“A Sociedade da Neve” – a resiliência como uma questão de políticas públicas

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O filme “A sociedade da Neve” foi lançado em dezembro de 2023 e chegou ao Brasil em janeiro de 2024. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, é inspirado em uma história real e baseado no livro de Pablo Vierci. Possui um enredo marcante, uma luta por sobrevivência que pode ser vista como uma “tragédia” e/ou como um “milagre”. Em 1972, um voo vindo do Uruguai, fretado para levar uma equipe de rugby ao Chile, colide com uma geleira nos Andes e a partir de então os sobreviventes começam uma luta pela vida. 

Em meio a uma situação atípica, o filme enfatiza a forma como foi a luta pela superação da adversidade e sobrevivência após o desastre. O filme ilustra a resiliência como capacidade basilar, apoiada em um contexto de união grupal, onde os personagens trabalharam em equipe para conseguirem sobreviver e buscar resgate. 

Na trama, os sobreviventes decidem se alimentar da carne de pessoas que morreram para se manterem vivos. Assim, a sociedade recém formada passa por um momento de “crise”, aspectos relevantes se apresentam como, crenças, valores e identidade, gerando resistência e conflito de interesse.

No filme, os personagens Numa e Marcelo assumem papéis de liderança, tomam as iniciativas e buscam estratégias de enfrentamento. Em dado momento os personagens Nando e Roberto unem forças para irem atrás de ajuda, quando enfim conseguem. Assim, é perceptível a importância da rede de apoio e fica explícito que em um processo de enfrentamento de adversidades uma hora a pessoa ajuda outrora é ajudada, o que evidencia os benefícios da cooperação.

                                                                                                                                                                fonte: Netflix

Considerando o viés de que ao longo da vida podemos enfrentar crises humanitárias, desastres naturais e surtos de doenças, a resiliência se torna uma habilidade que precisa ser trabalhada pelas políticas públicas, é uma questão que deve ser desenvolvida dentro dos sistemas de saúde para as equipes que atuam nessa área.  As organizações de saúde podem desenvolver ações de educação permanente com enfoque na resolução de problemas, promoção da capacidade reflexiva, treinamentos comportamentais, melhoria da qualidade de vida no trabalho, entre outras (JATOBÁ & CARVALHO, 2022). 

Segundo Angst (2009) a resiliência não é adquirida, e sim aprendida de diversas formas, sendo uma delas a realização de programas voltados a diferentes populações. Assim, existem fatores de proteção e fatores de risco que estão diretamente relacionados ao desenvolvimento de comportamento resiliente que podem ser trabalhados principalmente na infância e adolescência. 

A importância da ênfase no desenvolvimento da estimulação da resiliência se dá pelo fato da maneira como cada pessoa lida com eventos adversos e traumas. Considera-se que quanto melhor a forma de enfrentamento, há mais possibilidades de minimização dos danos sofridos, o que pode corroborar para uma melhor qualidade de vida e saúde mental.  A resiliência se dá a partir da interação entre a vulnerabilidade e a proteção, determinada por atributos individuais, familiares e sociais, num processo dinâmico, que deve ser desenvolvido e estimulado (SANTOS et al. 2020). 

O autor enfatiza as dificuldades da sociedade, assim, podemos fazer alusão a complexidade que é para as políticas públicas e para  o SUS, se portar como um sistema resiliente frente a eventos extraordinários, onde precisa ser levado em consideração questões de diversidade cultural, vulnerabilidade social, determinantes sociais, papel do governo, poder estatal, entre outros. Um sistema com o nível de complexidade do SUS só terá seu potencial para a resiliência adequadamente representado se for por um arcabouço de indicadores capaz de agregar seus aspectos estruturais e funcionais (JATOBÁ & CARVALHO, 2022). 

Por fim, o filme é de relevância visto que aborda temas que dizem respeito a questões políticas e sociais. Às vezes pode ser algo que passa despercebido, mas em algum momento da vida precisaremos ser resilientes, e esta se mostra como uma habilidade desenvolvida não só em uma perspectiva individual, mas em sociedade. 

Referências

ANGST, R. PSICOLOGIA E RESILIÊNCIA: Uma revisão de literatura. Psicologia Argumento, [S. l.], v. 27, n. 58, p. 253–260, 2017. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/psicologiaargumento/article/view/20225. Acesso em: 19 abr. 2024.

JATOBÁ, A.; CARVALHO, P. V. R. de. Resiliência em saúde pública: preceitos, conceitos, desafios e perspectivas. Saúde em Debate, [S. l.], v. 46, n. especial 8 dez, p. 130–140, 2023. Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/7878. Acesso em: 17 abr. 2024.

Santos, LKP, Souza, MVO, Santana, CC. Ações para o fortalecimento da resiliência em adolescentes.. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2019/Mar). [Citado em 17/04/2024].  Disponível em:

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Bifobia refletida nas telas cinematográficas

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Frequentemente ouvimos falar sobre homofobia, mas você sabe também o que é bifobia? O termo bifobia tem sido utilizado como um conceito que abrange a discriminação contra pessoas que se relacionam afetiva ou sexualmente com mais de um gênero. Ainda que mulheres bissexuais sejam vítimas de algumas formas de violências semelhantes às violências sofridas por mulheres lésbicas, esse grupo é também sujeito a alguns preconceitos particulares.

São estereótipos atribuídos a mulheres bissexuais as idéias equivocadas de que seriam “promíscuas” e estariam “indecisas”, querendo “chamar a atenção” ou apenas “passando por uma fase”. A negação de que a bissexualidade existe e a invisibilização desse grupo durante a elaboração de políticas e serviços também são formas de bifobia.

Partindo por esses pressupostos, expomos que tal problemática é trazida para as telas, e expostas de diversas maneiras, onde é retratada na seguinte produção: Bônus: “Pride” (2021) Série/documentário, com a direção: Andrew Ahn, Anthony Caronna, Cheryl Dunye, Yance Ford, Ro Haber, Tom Kalin, Alexander Smith.

Série documental que acompanha a história de luta por direitos civis da população LGBTQIAPN+. Cada episódio acompanha uma década entre os anos 1950 e 2000 e apresenta como o movimento se articulava na luta contra homofobia, bifobia, lesbofobia e transfobia durante cada época. Os episódios também trazem importantes figuras na luta contra LGBTfobia como a ativista Christine Jorgensen, a autora Susan Stryker e o cineasta John Waters.

Com histórias na primeira pessoa ou partilhadas por familiares e amigos é possível perceber de que forma os norte americanos o grupo LGBTQ+ em especial, foram melindrados e condicionados e castigados drasticamente a respeito da sua contínua vida sexual e sua opção de escolha da mesma.

A série documental PRIDE em específico remete a perseguição do FBI aos homossexuais durante a lavander scare nos anos 50, até mesmo os conflitos culturais na década de 90, explorando o legado queer do movimento do direito das pessoas e da batalha pela a igualdade no casamento.

 

                                                                                              Fonte: https://www.youtube.com/

 

A cinematografia foi excelente. Esta é de longe a história mais inclusiva sobre o orgulho gay na América. Foram repassados contextualizações pertinentes acerca da história da vida gay e dos direitos dos homossexuais na América, as lutas que esses americanos enfrentaram e superaram. A narração e inclusão de curtas-metragens e narração tornaram cada história mais pessoal e fácil de conectar.

Portanto, a delimitação por década acaba por ajudar a contextualizar a realidade de cada geração, que apesar de viver a mesma luta, sofreu contextos diferentes pelo o que é possível traçar uma perspectiva histórica sobre a complicada batalha que tem sido travada em prol da igualdade.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora/UFOP, 2012.

Links:

https://midianinja.org/news/dez-producoes-sobre-sexualidades-e-protagonismo-lgbtqiapn/

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“Um marido fiel” – até aonde o amor pode chegar?

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O filme “um marido fiel”, classificado como sendo um drama e suspense, envolve a vida de uma família e um triângulo amoroso. Protagonizado pelos atores, como cônjuges,  Christian (Dar Salim) e Leonora (Sonja Richter), os quais vivem uma vida perfeita, especialmente porque o filho, o qual nascera com uma doença rara e grave, agora aos 17 anos, está curado.

                                                                 https://www.adorocinema.com/filmes                                                  

Em nome do amor, os nubentes juram amor e lealdade para toda a vida, cujo vínculo é pré-estabelecido, um contrato inconsciente. A partir desse vínculo, permite-se o pertencimento de um na vida do outro, a descontinuidade do “eu” para a construção e continuidade entre os “eus”, os cônjuges. São desejos distintos, os quais, se apropriam mutuamente para compartilhar os Egos, agora jungidos.  No estilo do velho jargão, “duas almas em um só corpo ”. O vínculo matrimonial funciona como um pacto, sendo ele quem estrutura e reforça os acordos.

Leonora, uma típica dona de casa, violonista de sucesso que abandonara sua carreira para cuidar do filho e, dedica-se à família, esposa e mãe dedicada. Seu ninho familiar estava perfeito, marido bem sucedido e o filho curado. Tudo em perfeita harmonia.

Christian, o cônjuge varão, um engenheiro, bem sucedido, dono/ sócio com um amigo de uma construtora, onde conhece a arquiteta Xênia (Sus Wilkins), e iniciam um relacionamento extraconjugal. A amante exige que o engenheiro separe da esposa para ficarem juntos. Eivado pelo sentimento sensual, ele confirma que executará o pedido.

                                                             https://www.adorocinema.com/filmes/

Leonora, sente seu castelo ameaçado, a ameaça da ruptura do pacto e o sentimento afeiçoado ao imaginário da pessoa amada, está sob ameaça de ruir.

Em uma madrugada o esposo recebe uma mensagem, ela pergunta-lhe quem está enviando-lhe mensagem àquela hora, o esposo disfarça e diz ser um amigo. Contudo, o recebimento das mensagens continua. Irritada, Leonora, pede para que ele mostre- lhe as mensagens, no que ele recusa.  A partir desse episódio, ela tem acesso ao celular do esposo e verifica as mensagens, descobrindo que estava mentido, e vivendo um pseudo romance e passa a investiga-lo.

As desconfianças e evidências tornam-se reais, o que eram olhares furtivos em busca de respostas, concretizam suas suspeitas. Durante uma festa da empresa de Christian, em comemoração por um contrato de grande valor, Leonara, segue- o, e flagra -o em conúbio carnal, com a arquiteta Xenia (Sus Wilkins), começa o seu pesadelo e sua obsessão em afastar a mulher que está ameaçando sua família.

Ser abandonada, trocada por outra mulher, não está nos planos de Leonora, principalmente depois de tanta dedicação. Inadmissível, uma vez que, ela desistiu de tudo que lhe era próprio, inclusive de sua carreira, por ele e para dedicar-se e cuidar do filho do casal.  Inicia-se uma pressão para a manutenção do esposo do seu lado, uma realidade experienciada, geralmente pelos casais, a necessidade do ser em estar em um vínculo para constituir-se sua própria identidade como sujeito, a necessidade de juntos para toda a vida.

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Contudo, existe uma linha tênue entre amor e ódio, não raro, esse último sobressai durante uma traição, quando o amor não é mais correspondido e/ou a ameaça de sua desconstrução, a pessoa traída entra em colapso psicológico.

Nesse diapasão, Leonora, eivada pelo sentimento de posse e no desespero da ruptura e o distanciamento de seu objeto de desejo, passa a nutrir pensamentos obsessivos de como destruir o romance extraconjugal, colocando em prática seu plano, para garantir a indissolubilidade do casamento. E, no emaranhado de sentimento de rejeição, abandono e ingratidão do marido, adentra no universo da dependência emocional, e transforma suas emoções em obsessão.

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Diante da materialidade comprovada da traição e a confissão do marido, Leonora, inicia um processo de pressão e ameaças ao esposo, manifestando a intenção em revelar segredos obscuros, uma fraude fiscal que alavancou a empresa. Para ela, é uma luta contra o tempo para preservação de sua família e, vale qualquer artimanha.

O esposo, de igual forma obsessiva e perdido em suas fantasias e, na eminencia em ter expostos seus segredos e a sua imagem arranhada perante à sociedade e à sua amante, bem como, a possibilidade em afastar-se dela, arquiteta a morte de sua esposa, sendo ele o executor do plano, assassinar a mulher em um atropelamento. Seu plano falhou e ele atropela outra mulher da vizinhança. O amor que no pretérito era gozo, passa a ser tormento, ultrapassando a linha da normalidade e razoabilidade.

O objeto de desejo de outrora, trona-se abjeto, indesejado. Agora a satisfação é pela liberdade de não estar, o distanciamento corporal e sentimental.

Leonora, descobre que o marido queria matá-la, e passam a viverem em um ambiente de insegurança psicológica, sem saber quem seria o vitorioso no processo em voga. Individualmente, cada um passa a buscar seus fins para estarem com seu amor.

O marido passa a investigar o passado da esposa e descobre que há suspeitas que ela assassinou o namorado que veio a traí-la. Diante dessa informação, passa também a chantagear a esposa.

As ameaças recíprocas entre os cônjuges, cada um em seu imaginário doentio, em virtude da possível perda de seu desiderato, passa a arquitetar os meios de eliminar os empecilhos que os impedem ou limitam seus gozos.

Partindo do princípio que a relação de objeto é o motor e a matriz do vínculo, melhor unir ao inimigo para sobreviver, e assim, a esposa, atrai, seduz e convence o marido, e expõe todo o plano para assassinar a amante, única forma dela viver livre de tal ameaça.

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O marido parecia indiferente, só ouvia. Há pressupostos que ele estava contemporizando, e no momento oportuno, sairia para não voltar.

Leonora, é a mentora intelectual do crime e, com traços de psicopatia, ordena ao marido que vá à casa da amante, na madrugada e mate-a, tendo o cuidado de  deixar evidências de um arrombamento da casa e morte da mulher.

Contudo o marido segue o plano, porém não consegue executa-lo, a esposa vai até à casa e os vê juntos, preserva seu objeto de desejo e assassina a amante, os dois tornam-se cumplices, talvez o esposo receoso que poderia ser a próxima vítima,  colocaram os restos mortais em uma fogueira, tradição dos dinamarqueses, simbolizando a queima de bruxas, preparada na casa do casal, assim,  nas investigações não encontrariam o corpo.

Nas investigações, a polícia depara com um roubo na casa de Xenia, e esta desapareceu.  Embora, sendo o suspeito principal pelo desaparecimento da amante, por sê-la, funcionária  de sua empresa e fora descoberto que eram amantes, Christian, consegue sair ileso, pelos modus operandi  engendrado por Leonora, livrando-o da condenação criminal.

Após as comemorações, Leonora  e Christian, viajam para um lugar distante com o intuito de desvencilharem dos últimos resquícios da amante e, jogam os ossos em um lago, onde, por certo, nunca serão encontrados. Agora, entrelaçados pelo amor obsessivo dela e pelos liames de um crime. Como contrariar Leonora  e não ser-lhe fiel?

Pode-se dizer , seja Leonora, a vilã do filme, entretanto, em uma análise perfunctória,  não há como defini-la como uma psicopata, possui traços compatíveis à psicopatia, tais, como falta de remorso, egocêntrica, manipuladora, sem empatia, a presença do pensamento binário, tudo ou nada, sem meio termo. Falta a evidência familiar de como fora educada, sua infância e vida conjugal de seus genitores para traçar seu perfil psicológico.

Corroborando neste sentido, Sigmund Freud, diz: “As emoções não expressas nunca morrem. Elas são enterradas vivas e saem de piores formas mais tarde.”

FICHA TÉCNICA DO FILME

FILME: Um marido fiel  (Loving Adults)

PRODUTOR:  Marcella Linstad Dichmann

PRODUTOR EXECUTIVO: Lars Bjørn Hansen

ELENCO: Dar Salim, Sonja Richter, Sus Wilkins

 

REFERÊNCIAS

Artigo- Uma Leitura Psicanalítica do Laço Conjugal– Lídia Levy de Alvarenga.

Bate-papo/ “Psicanálise de Casal e Família“, de Rosely Pennacchi e Sonia Thorstensen.

Filme “Um marido fiel  (Loving Adults)– Drama suspense”. NETFLIX.

VARELA, Emílio- Curso de Psicanálise Integrada- Contribuição da Pedagogia e da Psiquiatria. 2016

YouTube- Albangela, C. Machado fala sobre a psicanálise no tratamento dos casais.

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“Como estrelas na terra” – toda criança é especial

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Como Estrelas na Terra é um drama que retrata a exclusão social em face do que é diferente. Tal temática ainda é presente e traz sofrimento em todas as dimensões da vida, o que torna a referida obra cinematográfica comovente e atual, muito embora tenha sido lançada em 2007.

A falta de sensibilidade humana, o desconhecimento em relação à saúde mental e o desenvolvimento humano, a rigidez de determinadas personalidades, a surdez de algumas pessoas (profissionais) resvalam, por vezes, em intenso sofrimento, potencializado quando o tratamento de determinados transtornos é retardado, destruindo a autoestima daqueles que “gritam” por socorro.

 A narrativa central acontece no interior de uma escola de ensino fundamental, especialmente nas brincadeiras de futebol com o protagonista, Ishaan Awasth, de dez anos idade, que sofre de dislexia.

O desconhecimento daqueles que o cercam quanto aos verdadeiros motivos do déficit de aprendizagem levam o personagem a apresentar reações que potencializam as suas dificuldades, como a rebeldia no comportamento, a tristeza e o isolamento, sem olvidar de todo o sofrimento psicológico, emocional, neurológico e social de Ishaan.

A dislexia se configura em um distúrbio genético que embaralha o aprendizado, dificultando a realização da leitura e da escrita. O cérebro, por razões ainda não totalmente esclarecidas, apresenta dificuldade para encadear as letras e formar as palavras, e não relaciona direito os sons às sílabas formadas. Ishaan Awasth sentia angústia porque não conseguia aprender a escrever e nem a ler, quando comparado aos demais alunos.

 O cérebro do menino não diferenciava algumas letras do alfabeto. Ele trocava o “B” pelo “D”; o “R” pelo “S”; e o “H” pelo “T”. Fazia confusão na ordem de certas letras. Essa condição disléxica pode ser identificada durante a leitura, observada na escrita e no processo de soletração das palavras, considerando que é essencial, na aprendizagem, relacionar sons com os símbolos (objetos) e saber o significado deles. Ishaan Awasth padecia dessa habilidade básica que facilita o desenvolvimento do aprendizado.

                                                                                     Fonte: https://www.jornaldafranca.com.br/

Ishaan Awasth vivencia o sentimento de humilhação, de vergonha, de constrangimento, de Billings, quando posto de castigo e tudo isso é vivido com frequência e sentido por ele com intensidade.

Tais fatos ocorriam na escola, no seio familiar e nas brincadeiras de criança, fazendo com que, em decorrência das dificuldades mencionadas, suplantavam situações em que o coloca em desigualdade em relação aos cérebros das crianças da mesma idade que não tinham tal condição neurológica.

 Houve uma situação na qual a professora solicitou ao estudante Ishaan que realizasse uma leitura em sala de aula em tom de voz que todos os presentes pudessem ouvi-lo. O garoto tentou explicar à professora que “as letras estavam dançando”. Em razão disso, as risadas tomaram contam da turma e a professora se irritava e ordenava para Ishaan que “lesse as letras dançarinas”. Devido ao transtorno neurológico, Ishaan não conseguiu fazer a leitura e foi tachado pejorativamente de “burro”, “retardado”, “preguiçoso” e, logo após, expulso da sala de aula.

A direção da escola, sem a expertise necessária para entender o real problema de Ishaan, que não se tratava de indisciplina, mas sim, de um transtorno neurológico (dislexia), chamou os pais do garoto para uma reunião. Entre as falas, disse aos genitores que “algumas crianças têm menos sorte e para elas existem escolas especiais”. E informou, ainda, que Ishaan vê os livros como inimigos e que o ato de ler e escrever se assemelha, para ele, a uma punição. Justificou, ainda, aos responsáveis, que a criança pede licença o tempo todo para ir ao banheiro e que as atividades dela, tanto escolar quanto as tarefas de casa, não melhoravam, indicando-o a transferência.

A família anunciou a Ishaan sobre a mudança de escola. E como era “rebelde”, iria para um internato, causando-o angústia, pesadelos e sofrimento. Suplicava-os para deixar em casa! Fazia promessa de melhorar, mas sem o seu consentimento, seus pais o levaram, sob o argumento de que era o “melhor” a ser feito. Foi para o colégio interno cujo lema é “Disciplinar Cavalos Selvagens”. Chegando lá, sentiu falta da mãe, do irmão, da casa, da rotina familiar, de tudo. Acometeu-se de uma imensa tristeza, de uma falta de ânimo, de um isolamento social, de um desinteresse generalizado.

Durante aula de artes, o professor da disciplina se apresentou aos alunos de forma criativa, sensível, observador e atento, dançando e cantando. Em determinado momento, ele solicitou que os alunos iniciassem uma pintura. Todos começaram, mas Ishaan não se animou. O educador logo percebeu o desinteresse e a falta de ânimo do garoto e ficou preocupado. E a partir de então, iniciou uma investigação e percebeu um padrão de escrita incomum, o que o levou a concluir que se tratava de um transtorno neurológico – dislexia.

                                                                                                           Fonte: https://www.netflix.com/br

 Ishaan estava com a sua autoconfiança destruída e sem vontade de fazer suas atividades. O educador ampliou várias possibilidades criativas para desenvolver a aprendizagem do menino e, por consequência, a sua autoestima. Os sinais de melhora logo começaram a aparecer, como uma rosa murcha que recebe água.

É interessante ressaltar que a melhora do garoto não se deu devido ao fato da descoberta do transtorno, mas em decorrência da metodologia usada, da paciência, da sensibilidade, da criatividade, do respeito e de muita vontade de ajudá-lo, de erguê-lo e dar vida ao menino, valorizando a habilidade de pintura de Ishaan – algo em comum entre o professor e aluno.

Pertinente ressaltar que o educador, para trabalhar a autoestima do menino, apresentou grandes referências mundiais de personagens históricos, que apesar do transtorno, obtiveram sucesso, como: Albert Einstein, Agatha Christie, Pablo Picasso e Leonardo da Vinci. Para o processo de aprendizagem, em relação à escrita, utilizou-se dos sentidos – a própria pele, audição, tato, olfato. Usava o meio ambiente, a arte, associava o símbolo ao objeto, tudo para que Ishaan absorvesse e aprendesse de forma a suprir exatamente a sua necessidade de aprender, de forma leve, criativa e dinâmica. Um verdadeiro exemplo de empatia e amor.

De acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (2016), o transtorno é considerado específico de aprendizagem e é de origem neurobiológica, caracteriza-se por dificuldade no reconhecimento preciso e/ou fluente da palavra, na habilidade de decodificação e em soletração.

Há pouco tempo criou-se a Lei nº 14.254/2021, que dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem.

No artigo 3º da referida Lei, subscreve-se que os educandos com dislexia, TDAH ou outro transtorno de aprendizagem que apresentam alterações no desenvolvimento da leitura e da escrita, ou instabilidade na atenção, que repercutam na aprendizagem, devem ter assegurado o acompanhamento específico direcionado à sua dificuldade, da forma mais precoce possível, pelos seus educadores no âmbito da escola em que estão matriculados e podem contar com o apoio e orientação da área de saúde, de assistência social e de outras políticas públicas existentes no território.

Percebe-se que a elaboração da Lei foi um passo importante para iniciar a mudança, mas ainda precisa de outras ações para que ocorra a alteração de paradigma para que de fato a inclusão social aconteça na prática. Exige-se esforço, empenho, dedicação, pesquisa, estudo e os recursos em todos os níveis, além da adequação da estrutura física e da adaptação à realidade.

 

Os possíveis sinais — Alguns sinais na pré-escola

  • Dispersão;
  • Fraco desenvolvimento da atenção;
  • Atraso do desenvolvimento da fala e da linguagem;
  • Dificuldade de aprender rimas e canções;
  • Fraco desenvolvimento da coordenação motora;
  • Dificuldade com quebra-cabeças;
  • Falta de interesse por livros impressos

Alguns sinais na idade escolar

  • Dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita;
  • Pobre conhecimento de rima (sons iguais no final das palavras) e aliteração (sons iguais no início das palavras);
  • Desatenção e dispersão;
  • Dificuldade em copiar de livros e da lousa;
  • Dificuldade na coordenação motora fina (letras, desenhos, pinturas etc.) e/ou grossa (ginástica, dança etc.);
  • Desorganização geral, constantes atrasos na entrega de trabalho escolares e perda de seus pertences;
  • Confusão para nomear entre esquerda e direita;
  • Dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas telefônicas etc.;
  • Vocabulário pobre, com sentenças curtas e imaturas ou longas e vagas;

O psiquiatra Carl Jung cunhou a frase: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Essa sabedoria é convidativa para que haja o pensamento crítico acerca da praxe profissional. Será que só a teoria basta para que o profissional exerça o ofício? Uma profissão que lida com o ser humano condiz com uma personalidade rígida? O que é necessário para escolher uma profissão coerente à personalidade e ao desejo?

A escola deve ser um ambiente de compreensão, acolhimento, amor e respeito – um ambiente seguro, com uma metodologia criativa, sensível e um ensino inclusivo e adaptado, repleto de profissionais competentes e com uma escuta acurada e atenta.

A sociedade precisa se engajar mais, respeitar mais e denunciar qualquer tipo de violência, além de se atentar mais quanto aos governantes que são colocados, em ambientes públicos e decisórios, como nas câmaras de vereadores, nas prefeituras, no Congresso Nacional e no Palácio do Planalto.

 

Referências:

ASSOCIÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA. Disponível em: https://www.dislexia.org.br/o-que-e-dislexia/ . Acessado em 04 de setembro de 2023.

LEI Nº 14.254, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2021Dispõe sobre o acompanhamento integral para educandos com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14254.htm. Acessado em 05 de setembro de 2023.

PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

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“Respire Fundo” – sombras da maternidade

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O filme “Respire Fundo” conta a história da personagem Julie (Amanda Seyfried) que é autora, desenhadora e escritora de livros infantis. De maneira sensível, a obra retrata a realidade por trás da maternidade e dos transtornos mentais, indo contra a lógica de que o papel de mãe é perfeito, quebrando de fato a romantização que impera na sociedade.

No decorrer do filme, temos acesso ao seu passado complexo. Em relação ao seu meio familiar na infância, a personagem sofreu violência física e emocional por parte do pai na infância. Sendo assim, os traumas a seguiram até o momento presente onde engravidou e se tornou mãe. As vivências passadas a moldaram e de certa forma repercutiram em dúvidas, questionamentos, receios e sofrimento. Apesar da ausência e afastamento do pai, suas lembranças a perseguem. Por essa razão, compreender a personagem se torna fácil. A atuação espetacular favorece a empatia pela sua história e pelos seus sentimentos; somos balançados pelo seu receio central se será uma boa mãe e se deveria se ausentar ou não da vida dos filhos, o que a faz repensar a própria sobrevivência.

Fonte: Freepik

A sociedade comumente romantiza a sociedade, quase que impedindo que a maternidade tenha o seu lado obscuro e desafiador. Por isso se constitui como um assunto tabu e bastante estigmatizado, que requer diálogos e reflexões para maior aceitação das infinitas facetas que a fase da maternidade pode possuir. 

O filme, então, é um grande ensinamento e de maneira singular, demonstra como a tristeza pode influenciar e impactar a vida de uma mãe, que mesmo com uma rede de apoio, com uma profissão estabelecida, não encontra sentido e não visualiza um futuro promissor ou o momento presente de gerar um filho e criá-lo, uma ação potente e bonita quando permeada de sentimentos funcionais e bonitos. A rede de apoio que a cerca também expõe a importância de se ter pessoas ao redor que saibam escutar e enxergar além… Ou seja, a obra traz exemplos nítidos de experiências que muitos atravessam na vida real.

Fonte: Freepik

No DSM-5-TR, versão mais recente e atualizada do manual de classificação, a “depressão pós-parto” não é apresentada e reconhecida como uma patologia específica. Entretanto, é incluído o especificador de episódio depressivo após o perinatal em até quatro semanas. A personagem se enquadraria em muitos dos possíveis sintomas, enfrenta prejuízos em sua vida em decorrência da sua vivência interna, muitas vezes silenciosas, porém que implica fortemente em reações e consequências na vida de uma pessoa. As consequências são vistas para além do emocional e mental, seu meio social e familiar também são afetados, o que corrobora com um Transtorno Depressivo Maior por indicador com início após o parto, no puérpero. 

A personagem realiza tratamento psiquiátrico e medicamentoso, expondo a importância do apoio especializado para o enfrentamento de transtornos mentais como a depressão. Medicação esta que é, de maneira analógica, como aquilo que devolve a cor ao seu mundo. Paralelamente, a personagem busca encontrar um sentido e se reencontrar, sobreviver… Na escrita e no desenho, consegue se expressar e se encontrar em certos momentos. 

O clímax da história de dá com a morte da personagem, que a mesma consegue descrever em uma de suas histórias infantis: ela relata um monstro que devorava as estrelas no céu e compara as estrelas com o seu amor pelos filhos, como algo que nem sempre seria visível, mas que sempre existiria de alguma forma os acompanhando. O sofrimento dela, apesar de silencioso, carregava uma potência estratosférica, repercutindo no seu desejo de alcançar uma perfeição e ser a melhor mãe que poderia sim, entretanto, a depressão e o peso da maternidade, tomaram forma e cresceram, fugindo de seu controle.

Essa obra cinematográfica representa uma fase da vida de muitas mulheres que se encontram em uma encruzilhada ditada pela pressão social e suscetíveis a terem transtornos psicológicos que podem afetar a sua saúde física e mental, intensificando os sentimentos de incapacidade e culpa perante a ação de ser mãe em um contexto novo e sensível como gerar um filho e criá-lo. Ou seja, é uma obra que caracteriza a vivência de muitas mulheres e por isso, de extrema importância para fomentar reflexões e diálogos acerca do assunto.

 

Referências:

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5a ed, texto revisado. Porto Alegre: Artmed, 2023.

GONÇALVES A. L. C; SILVA J. A; PRETO V. A. Análise Reflexiva: Depressão pós – parto e suas consequências emocionais para o binômio mãe e filho no Brasil. UniSALESIANO Araçatuba. Disponível em: https://unisalesiano.com.br/aracatuba/wp-content/uploads/2021/06/Artigo-Analise-ReflexivaDepressao-pos-parto-e-suas-consequencias-emocionais-para-o-binomio-mae-e-filho-no-Brasil-Pronto.pdf . Acesso em: 13 jun. 2023.

RESPIRE FUNDO. Direção: Amy Koppelman. Produção de Trudie Styler e Celine Rattray. Estados Unidos: Stage 6 Films, 2021. HBO streaming.

 SCHWENGBER, D. D. DE S.; PICCININI, C. A.. O impacto da depressão pós-parto para a interação mãe-bebê. Estudos de Psicologia (Natal), v. 8, n. 3, p. 403–411, set. 2003. 

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“Elsa e Fred, um amor de paixão” e a relação com os arquétipos puer-senex

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O filme Elsa e Fred um amor de paixão foi lançado em 28 de julho de 2005, na direção de Marcos Carnevale, um filme argentino, que traz uma reflexão fazendo com que o público tenha um olhar e maneiras que pode ser encarado a terceira idade. O filme aborda a história de dois senhores, sendo que Fred vivia uma solidão, desde o falecimento de sua esposa. 

Devido à tristeza de Fred, por influência de sua filha, mudou-se de casa. Logo conhece a nova vizinha, Elsa, que vai até ao apartamento dele para entregar um cheque devido a um estrago no carro. Alfredo não aceita o cheque. Então se inicia uma nova amizade que após começam a namorar. Fred com o seu jeito conservador começa a namorar uma mulher disposta a viver os padrões fora do comum. 

A história vivida pelos dois personagens envolve os arquétipos de uma maneira intensa. Ao assistir ao filme é possível ativar os arquétipos que possuem relação com imagens arquetípicas emitido de alguma forma padrões universais. Elsa possui um espírito jovial e gosta de aventuras, e Fred mais apático, sendo indiferente às situações em que estava vivendo. 

Elsa com 75 anos, e Fred com 80 anos, ambos na terceira idade, procuram viver um romance entendendo que não existe a expressão “tarde demais” para amar e sonhar. O amor e os sonhos são capazes de impulsionar uma pessoa para continuar sua jornada. Quando um indivíduo deixa de sonhar ou amar perde o combustível para prosseguir. 

De acordo Jung (2007), o querer viver e o querer morrer estão intimamente ligados, pois quando uma pessoa não aceita vivenciar a plenitude da vida, certamente também não aceitará o seu fim. Quando gera uma reação evolutiva em uma pessoa, é possível notar uma aceitação da passagem do tempo, englobando as fases boas, e as fases ruins encara com um refinamento da personalidade.

É possível observar os personagens do filme Elsa & Fred. Ambos conseguem expressar os arquétipos puer-senex e a maneira como vivenciam essas imagens arquetípicas nesse romance. 

No filme, o personagem Fred representa o arquétipo do senex representando um distanciamento do puer e a forma em que muitos vivenciam a velhice de maneira negativa. Fred viveu uma vida durante 40 anos, na mesma casa, com a mesma esposa, trabalhando no mesmo local, e se dedicando só à família.  

O que muito parece é que Fred nunca cometeu deslizes em sua vida e jamais pensou em viver algo promíscuo. Ao ficar sem a sua esposa, Fred possuía uma condição financeira boa, porém deprimido, passivo, vivendo na dependência das orientações da filha. Mesmo tendo boas condições, ele era pobre, pois não tinha o maior valor da vida, entendendo os processos da velhice.

Embora Elsa tenha também características de inconsequentes, foi uma pessoa que viveu o arquétipo do senex que não se distanciou do puer seus dias felizes, procurando aproveitar o hoje, executando seus planos, buscando aprimorar sua personalidade. Concedendo voz a sua alma, ela vive dias mais leves. 

Criatividade, amável, afetuosa, eram as qualidades de Elsa, pois não tinha recursos financeiros próprios. Vivia na dependência de um dos filhos considerado bem sucedido, e possuía mais um filho que era artista sem reconhecimento dependendo dela para sobreviver. Apesar de depender financeiramente do filho, continuava mandando em si, não obedecendo ao filho. Demonstra através da sua vida que o maior bem que um ser humano pode alcançar é a saúde mental.   

Fred sendo um velho senex, em conversa com Elsa, descobre um sonho que ela possuía ao visitar a Fontana di Trevi. Ela também vai se envolvendo e fazendo descobertas da vida de Fred, como era a relação dele com a esposa falecida, se viviam felizes. Percebendo o quanto Fred era tristonho, o incentiva a viver uma simples rotina, mas que seria capaz de trazer mudanças à vida. Certo dia, Elsa vai à casa de Fred, para saborear um licor juntos, ela toca um piano, eles ressaltam sobre o surgimento de uma amizade rara ou um novo relacionamento. 

Elsa demonstra que a sua vida se parece com um rio, não se arrependendo do que passou não se preocupando com o amanhã, vivendo somente o presente e deixando fluir livremente, sem muitas cobranças. Ela não compartilhava com ninguém sobre a sua doença, pois todas as semanas que saía para fazer hemodiálise, dizia que ia tomar chá com as amigas. 

O arquétipo do puer foi fundamental na vida de Elsa, pois traz vitalidade, sabedoria para aproveitar as possibilidades que o momento presente oferece e para ser feliz com isso. Fred, que não tinha nenhuma doença grave, estava sempre cheio de remédios e só falava em doença e morte. Ele não está doente, mas é um homem doente, operando fortemente o arquétipo do senex.

No início do filme Fred muito sozinho, ficava sempre com o seu cachorro, e uma grande cumplicidade com o seu neto. Mas com Elsa entrando em seu caminho, mostra a ele como é viver sem rotina, experimentando algo novo e simples a cada dia. Certa noite ela o convida para um jantar em um dos melhores restaurantes de Madri, mas o assunto que Fred encontrava para falar era sobre o ácido úrico, e colesterol. 

Elsa o exorta para que aproveite a vida, pois ela levava a vida como uma eterna adolescente. Diante da conta de um valor muito elevado ela sugere que saiam do restaurante sem pagar. Fred passa mal por ter feito uma loucura dessa pela primeira vez, tendo que procurar um médico. Elsa pede desculpas pelo excesso, acontece o primeiro beijo e dormem juntos pela primeira vez. 

Fred foi mudando aos poucos, tendo mais autonomia, podia detectar a intrusão da filha e fazer restrições a ela, por exemplo, entrar em casa ou tocar a campainha sem avisar. Diante de tantas mudanças em seu pai, sua filha perguntou se ele havia decidido morrer, e ele respondeu com firmeza que finalmente havia decidido viver, como Chaplin diz: “o homem não morre quando deixa de viver, mas sim quando deixam de amar” Eles viviam uma vida simples todos os dias: andavam de bicicleta, cantavam, iam ao parque, comiam biscoitos, namoravam nos bancos da praça, jantavam a luz de velas e dançavam.

Elsa como sempre intensa, ao apresentar Fred à família assumindo-o como namorado, é repreendida, recebendo julgamentos, ela simplesmente diz: Avante que a vitória é nossa!

Fred, certa vez a encontrou fazendo hemodiálise e tentou compreender melhor sobre a doença com seu amigo médico. Quando soube da gravidade do estado dela, decide então realizar o sonho de Elsa, que era visitar a Fontana di Trevi. 

Ele comprou a passagem, e deixou apenas uma carta para a filha dizendo que gostaria de investir na felicidade, pois na vida existem coisas que não tem preço. Em Roma, curtiram todos os lugares possíveis, visitando principalmente a Fontana di Trevi e ela o encorajou a entrar na fonte, e disse a ele que o amava mais do que nunca.

O filme termina com ele indo ao cemitério com o neto, levando flores para o túmulo dela, vivendo de maneira diferente da primeira esposa. Dessa vez entendendo os processos, não havendo tristeza, mas guardando apenas as boas recordações vidas juntos. O neto de Fred ao ler a data do nascimento que estava no túmulo, ele sorri e a chama de “caloteira” por ter o enganado.  

O filme relata através dos personagens a maneira que escolhemos para viver e demonstram através dos arquétipos quais podem definir a vivência das pessoas. Fred com o seu modelo limitador e repleto de proibições do velho senil, ou Elsa seguindo um modelo criativo e evolutivo, demonstrando que possui domínio sobre a sua vida, apesar de estar vivendo na maturidade, não perdeu o brilho, a alegria, disposição, que fazem parte das características do puer, mostrando uma imensa virtude para deixar as coisas no passado e ir à busca do novo, 

De acordo com Hillman, (2001), que ao envelhecer as pessoas consigam manter o vigor, criatividade, habilidade, vivendo dentro dos limites possíveis que a vida pode proporcionar. Entendendo que as pessoas são periódicas, cada um possuindo seu ritmo e vivenciando seus processos. 

REFERÊNCIAS

Elsa & Fred (2005). Filme. Direção de Marcos Carnevale. Espanha/Argentina: Imagens Filmes.

HILLMAN,J. (2001). A força do caráter e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Objetiva.

JUNG, C. G. [s.d.] A energia psíquica. In: Obras completas de C. G. Jung, vol. VIII/1. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

MONTEIRO, Dulcinéia Da Mata Ribeiro (Org.). Puer-Senex: dinâmicas relacionais. 2ª edição, Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

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Fernanda Montenegro: uma mulher para além da idade

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Existe idade certa para estar no auge da vida? A velhice chega, mas ela é um fator determinante na nossa vida?

Arlette Pinheiro Monteiro Torres, nacional e internacionalmente conhecida como Fernanda Montenegro. É uma atriz brasileira nascida no Rio De Janeiro – RJ, abriu os olhos para conhecer o mundo em 16 de outubro de 1929. Atualmente com 93 anos, possuindo quase 77 anos de carreira, é considerada a melhor atriz do Brasil. Uma mulher, atriz de longa carreira, que possui grandes prestígios, mãe… o que Fernanda vem nos ensinando?  

Carioca, Fernanda desde cedo já se mostrou ativa, aos 8 anos foi a primeira vez que estreou em um palco, em uma peça teatral da igreja. O Gshow, 2021, fez uma homenagem para ela traçando momentos importantes da sua vida, como, com 15 anos começou a trabalhar em uma rádio após ganhar um concurso como locutora da Rádio MEC, de um projeto chamado Teatro da Mocidade e em conjunto com a rádio, trabalhava como professora de português para estrangeiros.  

Em uma entrevista para o jornal El País Brasil (2021), fala sobre a escolha do nome artístico, no qual se nomeou no início de sua carreira, “Fernanda”, para ela, tinha um “quê” de romance do século XIX, e o “Montenegro” foi em homenagem a um médico que fazia atendimentos gratuitos para pessoas que menos favorecidas, na zona Norte do Rio de Janeiro. 

Fonte: Reprodução TV GLOBO

Com 21 anos, em 1950, foi sua primeira apresentação profissional no teatro, estrelando a peça “Alegres Canções nas Montanhas”. Em 1953 ela se casou com o ator Fernando Torres, e por meio dessa união nasceram a atriz Fernanda Torres e o diretor Claudio Torres. Na década de 60 foi para São Paulo e começou a atuar na televisão, no mesmo período começou a atuar em telenovelas e  apenas em 1979 que começou a ser mais notada na TV. No cinema, sua primeira aparição foi em 1964 em uma adaptação do diretor Leon Hirszman de “A Falecida”, obra de Nelson Rodrigues. Em 1998, fazendo a personagem principal, no filme “Central do Brasil”, protagonizou o sucesso e assim foi indicada ao Oscar de melhor atriz. 

No Oscar, nossa aclamada atriz não levou a estatueta, mas ganhou o Urso de Prata no Festival Berlim, no mesmo ano, por seu papel como Dora no filme “Central Brasil”. Foi a primeira atriz brasileira a ganhar o Emmy Internacional na categoria de melhor atriz por sua atuação em “Doce de Mãe” (2013).  

A atriz recebeu mais de 60 prêmios ao longo da sua carreira. Pairando nos seus 90 anos, Fernanda lançou dois livros, “Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico” (2018) e “Prólogo, ato, epílogo” (2019) e aos 92 anos, tornou-se a primeira atriz brasileira a ser eleita para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL). 

Fernanda Montenegro, atualmente com seus 93 anos continua ativa no seu trabalho, há muitos anos vinha sendo e continua a ser uma das mulheres mais aclamadas do Brasil, e que não se deixa “abater” por sua idade, já que socialmente nos deparamos com o “descarte” de pessoas assim que o envelhecimento chega. O envelhecimento é um processo que pode variar de indivíduo para indivíduo, devido a vários fatores biopsicossociais, ou seja, a qualidade de vida desse indivíduo como, a saúde física, psicológica e sociais são alguns pontos referente a esses fatores determinantes. E ainda a despeito disso, a velhice ainda é vista como homogênea, estereotipada e a idade sendo como algo decisivo para o envelhecimento   (LOTH; SILVEIRA, 2014). 

Algo a ser observado é o fato do Brasil ser um país onde o etarismo não recebe tanto destaque para discussão, mesmo existindo pessoas que sofrem/sofreram preconceito referente à sua idade real ou aparente, ainda assim é raro a discussão do tema no país (LOTH; SILVEIRA, 2014). Sistematicamente, pessoas com mais idade, são alvos de discriminação em vários locais pelos estereótipos ligados a velhice (FRANÇA; VAUGHAN, 2009). A velhice e o processo de estar velho não pode ser vista contextualizada apenas de forma cronológica e descontextualizada. Estatísticas, a sociedade e pessoas em contextos sociais resumem a velhice a partir de critérios objetivos, mas são poucos os exemplos de pessoas que se identificam dentro desse critério (LOTH; SILVEIRA, 2014).

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59152974

Segundo Messy (1999) isso deve-se pela contraposição entre a percepção e a vivência. Pessoas idosas tendem a se enxergarem como mais jovens e assim ignorando os indícios que a idade oferece. Fernanda nos mostra que não existe idade para parar, idade não é um fato paralisante, com ela somos capazes de enxergar acima o estigma da idade e que as pessoas são resumidas a esse fator. 

É importante também dizer que o gênero e sexo incluem-se dentro da perspectiva da velhice e como ela é vista socialmente. Sendo assim, pode-se dizer que a vivência da velhice se difere dentro dos gêneros, para homens e mulheres há dois pesos e medidas para cada sexo e gênero (FERNANDES et. al, 2015). A família, pessoas importantes e as interações sociais, saudáveis, são fundamentais são fatores de suma importância para o desenvolvimento de uma qualidade de vida para o idoso. As relações de trabalho, familiar e pessoas querida podem contribuir para uma resiliência individual nas pessoas idosas e até mesmo ser um suporte social que muitos não tem (GALICIOLI; LOPES; RABELO, 2012)

Arlette, mais conhecida como Fernanda Montenegro, é uma mulher de muito prestígio e que ainda se encontra nesse lugar. Ela nos convida a olhar para o tema “idade” de uma forma diferente, olhar como ela deve ser olhada, que pessoas são muito além da idade na qual elas tem. Em qualquer estágio da vida, somos seres que necessita de cuidados e reparos, de tal modo, percebe-se o equívoco que se comete ao reduzir um indivíduo a um estágio de sua vida.

REFERÊNCIAS:

Fernanda Montenegro faz 92 anos! Veja curiosidades sobre a nossa dama do teatro. Gshow. 2021. Disponível em: <https://gshow.globo.com/tudo-mais/tv-e-famosos/noticia/fernanda-montenegro-faz-92-anos-veja-curiosidades-sobre-a-nossa-dama-do-teatro.ghtml>. Acesso em 01 de abril, 2023.

Fernanda Montenegro: “Tudo já é meio despedida para mim. Uma hora acaba”. El País Brasil. 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2021-12-03/fernanda-montenegro-tudo-ja-e-meio-despedida-para-mim-uma-hora-acaba.html> Acesso em 01 de abril, 2023.

FERNANDES, Juliana et al. Gênero, sexualidade e envelhecimento: uma revisão sistemática da literatura. Clínica & Cultura, v. 4, n. 1, p. 14-28, 2015. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/clinicaecultura/article/view/3403> Acesso em 15 de abril, 2023. 

FRANÇA, L. H. de F. P; VAUGHAN, G. Ganhos e perdas: atitudes dos executivos brasileiros e neozelandeses frente à aposentadoria. Psicol. Estud. Paraná, v. 13, n. 2. 2009.

GALICIOLI, Thaisa Gapski Pereira; DE LIMA LOPES, Ewellyne Suely; RABELO, Dóris Firmino. Superando a viuvez na velhice: o uso de estratégias de enfrentamento. Revista Kairós-Gerontologia, v. 15, p. 225-237, 2012. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/kairos/article/view/17048> Acesso em 15 de abril, 2023.

LOTH, Guilherme Blauth; SILVEIRA, Nereida. Etarismo nas organizações: um estudo dos estereótipos em trabalhadores envelhecentes. Revista de Ciências da Administração, v. 16, n. 39, p. 65-82, 2014. Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/adm/article/view/2175-8077.2014v16n39p65> Acesso em 01 de abril, 2023. 

MESSY, J. A pessoa idosa não existe.Aleph,  2. ed. São  Paulo,1999.

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“Os Seus, os Meus e os Nossos” – famílias reconstituídas e seus desafios

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Famílias reconstituídas podem afetar profundamente os membros do sistema familiar, uma questão cada vez mais vivenciada pelas famílias atuais.

O conceito de família vem sendo modificado ao longo dos anos, ajustando-se aos novos tipos de constituição familiar. Sluzki (1997) atuou na ampliação de tal significado ao compreender o conceito como sendo abrangente a todos os membros de determinada moradia, que anteriormente era entendida como sendo formada apenas por pai, mãe e filhos.

No que diz respeito às mudanças sofridas pelo conceito original de família, destaca-se o entendimento sobre famílias reconstituídas, que são compreendidas como uma estrutura familiar que se origina de um novo casamento ou união, após uma ruptura familiar, sendo que um ou ambos integrantes já possuem filhos de outro relacionamento. Ainda, ressalta-se que as relações entre um cônjuge e os filhos do outro definem o eixo central que comanda essa nova organização familiar. Essa fusão de famílias é composta por sujeitos de diferentes regras, valores e costumes, o que pode ocasionar conflitos dentro do ambiente familiar. Os membros dessa nova formação vivenciam novas dificuldades quanto à autoridade dentro de casa, espaço e tempo, precisando ajustarem-se em uma nova normativa que funcione para o grupo todo.

O filme “Os seus, os meus e os nossos” foi lançado em 2006 e se trata de uma comédia e é um remake do do filme homônimo de 1968. O pai possui dez filhos e é viúvo, reencontra sua namorada do colégio, agora também viúva e que conta com oito filhos, e decidem se casar sem contar aos filhos.

Fonte: encurtador.com.br/gszK4

Como esperado, as famílias não se dão bem logo no início. São duas estruturas familiares completamente diferentes, com regras e costumes bastante distintos. Por isso, ao longo da produção, os telespectadores se divertem com os planos das crianças de acabar com o casamento dos pais. Quanto às novas relações fraternas do sistema, Ferraris (2002) citou alguns problemas que podem acontecer ao iniciar o processo de junção familiar, sendo divisões materiais e de espaço, mudanças na posição familiar, sentimento de perda do seu lugar, alianças ou coligações.

Tais problemas são evidenciados no filme, quando os atritos começam a acontecer entre os filhos devido ao antigo funcionamento familiar. Mudanças como o horário de usar o banheiro, barulhos excessivos, bagunças, reclamações, entre outras, são sentidas pelos jovens, que se incomodam a ponto de tramarem juntos contra o relacionamento dos pais. Sabe-se que cada membro da nova família possui uma história única, construída dentro do sistema familiar anterior, diante disso, os novos familiares não compartilham o mesmo estilo de vida, já que suas histórias familiares não são compartilhadas.

Portanto, os filhos são submetidos a regras e estilos de parentalidades distintos, o que pode prejudicar a formação de vínculos nesse novo grupo. É comum que surjam triângulos conflitivos, aumentando a complexidade do cotidiano familiar. O pai ou a mãe, ocasionalmente, pode tentar exercer um papel de substituição, que pode ser interpretado como um inconveniente, uma transgressão de papéis. Nesses casos, a relação conflituosa piora e a complexidade do sistema apenas aumenta.

No filme, as crianças foram criadas de formas extremamente diferentes, sendo uma família acostumada a seguir várias regras, e a outra bastante permissiva. Os jovens se incomodam com a desorganização desse novo ambiente familiar, gerando desentendimentos e sofrimento.

Além de toda essa perspectiva, ressalta-se o fato de que os pais não comunicaram aos filhos a respeito do casamento, o que gerou ainda mais sofrimento ao processo. Minuchin (1982) destacou a importância do diálogo no ambiente familiar, que foi prejudicada pelo segredo mantido pelos pais.

Günther (1996) discorre sobre o bem-estar dos jovens, alegando que este é amplamente dificultado por problemas de comunicação e falta de compreensão por parte das figuras parentais. Ainda é necessário levar em consideração que essas crianças vieram de outra relação conjugal, precisam lidar com a crise originada na separação, que os afeta em diferentes níveis de acordo com sua idade.

Como dito por Garbar e Theodore (2000), o laço biológico é claro e descomplicado, enquanto o laço afetivo é subjetivo e complexo. No entanto, é totalmente possível que se formem laços afetivos entre os membros da família recasada, o que se configura como uma “adoção emocional”, de acordo com Ribeiro (2005).

Fonte: encurtador.com.br/cGJ19

Esse fenômeno é retratado no filme, que expõe uma nova dinâmica familiar ao fim da obra. Após a descoberta dos planos das crianças, a relação entre os membros melhora a partir do diálogo e da empatia. O avanço possibilita um ajustamento das regras e dos valores de ambos os grupos, agora combinados. Quando a família reconstituída não encontra um modelo em comum, todos os membros são afetados e sofrem.

No entanto, alguns pais possuem as esperanças de conseguir um recomeço em suas vidas a partir do novo casamento, e esperam que os filhos vejam a mesma oportunidade, deixando para trás seus vínculos afetivos formados anteriormente. Essa reconstituição pode ser admitida de diversas formas nos elementos do coletivo, como destaca Alarcão (2002). Alguns podem enxergá-la como a construção de um novo projeto, uma oportunidade de boas mudanças, enquanto outros a encaram como a perda de um progenitor, sofrendo durante o processo.

Amaral (2010) disserta sobre isso, ao dizer que as vivências anteriores do filho fazem parte da construção de sua identidade, e é difícil precisar se desvincular dos parentes que estavam mais presentes em suas vidas antes do recasamento. Esse quadro também é o criador de diversas resistências sofridas pelos jovens. A ideia de terem um “novo pai” ou uma “nova mãe” pode distanciá-los dos novos vínculos a serem formados. Diante disso, novamente destaca-se a importância da comunicação entre os membros da nova família.

Conviver com novas pessoas, em um ambiente familiar completamente desconhecido pode ser assustador para muitas crianças. Trata-se de uma grande mudança que acontece no meio de seu desenvolvimento, este também deve ser levado em consideração ao se lidar com a formação de uma família. Para que não haja o distanciamento da criança, além de sofrimento a todo o grupo, deve-se considerar os aspectos subjetivos vivenciados por cada membro. Uma boa comunicação também é imprescindível para a formação facilitada de vínculos afetivos.

As famílias reconstituídas não são estranhas quanto ao desenvolvimento da sociedade. É possível verificar, ao longo da história, uma clara adaptação dos conceitos familiares aos novos modelos que surgem com o passar do tempo. É de extrema importância considerá-los, pois são parte fundamental do crescimento de cada indivíduo. Em contrapartida, esse novo sistema familiar pode oferecer um espaço para crescimento individual e coletivo, como apontado por Alarcão (2002). Não existem apenas reações negativas, e nem apenas malefícios. A mudança pode acarretar em um funcionamento saudável e benéfico a todos os membros.

É necessário atentar-se às necessidades e especificidades de cada membro, entendendo o processo vivenciado por cada um e acolhendo suas reações, por mais adversas que sejam. É possível, ainda, que o funcionamento do sistema demore a acontecer, passe por um tempo de reajuste, por isso a paciência e a compreensão devem ser os melhores amigos dos integrantes.

REFERÊNCIAS

  1. Alarcão, M & Relvas, I. Novas formas de família. Coimbra: Edições Quarteto, 2002.
  2. AMARAL, D. H. Recasamento: percepções e vivências dos filhos do primeiro casamento. [Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica], Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2010.
  3. FERRARIS, A. Filhos de famílias divorciadas e reconstituídas: identidade e história familiar. . Porto Alegre: Artmed, 2002.
  4. MINUCHIN, S. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artmed; 1982.
  5. GÜNTHER, I. A. Preocupações de adolescentes ou os jovens têm na cabeça mais do que bonés. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12, 61-69, 1996
  6. SLUZKI, C. A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
  7. GARBAR, C.; THEODORE, F. Família mosaico. São Paulo: Augustus, 2000.
  8. RIBEIRO, R. M. F. Adoção emocional em famílias de recasamento: um estudo sobre a construção das relações afetivas entre padrastos/madrastas e seus enteados. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
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“Homens, Mulheres e Filhos” – a fragilidade das relações humanas transpassadas pela tecnologia

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O filme Homens, Mulheres e Filhos retrata desafios diários do uso excessivo do mundo da internet e como isso afeta as relações que consideramos importantes

Lançado em 2014, o drama norte americano “Homens, mulheres e filhos” dirigido por Jason Reitman  e baseado na obra de Chad Kultgen tem como principal tema o vício na internet escancarado mas ao mesmo tempo sutil que a sociedade vive. É um filme melancólico e extremamente real que retrata a vida de diversos adolescentes e seus pais em um mundo obcecado por tecnologia e redes sociais.

A trama acompanha dificuldades sociais comuns que são afetadas pela internet e que muitas vezes não vemos essa como a culpada, e sim as pessoas com quem nos relacionamos. A cultura do videogame, anorexia, infidelidade, busca pela fama e a excessiva quantidade de material pornográfico disponível são os temas dessa obra que se espelha de uma forma sublime a vida real

Começando pelo casal, Donald e Helen Truby, que estão passando por problemas sexuais e procuram essa satisfação na internet, Helen mantém diversos casos através de um site de namoro e Donald mantém relações com acompanhantes além de manter um ávido hábito de consumo de pornografia. Em um momento Donald acaba vendo o perfil de Helen no site em que ela utiliza e vai encontrá-la, acabam discutindo sobre ambas infidelidades e decidem ignorar o acontecimento. 

Donald e Helen têm um filho adolescente, Chris, que tem interesse em material pornográfico assim como seu pai, mas sua peculiaridade é que Chris gosta de assistir aqueles que estão fora do padrão, atingindo o mundo do fetiche. Ao tentar ter interesses tradicionais, Chris começa um namoro com uma líder de torcida da sua escola, Hannah, mas quando tentam ter o ato sexual Chris não consegue se excitar e Hannah termina com ele, apesar de falar para todos da escola que fizeram sexo.

O sonho de Hannah e de sua mãe, Donna,  é de que ela seja famosa e encontram uma oportunidade de participar de uma série de tv, porém Hannah é desclassificada pelo conteúdo mostrado em um website em que tem fotos provocativas dela, o site é sustentado pela sua mãe que acredita que isso trará a tão sonhada fama. Após essa situação Donna retira o site do ar.

Todos da escola em redes sociais.
Fonte: Cena do filme, por 50 anos de filme

Ainda no círculo de Hannah, sua colega de torcida Alisson Doss perdura em hábitos anoréxicos com a ajuda de um grupo que encontrou em uma rede social e depois de anos gostando de um colega de classe chamado Brandon, ela finalmente consegue a atenção dele e eles compartilham o primeiro beijo. Depois de muita insistência por parte de Brandon ela é vencida e eles tem a primeira relação sexual do casal, que Brandon trata como algo casual e com certo desinteresse.

Allison desenvolve uma gravidez ectópica em que o óvulo fertilizado se fixa fora do útero e não consegue sobreviver. Allison tem um aborto natural e depois de ser socorrida no hospital, seus pais descobrem sobre a gravidez, enquanto isso Brandon se preocupa com os outros colegas da escola descobrirem que eles tiveram relações sexuais.

O filme retrata também a vida de Tim, que após o divórcio de seus pais para de jogar futebol americano na escola para participar de um jogo de RPG online. Após o pai de Tim, Kent, ver comentários sobre a mãe dele em um dos chats desse jogo Kent o confronta e o obriga a parar de jogar online e retornar para o futebol americano. Tim namora Brandy Beltmeyer, e eles mantêm uma relação online através de uma conta secreta que Brandy tem em uma rede social.

A conta de Brandy é mantida em segredo pois sua mãe, Patricia, é superprotetora e monitora a filha constantemente por medo dos perigos que a internet representa, porém não percebe que a sua proteção exagerada é prejudicial para Brandy. Quando Tim é proibido de acessar a internet isso o afeta, no mesmo dia Patricia descobre a conta secreta da filha e se passando por ela, fala para Tim que não está mais interessada. Essa sequência de eventos na vida de Tim leva ele a tentar suicídio por overdose de remédios e quase morrer, Brandy se desespera e Patricia desativa seus métodos de vigilância após perceber que eram métodos nocivos.

Patricia monitorando a vida online de Brandy
Fonte: Cine Garimpo

Por conta dessa preocupação exagerada de Patricia, ela comanda um grupo para pais que estão interessados em proteger seus filhos dos conteúdos presentes na internet. Em uma dessas reuniões ela conhece Donna, mãe de Hannah e a ensina sobre o que pode ser legal e ilegal no site da filha. No mesmo grupo ela conhece Kent e começa a se relacionar com ele, quando ela fala sobre o site ele se mostra contra mas eles se reconciliam após conversar sobre as dificuldades de serem pais solteiros.

Apesar de ser um filme de drama/comédia Homens, mulheres e filhos é um filme triste e melancólico porque traz de uma forma crua a natureza humana e as modificações que o contato sem moderação com a internet tem. As relações familiares, de amizade e amorosas perdem seu calor quando transpassadas pela frieza das redes sociais e de todo o mundo de informações contidas nelas.

Como praticamente com todas as coisas, o ser humano não consegue lidar com os prazeres de forma moderada e saudável, muitas vezes nos vemos envoltos em vícios de dopamina que são difíceis de identificar e de largar. Nesse filme, são retratados  a busca pelo prazer sexual cada vez mais intenso, busca por identificação e comunicação, assim como a busca pelo reconhecimento, pela fama vinda de olhos atentos e famintos do outro lado da tela.

O contato dentro e fora da família e a comunicação é a principal falta percebida na vida das pessoas e a saída mais fácil e rápida para isso é o celular, as redes sociais, os canais de comunicação e tudo que existe disponível. A saída mais complicada e dolorosa é se aprofundar em si mesmo até encontrar uma luz ou ser vulnerável com o outro e se colocar nesse lugar suscetível ao fracasso dentro das relações.

As óticas mais urgentes apresentadas são as de Chris e de Tim. O consumo da pornografia cresce cada vez mais assim como a quantidade de conteúdo disponível e os temas abordados, segundo Um estudo conduzido no Brasil pelo IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), as pessoas no Brasil começam a consumir pornografia aos 12 anos.

As consequências psiquicas que isso traz ainda não são totalmente conhecidas mas o que se pode afirmar é que a pornografia também pode ser um vício pois ativa a dopamina no cérebro. Além disso, a visão sobre as pessoas é distorcida para encaixar sobre a ótica do sexo e da objetivação de corpos, principalmente das mulheres, além do olhar deformado do desempenho sexual e a expectativa performática apresentada na pornografia.

Ao retratar um adolescente com impotência sexual gerada por esse vício, o filme levanta um alerta para o acesso precoce a esse tipo de conteúdo, que inicialmente deveria ser consumido por maiores de idade, mas a facilidade que o mundo virtual traz altera essa realidade. 

Outro aspecto urgente é a tentativa de suicídio por overdose de Tim. Quando ele se vê sem a sua rede de apoio quase estritamente virtual, essa é a única saída que ele vê, após a separação dos seus pais não é mostrado um momento de reconciliação entre ele e a mãe ou um momento de acolhimento desse adolescente o que seria importante para sua saúde mental.

Ao todo, a falta de conexão humana real e pessoal é o que realmente afeta a todos nós que estamos conectados o tempo todo, o filme acaba com uma ideia de que é nesse aspecto que precisamos prestar atenção no dia a dia, e menos na realidade existente nas mídias sociais.

Referências

SANCHES, Danielle. Pornô aos 12; primeira transa aos 18: estudo mostra hábitos sexuais no país. Viva bem UOL, 23/12/2022. Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/12/23/porno-aos-12-e-masturbacao-semanal-estudo-aponta-habitos-sexuais.htm?cmpid> Acesso em: 29/03/2023

CAMPOS, Leonardo. Crítica: Homens, mulheres e filhos. Plano crítico, 03/08/2017. Disponível em: <https://www.planocritico.com/critica-homens-mulheres-e-filhos/> Acesso em: 29/03/2023

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