neoliberalismo

Redemocratização “lenta, gradual e segura” e neoliberalismo: aquela como farsa essa como tragédia

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“O presente e o futuro pertencem à Nação, não à minoria no poder”.
Florestan Fernandes

A conjuntura da década de 1980 segundo Melo (2005) é também condicionada pela crise econômica sistêmica do capitalismo nos anos 70, que segundo Diehl (2014) só é sentida no Brasil no final da referida década, prova disse foi o aumento das greves. É a partir deste momento que entra “em cena” o projeto neoliberal como “alternativa” a crise capitalista no Brasil.

Segundo Sales de Melo apud Melo (2005), e Mariani (2007), o neoliberalismo tem com premissas básicas a apologia a liberdade individual, acumular capital e propriedades, a liberdade de produzir, de possuir, sendo o mercado a instancia mais importante, elevação da taxa de juros, redução de impostos sobre os rendimentos altos, criação de níveis de desemprego massivo, critica a “qualquer” intervenção do Estado, pois o mesmo, segundo os teóricos neoliberais tem a tendência de favorecer indivíduos e grupos particulares.

É durante a década de 1980 que os organismos financeiros – com influência principal dos Estados Unidos da América do Norte – como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial começam condicionar empréstimos aos países subdesenvolvidos da América do Sul – não só – com o intuito de implementar o arremedo do neoliberalismo, Melo (2005).

Cabe aqui destacar como nos diz Boron e Anderson apud Melo (2005), que o grande resultado do projeto neoliberal “não foi” econômico, mas sim ideológico e cultural!

É a partir dessa conjuntura que a ditadura empresarial-militar brasileira começa a entrar num processo de “decomposição com formol”, mas como as formulações teóricas e análises de conjuntura não são instrumentos só da esquerda, os “intelectuais” de direita iniciaram o que Saviani (2012), chama de recomposição dos mecanismos de hegemonia da classe dominante.

É por isso que Trajtenberg (2013) Fernandes (1989), nos dizem que na segunda metade dos anos 70 a ditadura que já durava mais de uma década deu inicio a mais um “golpe durante golpe”, percebendo que as condições tanto nacionais quanto internacionais começavam a ser desfavoráveis – como demonstramos anteriormente – tentou imprimir um “verniz democrático” às suas arcaicas formas de dominação. Mas o interesse implícito era a continuação das frações da classe dominantes no poder.

Com o intuito de não perder o poder o regime ditatorial que perdurou 21 anos a frente do Estado brasileiro por alguns momentos tentou esconder suas intenções de continuar mantendo a exploração/opressão para com o povo brasileiro, tanto que segundo Trajtenberg (2013) o presidente  Geisel disse que a saída da ditadura seria “lenta, gradual e segura”. Só esqueceu-se de dizer para quem e para que era a segurança?!

Podemos comprovar esse processo lento, gradual e seguro com a não aprovação – com articulação direta do então senador Sarney[1] – da emenda Dante de Oliveira, a qual propunha eleições diretas para presidente da republica, Morais (S/D).

Nesse contexto, o movimento das diretas-já, que poderia propiciar uma saída límpida e radical, submergiu numa composição conservadora, que decidiu a partir de cima atravessar o Rubicão através do Colégio Eleitoral. Aliaram-se os chefes militares “civilizados”, o PMDB através de suas cúpulas dirigentes e os “democratas” recém-saídos do ventre do regime em decomposição. Isso significa que a oscilação foi detida por uma nova conspiração, que se crismou como um ato de conciliação política. Ela também endossou a fórmula político-militar de uma transição democrática lenta, gradual e segura! A ordem ilegal atravessou a crise letal, que se esboçara, e protegeu o nascimento da “nova República”. (FERNANDES, 1989, p. 03).

Segundo Fernandes (1989) e Trajtenberg (2013), a transição da ditadura empresarial/militar teve vários momentos – greves, anistia, “diretas já”, etc. – mas destacamos aqui o processo da Constituinte de 1988 como o mais central para entendermos o desenrolar da democracia brasileira na atualidade.

Como afirma Fernandes (1989), em toda constituição existe um projeto político subjacente da classe dominante da época, logo no caso da Constituição brasileira de 1988 o projeto político em voga era/é os da classe dominante herdeira da ditadura empresarial-militar que tanto nos oprimiu/oprime.

A partir destes precedentes foi instaurada pelo então presidente – não eleito pelo povo – José Sarney o Congresso Constituinte de 1987/88 a partir do congresso – senadores e deputados federais – que já estava posto, em sua grande maioria umbilicalmente amordaçados pelos militares, empresários, banqueiros e latifundiários, Diehl (2014).

O Congresso Nacional Constituinte que se convencionou chamar de Constituinte de 1988 segundo Trajtenberg (2013), foi um processo de transição política sem alterar as bases do projeto de sociedade altamente excludente, elitista e autoritária, configurando-se como um instrumento de produzir consenso numa aceitação acrítica da “ordem” estabelecida em 1964.

Segundo Fernandes (1989) na constituinte de 1988 existia um afã ultraconservador e ultrareacionários encabeçados pelo PMDB e o antigo PFL hoje DEM, pois a principal ideia era fazer apenas uma revisão constitucional institucionalizando “legalmente” a ordem ilegal dos novos e antigos “donos do poder”.

É dentro desta conjuntura política Fernandes apud Diehl (2014), ao analisar a Constituição Federal de 1988 concluída denomina a mesmo como “Constituição inacabada”, pois os “avanços” na Carta Magna são barrados dentro da própria carta Magna.

No entanto, a ação do famoso “Centrão” impediu que a Constituição também estabelecesse os instrumentos de factibilidade para concretizar esses direitos e princípios. E de fato estes instrumentos não existem até hoje, já que na prática instituiu-se apenas uma democracia formal (e não uma democracia participativa) com a obrigação de cumprir com os compromissos de uma dívida pública contraída por um regime político ilegítimo, e sem a possibilidade de questionar privilégios (como da midiocracia ou do Poder Judiciário) ou de implementar mudanças sociais efetivas (como é o caso da reforma agrária e outras reformas estruturais exigidas pelo povo). (DIEHL, 2014, p. 81).

Assim sendo, finda-se a década de 80 com a eleição de Fernando Collor de Melo para presidência da república e inicia-se a implementação ainda débil do projeto neoliberal. Mas para isso antes de qualquer outra coisa Collor promoveu algumas reformas na recém concluída Constituição Federal, pois mesmo com todas as limitações expostas a constituição continha elementos que dificultariam a implementação do projeto neoliberal, Melo (2005).

Com o impeachment de Collor, Itamar Franco assume a Presidência da Republica e tenta dar continuidade as políticas neoliberais de Collor, mas segundo Melo (2005), é no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso – FHC – que as bases econômicas, políticas, culturais e sociais do projeto neoliberal são implementadas efetivamente com a privatização de bancos e empresas públicas, acordos da dívida externa.

É no governo de FHC também segundo Melo (2005), que é implementado um ministério que tinha a exclusividade de fazer reformas no aparelho estatal, em suma para expropriar as riquezas estratégicas como foi o caso a privatização da Vale do Rio Doce, esse ministério foi nomeado de Ministério da Administração e Reformas do Estado (MARE).

Essa política de “neoliberalismo tardio” tem seria repercussão nas lutas de massa na América do Sul, mas especificamente no Brasil, a reestruturação produtiva, acumulação reflexível e por consequência desemprego em massa, condição de miséria crescente  condicionou a um descenso nas lutas de massa, as manifestações dos movimentos sociais que durante toda a década de 80 chegou a ter nas ruas 1 milhão de pessoas ficou restrita basicamente as marchas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.

Segundo Melo (2005), entramos o século XXI com todas as debilidades possíveis do projeto neoliberal, pois continuamos a morrer de gripe, diarréia, cólera, dengue etc.

A entrada do Partido dos Trabalhadores – PT – na pessoa de Lula e Dilma a frente da presidência não alterou essencialmente a política neoliberal implementada nos meados da década de 90. Os motivos são vários, destacamos cinco: o Partido dos Trabalhadores passou a centralizar a tática eleitoral deixando de lado o trabalho de base, o segundo, deixou o Projeto Democrático Popular para trás como se nunca tivesse o defendido, terceiro, à herança deixada pelos governos essencialmente neoliberais de FHC, quarto, alianças para com os “partidos da ordem” e quinto, o equívoco na análise de que chegar ao governo federal em um governo de composição/conciliação de classe seria a mesma coisa que a tomada do poder.

Os motivos supracitados nos trazem elementos que demonstram a inexistência das possibilidades de mudanças estruturais tendo como força dirigente o Partido dos Trabalhadores, Harnecker (2004). Mas isso não deve nos impedir de admitir que a vida de uma quantidade significativa do povo brasileiro mudou para menos pior.

As primeiras medidas de combate à fome e à pobreza constituíram um círculo virtuoso de fortalecimento do mercado interno. Os principais programas sociais do governo Lula, continuado pelo de Dilma Roussef foram o Bolsa Família, o Credito Consignado, o Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece bolsas de estudos em universidade privadas trocadas por impostos, o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e o Programa Luz para Todos. Garantiu-se também um aumento real do salário mínimo (de cerca 55%, entre 2003 e 2011, conforme Dieese). Os classificados em ‘condição de pobreza’ diminuiu sua representação de 37,2% para 7,2 nesse mesmo período. (MARICATO, 2013, p. 22).

Isso demonstra um pouco, que, o que se demonstrava em termos teóricos/práticos do PT durante a década de 90, foi implementado a partir de 2002, ao mesmo tempo em que fortalece as relações com os países da América Latina – Venezuela, Bolívia, Cuba, Equador – mantém as tropas brasileiras no Haiti desde 2004.

Portanto explicita-se um pouco as diferenças de um governo neoliberal/conservador/reacionário para um governo de composição/conciliação de classe de caráter neodesenvolvimentista, reformista que não faz reforma, que não irá cumprir as demandas históricas do povo brasileiro, mas que para atual conjuntura é menos nocivo para uma parcela significativa da sociedade brasileira e para os lutadores e as lutadoras do povo brasileiro.

Referências:

DIEHL, Diego Augusto. A constituição inacabada e a reforma política: aportes desde a política de libertação. In Constituinte exclusiva: um outro sistema político é possível. 2014. Disponível em <http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/> Acesso em 20/05/2014.

FERNANDES, Florestan. A Constituição como projeto político. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 47-56, 1.sem 1989.

HARNECKER, Marta. Estratégia e Tática. 1° ed. Expressão Popular, São Paulo, 2004.

MARIANI, Édio João. A trajetória de implementação do neoliberalismo. Disponível em <http://www.urutagua.uem.br/013/13mariani.htm> Acesso 16/07/2012.

MELO, Marcelo Paula de. Esporte e juventude pobre: políticas públicas de lazer na Vila Olímpica de Maré. – Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

MIRICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido! In MIRICATO, Ermínia [et al.]. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1° ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.

MORAIS, João Quartim de. Amobilização democrática e o desencadeamento da luta armada no Brasil em 1968: notas historiográficas e observações críticas. Disponível em<http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v012/a_mobilizacao.pdfAcesso em 05/05/2012.

TRAJTENBERG , Marília El-Kaddoum.A constituição de 1988 e a transição. Disponível em<http://www.uff.br/niepmarxmarxismo/MM2013/Trabalhos/Amc312.pdf> Acesso em 05/05/2012.

SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. – Campinas, SP. Autores Associados, 2012.

[1]O pior é saber que o mesmo continua como senador cometendo os mesmos tipos de atos reacionários quanto naquela época.

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the hunger games

Jogos Vorazes: a vida como um mero espetáculo

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E se para sobreviver você tivesse que deixar de ser quem é para agradar aos outros?
E se para isso você tivesse que transformar sua vida em um espetáculo?
Você conseguiria?

O filme Jogos Vorazes, lançado em 2011, é uma adaptação do primeiro livro da trilogia também chamada Jogos Vorazes.  Ao assistir o longa, nos damos conta da quantidade de valores que são passados: esperança, perseverança, amizade, amor, coragem. Valores esses que estão sendo esquecidos no dia a dia.  Embora esses valores sejam muito visíveis no filme, é possível notar uma “diminuição” do ser humano, que passa a ser considerado apenas como um produto.

O filme pode ser associado à Teoria do Espetáculo, proposta por Guy Debord (1931-1994). Trata-se de uma teoria crítica sobre consumo, sociedade e capitalismo.

“O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência” (Trecho do livro, A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord).

Após cometer crime de traição, “como punição pela revolta, cada um dos 12 distritos deve oferecer um garoto e uma garota com idade entre 12 e 18 anos para a “Colheita”. Esses tributos ficarão sobre custodia da Capital e serão transferidos para a Arena Pública, onde irão lutar até a morte, até que reste somente um vencedor.”

Katniss Everdeen, interpretada por Jennifer Lawrence é uma jovem tímida do distrito 12 que perdeu o pai na explosão de uma mina e vive uma vida difícil, com a mãe e a irmã, com quem ela possui uma relação muito bonita.

Chega o dia da colheita e todas as mães de coração partido arrumam os jovens pra o evento. No dia do sorteio a irmã de Katniss é a garota escolhida, mas ela se oferece para ir em seu lugar, um ato de coragem e amor. O outro tributo do distrito 12 é Peeta Mellark interpretado por Josh Hutcherson, um jovem forte e determinado.

Antes de partir para a capital, onde serão apresentados a sociedade e treinados para os Jogos, Katniss promete a irmã que será a vencedora, por ela, e também se despede de seu melhor amigo Gale.

Katniss e Peeta então são levados a Capital, sem saberem se um dia ainda verão suas famílias. Eles embarcam em uma jornada sem volta, tudo muito diferente de suas realidades.

Os 24 tributos são tratados muito bem, adorados pelo público que é fanático pelos Jogos Vorazes, que está agora em sua 74° edição. A única estratégia para se dar bem no jogo é fazer com que as pessoas gostem de você, dessa forma patrocínios irão surgir e com eles virão as regalias. Katniss pensa que não conseguirá, pois não é boa em fazer amigos, mas sua simpatia aparece de forma inesperada e o público passa a adorá-la.

Ao longo dos dias na Capital, Katniss e Peeta são submetidos a mudanças em suas aparências e treinados para se apresentarem bem em público, ou seja, são forçados a se tornar pessoas que não são, tudo isso para agradar os telespectadores. Durante uma entrevista Peeta revela o seu amor não correspondido por Katniss, mas ela pensa que isso não passou de uma estratégia dele para conseguir mais patrocinadores e resolve levar o suposto romance adiante, transformando tudo em um grande espetáculo.

“À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.” (Trecho do livro, A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord).

Os Jogos Vorazes começam e já no primeiro dia 11 tributos são mortos. Katniss se separa de Peeta e passa a sobreviver devido a suas habilidades de caça. A garota faz uma breve aliança com Rue, uma garotinha do distrito 11. Rue é assassinada, Katniss mata o assassino, e envolve o corpo da menina com flores, um gesto emocionante, já que em um cenário de completo terror ainda é possível ver um pouco de amor e respeito.

O assassinato de Rue causa uma profunda revolta nos moradores do distrito 11, então os organizadores dos Jogos precisam de uma nova estratégia para atrair a atenção do público. Eles então resolvem promover o “amor jovem” de Katniss e Peeta e anunciam uma nova regra: podem haver dois vencedores nos Jogos Vorazes, desde que estes sejam do mesmo distrito. Depois de ouvir a notícia Katniss vai em busca de Peeta, quando o encontra percebe que ele está muito machucado, ela cuida dele e o público fica vidrado na suposta relação de amor dos dois.

Os dois tributos do distrito 12 conseguem ser os últimos e quando acreditam que venceram o jogo os organizadores anunciam que a  regra que dizia que dois poderiam vencer foi suspensa e só um pode sair vivo. Os dois jovens não querem matar um ao outro e concordam em cometer o suicídio comendo amoras envenenadas, pois acreditam que a Capital irá mudar de ideia e preferirá dois vencedores ao invés de um, a estratégia funciona e os dois são declarados vencedores da 74° edição dos Jogos Vorazes.

Embora tenha sobrevivido junto com Peeta, o mentor de Katniss a avisa que ela se tornou um alvo político por ter desafiado os líderes da sociedade publicamente. O filme termina com Katniss e Peeta se apresentando ao seu distrito, felizes por terem conseguido voltar para casa.

Após assistir o filme a mensagem que fica é: na sociedade capitalista e consumista em que vivemos a vida nada mais é que um espetáculo, em que somos meros atores.

REFERÊNCIAS:
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/socespetaculo.html

FICHA TÉCNICA DO FILME:

JOGOS VORAZES

Título Original:  The Hunger Games
Direção e roteiro:  Gary Ross
Elenco: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Liam Hemsworth, Donald Sutherland;
País: EUA
Ano: 2012
Gênero:  Ação

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A fobia social revela a farsa da nossa identidade

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A Psicologia e o senso-comum usam a expressão ‘identidade’ para se referir à nossa personalidade sem se darem conta do tanto que essa expressão é verdadeira e adequada. Nosso eu é de fato uma identidade, mas não uma identidade consigo mesmo. Nosso eu estabelece sua identidade com o mundo. Quem somos nós? Não é possível responder essa pergunta a não ser fazendo referência ao mundo, seus objetos e a outras pessoas. Somos o filho de alguém, o morador de algum lugar, o torcedor do time tal, que exerce essa profissão qual, tem essas qualidades e aqueles defeitos. O sujeito só se define pelos seus objetos. Ou seja, na prática, definimos nosso eu por aquilo que temos, por aquilo que fazemos, pelas nossas relações com outras pessoas, com lugares ou situações… Jamais definimos nosso eu por aquilo que somos. Pois, na verdade, o eu não é nada, além disso, tudo… O eu é justamente a identidade com tudo isso. Mas, se por um lado o eu é a identidade com tudo isso, por outro ele precisa ser diferente de tudo isso. O eu não pode ser simplesmente idêntico ao mundo. Para ser no mundo e viver nele, ele precisa se distinguir dele. Assim, o eu que vive e se relaciona no mundo é consciente de ser diferente desse mesmo mundo, e sua identidade com ele permanece inconsciente.

A identidade inconsciente do eu com o mundo significa que o mundo, e principalmente as pessoas com que o eu se relaciona, existe na essência daquilo que o eu é. Se no fundo de nossa alma nós somos idênticos às pessoas com que nos relacionamos, isso significa que não temos segredos para elas, que não podemos esconder nada delas… Existimos em situação de completa abertura e igualdade com elas. Em outras palavras, o ‘olhar do outro’ existe dentro de nós, e ele conhece e enxerga perfeitamente o que realmente somos. E qual é a verdade que esse olhar do outro enxerga? Ele enxerga justamente nossa diferença com o mundo do qual deveríamos ser idênticos. Apesar de sermos idênticos ao mundo no fundo de nossa alma, na vida vivida somos diferentes dele, e esse olhar do outro que existe dentro de nós enxerga claramente isso e nos critica por isso! Consequentemente, nossa vida no mundo consiste num esforço (consciente ou inconsciente) de enganar o olhar desse outro interior e de passar aos outros reais que existem no exterior a imagem de que somos idênticos a eles; de que pensamos igual a eles, gostamos das mesmas coisas que eles, fazemos parte das mesmas tribos que eles. Mesmo quando nos revoltamos ou rebelamos também estamos atuando nessa farsa. O adolescente só se revolta depois de fracassar repetidamente nas suas tentativas de simular sua identidade com o mundo. E ele vê na revolta um meio de modificar o mundo para tornar mais fácil a simulação da identidade com ele.

Se me permitem exagerar um pouco, direi que nossa vida é um grande teatrinho, uma grande encenação. Vivemos tentando passar ao mundo uma imagem que difere daquilo que somos. As coisas dão certo se acreditamos que ao enganar os olhares das pessoas reais que existem no mundo estamos conseguindo enganar o olhar do outro que existe em nosso interior. Entretanto, quando o olhar do outro interior se reflete no olhar do outro que está à nossa frente, não conseguimos disfarçar o embaraço. A situação mais típica é o falar em público. Frente à presença esmagadora de dezenas e até centenas de olhares exteriores, o olhar do outro interior também adquire presença esmagadora em nós e esmaga nossa farsa! Mas, às vezes basta a presença de uma única pessoa. E até mesmo a ausência de qualquer pessoa real pode bastar para que o olhar do outro interior se torne mais real que a ausência real exterior!

Quando o olhar do outro interior resiste às nossas tentativas de enganá-lo, sentimos como se estivéssemos sendo pegos em flagrante. Não sabemos mais como nos comportar, ficamos sem reação, abobadados. Nossa farsa está sendo ameaçada. No entanto, essa farsa é exatamente aquilo que nós somos, e a ameaça à farsa é uma ameaça ao nosso próprio ser. Há aqueles que experimentam apenas uma leve vergonha, e até fazem piada com o caso. Mas, há aqueles que experimentam grandes doses de ansiedade, e até o pânico. E tudo isso porque levamos a farsa a sério. Se nosso eu é uma farsa, a melhor opção é reconhecê-la e aceitá-la como farsa. É justamente nosso esforço de querer dar à farsa ares de legitimidade que nos torna presas fáceis das críticas do olhar do outro interior.

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