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Os contos como ferramentas de organização do ego
Histórias atraem, conectam, nos apontam possibilidades de vida e aumentam nosso repertório.
Os contos são ferramentas fundamentais no processo de descoberta de nossa verdadeira essência, carregando em si uma função que nos leva ao que chamamos de despertar da consciência. Através dos contos também somos levados ao mergulho nas camadas mais profundas da psique e tornamos conscientes alguns aspectos fundamentais que estavam imersos em nosso inconsciente pessoal e coletivo.
Isto se dá porque a linguagem simbólica é um valioso recurso que se esconde por trás da simplicidade das histórias e que é usada para explicar problemas, etapas ou fatos por meio de símbolos ou imagens direcionadas ao inconsciente humano.
Usamos termos simbólicos constantemente para representar conceitos que não podemos definir ou compreender de forma alguma. Esta é uma das razões pelas quais todas as religiões usam linguagem ou imagens simbólicas. Mas esse uso consciente de símbolos é apenas um aspecto de um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos inconsciente e espontaneamente na forma de sonhos. (Jung, 1995)
Segundo Bruno Bettelheim (2013), os contos de fadas têm um efeito terapêutico, pois o indivíduo pode encontrar uma solução para as suas incertezas, por meio da contemplação do que a história parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento da sua vida.Os contos de fadas não falam apenas das questões do mundo exterior, mas sim sobre processos internos que ocorrem no cerne do sentimento e do pensamento.
Além de estimular a imaginação, o lúdico, os contos também tem uma função terapêutica que auxilia a encontrar nos personagens e situações referências para a nossa vida. Encontrar também orientação para compreender o nosso mundo interior e nossos conflitos. A metáfora é uma figura de linguagem utilizada por meio de frases, histórias e parábolas, que podem servir à terapia traduzindo uma situação, problema ou sentimento do paciente/cliente.
Frequentemente, durante situações difíceis em nossas vidas, uma música ou uma história carregadas de simbolismos nos toca e nos marca por promover um entendimento diferente e uma paz interior. Algo que nos ajuda a perceber e ver a nossa situação de uma maneira diferente, menos problemática. Isso acontece porque tanto em contos, como poemas e canções são usadas frases metafóricas que servem como instrumento terapêutico. E, para que cada história cumpra seu efeito terapêutico ele deve conectar-se espontaneamente com o ouvinte, a partir dos seus recursos internos para que cresçam em compreensão e conhecimento de modo que assim transformem em ferramenta de mudança de pensamento e conduta.
Outra faceta que torna a metáfora um instrumento particularmente eficaz é o fato de permitir ao narrador selecionar conceitos complexos, difíceis de explicar e recriá-los de maneira muito mais concreta. Tanto as metáforas como os símbolos contidos nos contos transportam informação que se conecta com os símbolos internos de cada pessoa, despertando nelas o conhecimento de algo que necessita aprender.
Olhando para nós mesmos através do conto de fadas – que nos apresenta dilemas humanos típicos e nos permite imaginar caminhos para sairmos deles –, percebemos que somos confrontados pela ansiedade em todo os passos do nosso caminho.
Fonte: Pixabay

Ainda assim, com vastos e antigos estudos que comprovam a importância e o poder dos contos, metáforas e histórias como ferramentas terapêuticas, há os que subestimam a sua eficácia. Limitadas pelo avanço da ciência e da validação de novas ferramentas de manejo dos conflitos, psicopatologias e sofrimentos humanos, algumas pessoas acabam diminuindo o valor desta ferramenta clássica que é a contação de histórias terapêuticas. Talvez ainda não tenha se dado conta que no cenário contemporâneo, temos nomenclaturas diferentes que dizem a mesma coisa, como por exemplo, o termo em inglês, storytelling que tem sido utilizado como forma de captar a atenção, facilitar o entendimento, e se aproximar dos clientes nos mais variados saberes, como no marketing, na política, na educação, no entretenimento, dentre outros.
O princípio norteador é o mesmo: uma história bem contada desperta o interesse, prende a atenção, facilita a aceitação de mensagens. Podemos confirmar isso ao silenciar o celular para entrar no cinema, esquecemos dos problemas da vida ao abrir um livro, perdemos a noção da hora ao ouvir as histórias de um amigo. Quando estamos diante de uma boa história ficamos atentos, lembramos do roteiro, dos personagens, nos impressionamos. Afinal, as metáforas são permeadas por emoções, podem ser utilizadas em várias demandas, além de ser de fácil memorização.
O profissional (psicólogo ou não), utiliza deste recurso questionando, gerando reflexões, sem mostrar similaridades diretas com o paciente, essa identificação deve partir da própria pessoa. Por se tratar de um método seguro e inofensivo de lidar com assuntos que as pessoas têm dificuldades em abordar , as metáforas podem ser extremamente eficazes em problemas cuja solução é difícil através de outras técnicas.
Fonte: Pixabay

Alves, a propósito do uso de metáforas em terapia, considera que as metáforas “São ferramentas que contém mensagens poderosas para auxiliar o paciente a encontrar novas perspectivas e alternativas para sua vida” (Alves, 1999, p.64). A autora explica que um significado pode ser transmitido de maneira mais fácil pelo uso de metáforas, do que pela comunicação direta. É mais fácil falar do outro e identificar semelhanças em nós mesmo do que falar diretamente de nós.
Contar histórias também geram identificação e despertam emoções, seja por evocar alguma memória do leitor, seja por fazê-lo se imaginar na pele do personagem. Por tudo isso os contos são muito utilizados como peça essencial no trabalho terapêutico e curativo dos pacientes, que ao contar ou ouvir histórias, verbalizam seus sentimentos, que de outra forma poderiam não ser tão bem definidos, seja pela falta de vocabulário preciso para dar nome aos seus sentimentos ou mesmo pela desorganização de ideias que impedem que os conflitos venham à tona e sejam elaborados e acabam aparecendo por meio de desordens mentais ou físicas.
Quando falamos de contos de fadas, ou contos em geral, acabamos limitando sua utilidade como forma de entreter e divertir. Porém, os contos são mais do que um instrumento de diversão. A comunicação humana é feita por histórias desde sempre. Muitas são rememoradas, adaptadas. Por isso, a grande maioria dos textos, contos, mitos, parábolas, storytelling, por exemplo, costumam abrir falando sobre os tempos das cavernas e sobre como histórias eram contadas em pedras antes mesmo de existirem idiomas. Provando que, até os dias de hoje é muito mais fácil e compreensível transmitir uma mensagem quando ela está ancorada em uma história.
REFERÊNCIAS
Alves, L. (1999). Metáforas como ferramenta terapêutica. Pensando Famílias, 1, 62-68.
BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. Lisboa: Bertrand Editora, 2013.
GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de Grimm. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Villa Rica, 1994.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2.ed. Petrópolis:Editora Vozes, 2000.
Conto Terapêutico para trabalhar escolhas, perdas e mudanças significativas na vida.

Anos nem tão dourados: a triste infância de Ciça
“Enquanto fenômeno socialmente construído, incorporada como legítima e, mesmo, como imperativo, a violência prende-se às próprias condições de constituição e de funcionamento de uma sociedade de homens livres.” (ADORNO, 1988, p. 5).
No dia 15 de agosto de 1956 às 18 horas de um dia de sexta feira, nascia Ciça, um belo bebê saudável que pesava 4 kg. Ciça veio de uma gravidez não desejada, num lar disfuncional e muito, muito pobre de recursos materiais, bem como emocionais. O bebê era a quarta de uma família de seis agora, a mãe trabalhava dia e noite lavando trouxas enormes de roupas, que mal dava conta de carregá-las. Maria era linda e loira, olhos azuis da cor do mar em calmaria, só a cor que lembrava a calmaria. Sua pele muito branca fazia um contraste dolorido com o sol quente. As condições de trabalho eram precárias, três bacias, água tirada na cisterna puxada por uma corda, onde tinha um balde pendurado, (chamava-se sari).
O sol castigava, pois não havia proteção, o trabalho era realizado durante o dia todo debaixo daquele sol escaldante, ou da chuva, tinha quatro filhos para alimentar. O pai de Ciça aparecia de vez em quando com um pacote de arroz, e por meses a fio não se ouvia falar dele. Na época pouco se sabia sobre a história deste moço, por onde andava, o que fazia, pensava na família? Pois bem, em meio a estes eventos, lá ficava o bebê, vez ou outra a mãe aparecia para amamenta-la, com pressa, o serviço urgia, se fez necessário estancar o leite e passar para a mamadeira, não havia tempo, assim o irmão mais velho poderia providenciar o mingau e ela estaria com mais tempo para as lidas do dia. Maria era uma mulher sisuda, de poucas palavras, sorrisos raros, quase inexistentes, e bastante violenta, Ciça saberia disso anos mais tarde.
Ciça cresceu e apesar dos pesares, cresceu saudável, aos cinco anos já tinha consciência do mundo ao seu redor e de seu lugar nele. Era uma garotinha linda; assim como a mãe, era sisuda, de poucas palavras, sem sorrisos, mas por motivos diferentes, achava ela.

Imagem de Elisa Riva por Pixabay
A partir desta idade Ciça atesta se lembrar de cada detalhe de sua angustiante e melancólica vida. Ela já tinha obrigações dentro da minúscula casa, que contava com um cômodo e um puxadinho sem paredes para o fogão feito com seis tijolos, tinha também uma prateleira onde os alumínios brilhavam. Maria já introduziu Ciça no exercício de varrer, arrumar cama (só tinha uma para todos) e aos bofetões lhe ensinava a brilhar panelas, e como dizia ela, ensinava a ser “gente”.
Ciça sofria agressões por fazer e fazer mal feito, por não fazer, por chorar, por não chorar, ela era o pano de fundo das amarguras de Maria. Suas mãozinhas pequeninas não conseguiam segurar direito as coisas, portanto não tinha o domínio que Maria exigia dela, até aprender, seu corpo sofria, sua cabeça não entendia o ódio que aquela mulher nutria por ela. Por fim, foi se naturalizando, vai ver que a vida era aquilo mesmo. Por incrível que pareça Ciça amava aquela mulher, achava-a linda e como ela queria por um minuto sequer que ela a amasse, mas deveria ter algo torto com Ciça, algo com que fizesse que a Maria sentisse aversão por ela. Sim, a culpa era da Ciça. É evidente que era, ninguém morde uma criança até sangrar, sem que a criança seja torta.
Aos cinco anos e meio Ciça pegou um livro de sua irmã folheou e sem a menor dificuldade leu uma página, Maria não acreditou, julgou que a menina estivesse inventando e pegou o livro e leu a página, e não, Ciça não estava mentindo, e pela primeira vez em sua pobre vidinha ela ganhou um abraço da mãe que ficou maravilhada, pois a filha nunca havia ido à escola. Maria não sabia que a irmã mais velha sempre lia para Ciça, à luz de uma lamparina, ou à luz da lua, momentos em que Ciça poderia voar e sonhar. Nestes dias peculiares, sua irmã a introduziu no mundo das letras, era pouco, mas Ciça tinha avidez em aprender. E foi assim que se deu, foi um anjo que compadecido presenteou Ciça com este momento do qual ela se lembra até hoje.
A menina acordou no outro dia disposta, depois daquele abraço ela se encheu de esperança, com planos coloridos para um futuro melhor, embora ela não soubesse o que era futuro, pensou que as coisas seriam diferentes agora. Finalmente sua mãe a amaria, ora, porque não, afinal houve aquele delicioso abraço, não se pode agredir depois de um abraço, não tem como voltar atrás depois de amar. Ela descobriu que o mundo dos adultos, nem sempre tinha regras, continuidade, era como um filme com um roteirista macabro. Maria acordou e com a grosseria costumeira já colocou Ciça para brilhar as panelas e com promessas de muita surra caso não brilhassem. Ciça só a olhou desolada e uma lágrima furtiva rolou por sua face. Foi sua primeira grande decepção, mal ela sabia que viriam muitas outras.
Com o tempo as obrigações de Ciça aumentaram muito, com sete anos já haviam mudado de casa umas 10 vezes, sempre era no fundo de alguma casa, e as habitações eram sempre miseráveis. Nesta última casa em questão, havia um fogão a lenha e a menina foi presenteada com um banquinho, para que subisse e assim poder cozinhar. Sim, o almoço seria agora por sua conta. Maria explicou a Ciça como fazer arroz, foi rápido, e ela fez, da maneira que entendeu. As mãos tremiam, o pavor do insucesso era grande, pois as consequências seriam desastrosas. Pois bem, na medida em que o arroz foi cozinhando ele foi crescendo, crescendo, por fim derramou, era arroz demais para a panela. O desespero se instalou e se justificou, Maria entrou e quando viu aquilo, colocou a mão naquele arroz quente e numa fúria mortal, esfregou no rosto de Ciça, queimando todo seu rosto. Uma semana de babosa no rosto e uma tristeza de morte na alma.

Imagem de Azmy Talibi por Pixabay.
Ciça nesta época aprendeu a cozinhar, quando tinha algo para cozinhar, ela não sabia se ficava alegre quando não tinha, ou ficava triste por não ter, ela conhecia a fome de perto. Os sentimentos de Ciça eram confusos entre ser triste ou ter um alívio da tristeza, aliás, os únicos sentimentos aos quais ela tinha intimidade eram medo, vergonha, tristeza, angústia e um monte de porquês embolado em sua garganta. Neste período Ciça entra na escola, “Escola Estadual Professor Chaves”, era uma escola chique para a época, lá estudavam tanto ricos como pobres, isso também foi o calvário de Ciça. A menina não tinha calçados, ia com o uniforme limpo que brilhava, porém, descalça. Logo, virou chacota da turma. A segunda decepção, ela não pensava que crianças também poderiam ser cruéis.
Ciça frequentou a escola por um ano, saiu-se mal em todas as matérias, se sentia a pior das criaturas. Seu irmão Valmir que era seu único e melhor amigo, era mais inventivo e ousado, a vida dura o tinha tornado um mini adulto. Ele achou um pé de botinas, e no outro pé ele enfaixava com tiras de pano e mancava, fingindo estar machucado e assim rompeu o pré-primário. Ciça não, passou a se esconder no mato até a aula acabar, mas não era de todo perdido, estudava nos livros, neste ano, apesar dos parcos resultados, aprendeu a ler corretamente, fazia contas mais ou menos, mas adorava, como ela adorava o livro de histórias. Lia avidamente e com isso tomou gosto pela escrita, o que se tornou seu refúgio. Um dia desses de esconderijo, a menina se encontrava debaixo de uma árvore perto de uma cerca de arame, e chovia muito, caiu um raio que arrebentou a cerca, Ciça ficou intacta, se instalou nela uma esperança que ela seria um ser especial, isto passou a movê-la.
O tempo passou, sua mãe nunca descobriu que ela não terminou os estudos, mesmo porque, não havia tempo para estes pormenores, a escola nunca a procurou, e com isso Ciça fez 10 anos. Tornou-se uma linda garota, de cabelos muito negros e longos, dignos de elogios de quem os visse. Ela não se dava conta disso. Mudou-se com a família para o estado de Goiás, onde a pobreza deu uma arrefecida, mas a fúria de Maria não. Nesta época, Maria teve mais dois filhos, mas Maria tinha que trabalhar, agora ganhando um pouco mais. Os cuidados com os irmãos eram por conta de Ciça, a menina lavava, passava, cozinhava e cuidava dos irmãozinhos, não havia tempo para estudos, a noite quando o pai aparecia, ele lhe dava algumas lições. Quando Maria chegava checava todo o serviço realizado, caso houvesse alguma coisa fora do lugar, ou mal feito ao seu olhar, o lindo cabelo de Ciça era usado como cordas enlaçando a mão de Maria que neste movimento arremessava a cabeça de Ciça nas paredes. Uma nova modalidade de violência se instalou.
A vida seguia, nesta época além de escrever Ciça adora cantar, e o fazia muito bem, cantava o dia todo naquela lida infernal que a deixava exausta. Um dia sua irmã ao chegar do trabalho, deparou-se com Ciça com os cabelos desgrenhados, perguntou o que houve, ele já sabia, mas queria saber dela. Ciça relatou e ela incontinente pegou Ciça pela mão e levou-a em um salão, sua irmã também tinha os cabelos longos e lindos. Sentaram as duas e ela disse: corte nossos cabelos curtinhos, e assim foi feito. Foi a maior prova de amor que alguém já havia dado a ela. Nunca mais a menina esqueceu, como também, nunca mais ela deixou o cabelo crescer, nunca mais conseguiu, foi como se quisesse cristalizar aquele momento de entrega genuína da irmã, bem como preservar dentro de si aquele sentimento de que alguém de verdade a amava.

Imagem de OpenClipart-Vectors por Pixabay
Ciça sempre pôde contar com sua irmã doravante, isso a fazia mais feliz, lhe dava um mínimo de segurança. A menina voltou a estudar, mas sempre fazia supletivos, cursos rápidos e sem embasamentos, mas aprendi muito, era uma devoradora de livros, ganhou prêmios de melhor redação, foi pro jornal e tudo; sempre passava nos testes de emprego, era dedicada em tudo que fazia, tornou-se uma adolescente sem problemas, educada e obediente. Porém com ela se arrastou pelo resto da vida, um sentimento enorme de baixa autoestima. Começou a trabalhar fora aos 12 anos de idade, todos em casa tinham que trabalhar, a vida já não era tão difícil, tinha comida na mesa. Maria era fria, porém, suas agressões haviam diminuído bastante, era quase uma mãe nesta época. Ciça se tornou especial? Não, não se tornou, o raio não fez efeito, mas se tornou um ser humano que não replicou a violência e está quase se formando aos 66 anos, acho que isso a torna quase normal, o que já é lucro para ela.
Referência
LONGO, S. Cristiano. (2005). ÉTICA DISCIPLINAR E PUNIÇÕES CORPORAIS NA INFÂNCIA. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/QxyYj3c7DdyV7WxxZMdsfYN/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 20/02/2023

Entre todas as escolhas, prefiro ser feliz
Recentemente fui indagada por uma conhecida sobre o que eu estava esperando para o futuro, muitos me apresentaram padrões e metas como condições de suas realizações. Percebi naquele momento que estava muito distante da realidade dos meus colegas.
Disseram-me que precisava escolher o que eu queria fazer, que eu deveria sacrificar boa parte da minha vida em prol do meu sucesso profissional. Disseram-me ainda que eu deveria escolher muito bem a pessoa que seria minha parceira, de modo que escolhesse alguém com riquezas que pudessem me sustentar.

Em boa parte do tempo não entendia a obsessão das pessoas em querer controlar minhas escolhas, me sentia diante de um cerco de opiniões alheias que ansiavam ditar as regras do meu comportamento. Muitas das vezes a pressão vinha de casa, meus pais me dando sugestões autoritárias e cada uma mais infeliz que a outra.
Em uma epifania percebi que seguiria um caminho triste e sem engajamento caso seguisse os desígnios de terceiros e, caso algumas de suas “ideias” dessem errado, somente eu arcaria com as consequências dos erros experimentados. Pus um ponto final em tudo, decidi que eu gostaria mesmo era ser feliz, feliz amorosamente, profissionalmente.
Por isso, busquei encontrar um verdadeiro amor, que estive disposto em se tornar um único ser comigo, busquei ainda trabalhar com aquilo que tinha como meu hobbie preferido, assim, além de fazer algo prazeroso pude receber por isso. A vida não precisa ser arduamente negativa para alcançar objetivos que sequer pretendem ser alcançados, podemos escolher a felicidade, mesmo que esta não esteja aparente no cotidiano de nossas vidas.

Além do que se vê…
Sou feita de sonhos
De todos os chãos que meus pés pisaram
De paisagens que meus olhos contemplaram
De medos que ignorei ao entrar em um avião – pois no fim, vale à pena
Dos sabores que minha boca provou
Sou feita de recordações e verões
Águas geladas, mas tão azuis que me aventurei
Sou feita de idiomas, palavras e canções
De abraços que curam e despedidas que doem
De portas que se abrem, de janelas que convidam o sol a iluminar – trazendo esperança
De pessoas que deixaram memórias, marcas e aprendizados
E daquelas que ainda estão aqui
Sou feita de dúvidas, respostas, mapas, fotografias
Sou tudo isso que vivi, que vi, que toquei
Daquilo que ainda vem e que me causa certa ansiedade
De planos que adormecem em um velho caderno
E que me obrigam a tentar conduzir meu destino
Sou feita daquilo que se concretiza
E que faz o coração bater mais forte do que sequer imaginei
Posso até viajar mentalmente, visualizando o meu futuro
Mas viver de fato é um risco diário que me proporciono – livremente
Deixo apenas ser e acontecer – intensamente
Deixo a vida fluir, no seu ritmo e acompanho a dança
Erro o passo, o tom, troco a trilha sonora e coleciono mudanças e oscilações
Sempre com certeza segurança e calmaria, pois acredito em muitas coisas
Principalmente no que sou, no que um dia fui e no que me tornarei
E em tudo o que me constitui – que vai além do que os olhos podem enxergar
Sei que chegarei no lugar que pertenço, que encontrarei o meu propósito
E estarei com quem devo estar

A ida ao céu de Dona Terezinha
Especificamente no ano de 1954, morava em uma cidade no interior do Tocantins uma senhora de meia idade conhecida como Dona Terezinha, entre 60 a 65 anos, que era bastante devota em sua fé e religião. Todos do seu bairro reconheciam que era muito fervorosa nas programações da igreja que frequentava. Ela ia constantemente a uma igreja evangélica, um dos ramos do protestantismo e que contemporaneamente se denominava “crente evangélica”. Depois de ter feito mais uma de seus vários pedidos repetindo o mesmo desejo, que era de conhecer o céu como ele realmente é, em uma visão, naquela manhã, ela passou por uma experiência sobrenatural semelhante concretizando seu desejo.
Dona Terezinha desde muito pequena foi muito devota e fervorosa aos preceitos cristãos, de tal modo que abdicou de muitos prazeres mundanos, profanos e vãos porque segundo ela, era tudo vaidade. Contudo, ao mesmo tempo, no auge da sua terceira idade, acreditava que se morresse e não tivesse de fato céu, inferno, ou alguma realidade após sua morte, viveria com um eterno arrependimento dentro de si.

Dessa forma, começou a pedir várias e várias vezes o mesmo pedido: enxergar o céu como ele, conhecê-lo por dentro para verificar de que sua vida e sacrifícios não foram em vão. Quando ela começa a pensar de que tudo aquilo que viveu e que se abdicou por causa da sua fé, e que se tudo for enganoso, ela sente uma tremenda angústia, uma dor no peito profunda e muita tristeza.
Mas logo converte seus pensamentos imaginando como seria o céu descrito exatamente como está na bíblia sagrada. Dona Terezinha, em mais um dia rotineiro de orações e preces dentro da igreja sozinha por volta da metade da manhã, após terminar, sentiu uma leve tontura e fraqueza em seu corpo. Depois de alguns segundos em pé, ela instantaneamente desmaia e tudo em sua volta se torna um breu. Em seguida, um feixe de luz branca radiante começa a vir em sua direção de forma intensa.
Ela tenta acordar, levantar, se despertar, mas não consegue. Seu corpo fica petrificado, estirado ao chão, e enfim começa a receber a visão de que tanto esperava e pedia. Um anjo robusto, jovem, e alto, com cabelos encaracolados e pretos, e com um par de asas enorme, surge diante dela e estende a mão. Em seguida, pergunta se ela realmente quer ver o céu como ele é. Ela disse que sim com a cabeça pois fica perplexa com tanta beleza, com o que está acontecendo em sua volta e com aquela realidade paralela.
O anjo pede para o acompanhar e ela segue rente atrás dele. Quanto mais eles se aproximam de uma saída estreita, mais a luz se intensifica, mas em nenhum momento chega a incomodar sua visão, e ela se surpreende com isso. Em seguida, eles adentram em um lugar vasto, verdejante, com pássaros, rios com águas cristalinas, animais de todas as espécies e tamanhos, árvores de todos os tipos. Uma rica fauna e flora em seu perfeito estado natural como nunca tinha visto antes.
Em seguida, fica perplexa e maravilhada com tanta beleza e formosura. Pergunta discretamente ao anjo se aquele lugar tem outras pessoas e ele aponta para um grupo que estava sentado no chão, rindo e cantarolando na mais perfeita harmonia. Depois, o anjo pede para ela o acompanhar e ambos começam a conhecer o céu. Passeia sobre ruas feitas de ouro e marfim, além de ter em vários lugares pedras preciosas que refletiam um brilho intenso e puro. Dona Terezinha ficava cada vez mais encantada e embasbacada por cada detalhe.

Após feita a apresentação, o anjo afirma naturalmente que ela pode se sentir à vontade para se unir ao grupo de pessoas que estavam próximo a um bosque, rindo e cantarolando. Ela inocentemente, sem entender, perguntou se não iria voltar a sua igreja e casa novamente. O anjo respondeu dizendo que para conhecer o céu, você precisa estar morto. E foi exatamente o que ela pediu há muito tempo. Agora não poderia mais voltar. Ela apenas se conforma, e segue em direção ao grupo. Seu coração ficou extremamente aliviado por saber que nada foi em vão. Fim.

O começo do fim da comunidade Liberdade
No ano de 1300 na região que hoje é conhecida como Brasil, existia um grupo de animais que viviam em uma vila chamada Liberdade. Habitavam ali bichos de várias espécies, entre eles mamíferos, pássaros e aves, répteis, anfíbios, uma fauna extensa. Nessa vila, viviam todos em harmonia, mesmo com suas diferenças e limitações. Cada um oferecia o que tinha capacidade de fazer para que todos tivessem suas necessidades supridas. Por exemplo, os pássaros apanhavam peixes para alimentar todos, além de avisar ao grupo se vinha chuvas ou não.

Já a onça pintada, protegia as matas e a vila em que viviam. Além disso, atraia algum predador quando estavam escassos de carne e pelugem na época do inverno e de intensas chuvas. A floresta era linda. Repleta de flores, das mais variadas espécies, de plantas, de insetos e de uma extensa biodiversidade. Os animais viviam em completa harmonia. A organização deles não era de forma hierárquica e sim a mais horizontal possível, pois quando se tinha um problema, reunia o grupo e todos buscavam uma solução. Quando eram situações de grande urgência, o animal buscava o amigo mais próximo possível para ajudá-lo.
Contudo, o animal mais experiente era o que mais tinha peso nas palavras e nas decisões ali na vila, que era o javali conhecido como Jalim. Sua parcimônia em explicar a solução e frieza para calcular os próximos passos do que a vila faria em alguma situação geralmente se sobressaia sobre as opiniões dos restantes. Mostrava-se um ótimo conciliador, tentando equilibrar as partes mais extremas e ao mesmo tempo, decidir por todos. Quando se tinha muito alvoroço para decidir algum impasse, Jalim esperava todos falarem e rebatia com muita proeza as opiniões que eram as mais distorcidas.
A rotina da vila era de coleta de frutas, folhas e planta e de carne. As refeições eram realizadas duas vezes ao dia, sendo que a comida teria que estrar fresca. Tinha uma escala de coleta de comida para cada dia e turno. Depois, existia atividades em grupo, como brincadeiras, músicas e conversas fiadas ao redor de uma fogueira. Em seguida iriam dormir e posteriormente, se mudariam de lugar para um com mais recursos.
Em um certo dia, logo pela manhã antes do sol raiar na vila, ainda com um leve aspecto de neblina, houve-se próximo a vila Liberdade disparos com um barulho ensurdecedor. Foram vários seguidos sucessivamente, sem pausa. Quando parou, todos já se encontravam alarmados no meio da vila. O Jalim, que se encontrava em um sono profundo, não tinha se atentado para o barulho e a onça pintada foi o chamar. Quando soube da situação, pediu para que os pássaros fossem sobrevoar a região que se procedia o incômodo.
Araras e tucanos foram em conjunto fazer esta tarefa. Quando sobrevoaram e enxergaram a cena, levaram um tremendo susto e suas penas estremeceram.

– Oh! Minha nossa! O que será isso? O que são esses homens com esses tocos finos pretos? Interroga de moto aflito uma das araras.
– Eu não sei! Mas coisa boa não parece ser. Exclama tristemente um tucano.
Voltam desesperadamente para a vila e anunciam a tragédia iminente a todos de modo ofegante:
– Bicharada, o que vimos ali nunca tínhamos visto antes! São vários homens, vestidos dos pés a cabeça, e com vários tocos longos pretos que disparam para cima. Estão vindo em nossa direção e por onde passam, destroem a mata! Meu deus o que faremos? Exclamou desesperadamente o tucano, que já entrou em prantos logo em seguida depois de falar.
As araras em seguida confirmaram sua versão:
– Exatamente! São vários e carregam várias coisas nas costas. Parecem estar bem preparados para alguma coisa. Mas e agora?
Jalim ouvindo atentamente, assim como todos do grupo, foi um dos poucos, se não o único, que manteve-se controlado e sereno, mesmo temendo o pior. Jalim sabia que uma hora ou outra, isso iria acontecer e seria inevitável, pois já presenciou o mesmo episódio em sua infância, quando seus pais morreram queimados vindos das florestas da Bolívia. Ele esperou que todos falassem e pediu permissão para falar:
– Pessoal, minha vez. Como as araras e tucanos já afirmaram, eles estão bem equipados e por onde passam, destroem. Seria muito arriscado tentar qualquer proximidade com eles. O que vocês acham que devemos fazer?
Todos falaram simultaneamente, mas em seguida a onça pintada perguntou com sua voz grossa e valente:
– Mas por que será que não podemos tentar com eles uma aproximação assim como os indígenas que vivem aqui? Eles podem nos deixar em paz, se a gente os deixar também. O que acham?
Alguns concordaram com eles, outros ficaram na dúvida de como seriam e outros afirmaram que iriam morrer se chegassem mais perto. O Jalim, ouvindo isso, o interrogou:
– O que te faz ter essa garantia sendo que eles passam pelos lugares e DESROEM tudo ao redor? Você não está assustado com esse barulho? Não entendeu o desespero do que as araras e os tucanos enxergaram? O que vocês acham? Direcionou-se às aves.
– Parece-me que eles não estão nada amigáveis com os indígenas que já estão aqui desde que nos conhecemos por bichos! Falou tristemente o tucano.

Todos ficaram reflexivos por um momento. A comunidade vivia em harmonia com os únicos seres humanos que já entraram em contato, que foram os indígenas. Eles tinham instrumentos que não os ameaçavam, se vestiam camufladamente e não os destruía. Era fato que os humanos que se aproximavam eram ameaçadores para eles. Nenhuma animal ali se sentia a vontade com a chegada deles. Além disso, o barulho estrondoso se aproximava cada vez mais. E foi aí que Jalim lançou a proposta:
– Bicharada, prestem atenção por favor! Estamos em perigo e isto é fato. O que faremos agora? Proponho irmos para o lugar mais distante possível, que tenha água e comida fresca mas principalmente água. Creio que estes que se aproximam irão trazer consigo a destruição.
Todos concordaram e começaram a se retirar em conjunto freneticamente em direção ao sudeste, que era o lugar contrário de onde vinham os disparos. Quando saíram, ouviram gemidos e gritos de desespero de alguns indígenas. Depois, aceleraram mais ainda os passos.
Jalim e toda a vila Liberdade estavam cientes de que estes homens, poderiam futuramente os encontrar e não ser nada harmônico. Aquela convivência entre os animais da vila estava ameaçada e já não se sabia por quanto tempo.

Tudo o que perdemos
0617:03:32, Palmas-To. Eu estava ali parado vendo aquela cena. Os pés dele não tocavam o chão, pelo contrário, balançavam para um lado e para o outro conforme o vento se chocava em seu corpo. A mulher enfiou a chave no portão, girou e abriu; ela se virou de costas com a cabeça baixa; enfiou a chave no portão e trancou. Ela se virou. A sacola do mercado caiu no chão, as laranjas rolaram para longe. Emudecida ela fitou os olhos no corpo de seu marido pendurado por uma corda que dava uma volta em seu pescoço e seguia até a ferragem do telhado onde estava amarrada. Atônita com a cena, ela pegou o seu celular e digitou 190.
– Policia Militar, como posso ajudar?
– O meu marido está pendura por uma corda. – A mulher falou, sem demonstrar nenhuma alteração na voz.
– Qual o seu nome, e onde você se encontra?
– O meu marido está pendurado por uma corda. – Ela repetiu a frase com a voz embargada.
– Senhora, eu preciso que você mantenha a calma e me diga onde você se encontra.
– O meu marido está pendurado por uma corda. – A mulher tornou a repetir a frases aos prantos.
17:32:43, a polícia chegou no local, a mulher estava esperando do lado de fora da casa sentada na calçada com as mãos na cabeça, ela chorava de maneira copiosa.
– Boa tarde, senhora. Podemos entrar? – A mulher apenas apontou em direção ao portão. Os dois PM entraram e viram um homem pendurado por uma corda na entrada da área da frente. Tudo indicava um suicídio. Eles atravessam o quintal de terra até se aproximarem do corpo pendurado. Um dos soldados olhou em volta enquanto o outro entrou na casa. O que entrou logo constatou que as coisas estavam aparentemente em ordem, não havia nada fora do lugar. Olhando de forma mais atenta viu o que parecia ser uma carta em cima da mesa da cozinha, ele se aproximou e pegou um pequeno pedaço de papel onde estava escrito: Meu amor, resolvi partir em outra jornada, as dores em minha alma estavam insuportáveis, sei que isso não é justo com você, mas precisei fazer isso. Lembre-se, que te amarei para todo sempre.
17:35:12, o meu trabalho me permite ver coisas assim todos os dias, as vezes eu fico curioso e fico um tempo no local, esperando para ver o que vai acontecer. Fernando, esse era o nome dele, vivia apenas com a sua esposa Julia; eles se conheceram quando tinham apenas 10 anos em uma brincadeira em frente à casa dele. Ninguém virá ao velório dele, ninguém além de sua amada Julia. Os pais dele não aceitaram o casamento dos dois, mas o amor era tão grande que ele preferiu romper com a sua família e ir embora da cidade onde moravam. Os dois tiveram muitos altos e baixos na vida; houve uma vez em que os dois passaram duas semanas apenas comendo arroz, ovos e farinha, porém, superaram tudo isso. A um ano e meio atrás veio a depressão que jogou Fernando, na lona. A princípio era apenas um sentimento de tristeza que ia e vinha, depois essa tristeza evoluiu para uma angustia que permanecia por dias, e por fim veio a depressão profunda; o brilho do jovem rapaz esvaiu-se como uma fogueira que queima toda a lenha, e as chamas que outrora eram enormes, se tornam apenas cinzas.
Quando Fernando tirou a sua vida, ele não sabia que daqui duas semanas, Julia vai testar positivo para o primeiro filho do casal; vai ser um menino. Julia vai sorrir e chorar; o nome será César, Fernando sempre dizia que daria esse nome em homenagem ao primeiro César, o precursor dos imperadores romanos. Se Fernando tivesse optado por viver, ele teria mais duas filhas com Julia, a agitada Hipólita, e a incansável Diana, ambos os nomes dados em homenagem as maiores guerreiras da história das amazonas. Daqui a exatos seis meses ele deixaria o emprego para focar no seu livro, a qual começou a escrever a quatro meses atrás, infelizmente apenas o primeiro capitulo ficou pronto, o livro não seria um grande sucesso, mas seria um dos maiores orgulhos de Fernando; ele iria ficar todo contente quando alguém no seu Facebook dissesse que amou o seu livro. Fernando seria respeitado em sua comunidade local, pois além de ser uma pessoa carismática, é também alguém que ajuda as pessoas. Era para ele partir com oitenta e dois anos, às 00:43, deitado em sua cama, mas ele decidiu adiantar o processo e interromper um futuro que nunca vai acontecer. Bem, as vezes esse trabalho é melancólico, mas não a mais tempo para lamentar, preciso correr pois Alexandra vai pular do nono andar do seu prédio em São Paulo, daqui a exatos quarenta segundos, e preciso ir dar o meu toque. Tempo. Tempo é a moeda mais valiosa na vida.

A Bela e a Fera: a iniciação do Feminino
Concorre com 2 indicações ao OSCAR:
Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte
A Bela e a Fera é um dos contos mais famosos da humanidade e que ainda causa extrema comoção nas pessoas. A versão do filme de 2017 é uma adaptação do conto que originalmente foi escrito pela escritora francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (La Rochelle, 1695 – Paris, 9/12/1755). Mas a versão mais conhecida foi escrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (Rouen, 26/4/1711 – Chavanod, 8/9/1780), escritora, também francesa, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Com o tempo, e sucesso do conto, surgiram outras versões, incluindo a do também francês Charles Perrault.
Diversas adaptações desse conto para a televisão e cinema foram feitas, apontando um interesse emocional coletivo sobre o tema. A atual adaptação vem causando uma comoção bastante intensa, principalmente em adultos, que estão cada vez mais retomando o interesse pelos contos de fadas. Com isso gostaria de explorar nesse texto o simbolismo do filme derivado do conto A Bela e a Fera, de forma a buscar uma compreensão sobre essa comoção coletiva e com isso tentar trazer um pouco de consciência a respeito do que as necessidades emergentes que dinâmica psíquica coletiva tem ansiado.
Não pretendo esgotar o assunto, uma vez que um conto de fadas pode ser interpretado de diversas formas e visto de inúmeras maneiras. Essa é apenas a minha visão sobre o tema e como compreendo de forma subjetiva e pessoal o tema. Para iniciar a discussão é importante pontuar o que os contos de fadas representam na visão analítica. Conforme Von Franz (2005):
Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva.
Com essa premissa pode-se observar que os contos de fadas fornecem um rico material para a compreensão da dinâmica da psique coletiva. Por esse motivo quando um conto de fadas desperta tanta atenção e comoção como foi o caso de A Bela e a Fera, podemos retirar desse material alguma compreensão para uma tentativa inicial de entender a problemática que a psique coletiva apresenta e o possível desenvolvimento disso. O filme traz algumas alterações em relação ao original, contudo, a mensagem original permanece a mesma.
A estrutura do conto não se modifica. A história se inicia então com um príncipe sendo amaldiçoado por uma feiticeira. Disfarçada de mendiga, a feiticeira entra em uma festa dada pelo mimado príncipe e lhe oferece uma rosa feia. Ao desprezar a rosa, ele é amaldiçoado e transformado em Fera. Se ele não amar nenhuma jovem e não for correspondido antes da última pétala cair, ele será uma fera eternamente. No conto original há um problema de maldição com o príncipe também.
Na versão original de Villeneuve, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia. Quando ele recusou, a fada o transforma em fera. O original revela também que Bela não é realmente uma filha do mercador, mas descendente de um rei. A mesma fada que tentou seduzir o príncipe tenta matar Bela para casar com seu pai, e Bela toma o lugar da filha morta do mercador para se proteger. O príncipe então nas duas versões sofre a maldição por rejeitar uma feiticeira.
No original há uma alusão a um incesto simbólico, visto que a rainha e a fada malvada são polos opostos da imagem arquetípica da mãe. No filme o príncipe perdeu a mãe, foi criado por um pai cruel e por isso se tornou um homem narcisista e infantil e que precisa ser redimido. Ambas versões mostram um conflito materno do masculino. No original há a relutância em relação ao incesto. A mãe boa (rainha) é substituída pela mãe terrível que quer devorar a masculinidade do príncipe e assim ele precisa lutar contra esse incesto para sobreviver.
Neumann (1995) afirma que o desenvolvimento da consciência tanto individual quanto coletiva passam pelas fases urobórica, matriarcal e patriarcal. E que a sociedade contemporânea se encontra na fase patriarcal de desenvolvimento. Além disso, afirma que a consciência do ego tem um caráter masculino em ambos os sexos e o inconsciente tem caráter feminino. Com isso a relação consciência – dia – luz, e inconsciente – escuridão – noite se mantêm da mesma forma independente do sexo, sendo a consciência masculina mesmo nas mulheres e o inconsciente feminino.
A consciência patriarcal, então, luta para se separar do inconsciente e assim ficar livre de suas influências. Contudo, colocar o patriarcado e a separação do ego em relação à consciência em primazia e em um estado mais elevado de consciência traz problemas também, como mostra o conto A Bela e a Fera. Ao desprezar o feminino e matriarcal, nos deixaram amaldiçoados. Se por um lado o patriarcado foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, por outro o aspecto patriarcal da consciência é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.
Ao buscar a perfeição a consciência patriarcal exclui os defeitos e o mal, e com isso exclui a totalidade. E todo aspecto reprimido da consciência se volta novamente se vingando dessa repressão. Vemos isso nas neuroses e doenças psicossomáticas. Uma pessoa neurótica pode ser comparada a uma pessoa amaldiçoada. Pois alguém neurótico pode ser impelida a agir de forma destrutiva consigo próprio ou com os outros. Von Franz (2010) aponta para o tema da vingança feminina no conto A Bela Adormecida.
Nesse conto a fada esquecida e desprezada se vinga na princesa fazendo com que ela durma 100 anos. Isso simboliza que o feminino dormiu em nossa sociedade e com isso nenhuma vida acontece, só há a esterilidade. A fada malvada, ou feiticeira no conto e no mito transforma, nesse caso, o príncipe em animal. Isso significa que a consciência desceu ao nível animal e primitivo. O masculino (tendo os homens como representantes), sucumbe aos aspectos animalescos e instintivos apenas em relação ao feminino.
A mãe marca os aspectos “femininos” do filho, bem como a imagem que ele cria da mulher, suas aspirações, exigências e temores face às mulheres (Von Franz, 2010). Com a ausência da mãe e dos aspectos maternos, ele se torna inseguro e temeroso em relação ao feminino e a anima. No filme, o fato da rainha ter morrido mostra que não há o feminino no sistema regente da consciência. Os valores femininos foram reprimidos e negados, uma vez que a rainha seria o elemento feminino correspondente ao rei na consciência coletiva.
A ausência da rainha significa que o aspecto coletivo do feminino foi renegado e reprimido e, consequentemente, o rei se torna estéril e despreza o feminino. Algo que ele passa para o filho no filme. Pode-se pressupor, então, que a história trata da problemática de uma atitude coletiva dominante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com o irracional, o feminino — foi perdido.
O filme então traz um tema muito atual, que é a desvalorização dos aspectos femininos na consciência coletiva. Hoje testemunhamos o anseio pelo resgate da essência do feminino perdida, pois essa unilateralidade fez mal tanto as mulheres – que se sentem perdidas em relação ao que é ser feminina – quanto ao homem que desconhece o feminino em si, desvalorizando esse aspecto interno na depreciação da mulher. O homem quando não desenvolve sua anima (o aspecto feminino da sua psique) se torna um narcisista, assim como o príncipe no filme.
O interessante em A Bela e a Fera é que quem redime o príncipe é a mulher, algo oposto ao que estamos acostumados. Temos imprimido que o heroísmo é manifestado pelo herói solar. Ou seja, aquele que luta contra o mal para salvar a princesa. Portanto, Bela é a heroína do conto e do filme. Ela é quem redime a situação deficiente da consciência, sem, contudo, desembainhar nenhuma espada. Por isso é importante analisarmos a figura de Bela, tanto o filme quanto o conto original descrevem a heroína como humilde e com gosto pela leitura.
Já o filme acrescenta o conflito vivido por uma mulher inteligente e que quer seguir seu coração ao invés dos ditames da sociedade, que lhe diz que ler é inapropriado a ela. Para os aldeões a mulher serve apenas para cuidar do marido e ter filhos. Esse conflito foi relatado a primeira vez na animação de 1991. De fato, as mulheres durante séculos não puderam expressar seus dons criativos advindos do contato com o animus criativo reprimidos, sendo relegadas ao papel de mãe e esposa.
Qualquer manifestação intelectual ou criativa era reprimida e combatida. Contudo hoje a mulher conseguiu cada vez mais alcançar o sucesso no mundo externo e patriarcal. Tornamo-nos “filhas do pai”, ou seja, estamos cada vez mais bem adaptadas a uma sociedade com orientação masculina, porém à custa da repressão de nossos instintos femininos. Essa “filha do pai” aparece na figura de Bela. A filha única e amada de seu pai. O que aponta, de forma individual, para uma mulher com complexo paterno positivo, com a idealização do pai. Como no caso da menina, o pai é o diferente, por isso a tendência à idealização.
No conto e no livro o pai de Bela acaba no castelo da Fera, que o mantém em cativeiro por ter roubado uma rosa de seu jardim. Bela então se torna prisioneira no lugar do pai. A rosa é um aspecto que representa o arquétipo materno, no sentido de flor como recipiente (Jung, 2008). Símbolo associado à deusa do amor e sexualidade Afrodite, e indica uma busca de amor erótico e transcendental, bem como a união com seu oposto. Ela deseja inconscientemente quebrar esse pacto de união amorosa e incestuosa com o pai e experimentar o amor por outro homem diferente. Além disso, a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Isso significa que o amor é um grande aliado no processo de individuação, pois é esse desejo de união que leva a coniunctio, que na alquimia representa a meta da individuação.
Ao pedir a rosa ao pai observa-se um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e seu desejo de se livrar de conceitos que já não lhe trazem significado, está simbolizada na encomenda dessa rosa. O que ela não sabe é que, ao pedir a rosa, está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, porém em uma atitude irreal.
Ela idealiza o amor e assim não enxerga o homem real nem o relacionamento. Isso significa que Bela deseja sair da experiência do apego à lei masculina – representada no pai -, que transforma um homem em Fera, para o amor carnal através do seu lado feminino, do seu desejo e sexualidade. Para deixar o pai precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. Para isso ela deve abrir mão dos aspectos paternais, como seu apego a intelectualidade.
Uma mulher presa a um complexo paterno tende a ficar bastante racionalizar e voltada ao mundo exterior com suas exigências. Ela se afasta de seus desejos, de sua essência feminina e sua adaptação ao mundo interno, mágico e recheado de emoções e intuições. Nos contos de fadas há um tema comum onde o pai que entrega ou vende a filha a um monstro ou demônio, como por exemplo, no mito de Eros e Psique, ou no conto A Donzela sem mãos. Isso mostra que o animus da mulher se desenvolve a partir da relação com o pai pessoal.
O demônio, monstro ou fera nos contos de fadas simboliza o animus negativo que ainda está contaminado pela imagem do pai. Além disso, o fato da heroína ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade dela, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus. Bela então vai sacrificar justamente esse “monstro” da intelectualidade unilateral, senão ela pode se torna igual ao seu pai: alguém muito inteligente, mas que não consegue progredir e se tornou pobre, sou seja, alguém com uma visão empobrecida e unilateral da vida.
A bruxa (ou feiticeira) que amaldiçoou o príncipe simboliza o feminino rejeitado na consciência coletiva. E nos mitos e contos de fadas vemos que o feminino não aceita bem a rejeição. O feminino quer ser aceito, incluso e adorado e quando isso não ocorre seu aspecto sombrio vem à tona sob a forma de vingança. Exemplos disso: Hera em sua cólera devido as “escapadas” de Zeus se vingava das amantes e filhos bastardos; Demeter quando teve sua filha raptada por Hades se vingou trazendo a esterilidade a terra.
Então, do ponto de vista coletivo, o desenvolvimento dos aspectos patriarcais da psique coletiva como, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico e da racionalidade (representado aqui pelo pai de Bela) que tanto nos auxiliou agora necessita diminuir, pois com ele também veio a exploração indevida da natureza o que faz um grande estrago na psique coletiva. E é isso que a bruxa no conto vem reclamar, que a consciência olhe para novamente para o feminino e a natureza que clama por atenção.
É comum nos contos de fadas que a heroína se submeta a uma situação, suportando o sofrimento com paciência e aguardando o tempo certo para agir. Isso ocorre, pois ela não deve agir da mesma forma que seu animus e os aspectos femininos da sua psique que foram reprimidos, como o seu desejo e sua irracionalidade, devem ser agora resgatados. Em nossa sociedade que privilegia a ação, a extroversão e o sempre fazer algo, ter paciência e aprender a suportar e esperar algo é um feito realmente heroico.
Bela mesmo a contragosto passa a cuidar da Fera e da casa e ao conviver com a Fera, ela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A redenção da Fera então é feita por meio do amor. De príncipe mimado, que não suportava ver a realidade da vida com seus aspectos mais feios (a feiura da mendiga simboliza a morte e a destruição presentes na natureza), ele se descobre um ser sensível e capaz de amar. Bela então sente saudades do pai e a Fera, por amor, permite que ela regresse para salva-lo.
E ao voltar, diferentemente do conto, ela enfrenta não as irmãs invejosas, mas um pretendente, Gaston, que não aceita ser trocado. O que é bastante interessante. O voltar para a casa original significa uma regressão da libido ao inconsciente original. E no filme não há um feminino sombrio, mas um masculino. Gaston representa as opiniões de um animus não diferenciado. É dele a frase na animação: “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias… a pensar”.
Individualmente então, ele representa um caráter regressivo da mulher, uma opinião infundada e obsessiva. Ele não olha para os desejos dela, ele não a apoia em seus sonhos. Ela é apenas um objeto. Em termos coletivos, Gaston representa a opinião coletiva da época. Até hoje vemos que mulheres muito inteligentes são tachadas com algum estereótipo e ainda hoje beleza e inteligência não são atributos que podem andar juntos em uma mulher.
E nesse confronto ela descobre que ama a Fera de verdade, pois com ele Bela se sente incluída, vista e respeitada em seus desejos. Tudo o que o feminino busca. A Fera e Gaston se enfrentam e ambos morrem. Dois polos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino. Mas quem morre é o aspecto animal, hostil e assustador da Fera e ele volta a ser um príncipe. Agora não mais mimado, mas um homem amadurecido que aceitou e integrou a morte e a feiura em sua vida.
Agora é possível a união com um animus positivo e o encontro com a plenitude. Esse masculino se liberta da maldição e o equilíbrio masculino e feminino é estabelecido na consciência. E Bela pode exercer sua função intelectual e o uso da sua imaginação sem cair na armadilha de se tornar fria e calculista. Agora ela se torna apta a atender as demandas externas e internas sem perder o contato com sua essência mais profunda. Com o animus positivo integrado, ela pode ser firme sem perder a feminilidade e a doçura.
FICHA TÉCNICA:
A BELA E A FERA
Diretor: Bill Condon
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Audra McDonald, Emma Thompson
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 10
Referências:
EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.
NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.
O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.
Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.