Psicóloga fala sobre o processo de avaliação psicológica no pré-cirúrgico

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En(Cena) entrevista a psicóloga Geovanna Gomes

Geovanna Gomes, 24 anos, egressa do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, atualmente atuante na área da Avaliação Psicológica e Neuropsicológica e pós-graduanda em Neuropsicologia.

Nessa entrevista, Geovanna esclareceu dúvidas sobre o processo de avaliação dos pacientes pré-cirúrgicos, a partir de sua vasta experiência nesta área, uma paixão que começou enquanto ainda estava na graduação.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena – A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) divulgou dados sobre cirurgia no Brasil. Em 2019 foram realizados 68.530 procedimentos, – 7% a mais do que em 2018 quando foram feitas 63.969 cirurgias. Tendo em vista a complexidade que é a decisão de realizar a cirurgia bariátrica a aplicação de testes psicológicos serve para complementar todo o levantamento de informações realizado na entrevista clínica e é de extrema importância, pois confere uma dimensão objetiva em relação ao estado psicológico do candidato. Sendo assim, como você define o processo de avaliação psicológica? 

Geovanna – A avaliação psicológica é um processo feito apenas por psicólogos e abrange alguns instrumentos, métodos e técnicas na sua realização. Primeiramente tem a anamnese, sempre inicia uma avaliação psicológica fazendo a anamnese no candidato, geralmente o número de sessões de anamnese varia de acordo com a complexidade de cada caso, então a gente faz um levantamento sobre a vida do paciente sobre os motivos dele, o caminhar do paciente até o momento da decisão de realizar o processo cirúrgico. É geralmente uma entrevista semiestruturada que dá ao paciente uma maior liberdade para poder falar sobre seus sentimentos, motivos, etc. Depois de passar por esse processo de anamnese que já é um trabalho de vínculo com o paciente, ele precisa confiar na gente, ter uma boa ligação entre profissional e paciente, para que se sinta confortável durante todo o restante da avaliação, e minimizar ao máximo os sintomas ansiogênicos. Passamos então para o processo de aplicação de instrumentos, onde tem algumas escolhas não padronizadas (atividades que não tem um estudo científico estatístico e são utilizadas mesmo assim porque nos traz uma análise qualitativa) então quando é feita uma avaliação pensa-se tanto na parte quantitativa quanto na parte qualitativa onde entra a anamnese, observação clínica e essas outras atividades e instrumentos. Isso nos dá uma visão e uma amplitude, melhora a nossa análise dentro da avaliação. Eu costumo dizer que a avaliação tem esse tripé que é o que o paciente me traz, o que a família do paciente traz pois é muito importante ter também esse contato com a família do paciente, o que eu observo do paciente e o que os testes vão me dizer, e a observação em relação ao paciente inclui: postura, o que está sendo observado na aplicação dos testes. como o paciente está respondendo aos testes como ele se comporta na anamnese, como que é esse relacionamento familiar (pai, mãe, irmãos, esposo) porque é importante essa rede de apoio para o paciente pós cirurgia. Após todo esse processo descrito, é pedido um prazo para o paciente para que o documento seja produzido e tenha os resultados estruturados, quando o laudo psicológico é finalizado acontece uma explicação dos resultados para o paciente, onde será verificado se ele está apto ou não, geralmente eu não costumo escrever diretamente essa questão de aptidão pois acredito que tenha um peso muito grande, e o trabalho sempre é realizado em conjunto com médicos e outras profissionais, o que exige um parecer deles também. Por fim, sempre buscamos orientar o paciente que apresentou algum sintoma que discorde do necessário para a realização da cirurgia, sempre orientamos a busca do acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico. Assim, posso dizer que o mais importante dessa avaliação nem sempre é o processo em si, mas sim o momento da devolutiva onde é realizada toda a orientação, ajudando o paciente que ainda não mostrar coragem suficiente ou alguma dúvida, então sempre focamos muito no processo de orientação e na devolutiva do laudo.

Fonte: encurtador.com.br/jvzFK

(En)Cena – Pensando na gama de sentimentos e emoções que o paciente provavelmente estará sentindo em todo o processo de preparação, quais são os aspectos principais e mais importantes a serem avaliados nos testes e nas observações comportamentais?

Geovanna – Hoje em dia nós temos vários testes que nos possibilitam ter um norte sobre aspectos da personalidade, emocionais, comportamentais e cognitivos também de modo geral, e isso é muito bom pensando que essas ações fazem parte da nossa cognição. Eu acho muito importante sempre iniciar com um teste de inteligência e raciocínio para saber se o paciente está lúcido e consciente de uma forma cognitiva sobre a decisão que está tomando. Outra questão a ser avaliada é a questão da percepção, ou seja, se o paciente não tem nenhuma alteração relacionada a percepção visual, observar se ele tem alguma alteração de distorção da realidade, se está consciente do que está passando e se percebe o que está vivendo. Já no quesito de personalidade é possível avaliar tendência depressiva, transtornos ansiosos, mudança de humor, baixa autoestima, baixa motivação, desesperança. Esses aspectos são muito importantes, porque às vezes o paciente está empolgado naquele momento, mas é uma pessoa facilmente afetada por frustrações, isso já se torna um indicativo, então é necessário que o paciente esteja preparado para o pós-cirúrgico. Os sintomas de obsessão e compulsão também devem ser avaliados para entender se há uma compulsão alimentar ou até às vezes pensamentos obsessivos ou algum tipo de delírio.

(En)CenaPor ser um processo delicado e irreversível precisa ser muito bem avaliado e detalhado, em média, quantas sessões são necessárias para concluir a avaliação?

Geovanna – Hoje o processo avaliativo precisa levar em consideração tudo o que já foi pontuado anteriormente, geralmente são necessárias de duas a três sessões de anamnese para poder entrevistar o paciente, a família e/ou rede de apoio e as pessoas mais próximas. Depois os testes que variam em média de cinco a seis sessões, e também a sessão de entrega do laudo que leva de duas a três sessões. Tudo depende muito do quanto o paciente vai querer falar, às vezes ele pode chorar, ficar emocionado, então o acolhimento também deve ser realizado. Sendo assim, no total temos uma média de oito a doze sessões, e o número varia de paciente para paciente.

Fonte: encurtador.com.br/aovR7

(En)CenaSabe-se que é necessária uma equipe interdisciplinar para a preparação do paciente, nesse sentido, qual a importância de um profissional da psicologia envolvido nesse acompanhamento até o momento da cirurgia?

Geovanna – Todo profissional é importante nesse processo, mas eu acredito que o profissional da psicologia tem um peso em cima disso porque o paciente é sempre muito carregado de traumas e problemas emocionais, ansiedade ou depressão e também julgamentos, isso tudo acaba influenciando muito no pós-cirúrgico. Assim o profissional da psicologia vem justamente para isso, trabalhar autoconfiança, segurança, auto imagem, auto cuidado, tudo isso são ferramentas importantes e a gente busca trabalhar justamente isso fazendo com que o paciente tenha estratégias e mecanismos para enfrentar as próprias batalhas, tendo força e resiliência para isso. Não é possível mostrar o exato caminho para o paciente, mas podemos dar as ferramentas para que o paciente escolha, porque no final das contas independente por quais profissionais ele passe a responsabilidade e a decisão final sempre vai ser do paciente e a gente está justamente para orientá-lo nesse processo. O acompanhamento precisa ser feito tanto antes e precisa continuar sendo feito após a cirurgia porque o acompanhamento no processo pré-cirúrgico e a aptidão apontada pelos testes não anula o fato de que algo possa acontecer no processo pós-cirúrgico, muitas vezes ele pode se frustrar ou ter uma quebra de expectativa, então mesmo que todos os profissionais acompanhem esse paciente antes da cirurgia é importante que ele continue fazendo o acompanhamento no pós-cirúrgico, nós iremos ajudá-lo a enfrentar seus traumas e julgamentos sofridos ou a sensação de insuficiência  e até mesmo a baixa autoestima, não podemos deixar de trabalhar com o paciente essa criatividade relacionada ao que fazer e como reagir caso algo acontecesse, ou caso aconteça algo que não seja como esperado sempre trazendo a realidade da situação pois será um processo complicado no pós cirúrgico e ele precisa ter em mentes essas diversas situações e até mesmo lidar com o fato de que o emagrecimento não acontece de forma tão rápida mas sempre ressaltando que  existem formas de passar por isso de forma saudável e com acompanhamento adequado.

(En)CenaVocê já experienciou, após o acompanhamento pré cirúrgico, algum caso do paciente se arrepender de ter realizado a cirurgia? Se sim, quais foram as motivações para essa decisão?

Geovanna – Eu nunca presenciei um paciente que tenha se arrependido de ter realizado a cirurgia, o que eu já presenciei foi o caso de uma paciente que fez o  acompanhamento psicológico antes da cirurgia, teve um processo pós-cirúrgico muito bom e de boa recuperação e estava indo muito bem, porém aconteceu a situação onde ela conseguiu realizar a cirurgia e ter abandonado todos os tratamentos, faltando a psicoterapia e deixando de fazer o acompanhamento com nutricionista e psiquiatra, deixou de usar as medicações por conta própria e isso trouxe um descontrole emocional para ela, voltou a comer de forma compulsiva e então começou a voltar com o quadro de aumento de peso  até que ela conseguiu voltar do tratamento então assim houve essa oscilação mas porque a paciente ela negligenciou o  tratamento pós-cirúrgico.

Fonte: encurtador.com.br/koCSY

(En)CenaAo longo desses anos no processo de avaliação psicológica, já ocorreu de algum paciente fazer todo o processo avaliativo e optar por não realizar a cirurgia pois percebeu que não era aquilo que realmente queria?

Geovanna – Nunca aconteceu nas minhas experiências de o paciente ser apto e depois mudar a opinião para a cirurgia bariátrica passando processo de avaliação psicológica.

(En)CenaQuais são os critérios avaliativos que deixariam o paciente inapto para a realização da cirurgia? 

Geovanna – Todos os critérios avaliativos são importantes, porém quando se trata de inaptidão é importante avaliar quesitos como inteligência abaixo da média, é necessário que haja uma investigação pois ocorre o questionamento sobre o fato de que o paciente pode estar tomando essa decisão com responsabilidade e se sabe tomar as próprias decisões. A questão emocional também é muito importante, flexibilidade cognitiva onde o paciente tem dificuldade a se adaptar a novas situações tendo assim um comportamento muito rígido, e todas as sintomatologias relacionadas a ansiedade, imediatismo, depressão e também compulsão, tudo deve ser bem avaliado e investigado.

(En)CenaVocê acredita que os padrões de beleza e a pressão estética que existe em nossa sociedade são os principais fatores que levam a maioria dos pacientes a buscar pelo procedimento? Caso contrário, quais outros fatores têm uma forte influência nessa decisão? 

Geovanna – De uma forma geral é possível dizer que sim, e na maioria das vezes os julgamentos acabam acontecendo por pessoas muito próximas, e sempre é necessário investigar se o paciente tem consciência de que a escolha pelo processo cirúrgico tem relação a pressão estética e padrões de beleza ou não. Existem pacientes que reconhecem e expõe o fato de que a busca pelo processo cirúrgico realmente é em função de padrões estéticos, mas o fator de saúde é muito importante e várias vezes o paciente já está muito debilitado e com diversas limitações, o que acaba influenciado, mas também se voltando para a questão estética.

 

REFERÊNCIA

SBCBM. SBCBM divulga números e pede participação popular para cobertura da cirurgia metabólica pelos planos de saúde. São Paulo, 2020. Disponível em: https://www.sbcbm.org.br/sbcbm-divulga-numeros-e-pede-participacao-popular-para-cobertura-da-cirurgia-metabolica-pelos-planos-de-saude/. Acesso em: 07 out 2021.

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Os percursos da Democracia: reflexão, crítica e conflito

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A democracia é, atualmente, uma forma de governo que abrange todo o Ocidente. De origem grega, o termo designa o poder que é exercido pelo povo (demos: povo; kratía: poder). O presente trabalho aborda, sobretudo, a perspectiva de Goldhill (2007), para compreender o contexto de desenvolvimento desse sistema, bem como contrastá-lo com a democracia moderna. O contexto social da Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, no século VI a.C., contribuiu para a adoção de diversas medidas políticas, estas culminando em uma forma de governo democrático.

As sociedades ocidentais afirmam constantemente a relevância de uma política fundamentada na democracia. Esta é compreendida como a melhor estrutura de governo, desprezando-se aquelas que lhe são opostas, tais quais os regimes ditatoriais. Mais que mero exercício popular do poder, a democracia implica em reflexão, crítica e conflito [1]. Desde o seu surgimento “A discussão era indispensável […]. O povo ateniense queria que cada questão lhe fosse apresentada sob todos os seus diferentes aspectos e que lhe mostrassem claramente os prós e os contras” [2].

Fonte: http://zip.net/bptHNj

Considerando seu emprego usual nos discursos políticos de grande parte das sociedades, convém voltar-se aos primórdios da democracia para além da origem conceitual. A exploração histórica que remete a Atenas de 2.500 anos atrás se justifica ao passo que “Os democratas precisam questionar que forma deve tomar seu governo, e como ele se compara com outras formas de autoridade, hoje e no passado” [1]. O panorama fornecido pela Grécia Antiga permite que se compreenda os rumos que a democracia tomou no decorrer dos séculos, bem como suas possibilidades e limitações.

Primórdios da democracia

Atenas era governada por uma classe privilegiada de aristocratas, os quais detinham o poder político e econômico. Antes de a democracia ser implementada de fato, Goldhill destaca dois nomes que a influenciaram positiva e negativamente. O primeiro, Sólon, foi líder da cidade-Estado em 590 a.C. De acordo com o autor, dentre as medidas adotadas, destaca-se o direito de todos os cidadãos em recorrer a um júri, e a servidão tornou-se ilegal quando implicava em empréstimos feitos pelos abastados aos mais pobres. Tais ações foram positivas visto que favoráveis às classes populares.

O segundo líder, Pisístrato, tornou-se um ditador em 560 a.C. Sua influência é considerada negativa devido a liderança de um grupo de homens das colinas, visto que “A tirania era o trunfo desse […] grupo” [1]. Apesar de ser reconhecido como um tirano, o autor mencionado revela que Pisístrato realizou grandes obras que contribuíram ao desenvolvimento cultural de Atenas.

Bustos de Sólon e Psístrato, respectivamente.

Após a queda de Pisístrato e seus liderados, entra em cena a figura principal a firmar a estrutura para o estabelecimento da democracia: Cleistenes. Em 508 a.C., ele conquistou a liderança de Atenas e propôs

[…] a completa reorganização da política referente ao espaço de Atenas, e com isso o senso de pertencimento, de cidadania. Ele requeria que todo cidadão – cidadãos emancipados do sexo masculino, maiores de 18 anos – se registrasse em uma deme. […] O importante impacto político dessas bases se dava no estabelecimento de estruturas de autodeterminação em cada uma das comunidades, concedendo a elas um senso de responsabilidade por tudo o que acontecia ali [1].

As demes eram como distritos, porém, constituídas com base no sentimento de pertencimento de cada cidadão que a habitava. Atenas organizava-se em dez conjuntos de demes, formando tribos que autogeriam-se e possuíam estruturas religiosas e financeiras próprias [1]. A responsabilidade tratada acima se relaciona ao fator de grande destaque na democracia ateniense: o poder concedido aos homens, que de forma igualitária tomavam as decisões referentes a cidade-Estado. Por meio da Assembleia e das cortes populares, Cleistenes contribui à participação popular na tomada de decisões políticas, retirando da autocracia os privilégios quanto a tais questões.

A participação ativa na política era um sinônimo de cidadania, algo sobremodo relevante para os atenienses. No entanto, estabeleceu-se às custas da exclusão de mulheres, homens escravos, menores de idade ou aqueles que não fossem atenienses (nascidos em Atenas, bem como os seus genitores). Betthany Hughes destaca em documentário [3] que, “De cada três pessoas que moravam em Atenas uma era escrava. Os atenienses eram vigorosos democratas porque tinham […] os prisioneiros de guerra feitos escravos para realizar o trabalho sujo”. Corroborando com a ideia de Aristóteles quanto ao servilismo inato de determinadas classes [1], tem-se uma das bases inconvenientes sob as quais a democracia se desenvolveu.

Cleistenes. Fonte: http://zip.net/bvtHx7

Apesar dos aspectos negativos dessa democracia, a partir de Cleistenes,

Pela primeira vez, o povo de um Estado estava comprometido com a autodeterminação, com a autonomia e a responsabilidade para tomar decisões – a tarefa de governar. Cleistenes estabeleceu os princípios estruturais por meio dos quais a democracia ainda funciona: cidadania baseada em afiliações locais e nacionais, instituições administradas por e para os cidadãos, estruturas de poder combinadas e responsáveis, num sistema de controle mútuo das repartições governamentais [1] .

Estrutura democrática ateniense versus democracia moderna

O funcionamento da democracia na antiga Atenas revela o quão engajado estava o cidadão ateniense no agir político da cidade-Estado. Ali, a participação era o estandarte. Assim, é delineado o contraste entre o agir democrático em seus primeiros tempos com o dos tempos hodiernos, onde os indivíduos limitam-se a assistirem passíveis o desenrolar político de sua comunidade.

O significado de cidadania unia os cidadãos atenienses, independentemente da posição social que eles tivessem.  Aos que eram das classes mais baixas e não tivessem condições financeiras para participar de certa atividade política, como uma eleição, outorgava-se lhes dinheiro para que pudessem ir ao local no qual exerceriam papel de sujeitos democráticos. O ideal era que todos participassem enquanto sujeitos que conheciam e se importavam com seu sistema de tomada de decisões.

O modo pelo qual eram escolhidos os oficiais – exceto o posto de General –, através de seleção aleatória ou pela sorte, deixava claro que todo e qualquer cidadão poderia ser um personagem importante no agir político de sua cidade. Assim sendo, essa forma de seleção dava enorme possibilidade a grande parte dos cidadãos atenienses de atuarem em cargos públicos. Goldhill [1] ressalta que, numa década, “[…] entre um quinto e um décimo de todos os cidadãos serviria no Conselho […]”, onde eram deliberados assuntos importantes ao povo.

Fonte: http://zip.net/bvtHyk

O sujeito democrático ateniense era ativo, poderia (e deveria) decidir acerca de todos os temas importantes para a comunidade, desde as leis até iniciativas de guerras. O indivíduo se envolvia em questões cujos desfechos inevitavelmente afetariam sua vida. É evidente o contraste com as democracias ocidentais modernas, cujos cidadãos são aficionados por direitos e, de modo geral, limitam-se a somente verem seus representantes tomarem decisões por eles, muitas vezes sem consultar seu eleitorado.

Na democracia ocidental moderna, uma parcela reduzida de indivíduos é tida como apta para o agir político; na antiga, todos os cidadãos poderiam desenvolver em si o sujeito democrático, sendo personagens ativos e determinantes. Mesmo o cargo de general, ou a magistratura – postos mais elevados, sendo esta última determinada pelo sorteio de uma lista final –, “[…] permaneceram estritamente sob a autoridade da Assembléia, e não podiam dirigir ou instruir a Assembléia ou o Conselho” [1].

Ainda que distinta da incipiente democracia grega, o atual sistema assemelha-se àquela no que tange a três princípios, a saber: a liberdade de expressão, a igualdade perante a lei e a responsabilidade. O primeiro implica na liberdade que todo cidadão tem para falar, expressar-se nos eventos públicos ou governamentais. Embora o referido princípio subsista até os dias de hoje, é perceptível que na prática não ocorra da forma que deveria ser. Muitos cidadãos vivem uma falsa liberdade, onde são tolhidos e induzidos pelas classes superiores a não expressarem-se.

A igualdade perante a lei, como o termo sugere, indica que, em julgamento, um cidadão não deve ser privilegiado em detrimento de outro, ou da lei publicada. As reformas de Sólon, no que tange ao direito de apelação a corte, seguidas das ações de Cleistenes, contribuíram com o decrescimento da estrutura hegemônica autocrática.

Diferentemente das cortes modernas, não havia juízes ou advogados profissionais […]. Cada reivindicador tinha de falar por si próprio, e era julgado pelos colegas. […] Esse era um processo em aberto, debatido e anotado publicamente, regulamentado pelo estatuto da lei publicada. A seleção aleatória dos jurados evitava o suborno e decisões políticas tendenciosas […] [1].

Embora atualmente encontre-se prerrogativas tais quais o foro privilegiado em determinadas instâncias políticas, em suma, a isonomia prevalece como um princípio fundamental da democracia.

Fonte: http://zip.net/bqtH4d

A responsabilidade, por sua vez, implica em que “[…] todo homem [deve] […] se responsabilizar pela coletividade de cidadãos. Isso significa que cada homem é responsável por seu voto e suas ações, e que ele pode ser responsabilizado” [1]. Reforçando o que foi mencionado, sabe-se que a democracia grega funcionava com base em uma população restrita, excluindo escravos, mulheres e menores de idade. A democracia atual, no entanto, sobressai-se – com algumas reservas – pela conquista do direito ao voto, independente de gênero ou classe social. Contudo, Goldhill questiona determinada inércia dos cidadãos modernos, bem como o desagrado com a estrutura democrática vigente.

Críticas ao modelo democrático

Para explicar os caminhos que a democracia atual tomou, o autor citado propõe uma análise das críticas a tal sistema, principalmente aquelas feitas por Platão. Suas influências a democracia moderna residem principalmente em proposições quanto a especialização necessária para se atuar em determinado cargo, incluindo os políticos. Platão criticava a não exigência de preparo técnico e intelectual dos governantes, bem como alegava a incapacidade dos cidadãos para decidir acerca de temas políticos.

A oposição de Platão “[…] à democracia em nome da lei e da ordem continua a prover uma autoridade intelectual fundamental para governos totalitários (e democracias nervosas)”. Para o filósofo, a democracia ateniense aproximava-se da anarquia, enquanto Esparta, conhecida por um sistema social e leis rigorosas, era o modelo ideal de governo fundamentado na “ordem social” [1].

Soldados espartanos. Fonte: http://zip.net/bntG6J

Tratando-se de ordem social, outro filósofo aparece como influente no modelo atual de democracia. Sócrates, segundo afirma Goldhill, “[…] foi executado pela Atenas democrática, devido àquilo em que acreditava. O que ele ensinava, e como o fazia, parecia muito perigoso para ser tolerado pela sociedade”. O autor expressa a relação de Sócrates com a fragilidade do sistema democrático, no que tange ao “[…] equilíbrio entre a liberdade de expressão e as exigências da ordem social” [1].

Platão e Sócrates ainda hoje movem questões clássicas de democracia e liberdade de pensamento. De certo modo, ambos apresentam posições distintas, porém, mobilizam a reflexão já proposta anteriormente: a democracia implica em crítica, conflito entre “liberdade individual e a regulamentação da comunidade” [1] e divergência de opiniões. O percurso histórico acerca da democracia revela as potencialidades e fragilidades, tanto nos primórdios quanto atualmente. Winston Churchill afirma que “A democracia é a pior forma de governo, tirando todas as outras” [4]. Apesar de ter se expandido como uma estrutura de governo desejável, percebe-se que ela implica, inevitavelmente, em que haja constante discussão, tanto sobre suas bases quanto sobre os rumos a serem tomados.

É notável que a democracia moderna ampliou alguns de seus princípios, no entanto, outros decresceram no decorrer do tempo. O engajamento percebido nos atenienses, por exemplo, bem como seu grande poder de decisão política são exemplos de aspectos nos quais os cidadãos modernos mostram-se estagnados. Algumas sociedades atuais, ditas democráticas, sequer contam com a participação de parcelas significativas da população para a escolha de seus líderes. Assim como Platão afirmava, supostamente deve-se confiar as decisões mais importantes a sujeitos capacitados.

Fonte: http://zip.net/bftG35

O descontentamento com a democracia atual, conforme abordado, pode ser analisado de acordo com diversos pensamentos, dentre eles os dos filósofos Sócrates e Platão. Além das reflexões anteriores quanto a dinâmica da democracia, as proposições desses filósofos fornecem lentes para se avaliar o sistema atual, bem como os seus impasses com a ordenação social. Considerando o posicionamento de Churchill, bem como o de Goldhill, para que se mantenha a democracia deve-se sempre questioná-la e compará-la com os modelos anteriores, ou seja, implica em conhecer sua história.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, J. B. Grécia – a caminho da democracia. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_2/Jeronimo_Basil.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2017.

[1] GOLDHILL, S. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Tradução Cláudio Bardella. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. Parte III, cap. 1-5.

[2] COULANGES, 2004, p. 356 apud ALMEIDA, s.d., p. 25.

[3] A HISTÓRIA da democracia (Athens: The Truth About Democracy). Apresentação: Betthany Hughes. 2007. (95 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P3yVRkvP-w4>. Acesso em 01 mar. 2017.

[4] CHURCHILL apud GOLDHILL, 2007, p. 149.

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