Diálogo sobre o SUS no contexto pandêmico e análise do ponto de vista teórico da Saúde, Bioética e Sociedade

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No dia 27 de maio de 2020, foi feita entrevista referente a disciplina de Saúde Bioética e Sociedade I (SBS I), da instituição de ensino do CEULP/ULBRA com o entrevistado Alexandre Elias Chagas Achcar, estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus Palmas. Ele foi comunicado acerca da entrevista que circundaria a temática do Sistema Único de Saúde (SUS), ao qual foi realizada dez perguntas totais, com objetivo de analisar suas respostas de acordo com o que fora estudado em SBS I, como forma de aprendizado, e elucidação dos conteúdos ministrados. Todas as suas falas foram escritas na íntegra. A seguir, a entrevista em questão.

(En)Cena – Gostaria que você me dissesse se você vê o SUS aplicando formas efetivas de promoção à saúde, tanto quanto na cura dos doentes.

Alexandre Achcar – Eu acredito que o Sistema Único de Saúde é fundamental para a sociedade brasileira, principalmente porque, já está aí a bastante tempo, se eu não me engano ele é de 1988; não sei, posso estar errado, perdão; o Sistema Único de saúde ele é necessário justamente porque outros países comparando por exemplo com Estados Unidos, não tem essa gratuidade na saúde, a população não tem acesso a esse benefício… Por mais que o SUS seja falho justamente porque tem muitas verbas que não chegam para ele, isso é uma questão governamental né? Ministério da Saúde… ainda assim, ele consegue atender de forma eficaz, principalmente agora, na época da COVID-19. Se a gente não tivesse o SUS, seria um grande desastre, por isso eu sou muito adepto, acho que ele é fundamental.

(En)Cena –  Quais os mecanismos do SUS que você lembra de ter usado e usufruído, anteriormente ou atualmente?

Alexandre Achcar – Então… eu cheguei a usar o Sistema Único de Saúde, se eu não me engano, a última vez foi em 2018, no finalzinho de 2018 eu peguei uma infecção, e fiquei muito mal, com muita febre. Fui parar no SUS, e eu não tinha o cartão na época, lembro até hoje, tive que fazer um número, e eu não tinha também… não deram o cartão, então a infraestrutura é algo a si pautar né? Mas que seja um lugar que tenha saúde gratuita para as pessoas, ainda assim, tem que se atualizar, ter uma organização. Mas, eu cheguei a usar, lembro que na época cheguei a tomar uma injeção de benzetacil e uma outra que não lembro o nome, e depois de eu ser medicado e consultado, o médico me passou alguns antibióticos também, eu comprei, tomei, estava sozinho em casa, fiz uma alimentação saudável como ele disse para fazer, e melhorei, foi um bom tratamento.

(En)Cena – Qual a importância do SUS para você?

Alexandre Achcar – Como eu disse anteriormente, a gratuidade e a acessibilidade para as pessoas mais carentes, eu acredito na importância do SUS nesse quesito.

(En)Cena – Você acredita que o SUS alcança todos os recortes populacionais, como um todo?

Alexandre Achcar – Eu acredito que não, porque… por mais que o SUS tente ser o máximo acessível, ainda assim alguns postos de saúde podem estar localizados em um bairro, e aquele posto de saúde pode ser o único da região e a pessoa pode estar passando mal e precisa se locomover, geralmente por uma série de questões econômicas, talvez de saúde mesmo claro… porque a pessoa está procurando um postinho pra resolver uma eventualidade, por N’s motivos essa pessoa pode não ter acesso ao SUS e preferir se tratar em casa, sem nenhum auxílio médico, nem nada do tipo.

Também tem o problema governamental, das verbas não chegarem para o Sistema único de Saúde e não serem convertidas em remédios, e muitas vezes essas pessoas que estão no SUS, querem esse remédio de graça porque não tem condições financeiras para adquirir o remédio recomendado pelo médico. E no próprio Sistema Único de saúde eles oferecem remédio de graça, mas ainda assim tem uma falta muito grande, uma carência muito grande de certos medicamentos.

(En)Cena – Quais seriam as maiores vantagens do SUS enquanto órgão de Saúde para você e para a população, na sua visão?

Alexandre Achcar – Acho que ele é um serviço gratuito, como eu já disse, que é uma grande vantagem, os Sistemas Únicos de Saúde oferecem remédio né? De graça, que é outra vantagem que eu já citei anteriormente… terceiro, a urgência dentro do SUS, também é algo a se pautar porque, da última vez que eu fui lá inclusive, eles têm uma tabela ao qual você se adequa a certo tipos de cores, e essas cores determinam seu lugar na fila de espera. As vezes uma pessoa que está passando muito mal, que tem que ter o atendimento no momento, ela vai na sua frente porque ela tem prioridade, eu acho fundamental ter prioridade nesse quesito, eu acho muito importante…

Entre outras coisas, o SUS é acessível, por mais que ele ainda não seja né, em todos os locais, em todos os bairros, ainda assim ele consegue atingir um nível de acessibilidade considerável, a gente tem que levar em consideração também, eu já disse anteriormente sobre transporte público. E é isso… dentre outras milhares de coisas, o SUS é muito importante para a melhoria da saúde coletiva, e da ciência no Brasil.

(En)Cena – Como você acredita que seria o contexto de pandemia caso não houvesse o SUS?

Alexandre Achcar – Ah… com certeza desastroso! A gente tem que considerar também a má gestão dos órgãos governamentais quanto a alertar da COVID- 19, sem o SUS então, não sei como seria feito… Já há muitos hospitais particulares mesmo, com camas lotadas com pessoas com caso de COVID e sem profissional da saúde, sem o Sistema Único de Saúde também, a gente estaria muito pior do que a gente está, a gente já está em segundo lugar na tabela mundial, acho que com 3.000 casos, não tenho certeza, talvez 4000, tenho que averiguar, mas, estaríamos muito pior, com certeza (a entrevista ocorreu no ápice da primeira onda da Covid-19).

(En)Cena – Se você pudesse implementar mecanismos no SUS, para seu aperfeiçoamento, quais seriam?

Alexandre Achcar – Unidade móvel de atendimento iria resolver um pouco do problema do transporte público, por mais que o SUS tenha, já vi que eles têm algumas campanhas nos bairros, levam a unidade móvel para ajudar a população, geralmente em regiões mais carentes, se essa unidade móvel trabalhasse também, 24 horas, seria fundamental porque as pessoas que estão necessitando do SUS ao invés de ir até ele, o SUS poderia ir até essas pessoas, e resolver parte do problema, entende? Equipe especializada para isso.

Acho muito interessante também, talvez na Polícia Federal, órgãos regulamentadores, que a verba que seria destinada ao Brasil, principalmente ao SUS, passasse por um filtro. O que seria esse filtro? O filtro iria evitar com que esse dinheiro, seja vítima de corrupção passiva, desvio de verba, dentre outros problemas que a gente sabe que ocorre no Brasil, que já é um problema crônico do nosso país.

(En)Cena – Qual a reflexão mais pertinente sobre o SUS e a pandemia que vem te acometendo durante esta fase que se instaurou aqui no Brasil?

Alexandre Achcar – Acredito que sem o SUS seria bem pior, por exemplo… a gente está vendo estádio de futebol sendo lotado por pacientes com COVID- 19, porque dentro do SUS não está tendo mais maca, não está tendo mais espaço para atender o tanto de doente que está tendo no país entende? Sem o SUS seria muito mais complicado, a gente não teria mais lugar dentro dos estágios, e a onde a gente iria colocar essas pessoas?

Por mais que seja um cenário caótico, o SUS está fazendo um papel excelente durante a pandemia, e fundamental sabe? O SUS só não faz um papel melhor, justamente pelos desvios de dinheiro, má gestão governamental, falta de remédio, falta de incentivo cientifico dentro do país, e falta de… eu acredito que é um problema também, falta de reconhecimento das universidades e dos cursos de ciências biológicas e na área de saúde no Brasil

(En)Cena – Você acredita que o momento histórico em que estamos vivendo tem contribuído para uma reflexão sobre a necessidade de se fazer uma saúde para a comunidade e para os indivíduos como um todo, no sentido de saúde como coletividade?

Alexandre Achcar – Com certeza… se a gente para pensar que o SUS hoje em dia, está lotado de gente, tem gente precisando de atendimento e não está tendo como atender porque não tem lugar para as pessoas ficarem, porque não tem respirador o suficiente, porque não tem investimento na tecnologia na saúde dentro do pais, a gente começa a enxergar o tanto que isso é importante sabe… o tanto que investir na saúde, que é um dos pilares da sociedade bem-sucedida, é primordial sabe…

Isso vale para as pessoas que são contra o Sistema Único de Saúde porque se todo mundo se unir para melhorar esse atendimento e reivindicar da saúde pública um atendimento mais eficaz e transparente também, dentro da saúde pública do Brasil, talvez esse seja até o estopim para a elite, utilizar um sistema que é de graça… e ter acessibilidade para todo mundo sabe… porque todo mundo precisa de qualidade quando se trata de saúde, todo o ser humano necessidade de transporte, saúde e educação. É o mínimo que as esferas públicas têm que oferecer para a população.

(En)Cena – E sobre as pessoas que ainda assim, não valorizam e não dão importância para o SUS, qual a visão que você tem sobre elas, e por que você acredita que as pessoas pensam dessa maneira? Você tem alguma opinião sobre o assunto?

Alexandre Achcar – Então, se a gente analisar as pessoas que falam mal do SUS, elas não precisam do SUS, geralmente são pessoas da elite brasileira da “classe A”, e elas tem acesso a saúde particular, elas têm acesso à educação, tem acesso a transporte de qualidade… é um pensamento muito egoísta, você dizer que o Sistema Único de Saúde não deve existir, por causa da situação econômico do país. Se hoje o brasileiro paga um dos maiores impostos do mundo, esse dinheiro volta para ele, o problema não está na quantidade de dinheiro que a gente paga, e sim, na quantidade de dinheiro que volta para a gente como benefício da população.

Reflexão a partir da fala do entrevistado:

É possível observar através das colocações do Alexandre, que ele tem conhecimentos tanto numérico quanto da própria vivência como usuário do SUS. Dentro de sua perspectiva as vantagens do SUS corroboram em se fazer saúde de forma descentralizada, que é um dos quesitos de regionalização pertinentes nas diretrizes do Sistema de Saúde, que visa espalhar os serviços pelos municípios, que tem suas próprias estratégias e demandas.

É perceptível que ele, por sua vez, não compreende a hierarquização vigente, que diz respeito da referência e contra- referência, que se estabelece na rede que se subdividem em funções, que visam o atendimento de piso da Atenção Básica  (PAB), que tem sua importância, mas não atende casos extremamente complexos, cabendo desta maneira a necessidade de referência da rede municipal para a regional, e assim sucessivamente, ao qual quando há a resolutividade da demanda, acontece a contra-transferência. Toda essa questão está vigente no princípio de descentralização político- -administrativo, que se subdividem na esfera: União, Estado e Distrito Federal.

Apesar disso, é importante ressaltar a fala que lista a vulnerabilidade socioeconômica, a inacessibilidade de transporte, e/ou a auto medicalização por falta de informação, o que é uma realidade pertinente que dificulta a universalidade do acesso à saúde. Que é um dos fatores que ele acha pertinente e íntegro do Sistema.

Pôde-se observar que ele busca ter criticismo através de uma visão sócio-política, buscando a justiça social ao qual o SUS faz referência, pondo culpabilização do fracasso ou da não obtenção da força máxima enquanto órgão público pela má gestão política, falta de investimento e o sistema corrupto que o circunda. Pois, assim como ele disserta, existe a falta de recursos, para pesquisa, medicamentos que vai de contramão ao Título III do CAP III sobre “Planejamento e Orçamento” da Lei Nº 8.8080, que fala que deve haver orçamento compatível a necessidade de saúde da localidade, ao qual é necessário planejamento, organização que são aspectos citados por Alexandre, para que haja um plano de saúde efetivo.

Dentro de suas vivências foi possível ver que ele acredita que deva mudar questões da logística, mas que admira a organização e priorização de urgências, que se refere ao princípio de equidade, ao qual pretende-se ter atendimento justo, com a análise da demanda, de acordo com suas necessidades prioritárias.

Nota-se que apesar de ver questões para se aperfeiçoarem no SUS, principalmente em decorrência as responsabilidades governamentais por faltas éticas e administrativas, ele o vê como essencial, principalmente por conta da COVID-19 ao qual essas necessidades ficam ainda mais evidentes, que devem intervir no princípio da integralidade, com articulação coerente e rápida na prevenção e cura da população doente.

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Por um novo pacto civilizatório nas redes

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Em algum momento, no inicio da constituição da comunidade humana, tivemos que fazer um pacto civilizatório. Como bem disse Freud, tivemos que recalcar nossos impulsos mais primitivos, perversos e egoístas em nome da convivência coletiva. Então, desde o início, mesmo com todos os equívocos que invariavelmente cometemos na nossa frágil condição humana, temos optado pelo amor, pelos laços que nos unem numa coletividade. Apesar de não sabemos até quando, é assim que nossa espécie tem sobrevivido até então.

 

 

Fico pensando que o advento da Internet, especialmente das redes sociais, tem nos colocado diante de uma nova forma de laço social diferente da que estávamos acostumados e daí, talvez, a sua fragilidade. A mediação tecnológica, já percebemos, dificulta a empatia. A comunicação pela escrita tende a ser mais fria. Ficam imperceptíveis a entonação da voz e a linguagem corporal o que faz com que os mal entendidos próprios da linguagem se fixem ainda mais no território do impossível de suportar o outro na sua diferença. Enquanto que o cara-a-cara e o olho-no-olho ou as nuances da voz favorecem a empatia fazendo do outro um semelhante mesmo quando diz algo que me causa mal estar, a impessoalidade de um post ou um tuíto transforma o outro num estranho insuportável. Ou não é verdade que seja totalmente possível e suportável discutir política, religião e outros assuntos difíceis na mesa do bar, na sala de aula ou na reunião de trabalho e totalmente inviável discuti-los nas redes?

Outra coisa que muita gente ainda não se deu conta, é que publicar alguma coisa nas redes sociais hoje em dia é enviar uma mensagem para o Planeta inteiro ouvir. Mesmo sentadinhos e protegidos atrás de nossas telas de computador e smartfones, o que dizemos na esfera virtual tem mais transparência, rapidez e capacidade de alcance que qualquer outro modo de comunicação que já foi inventado. Uma publicação irrefletida pode nos levar do constrangimento público ao linchamento virtual.

Isso não quer dizer que as redes sociais e a internet sejam o demônio. Não sou partidária dos melancólicos nostálgicos que sempre temem os novos modos de existência. As novas formas de laço inauguradas pelas redes são uma realidade e, possivelmente, vieram para ficar, entretanto, elas estão exigindo de nós um novo pacto civilizatório. E precisamos fazer isso com urgência, sob o risco do esgarçamento do tecido social com a fabricação cada vez maior de guetos: políticos, religiosos, científicos ou ideológicos. Pois, na tentativa de manter um nível suportável de socialização nas redes, nossa saída tem sido o simples descarte do outro.

Enquanto na vida real o exercício de suportar o outro inclui não poder mata-lo, nas redes sociais matar o outro é tarefa simples e limpa, sem qualquer punição. “Unfollow”, “unblock” e “desfazer a amizade” são formas de eliminar o outro da nossa linha do tempo, mecanismos simples e rápidos que temos utilizado para lidar com os diferentes. Diante do impossível de transigir com o outro na sua diferença a saída tem sido apagá-lo simplesmente, nos relacionando apenas com aqueles que pensam como nós. É assim que os guetos das redes vão se constituindo e se fortalecendo, e não havendo discursos contraditórios, suas verdades vão se tornam ainda mais unificadas, fortes e inabaláveis. E ainda, insuflados pelo nosso narcisismo, pelo prazer de encontrarmos pessoas parecidas conosco e que pensam como nós, nos fechamos cada vez mais em nossos grupelhos com suas verdadezinhas inabaláveis.

 

 

Como já dizia o poeta: “toda unanimidade é burra”. E eu completo: todo fundamentalismo é perigoso. Nada é mais perigoso do que um grupo de pessoas munidas de verdades compartilhadas e inabaláveis.

Sendo assim, é urgente que façamos um novo pacto civilizatório para as redes. Precisamos resgatar a humanidade, nossa e do outro, por traz de um post. Precisamos cuidar do que postamos para não destruir pessoas, reforçar mentiras ou contribuir para linchamentos. Precisamos entender que um post é apenas um recorte de um sujeito, não diz tudo sobre ele. Precisamos aprender a suportar a diferença, escutar o contraditório, debater sem atacar. Escutar.

A política do amor, aquilo que nos enlaça enquanto espécie humana é o que nos tem sustentado. O amor é um ato político, sem o qual já teríamos sucumbido. O salto evolutivo que precisamos nesses tempos, talvez seja, levar a política do amor também para as redes.

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Dogville

Dogville: rabiscos de uma comunidade

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Lars von Trier recriou um mundo bem real, ainda que sua cidade fosse um rabisco no chão, como as cidades criadas nas brincadeiras infantis. Dogville é formada por uma pequena comunidade pós quebra da bolsa de valores de 1929, ou seja, um povo que vive o fim de uma utopia fincada nos ditames das maravilhas e da indestrutibilidade do sistema capitalista. A comunidade que reside em Dogville parece saída de algum lugar bem familiar, talvez porque as agregações humanas não sejam assim tão diferentes.

Então, em meio a pessoas fracassadas, crianças domesticadas, mulheres e homens permeados por um ideal moralizante de suas vidinhas “mais ou menos”, surge Grace. Bonita, inteligente, sensível, mas só. A comunidade se sente superior àquela criatura graciosa e a noção de grupo dá certa segurança aos indivíduos, então no momento em que Grace adentra a cidade, ela percebe-se a mercê daquele povo, aparentemente simples e acolhedor. Tom, o escritor fracassado que a conduz na cidade, é uma figura mesquinha, que na busca pela história perfeita constrói um meio de ludibriar sua pequenez e sua paixão sem limites pelo sucesso e reconhecimento. Talvez dos personagens do filme, ele seja o que tenha menos empatia com o próximo, seja o mais egoísta membro da comunidade.

Ao intervir numa comunidade, o psicólogo necessita compreender o ambiente, conviver com as pessoas, saber o que move a comunidade, seus medos, seus ideais, suas verdades e, especialmente, suas mentiras. Um ponto comum nos agregados humanos é a questão do trabalho e como se dá sua natureza. Grace, para se aproximar das pessoas, aceitou a sugestão de Tom e entregou-se a pequenos trabalhos na comunidade. Tais trabalhos, mesmo que desnecessários inicialmente, foram se tornando essenciais para as pessoas e, vale ressaltar que tal dinâmica, de certa forma, sempre aconteceu no mercado, ou seja, as necessidades são criadas por meio de ações midiáticas, da cultura etc. Ou seja, criam-se as necessidades e, a partir disso, modificam-se as estruturas da sociedade, já que o trabalho sempre foi um norteador desta. Grace se pôs a serviço da comunidade evitando enxergá-la de fato. Se um psicólogo adentrar numa comunidade com esse mesmo pensamento corre o sério risco de também ser “usado” por esta, como o foi Grace.

Na visão crua de Lars von Trier, a comunidade mostra sua face ao entender o poder que tem em mãos, ou seja, ao descobrir que Grace é uma fugitiva. Assim, os pequenos trabalhos realizados por ela são intensificados. Várias são as exigências do grupo e, como Grace está tendo o conforto de ser acolhida no seio da comunidade, mesmo sendo claramente uma “infratora”, deverá agradecer à bondade humana, por mais estranha e contraditória que esta seja.

Um outro ponto evidenciado em Dogville, até pela própria estrutura do cenário, é a questão da coletividade ser mais intensa que o indivíduo. Mesmo no interior das casas é possível ver o coletivo, então cada gesto individual se faz importante na concepção do todo. Não há figurantes em Dogville, todos estão em cena o tempo todo. Isso também faz com que uma das imagens mais cruéis do filme tenha seu horror potencializado.

No momento em que Grace é estuprada, crianças brincam nas ruas, as pessoas se alimentam em suas casas, conversam animadamente sobre assuntos corriqueiros. Mas, ninguém vê. Um observador do aspecto cinematográfico do filme poderia dizer que apesar da não existência das paredes, segundo a concepção estrutural do diretor, há um ambiente fechado, logo eles não poderiam ver mesmo. No entanto, a mensagem que permanece e que causa constrangimento é o fato de que a comunidade sabe o que acontece, mesmo que não veja o momento do ato. Mas, às vezes, os grupos se fecham diante de um fato constrangedor, pois enxergar nem sempre é uma atitude coerente em um ambiente moralista, mas enganador.

  Tom, aquele que a certa altura do filme se mostra apaixonado por Grace, sabe do estupro, mas se cala, pois ele precisa da dor para ter a inspiração ideal para seu livro. No entanto, a história que irá lhe tirar da pobreza imaginativa em que vive, não vem. Porque não há dor em Tom, já que não há empatia. Na frieza na qual ele transita pelos espaços que compõem a comunidade, permanecem sempre duas palavras no papel, mas nenhuma história.

A comunidade mostra-se hábil na especialização da tortura. O homem estúpido de outrora consegue construir uma mirabolante máquina de encarceramento para manter Grace cativa e obediente. Presa, despida de quase toda a humanidade, ela fica à disposição da comunidade. Psicólogos podem também achar que estando à disposição das pessoas, estejam fazendo o que é correto, estejam contribuindo. Mas, só há contribuição, se há entendimento das ações e do seu retorno.

Não se pode dar a um grupo o caminho de uma felicidade imaginada por você. Pode-se, no máximo, contribuir na formação de um olhar crítico, pois o psicólogo não pertence à comunidade, ele vai embora. Quem fica tem que ter sido tocado pelo sentimento provocativo da vontade de mudar, de melhorar, de enxergar suas potencialidades, mas também suas fraquezas. O povo de Dogville errou, foi de uma crueza absurda, mas Grace também contribuiu para tal horror ao enxergar um tipo de gente que só existia em sua imaginação, ao pensar que poderia contribuir com aquele povo sofrível simplesmente por ser de uma classe superior, por ter uma visão de mundo mais “complexa”.

Ao final, vimos uma Grace com ódio, pois ela teve dificuldade em entender que o espelho que refletia o mundo que ela via, só refletia sombras. E sombras deturpadas pela parca visão que ela tinha do mundo “dos outros”. Ao entender que as pessoas por serem simples e miseráveis, não são, necessariamente, nem puras, nem boas, ela sentiu ódio e daí nasceu o desejo da vingança, sentimentos tão humanos, mesmo para uma Grace que se imaginava tão superior.

O cachorro foi poupado, porque o cachorro tinha motivos para odiá-la, tinha motivos para latir com ela. Já o povo de Dogville, maltratou-a sem motivos, fez dela uma espécie de propriedade da comunidade. Grace foi explorada, violentada, tiraram-lhe a humanidade e a “coisificaram” simplesmente porque tinham o poder para tal. Grace, filha de gângster, que imaginava transformar o mundo em um local melhor, que se sentia tão diferente de seu pai, já que pensava transformar a si mesma através da vivência numa sociedade simples, não resistiu à pressão de ver um mundo diferente daquele imaginado em seus devaneios altruístas, então o destruiu, pois nem sempre é possível suportar um outro diferente daquele que foi imaginado por nós.

Um psicólogo que intervém numa comunidade precisa compreender que ele e a comunidade não são meros objetos que em dado ponto irão sofrer uma intersecção. Tanto um quanto o outro têm desejos, medos, regras morais, pré-conceitos e um conjunto particular de verdades e mentiras. O trabalho na comunidade requer um amadurecimento da ideia de que não há um salvador que irá livrar o povo do sofrimento, nem que o grupo esteja sofrendo os desígnios de um Deus (ou um demônio) cruel e implacável, mas sim de que tanto o psicólogo quanto a comunidade devem aprender juntos, devem buscar uma colaboração mútua.

Assim, quando o psicólogo partir, não estará deixando para trás uma imagem decepcionante de um povo fraco e infeliz, nem a imagem reconfortante de um povo simples que precisa dos seus préstimos e seu eterno amor. O que ficará para trás, se o trabalho for bem desenvolvido, é uma comunidade mais consciente de seu lugar no mundo, mais crítica, menos submissa e, talvez, mais humana.

Nota: Texto apresentado na disciplina Psicologia Comunitária (Curso de Psicologia / CEULP). O ensaio em questão teve como premissa a realização de uma analogia entre a intervenção de um Psicólogo em uma comunidade e a entrada de Grace em Dogville.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

DOGVILLE

Título original: Dogville
Direção: Lars Von Trier
Roteiro: Lars Von Trier
Elenco: Nicole Kidman, Harriet Andersson, Lauren Bacall, Jean-Marc Barr, Paul Bettany;
País: França
Ano: 2003
Gênero: Drama

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