar a mãe de Pedro, dizer que sinto muito e que está doendo em mim. Queria dizer a ela que as vidas negras importam. Importam muito. Mesmo que toda sociedade queira continuar nos violentando, silenciando e nos matando, nós e nossos filhos não voltaremos para o tronco, para o anonimato e para a marginalidade que insistem em nos jogar.
A morte de Pedro Gonzaga é um assassinato legitimado pelo racismo que nossa sociedade doente insiste em reforçar.
Vamos continuar buscando a estratégias para nos proteger e continuarmos vivos nesse país de falsa liberdade e igualdade. Vamos efetivamente nos dar as mãos e evitar que mais meninos sejam simplesmente mortos.
Não é possível que continuem nos matando…
A carne mais barata do mercado não pode continuar sendo a carne negra.
Compartilhe este conteúdo:
Três Anúncios para um Crime: surpreendente e contraditório
Melhor Filme, Melhor Atriz (Frances McDormand), Melhor Ator Coadjuvante (Woody Harrelson e Sam Rockwell), Melhor Roteiro Original, Edição e Melhor Trilha Sonora.
“You’re enchained by your own sorrow
In your eyes there is no hope for tomorrow”.
-Abba, Chiquitita.
Três Anúncios Para um Crime (Three Billboards Outside Ebbing, Missouri) é um filme estadunidense de 2017, com direção e roteiro do britânico Martin McDonagh. Com sete indicações ao Oscar 2018, a película traz uma trama envolvente e imprevisível, retratando de temas polêmicos, mas nem sempre fáceis de lidar em um longa de 1h 56min de duração.
Na trama, Mildred Hayes, vivida por Frances McDormand (Fargo), teve sua filha Angela Hayes (Kathryn Newton) estuprada e assassinada, sem que o culpado pelos crimes fosse encontrado pela polícia. Ao perceber o esquecimento da polícia quanto ao crime, Mildred aluga três outdoors em uma estrada pouco movimentada na cidade de Ebbing em Missouri, no Meio-Oeste dos Estados Unidos (como o título original do filme sugere). Nos outdoors a mãe cobra justiça após meses sem investigações, provocando o xerife local Bill Willoughby (Woody Harrelson).
O xerife vivido por Woody Harrelson é o segundo maior personagem na relação tríplice entre as principais personalidades do filme. O xerife que é apontado como culpado em letras garrafais por Mildred, vive com a culpa de não ter solucionado o crime e também tem de lidar com um câncer terminal, que o torna preocupado com o futuro de sua família. Mesmo sendo o alvo da mãe enfurecida, Bill é o único personagem da trama que compreende e defende Mildred, se contradizendo entre o comportamento machista e estúpido da polícia local e uma ternura paternal hipnótica.
Fonte: goo.gl/Vu3jHQ
Bill também serve de conselheiro e inspirador para o policial Jason Dixon (Sam Rockwell), o terceiro personagem no tripé de personalidades. Dixon é uma curiosa mistura de alívio cômico e vilão: homofóbico, machista e racista, e ao mesmo tempo infantil e reprimido.
Para cada personagem na relação tri-pessoal da trama há reviravoltas que nem os melhores “palpiteiros” de filmes poderiam prever, comportando a maior virtude do filme, com um realismo de humor irônico; mas também seu maior defeito, a escolha de temas muito delicados que não são tratados com tanta delicadeza.
O tema que serve de eixo central da trama se trata do estupro de Angela Hayes. O olhar cuidadoso do diretor torna o filme repleto de detalhes, um deles pode ser o easter egg em relação ao nome “Angela Hayes”, que também foi da personagem de Mena Suvari em Beleza Americana (1999), retratada como uma “sex symbol” menor de idade, cobiçada sexualmente pelo pai de família interpretado por Kevin Spacey (sim, polêmicas à parte).
Fonte: goo.gl/ou9xxL
A violência cometida contra Angela é claramente retratada no zeitgeist social de sua cidade através do filme, e da sociedade em geral, por isso um tema tão pertinente atualmente. De acordo com Sousa (2017), os estupradores agem apoiados sob discursos machistas difundidos até eles e por eles, de modo que se acredita no direito de poder sobre as mulheres de acordo com estereótipos de virilidade e masculinidade dentro da sociedade binária.
A violação sofrida pela filha de Mildred é fruto não só da covardia de um abusador, mas também do espírito de uma época, que faz vítimas no mundo todo através da cultura do estupro. Todas as mulheres retratadas na película sofrem algum tipo de violência, e são coagidas a não revidar.
Para Sousa (2017) esses valores são difundidos socialmente, revitimizando a mulher, que se colocaria nas ‘situações de risco’, tornando-a culpada por não seguir as regras de conduta que lhe são impostas desde o nascimento. Dessa maneira, deposita-se a responsabilidade na mulher sobre os atos de terceiros contra sua integridade sexual.
Fonte: goo.gl/12TDMV
A mudança
Com tantos fatores de coerção, a violência transgeracional na família de Mildred, cometida também pela polícia, só encontrou alguma mobilização quando a personagem canalizou sua raiva para a ação nos outdoors. Ação essa, que a fez vítima de várias retaliações, por acusar um homem, xerife, detentor do poder.
Em uma participação no programa Café Filosófico, a filósofa Márcia Tiburi elucida aspectos sobre o “Mito do Sexo”, fazendo reflexões sobre a condição feminina e a relação entre sexo e poder. Segundo Tiburi (2014), historicamente o homem assume a esfera pública enquanto à mulher se atribui fortemente a função reprodutiva, tornando, portanto, o homem detentor da “lei” e do poder atribuídos a uma imagem masculina. Tal dinâmica é retratada com maestria em Três Anúncios para um Crime, na figura da polícia e de todos os agentes da delegacia, que atuam propositalmente na destruição dos planos de Mildred.
Brilhantes atuações
As participações impecáveis que renderam indicações para Frances McDormand, Woody Harrelson e Sam Rockwell, são sustentadas por uma relação dualista entre agressividade e desamparo dos personagens. Mildred encontra um sentido em seu caos, Bill encontra um fim para seu sofrimento, mas o destaque de transformação fica com Dixon, que quase em uma licença poética se transforma como ser humano no último momento, em uma epifania de revelação da bondade que já estava dentro dele.
Fonte: goo.gl/gE2SKt
A pouca coerência de Dixon que em uma cena ouve a música Chiquitita do grupo ABBA (conhecido pelas suas musicas cheias de esperança e amor), e em outra age pra prejudicar Mildred no momento em que ela mais precisa de ajuda, alcança uma redenção quase cômica após um “insight”.
“Chiquitita, me diga o que há de errado Você está acorrentada na sua tristeza Nos seus olhos não há esperança para o amanhã.”
Qualquer prêmio que Três Anúncios para um Crime venha a receber não será nenhum tipo de surpresa, visto suas estrondosas atuações e as minuciosas direção e fotografia. A importância da representação de temas tão atuais como a cultura do estupro e violência contra a mulher é inegável, mérito de McDonagh e todo elenco do filme.
Porém, a maior incoerência da trama é sem dúvidas a falta de atores negros em papéis importantes. O filme vencedor de quatro Globos de Outro, rendeu um prêmio para Sam Rockwell, que interpretou o policial conhecido por ter espancado um homem negro que estava sob custódia, algo que deve ser pensado. Apesar da redenção de Dixon e da grande atuação de Rockwell, nada explica falta de atores negros em um filme que aborda preconceito racial. Apenas um ator negro em um papel pouco relevante, não é o que fará o Oscar deixar de ser branco. A mesma dinâmica se aplica à homofobia, mostrando cenas extremamente violentas, porém sem dar ênfase ao personagem Red Welby, com a atuação intrigante de Caleb Landry Jones.
Fonte: goo.gl/19VjNc
Esses e outros aspectos tornam Três Anúncios para um Crime contraditório. À medida que aborda temas extremamente relevantes e delicados em segundo plano, sem os tratar com a merecida atenção; a trama central se desenvolve bem, surpreendendo na profundidade das atuações e nas reviravoltas do roteiro. Surpreendente e contraditório.
Um bom filme que sem dúvidas merece ser assistido pelos leitores desse texto. Certamente chegarão aos seus próprios e novos entendimentos.
FICHA TÉCNICA
TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIME
Diretor: Martin McDonagh Elenco: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell Gênero: Drama Ano: 2018
TIBURI, Márcia. O Mito do Sexo – In Café Filosófico (14:57 min). Campinas: CPFL Cultura, 2014. Disponível em <https://vimeo.com/71103337>. Acesso em: 13 fev. 2018.
Compartilhe este conteúdo:
O Psicopata Americano: A horda primeva de uma sociedade consumista
Em 1991, Bret Easton Ellis publica seu polêmico, violento e confuso best seller, intitulado O Psicopata Americano. O livro conta a história de Patrick Bateman, um yuppie – expressão inglesa que significa “Young Urban Professional” – Jovem Profissional Urbano – (Significados, 2012), que durante o dia mantém uma imagem de “bom samaritano” e durante a noite satisfaz sua sede de sangue. Não, não é uma história sobre vampiros, mas sobre um homem adoecido que necessita assassinar pessoas.
Fonte: http://zip.net/bxtN89
Vice-presidente da Pierce & Pierce, notável empresa situada na Wall Street, Bateman é um jovem adulto de apenas 27 anos de idade e com um poder desejado por muitos. Com uma rotina incansável de culto ao próprio corpo (o segundo capítulo é destinado apenas para descrever seu ritual de exercícios, banho, cremes, loções e afins) e de conversas acerca dos melhores restaurantes e melhores marcas com seus colegas de trabalho (fúteis como ele), o protagonista do livro representa muito bem o american way of life (estilo de vida americano)
(…) desenvolvido na década de 20, amparado pelo bem-estar econômico que desfrutavam os Estados Unidos. O sinal mais significativo deste way of life é o consumismo, materializado na compra exagerada de eletrodomésticos e veículos (Klick Educação, 2009).
O livro traz uma reflexão acerca da hipocrisia existente em uma sociedade onde as pessoas se preocupam com o bem universal da mesma maneira que se preocupam com uma pedra. Os diálogos entre Bateman e seus colegas nos restaurantes são sobre problemas mundiais, como a fome na África – cuja eles não moveriam um dedo para tentar modificar – mas, no escritório, acontece uma disputa camuflada entre eles sobre qual cartão de visita é o melhor.
Fonte: http://zip.net/bqtPhQ
Esse capitalismo selvagem beneficia poucos e exclui muitos. Entrando na dinâmica de criar um bode expiatório, os detentores desse poder econômico acreditam não possuírem responsabilidade sobre as mazelas do mundo e acabam por culpabilizar as vítimas desse sistema. Adotam o discurso de que tais problemas são de ordem individual e não social. Eis que Patrick Bateman, mestre em colocar a culpa em suas vítimas, age de modo (perturbador) a tentar excluir do mundo quem ele acredita ser culpado por tantos problemas, assassinando tais pessoas à sangue frio.
– Perdi o emprego… – Por quê? – pergunto, interessado de verdade. – Você andava bebendo? É por isso que foi despedido? Tráfico de informações confidenciais de mercado? Estou só brincando. Não, realmente, você andou bebendo no trabalho? (…) – Estou com fome – repete – Ouça. Você acha justo tirar dinheiro de pessoas que têm emprego? Que trabalham mesmo? (Ellis, 1991, p. 161-162) [diálogo de Bateman com um morador de rua antes de esfaqueá-lo].
No mundo interno de Bateman, as pessoas não são reconhecidas por nome, personalidade ou características pessoais, mas por marcas. Ele observa tudo (aparência externa) nos mínimos detalhes, o que rende ao livro longas narrativas sobre roupas, calçados, perfumes, maquiagens, joias, penteados e o que mais for de adereço ao ser humano.
Sendo muito crítico nesse aspecto, Bateman não admite que alguém seja mais sofisticado do que ele. Infelizmente para Paul Allen, um de seus colegas de trabalho, o seu cartão de visitas era mais sofisticado do que o de Bateman. E, é claro, esse último não poderia deixar tal situação perdurar por muito tempo. Tomado de fúria por alguém possuir mais poder que ele, Bateman assassina seu colega sem titubear. Durante a narrativa, feita pelo próprio Patrick Bateman, no decorrer do livro, muitas outras mortes surgirão, por motivos um tanto quanto questionáveis, mas que, para ele, faziam todo sentido. Era algo necessário para ele, uma forma de se sentir poderoso.
Fonte: http://zip.net/bntNsB
Essa atitude muito se assemelha à horda primeva, descrita por Freud em seu livro Totem e Tabu. Mais precisamente, aos filhos dessa horda, que assassinaram seu pai tirano, despojando-o do poder, no intuito de tomá-lo para si. Entretanto, esse pai se torna mais forte, seja pelo respeito ou pelo remorso (ambivalência) sentido pelos filhos ao matarem-no (Freud, 1913).
Assim como esses filhos, Bateman se encontra em uma sociedade (horda) com leis e proibições, onde, por vezes, as ambivalências de escolhas e sentimentos podem se tornar adoecedoras. À primeira vista, a saída está em matar quem lhe causa repulsa, descobrindo-se, depois do ato, que isso só agrava o problema (Bateman nunca fica satisfeito com o poder tomado do outro).
E essa é a sociedade descrita na obra de Ellis, onde a “corrida atrás do ouro” se torna algo essencial para muitos, sobrepujando até mesmo a vida, que é tirada daqueles que atrapalham o alcance do poder. Entretanto, torna-se um ciclo vicioso, uma vez que esse poder nunca é alcançado de fato, como o pai tirano da horda primeva, que não morre, apenas torna-se mais forte nas ações de quem buscou pará-lo.
Ficha Técnica O Psicopata Americano
Fonte: http://zip.net/bftNjC
Título: O Psicopata Americano (American Psycho) Autor: Bret Easton Ellis Publicação: 1991 Gênero: Ficção Transgressiva, Literatura pós-moderna, Sátira
REFERÊNCIAS: ELLIS, B. E. O Psicopata Americano. Tradução de Luís Fernando Gonçalves Pereira. Editora Rocco. Rio de Janeiro — 1992. 330 p. FREUD, S. Totem e Tabu e outros trabalhos. Vol. 13 (1913-1914). 147 p. Klick Educação. American Way of Life. 2009. Disponível em: https://goo.gl/Ls4Kw7. Acesso em: 22 mar. 17. Significados. O que são Yuppies. 2012. Disponível em: https://www.significados.com.br/yuppies/. Acesso em: 22 mar. 17.
Imagine só um lugar onde você pudesse fazer tudo o que quisesse e no qual fosse possível dar vazão aos seus impulsos mais secretos, pecaminosos e violentos sem quaisquer riscos ou consequências? Você consegue imaginar um lugar assim? Você gostaria de ir para um lugar como esse? Feliz ou infelizmente tal lugar ainda não existe na vida real, onde diversões possuem riscos e, muitas vezes, efeitos colaterais. Mas na ficção ele se chama Westworld, um parque de diversão para adultos que é tema de uma série de mesmo nome lançada em outubro pelo canal HBO.
Inspirada em um filme homônimo lançado em 1973 – no Brasil ele se chama Westworld – Onde ninguém tem alma (um ótimo subtítulo!) – a série possui um argumento semelhante mas tenta (e consegue) ir além, muito além da produção que a inspirou, tanto no enredo quanto no visual. A história básica de ambos é praticamente a mesma: em um parque voltado para adultos, especialmente para homens, androides com aparência humana atuam como anfitriões de “convidados” humanos que desejam viver romances e grandes aventuras no Velho Oeste – no filme original, além do Velho Oeste existem outros dois cenários: o mundo medieval e o mundo romano.
A grande questão tanto do filme quanto da série é que os androides são tão incrivelmente semelhantes aos seres humanos, que é praticamente impossível distingui-los – Westworld se configura, neste sentido, como um imenso Teste de Turing (na verdade, os androides são tão reais que seria mais correto dizer que o parque venceu o Teste de Turing).
Uma diferença crucial, no entanto, é que somente anfitriões podem se “ferir” e “morrer” – na realidade, nenhum é de fato ferido ou morto, pois são máquinas e não seres vivos, apenas o parecem sê-lo; os convidados estão, pelo menos em um primeiro momento, protegidos (o filme de 1973 deixa claro que os revólveres possuem sensores que impedem anfitriões e convidados de atirarem em convidados, mas não parece haver qualquer impedimento para que convidados firam ou matem convidados com outras armas; já a série, pelo menos até onde assisti, não deixa claro se anfitriões podem de fato ferir convidados com socos ou facas, por exemplo, ou se convidados podem atirar em convidados).
De fato há uma grande preocupação dos administradores do parque com a segurança dos convidados. No filme há uma cena em que uma cobra robótica morde um visitante, o que deixa a equipe transtornada. Um dos administradores então afirma ser “imperdoável ferir um hóspede”; e complementa: “Se não pudermos garantir a segurança dos hóspedes teremos sérios problemas”. A preocupação é legítima. Se os convidados pagam caro para ir a este parque (o filme fala em U$1000,00 por dia), o mínimo que esperam é que voltem inteiros da experiência.
Mas se a expectativa dos administradores diz respeito, dentre muitíssimas outras coisas, à segurança dos convidados, as expectativas destes vão muito além. O que eles esperam é não só voltarem vivos, mas também e principalmente viverem experiências intensas de sexo e violência que não podem colocar em prática na vida real com pessoas reais. Em Westworld tudo é permitido. Se quiserem roubar, podem; se quiserem matar, podem; se quiserem estuprar, podem.
Fonte: http://migre.me/vyfnp
Os convidados – majoritariamente homens – podem tudo. Como bem afirma Robert Ford, criador e administrador de Westworld na série, “os convidados gostam de poder. Como não podem tê-lo lá fora, eles vem aqui”. Os anfitriões foram criados – embora não o saibam – justamente para atender, entreter e satisfazer os convidados. Um dos protagonistas do filme afirma, nesse sentido, que “essas máquinas são servas do homem”. Pois é disto que se trata: de um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade (de fato não há ambiente mais masculinizado e viril do que o Velho Oeste do parque).
Em Westworld os convidados são deuses que tudo podem. Lá, ao contrário da vida real, eles não estão submetidos a regras, a leis, a tradições, a rotinas e a constrangimentos de qualquer tipo. Lá eles podem ser e fazer o que quiserem, quando quiserem e da forma como quiserem. Como afirma Ford para sua equipe, os convidados “não querem histórias que lhes digam quem são. Eles já sabem quem são. Eles vem porque querem vislumbrar quem poderiam ser”. É possível ver nesta fala de Ford que um dos objetivos do parque é propiciar uma experiência de autoconhecimento para seus clientes.
Mas para além disso, a ideia central é que consigam colocar em prática, pelo menos no tempo em que estiverem no parque, tudo aquilo que não conseguem fazer no mundo real. Se na vida cotidiana, não conseguem ou não podem se aproximar de certas mulheres, lá todas estão à sua inteira disposição; elas foram concebidas justamente para atender aos desejos dos homens – e com uma “vantagem”: elas não se lembrarão de nada no dia seguinte, aconteça o que acontecer.
Se na rotina do dia-a-dia não convém esmurrar e muito menos matar as pessoas que lhe incomodam, lá isto é permitido e mesmo estimulado. Foi contrariado, questionado ou ironizado por alguém? Então atire! E pode atirar à vontade, pois no dia seguinte todos os anfitriões estarão novos em folha, prontos para serem mais uma vez alvejados por tiros. Quer roubar um banco e ainda sequestrar e estuprar a filha do banqueiro? Pode fazer sem medo, pois em Westworld você não será punido e não haverão consequências reais. Lá não há leis, não há moral, não há restrições. Lá, ao contrário do que ocorre na vida real, todos os convidados possuem total ou, pelo menos, grande controle do rumo dos acontecimentos. Eles sabem que tudo terminará bem e que eles serão, pelo menos por um instante, protagonistas e heróis de alguma história grandiosa. Lá eles são especiais.
Fonte: http://migre.me/vyfpW
De uma forma geral, o filme e a série possuem uma visão bastante negativa (ou será realista?) do ser humano. Liberto das amarras da sociedade, o homem livre é um ser puramente sexual e violento, parece nos dizer Westworld. E talvez seja realmente assim. Em sua clássica obra O Mal-estar na civilização, Freud argumentou justamente nesta direção. Segundo ele, viver em sociedade implica necessariamente na repressão e sublimação de grande parte de nossos impulsos sexuais e agressivos, o que traz como consequência uma permanente e inevitável sensação de mal estar.
Em sociedade não conseguimos e provavelmente nunca conseguiremos nos sentir plenamente satisfeitos. Viveremos eternamente frustrados e incompletos, sempre desejando aquilo que não temos e nem podemos ter. E talvez por isto todos ou muitos de nós nutramos internamente um enorme desejo de liberdade, um anseio permanente de nos libertarmos de tudo e de todos para que possamos viver e ser e fazer o que bem entendermos. Talvez por isso também nos regozijemos com obras de arte ou jogos (e Westworld é, em sua essência, um jogo) que permitem que vivamos experiências radicais e perigosas em ambientes controlados e seguros.
É como se ao assistirmos um filme de terror, por exemplo, pudéssemos dar vazão aos nossos medos mais profundos sem que de fato sejamos afetados. Como afirma um criador de jogos de terror realistas no episódio Playtest da série Black Mirror, “sempre gostei de fazer o jogador pular. Assustado. Se assustar e pular. Depois você se sente bem. Fica radiante. Por que? Por causa da adrenalina? Sim. Mas principalmente por ainda estar vivo. Você encarou seus maiores medos em um ambiente seguro. É uma libertação do medo. Você se liberta”. O objetivo de Westworld é semelhante: permitir ao convidado vivenciar experiências radicais em um ambiente controlado e seguro e possibilitar, com isso, que ele se sinta livre, leve e solto.
Fonte: http://migre.me/vyftO
No entanto, uma importante lição dos filmes de ficção científica é que nada é totalmente controlado e seguro, especialmente aquilo que é criado pelo homem. Desde a publicação do livro Frankenstein em 1818, esta ideia de que artefatos criados pelo homem podem sair do controle e se voltar contra o próprio homem, é repetida continuamente em inúmeras obras de arte. Pense por exemplo nos filmes Jurassic Park, Blade Runner, A mosca, O Exterminador do futuro, Inteligência artificial, Eu robô, O planeta dos macacos – A origem, Ex Machina, Transcendente, dentre muitos outros. Embora estas obras sejam muito diferentes entre si, todas compartilham da mesma premissa: quando o homem resolve bancar Deus e criar ou modificar a vida, inevitavelmente sua obra sairá do controle e ele acabará por pagar um alto preço por sua ousadia. Westworld não escapa desta premissa.
No filme de 1973 a situação começa a sair o controle quando uma cobra morde um convidado. A partir daí tudo vira um completo caos e os anfitriões acabam por matar todos os convidados, à exceção do protagonista. Já na série, o desenrolar do descontrole ocorre de uma forma mais lenta. Os anfitriões aos poucos começam a demonstrar comportamentos não-programados e a apresentar memórias de antigas atualizações.
Até o último episódio que assisti, a situação ainda não saiu totalmente do controle mas já dá para imaginar que isso ocorrerá em breve. E isto nos traz de volta à questão de se realmente é possível conceber um ambiente totalmente controlado e seguro. A resposta de Westworld e de toda uma tradição de filmes e livros de ficção científica é clara: não, o homem nunca terá total controle, nem do próprio destino e nem do destino daquilo que cria. As criações humanas serão sempre imperfeitas e incontroláveis, à imagem e semelhança de seus criadores.
Observação: eu acabei esquecendo de mencionar, mas as enormes semelhanças entre Jurassic Park e Westworld não são simplesmente mera coincidência. As histórias de ambos foram criadas pela mesma pessoa: Michael Crichton, que é autor do livro original e do roteiro de Jurassic Park assim como do roteiro do filme Westworld, que inspirou a série. O canal College Humor fez uma compilação das incríveis semelhanças entre as duas obras – veja aqui.