Eu, mãe de 6 filhos: uma experiência no SUS

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Baseado no relato de Ivone Creuza Santos Antunes

15 de maio de 2018, Conceição do Araguaia-PA

Somos de São Paulo-SP. Mudamos para Conceição do Araguaia-PA em julho do ano de 1998. Todos os nossos familiares ficaram lá enquanto eu, meu esposo e nossos 5  filhos viemos embora, a saber: Aline, Thiago, Angélica, Samuel e Letícia.

Na segunda metade do ano de 1999 descobri que estava gestante há 3 meses e que a família iria aumentar um pouquinho. Esperávamos uma menina.

Tinha muita preocupação em relação à assistência que receberíamos, por que eu já sabia que na cidade quase não havia recurso. Sendo assim, comecei a fazer o pré-natal em uma clínica particular e ao final do acompanhamento falei para a médica que eu queria muito que ela fizesse meu parto já que eu não conhecia nenhum médico da cidade. Ela negou alegando que o parto teria que ser pago. Eu então perguntei o valor e ela apenas sorriu na minha cara. Falou o nome de alguns médicos e falou para eu procurar outra pessoa. Naquela época a cidade era comandada pelos médicos. Eles eram tão unidos que sempre que chegava algum novo, davam um jeito de mandar ir embora.

Não foi muito fácil no início, pois ainda tínhamos pendências para resolver em São Paulo.

Já nos dias perto do nascimento da nossa filha, meu esposo recebeu um comunicado e teve que viajar às pressas. Mas pediu ao seu primo, Mário, que morava na mesma cidade, que desse assistência à nossa família enquanto ele estivesse longe. E assim foi.

Certo dia, estava na minha casa e comecei a sentir as dores. Na época nós tínhamos uma Kombi e um irmão da igreja, amigo nosso, dirigiu rumo ao hospital.

Como a cidade era pequena e com poucos recursos,  resolvi ir direto para o hospital particular da cidade o “São  Lucas”, pois achava que era o melhor.

Cheguei lá a noite e passei bastante tempo andando de um lado para outro já quase sem aguentar de tanta dor. Enquanto isso, as enfermeiras sorriam, conversavam, brincavam. O assunto tava mais interessante do que as minhas contrações sufocantes. Passado certo tempo, fizeram o exame para saber quanto tinha de dilatação e continuaram conversando.

Fonte: https://goo.gl/RJ71bL

 Quando eu senti que os ossos do meu quadril se abriram, não consegui mais andar e a dor só piorava. Eu dizia:

– Por favor!  Não estou  aguentando mais!..

A resposta era sempre a mesma:

-Continua fazendo força. Agora é com você!

-Ela já vai nascer!!

-Faz força, “siá”.

E o assunto delas ainda era mais importante do que minha filha que já estava quase nascendo enquanto eu ficava imóvel de tanta dor no corredor do hospital.

A cada vez que eu as interrompia, percebia que elas se irritavam mais.

Era a noite do dia 15 de maio de 2000. E finalmente quando elas viram que já era hora, uma foi preparar a cama, colocar a escadinha para eu subir. Pensei “Eu não consigo nem me mexer, como vou subir uma escada?”

Consegui me ajeitar e finalmente minha bebê nasceu. Mas não ouvi o chorinho dela. Muito estranho, pois todos os 5 filhos choraram, menos ela.

As enfermeiras a levaram para fazer os procedimentos e eu fiquei naquela cama, sem ninguém para me preparar. Tive medo de contrair alguma infecção.

Logo depois me trouxeram ela. No quarto tinha apenas um ventilador e eu com tanto calor que o suor escorria. Coloquei a Luciana na ponta da cama para o vento não ir nela, enquanto esperava passar aquele calor insuportável. Fiquei olhando tentando imaginar se ela seria branquinha ou morena, já que só eu e o Thiago somos negros. Mas ela tinha a cor estranha, era pouco acinzentada com tons rosados.

Na manhã do dia 16 fui liberada para ir embora. A irmã Camila foi me buscar no hospital e levar para casa.

A Leticia e o Samuel eram bem pequenos, ela tinha quase 2 anos e 8 meses, ele faria 4 aninhos dois dias depois. Os dois estavam brincando na terra, todos sujos. Quando viram que nós havíamos chegado,  ficaram elétricos, ansiosos para conhecer a irmã recém nascida. Falei para tomarem banho primeiro e foram correndo, disputando quem terminaria primeiro. Não demorou muito tempo e vieram, os dois, limpinhos e cheirosos para ver o rostinho da nossa bebê.

Lembro que a Camila estava dando banho nela na banheira e o Samuel chegou a jogar água com aquela mãozinha pequena. Os olhos deles brilhavam de tanta felicidade.

No meio da tarde a Luciana começou a  chorar desesperadamente e pela minha experiência, acreditava que fosse cólica. Pedi ao Thiago que fosse na farmácia comprar um remedinho enquanto eu massageava a barriguinha dela na esperança que aquele choro cessasse.

A Luciana chorava demais e resolvi levá-la ao hospital. Naquela hora tinha uma pessoa nos visitando e ela foi comigo. Enquanto eu dirigia, a nossa amiga segurava minha filha em seus braços.

Fui até o hospital mais próximo de casa, mas não quiseram atender pois ela não tinha nascido lá. Então fui correndo novamente para o hospital São Lucas. Estava escuro lá dentro, não tinha ninguém na recepção. Chamei, chamei até que veio um rapaz. Expliquei o que estava acontecendo e ele me disse que a consulta era particular, eu implorei para que nos atendesse pois tínhamos saído cedo de lá, mas ela não estava bem. Eu já estava desesperada e perguntei se tinha recurso para minha filha. Ele disse que não. Resolvi sair correndo para o Hospital Regional.

O médico, ainda no corredor, viu que minha filha chorava muito e perguntou o que estava acontecendo, expliquei a situação. Mais uma vez, ouvi o médico dizer que  não tinha condições de atender minha filha. Segundo ele, no hospital só tinha “injeção para cavalo”. Como estávamos no corredor, a enfermeira chefe  viu e me perguntou onde ela tinha nascido. Em pouco minutos ligou no São Lucas e falou que eu podia ir que eles iriam me atender.

A noite estava chegando e então voltei para o hospital onde ela nasceu. Ao chegar lá, fui muito mal recebida, as pessoas me olhavam com expressão de desprezo e me deixaram falar com o médico.

Fonte: https://goo.gl/e5GGGq

Ele veio, examinou minha filha e começou a resmungar que ela estava desidratada, falou comigo como se eu não tivesse cuidado da minha filha. Fiquei indignada! Onde já se viu dar água para uma bebê recém nascida??!  Ele saiu no corredor sem nem olhar no rosto das enfermeiras dizendo:

-Aplica isso, aquilo, coloca tal coisa!!

E logo vieram as enfermeiras para aplicar medicamento. Começou a saga para encontrar a veia da Luciana. Fura daqui, dali e nada de achar.

Meu coração se partiu em mil pedaços, estavam judiando da minha bebê. Algum tempo depois a moça que estava comigo comentou que poderiam encontrar alguma veia na cabeça e só então eu lembrei que quando o Samuel e Thiago foram internados com pneumonia, o medicamento era na cabeça. Na hora me culpei por não ter lembrado desse detalhe e por deixar furarem minha filha tantas vezes.

Perguntei à elas se poderia ser feito isso. E a resposta foi:

-Pode ser sim, mas nós precisamos da sua autorização para raspar o cabelinho dela.

“O que era cortar um cabelo, que pode crescer depois, perto do sofrimento que estavam causando na minha filha tão pequena???”

Nesse período em que me ausentei de casa, a irmã Edna ficou com as crianças enquanto a Aline, que é a mais velha, não chegava da escola.

Mais tarde o Mário ficou sabendo do ocorrido e foi atrás de nós no hospital, ao chegar lá perguntou se tinha condições dela ser bem atendida e que dinheiro não seria o problema já que era só disso que eles falavam.

Decidimos levá-la à Araguaína, e o médico falou que ela não aguentaria a viagem, a menos que tivesse uma bomba de oxigênio.

Dessa forma, começamos a procurar quem tinha essa bomba já que não tinha no hospital. Fomos atrá de três médicos. Um tinha mas estava quebrada, o outro tinha mas faltava uma parte, e a outra já tinha emprestado.

Conseguimos achar um no Hospital Regional, mas a enfermeira não podia emprestar e deixar o hospital sem.

Insisti tanto com ela e prometi que devolveria logo. Ela percebeu o tamanho do meu desespero e resolveu emprestar. Pediu segredo absoluto pois ela poderia ser prejudicada.

Finalmente conseguimos a bomba, mas na hora de testar, percebeu-se que não tinha a máscara que colocava no rosto. A enfermeira pegou um frasco de soro que estava vazio e improvisou uma máscara.  Conseguimos o botijão com o oxigênio que segundo eles estava cheio e poderia aguentar ir até Goiânia, apesar de Araguaína ser perto.

Na madrugada do dia 17 seguimos viagem. Eu, o Mário e a irmã Camila. Ela foi levando minha filha no colo, pois eu tinha medo de algo pior. Por vezes perguntava se a Luciana estava respirando. Ela dizia que sim.

O Mário conseguiu contactar um amigo de Colinas e contou que estava levando a filha do Zé (meu esposo), em estado grave. Esse amigo dele conseguiu uma clínica e falou que poderíamos ir. Naquele dia eu só tinha almoçado e não comi mais nada, já estava fraca.

Durante a viagem, perguntava se minha filha estava respirando e a Camila dizia que sim. O Mário corria bastante para chegar o mais rápido possível.

Em dado momento vimos as luzes da cidade e ele falou que em 15 minutos já estaríamos lá. Me enchi de esperança! Perguntei novamente se a Luciana respirava. Mas logo desta vez a Camila respondeu:

-Quando chegar lá a gente vê!

Ao chegar na clínica, ainda de madrugada, a equipe estava na porta esperando a gente chegar e eu nem tive forças de descer do carro. Eles pegaram a criança e a médica gritou:

-Nesse botijão não tem oxigênio!!!!

Foram depressa para a clínica e lá de fora eu via eles colocando ela na mesa para examiná-la, enquanto todos ao redor estavam de cabeça baixa.

Eu ainda dentro do carro já estava pensando no que poderia ser.

Logo a médica veio, toda carinhosa dizendo:

-Ôh, Mãezinha! A sua filha não resistiu… E vocês não podem ficar aqui por que ela veio a óbito ainda em trânsito. Agora você precisa ser forte por que tem mais 5 te esperando! Eles precisam de você!

Me doparam de medicamento e pouco tempo depois tomamos viagem de volta à Conceição do Araguaia.

A Camila novamente levou ela em seus braços, já sem vida. O Mário abriu as janelas do carro na intenção de não dormir por causa do vento. E como entrava um vento gelado, algumas vezes cobri minha filha, pensei “Ela deve estar com frio!”.

Chegamos na nossa cidade quando o dia já estava amanhecendo e fomos direto na funerária comprar o caixãozinho dela. Era branco. Lá mesmo colocamos ela no caixão.

O seu sepultamento foi marcado para às 11h. Fui para a minha casa mas não  tive coragem de dizer aos pequenos o que havia acontecido. Na época ainda não era todo mundo que tinha telefone e o Thiago pegou a bicicleta e foi contar para os nossos amigos e irmãos na fé.

Quando deu a hora de ir para o velório, no cemitério mesmo, o Mário foi me buscar em casa. Deixei o Samuel e a Leticia em casa pois não queria que eles vissem aquilo.

Fui para o cemitério. Sobre duas cadeiras estava o caixãozinho com a minha Luciana.

Em determinado momento olhei perto de uma coluna e vi o Samuel olhando para a irmãzinha com o semblante triste e de cabeça baixa.

Não aguentei! Foi demais para mim! Me dilacerou…

Por fim, enterraram ela e eu nem quis mais ver nada.

Hoje ela completaria 18 anos. Não chegou a ser registrada e não tem certidão de óbito.

Fonte: Arquivo Pessoal

Não existe nenhuma foto. Nem seu pai o conheceu. Para o cartório ela nem existiu. Mas fez parte da nossa história e nunca deixou de ser minha filha. O único registro que temos dela é o exame do pezinho.

Luciana Antunes viveu quase dois dias, mas permanece em nossa memória até hoje. Quando me perguntam quantos filhos eu tenho, digo que tive 6, mas uma morreu.

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Drive: nossas rotas entre luzes e sombras

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I drive”

A cidade e suas direções

Há filmes que nascem clássicos, colocando-se em relevo perante seus coirmãos de época. Este é o caso de Drive, lançado em 2011, dirigido por Nicolas Winding Refn e estrelado por Ryan Gosling. A estrutura da obra gira ao redor de um tríplice pilar fundamental: o motorista (driver) e sua relação com sua essência volátil representada pelo automóvel que guia com maestria e precisão; os redutos e cantos da cidade na qual se passa o filme, ora como uma sufocante urbanosfera noturna, ora como uma calorosa e efêmera possibilidade de fuga do cotidiano citadino.

E, por último, o elenco de apoio da obra, que é formado por nomes como Carey Mulligan (Irene), Bryan Cranston (Shannon), Oscar Isaac (Standard Guzma), Ron Perlman (Nino) e Albert Brooks (Bernie Rose), e nos ajudam a compreender a complexidade daquele indivíduo monosilábico que dá título à obra. E, sobre o elenco, é preciso determo-nos na atuação de Ryan Gosling. O ator, nos últimos anos, vem demonstrando uma maturidade ímpar na escolha e diversificação dos seus papeis no cinema, em filmes como The Place Beyond the Pines (2013), The Big Short (2015) e o vindouro Blade Runner 2049 (2017).

A sua desenvoltura em Drive remete-nos a grandes atuações em filmes que exploraram a figura icônica do forasteiro ou desconhecido que decide agir em uma situação específica e, deste ponto em diante, a trama da obra degringola até seus momentos decisivos. Deste estofo roteirístico há grandes referências em personagens como o homem sem nome de Por um Punhado de Dólares (1964) na figura de Clint Eastwood, Chris Adams de Sete Homens e Um Destino (1960) e até mesmo o alienígena Klaatu, interpretado por Michael Renne em O dia em que a Terra parou (1951).

A sua relação com a inacabável cidade é fria e calculista, de modo a buscar em suas ruas, guetos e luminárias, apenas o que lhe convém na manutenção de suas necessidades imediatas. O padrão sempre rígido em relação à localização, tempos e encontros remete a essa postura sobre a ecumenópolis, propositalmente inominada, em que Drive se passa e, cuja imensidão é descrita pelo próprio personagem central: “There’s a hundred-thousand streets in this city. You don’t need to know the route. You give me a time and a place, I give you a five minute window. Anything happens in that five minutes and I’m yours. No matter what. Anything happens a minute either side of that and you’re on your own. Do you understand?” (Driver).

Neste ponto específico, das nuanças paisagísticas que permeiam o filme, podemos trazer à tona algumas das influências imagéticas, ‘estoriais’ e de desenvolvimento na presença deste padrão urbano ao longo da obra, em uma reincidência de temas e abordagens. Outros filmes que exploraram o conceito de grandes centros urbanos, seja em situações neo noir, cyberpunk ou, até mesmo, em retrofuturismos, podem ser listados como referências proximais ou longínquas da obra de Refn: Blade Runner (1982), Chinatown (1974), Seven (1995), Cães de Aluguel (1992), Trilogia das Cores (1993-1994), Johnny Mnemonic (1995), Body Hammer (1989), Ghost in the Shell (1995), etc.

Os indivíduos citadinos em sua integração

Também há elementos imagéticos importantes para a composição da trama em Drive, desses aspectos pode-se destacar a maneira como a direção de arte aloca paletas de cores para personagens específicos, ou então, quando os mesmos estão em determinadas situações de interação uns com os outros. Neste último caso, de interação entre as personagens, há a presença dos tons azul e amarelo para representar os momentos em que o motorista\dublê está em partilha espaço-temporal com a família de Irene e seu filho – desde o supermercado até os ambientes interiores de sua casa, também, quando está com o filho da mesma, Benicio.

Cenas com leque de colorações quentes e ternas são utilizadas, em diferentes momentos, para representar uma calmaria e harmonia entre estes três personagens do longa, todo o seguimento do passeio de carro, ao som da trilha de Real Hero de College & Electric Youth e Under Your Spell da banda Desire são as melhores representações dessas ocasiões. Percebe-se, inclusive, a maneira cautelosa com a qual Irene adiciona aquele novo elemento à sua dinâmica com o filho, de modo a aproveitar ao máximo aqueles efêmeros istantes de fuga de suas realidades cotidianas.

Irene: Thank you. He had a good time
Driver: Me too.
Irene: Sorry if I put you on the spot showing up like that.
Driver: It’s okay.
[he takes his jacket from her and gives her a long stare]
Driver: I’m not doing anything this weekend, if you wanna a ride or somethin’.

Outro ponto a ser observado – e aqui temos uma visualização dos contrapontos na direção de arte da obra – é a presença primeiramente residual e perspectiva do pai do garoto (Guzman, interpretado por Oscar Isaac), e depois mais efetiva e insinuante com a volta deste da prisão. Os tons vermelho e vinho – assim como uma atmosfera mais tensa e escurecida –, servem como contraparte desta perenidade (presente ou ausente) de Guzman.

Ainda sobre estes extremos colorais, da calmaria para a sensação de periculosidade iminente, outras cenas do longa possuem tal enlace como, por exemplo, toda a sequência de espancamento do camarim, alguns quadros abertos no elevador e, também, quando Bernie e Nino estão em evidência no longa, principalmente nas explosões de violência do primeiro.

Ao voltarmos a atenção ao personagem de Gosling, temos alguns traços de sua persona que podem ser colocados em relevo a partir do que Drive nos oferece imageticamente. Um dos pontos interessentes sobre este indivíduo é seu aspecto fugidio, já que não sabemos de seu passado, ou qual é sua verdadeira situação presente. O fato do mesmo trabalhar como dublê reforça a sua falta de definição em meio à sociedade, ou seja, suas “máscaras sociais” são concretas e o semblante utilizado em meio ao seu dia-a-dia é inócuo e indefinível, aqui temos inspirações em outras obras como Quero ser John Malkovich (1999) e Abre los Ojos (1997), nas quais esta falta de identificação do habitante com o seu meio é amplamente explorado.

As sequências do personagem à noite sempre são carregadas de tensão e melancolia, de modo a reforçar seu aspecto ignoto no que tange às emoções, não apenas com outras pessoas, mas consigo próprio. A única ponte de dialogia, mesmo assim restrita, é com seu mentor e chefe da oficina Shannon (Cranston) antes, é claro, de sermos imergidos em sua infiltração na família de Irene.

Novamente, além do trabalho de ambientação, da direção de arte aos figurinos, existe o acompanhamento sonoro à esta personalidade taciturna e alerta, em faixas como Tick of the Clock (Chromatics) e, assim como as outras canções retrowaves citadas, Nightcall (Kavinsky).

Em meio às características do longa, que engendram o comportamento do personagem principal, toda a imersão em um cenário oitentista, neo-noir e de retrofuturismo musical contribuem para dar ao filme uma peculiaridade de desenvolvimento, seja nos momentos mais brandos ou naqueles mais chocantes e de embate do que se apresenta na tela para o que realmente se desdobra segundos depois, momentos esses, definidores do peso dramático de Drive.

Violência em sua essência

Utilizar a violência como ponto de balizamento de uma obra fílmica não é algo novo e, mais recentemente, tem sido objeto de fascinação de diretores como Martin Scorcese, Quentin Tarantino, Antoine Fuqua, Oliver Stone, Gaspar Noé, dentre outros. Portanto, o que Fefn faz em Drive segue esta tendência nos atos de sua película, variando das cores à composição dos cenários, dos diálogos aos momentos de silêncio.

E, novamente, é preciso voltarmos nossa atenção ao personagem de Ryan Gosling, porque é a partir dele que toda a discursividade da violência como escopo de desenvolvimento do longa ocorre. A reflexão posta é de que há em cada um dos elementos que compõem este intrigante elemento, as membranas e camadas de alguém já habituado com a deteriorização das finas e frágeis relações humanas por explosões de fúria.

No entanto, é preciso ressaltar os extremos destas relações e detalhes, sua especialidade com carros lhe garante um emprego diário, que em nada sugere seu real e exímio ofício noturno, e numa das cenas de perseguição do início do longa, observamos que não há apenas o apelo à velocidade, mas também aos momentos de espera e parcimônia na escolha da próxima direção a ser tomada. Outro exemplo é a jaqueta utilizada no seu ofício obscuro e noturno pelas ruas da metrópole desconhecida, a mesma a aquecer o jovem Benicio, em uma das tomadas mais belas de todo o filme.

Mais do que estas dialogias e rimas cenográficas limítrofes, os silêncios fazem parte desta escalada rumo à violência extrema. Neste caso, os personagens de Gosling, Perlman e Brooks, representam, como uma clava ao espectador, os estopins incontroláveis da violência durante Drive, seja em tortura dos seus desafetos ou na execução de seus desafetos.

No caso do motorista sem nome, o seu olhar não é de surpresa ou temor nestas explosões de ira, mas de um pesar pré-rebentações destes atos, por sugerir, de antemão, a resolução dos eventos que cada uma das suas ações levaram a confluir para aquele desfecho, da mão quebrada do ascecla dos mafiosos, ao frio assassinato de outro capanga na cena do elevador. O seu dedo em riste para a ameaça nos coloca na posição daqueles que cruzam seu caminho, sugerindo que a verdadeira arma é o próprio indivíduo, independente do que lhe vier à mão para fazê-lo, sejam os dedos nus, um martelo, revólver ou volante do seu carro.

E, este saber até onde seu tormento o levará aparece pelas palavras do próprio personagem: “Now, you just got a little boy’s father killed. And you almost got us killed. And now you’re lying to me. So how about this? From now on, every word out of your mouth is the truth. Or I’m going to hurt you.” (Driver), e assim temos a secura e noção do quão extremo pode ser aquele homem de fala branda, mas imperativa antes de ter uma mão lacerada ou crânio esmagado. Muitas vezes, em cenas posteriores, o seu olhar calmo e a interação limitada com os outros indivíduos da cidade se reestabelecem, no retorno eterno a sua condição dúplice em meio aquele mundo que tansita e habita.

 Um herói humano, real demais

Um dos maiores dilemas da posição heroica, seja em qual mídia for, é a relação entre os atos e decisões realizadas e, inevitavelmente, as consequências e desencadeamentos que as mesmas podem vir a causar\resultar. Em Drive, esta relação extrema, inerente e paradoxal, também é explorada, seguindo justamente os seus pontos de maior alcance simbólico, na figura do personagem de Gosling, como já exposto anteriormente. O dilema da ação em um sistema fechado, ao qual sua presença ainda não estava prevista, pode resultar em uma cadeira de eventos desenfreada rumo ao desiquilíbrio cada vez mais profundo e descontrolado. Essa é a situação vivida pelos personagens da obra de Refn.

Este exercício de desenvolvimento do roteiro com a presença de um decaimento escatológico, rumo ao um cenário caótico inevitável pode ser observado em outras obras recentes como Crash (2004), Collateral (2004), Oldboy (2003), Paradise Now (2005), 21 Grams (2003), No country for a old man (2007), Carnage (2011), Prisoners (2013), Nightcrawler (2014), e clássicos como Taxi Driver (1976) e El Ángel Exterminador (1962). Coloca-se no epicentro de diferenciação, no caso de Drive, o fato de existir um apenas personagem centralizador de todos os eventos do filme, no caso o motorista interpretado por Ryan Gosling.

Ao fazermos uma rememoração do seu percurso ao longo da película, é possível observar a maneira cautelosa e reticente em sua fala, decisões, olhares, sempre analisando, calmamente, todo o seu meio circundante. Inevitavelmente, a partir do momento em que inicia sua interação com estes elementos, que vão do trabalho às relações familiares de Irene, a espiral de eventos converge ao deterioramento de todo aquele cenário e, mais uma vez, ao seu isolamento em outro lugar desconhecido, no qual sua sina continuará, muito provavelmente em ruas doutras cidades.

Be a human being, and a real hero
Back against the wall and odds
With the strength of a will and a cause
Your pursuits are called outstanding
You’re emotionally complex
Against the grain of dystopic claims
Not the thoughts your actions entertain
And you, have proved, to be

(A Real Hero, Electric Youth)

FICHA TÉCNICA

    
DRIVE
Diretor: Nicolas Winding Refn
Elenco: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston
Pais: EUA
Ano: 2012
Classificação: 16

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Descartáveis urbanos

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A série “Descartáveis Urbanos” nos apresenta, segundo as palavras do próprio autor, momentos, lugares e situações, os quais, na correria do dia a dia, passam desapercebidos pelos olhares apressados e despretensiosos. Apresenta-nos detalhes impactantes, por vezes belos, por vezes tristes (por vezes muito mais do que isso ou mesmo nada disso), do cotidiano que levamos e que nos leva.

Trata de um olhar sensível e engajado, que traz a nossa visibilidade cenas que, por motivos diversos, negligenciamos. O autor referencia suas capturas como arte cotidiana, feita pelo mundo e por nós, num ciclo urbano constante. Ao intitular cada um de seus olhares, nos apresenta a completude de sua poesia ao falar de brasis, rodas vivas, prega dores, metáforas e mesclagens, feitas à cores fortes ou em preto em branco pelo senhor tempo, em momentos e lugares diversos, cheios de luz e vida.

Angela Marques

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