A Bela e a Fera: a iniciação do Feminino

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Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte

A Bela e a Fera é um dos contos mais famosos da humanidade e que ainda causa extrema comoção nas pessoas. A versão do filme de 2017 é uma adaptação do conto que originalmente foi escrito pela escritora francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (La Rochelle, 1695 – Paris, 9/12/1755). Mas a versão mais conhecida foi escrita por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (Rouen, 26/4/1711 – Chavanod, 8/9/1780), escritora, também francesa, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Com o tempo, e sucesso do conto, surgiram outras versões, incluindo a do também francês Charles Perrault.

Diversas adaptações desse conto para a televisão e cinema foram feitas, apontando um interesse emocional coletivo sobre o tema. A atual adaptação vem causando uma comoção bastante intensa, principalmente em adultos, que estão cada vez mais retomando o interesse pelos contos de fadas. Com isso gostaria de explorar nesse texto o simbolismo do filme derivado do conto A Bela e a Fera, de forma a buscar uma compreensão sobre essa comoção coletiva e com isso tentar trazer um pouco de consciência a respeito do que as necessidades emergentes que dinâmica psíquica coletiva tem ansiado.

Não pretendo esgotar o assunto, uma vez que um conto de fadas pode ser interpretado de diversas formas e visto de inúmeras maneiras. Essa é apenas a minha visão sobre o tema e como compreendo de forma subjetiva e pessoal o tema. Para iniciar a discussão é importante pontuar o que os contos de fadas representam na visão analítica. Conforme Von Franz (2005):

Contos de fada são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva.

Com essa premissa pode-se observar que os contos de fadas fornecem um rico material para a compreensão da dinâmica da psique coletiva. Por esse motivo quando um conto de fadas desperta tanta atenção e comoção como foi o caso de A Bela e a Fera, podemos retirar desse material alguma compreensão para uma tentativa inicial de entender a problemática que a psique coletiva apresenta e o possível desenvolvimento disso. O filme traz algumas alterações em relação ao original, contudo, a mensagem original permanece a mesma.

A estrutura do conto não se modifica. A história se inicia então com um príncipe sendo amaldiçoado por uma feiticeira. Disfarçada de mendiga, a feiticeira entra em uma festa dada pelo mimado príncipe e lhe oferece uma rosa feia. Ao desprezar a rosa, ele é amaldiçoado e transformado em Fera. Se ele não amar nenhuma jovem e não for correspondido antes da última pétala cair, ele será uma fera eternamente. No conto original há um problema de maldição com o príncipe também.

Na versão original de Villeneuve, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia. Quando ele recusou, a fada o transforma em fera. O original revela também que Bela não é realmente uma filha do mercador, mas descendente de um rei. A mesma fada que tentou seduzir o príncipe tenta matar Bela para casar com seu pai, e Bela toma o lugar da filha morta do mercador para se proteger. O príncipe então nas duas versões sofre a maldição por rejeitar uma feiticeira.

No original há uma alusão a um incesto simbólico, visto que a rainha e a fada malvada são polos opostos da imagem arquetípica da mãe. No filme o príncipe perdeu a mãe, foi criado por um pai cruel e por isso se tornou um homem narcisista e infantil e que precisa ser redimido. Ambas versões mostram um conflito materno do masculino. No original há a relutância em relação ao incesto. A mãe boa (rainha) é substituída pela mãe terrível que quer devorar a masculinidade do príncipe e assim ele precisa lutar contra esse incesto para sobreviver.

Neumann (1995) afirma que o desenvolvimento da consciência tanto individual quanto coletiva passam pelas fases urobórica, matriarcal e patriarcal. E que a sociedade contemporânea se encontra na fase patriarcal de desenvolvimento. Além disso, afirma que a consciência do ego tem um caráter masculino em ambos os sexos e o inconsciente tem caráter feminino. Com isso a relação consciência – dia – luz, e inconsciente – escuridão – noite se mantêm da mesma forma independente do sexo, sendo a consciência masculina mesmo nas mulheres e o inconsciente feminino.

A consciência patriarcal, então, luta para se separar do inconsciente e assim ficar livre de suas influências. Contudo, colocar o patriarcado e a separação do ego em relação à consciência em primazia e em um estado mais elevado de consciência traz problemas também, como mostra o conto A Bela e a Fera. Ao desprezar o feminino e matriarcal, nos deixaram amaldiçoados. Se por um lado o patriarcado foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, por outro o aspecto patriarcal da consciência é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.

Ao buscar a perfeição a consciência patriarcal exclui os defeitos e o mal, e com isso exclui a totalidade. E todo aspecto reprimido da consciência se volta novamente se vingando dessa repressão. Vemos isso nas neuroses e doenças psicossomáticas. Uma pessoa neurótica pode ser comparada a uma pessoa amaldiçoada. Pois alguém neurótico pode ser impelida a agir de forma destrutiva consigo próprio ou com os outros. Von Franz (2010) aponta para o tema da vingança feminina no conto A Bela Adormecida.

Nesse conto a fada esquecida e desprezada se vinga na princesa fazendo com que ela durma 100 anos. Isso simboliza que o feminino dormiu em nossa sociedade e com isso nenhuma vida acontece, só há a esterilidade. A fada malvada, ou feiticeira no conto e no mito transforma, nesse caso, o príncipe em animal. Isso significa que a consciência desceu ao nível animal e primitivo. O masculino (tendo os homens como representantes), sucumbe aos aspectos animalescos e instintivos apenas em relação ao feminino.

A mãe marca os aspectos “femininos” do filho, bem como a imagem que ele cria da mulher, suas aspirações, exigências e temores face às mulheres (Von Franz, 2010). Com a ausência da mãe e dos aspectos maternos, ele se torna inseguro e temeroso em relação ao feminino e a anima. No filme, o fato da rainha ter morrido mostra que não há o feminino no sistema regente da consciência. Os valores femininos foram reprimidos e negados, uma vez que a rainha seria o elemento feminino correspondente ao rei na consciência coletiva.

A ausência da rainha significa que o aspecto coletivo do feminino foi renegado e reprimido e, consequentemente, o rei se torna estéril e despreza o feminino. Algo que ele passa para o filho no filme. Pode-se pressupor, então, que a história trata da problemática de uma atitude coletiva dominante na qual o princípio de Eros — o relacionamento com o irracional, o feminino — foi perdido.

O filme então traz um tema muito atual, que é a desvalorização dos aspectos femininos na consciência coletiva. Hoje testemunhamos o anseio pelo resgate da essência do feminino perdida, pois essa unilateralidade fez mal tanto as mulheres – que se sentem perdidas em relação ao que é ser feminina – quanto ao homem que desconhece o feminino em si, desvalorizando esse aspecto interno na depreciação da mulher. O homem quando não desenvolve sua anima (o aspecto feminino da sua psique) se torna um narcisista, assim como o príncipe no filme.

O interessante em A Bela e a Fera é que quem redime o príncipe é a mulher, algo oposto ao que estamos acostumados. Temos imprimido que o heroísmo é manifestado pelo herói solar. Ou seja, aquele que luta contra o mal para salvar a princesa. Portanto, Bela é a heroína do conto e do filme. Ela é quem redime a situação deficiente da consciência, sem, contudo, desembainhar nenhuma espada. Por isso é importante analisarmos a figura de Bela, tanto o filme quanto o conto original descrevem a heroína como humilde e com gosto pela leitura.

Já o filme acrescenta o conflito vivido por uma mulher inteligente e que quer seguir seu coração ao invés dos ditames da sociedade, que lhe diz que ler é inapropriado a ela. Para os aldeões a mulher serve apenas para cuidar do marido e ter filhos. Esse conflito foi relatado a primeira vez na animação de 1991. De fato, as mulheres durante séculos não puderam expressar seus dons criativos advindos do contato com o animus criativo reprimidos, sendo relegadas ao papel de mãe e esposa.

Qualquer manifestação intelectual ou criativa era reprimida e combatida. Contudo hoje a mulher conseguiu cada vez mais alcançar o sucesso no mundo externo e patriarcal. Tornamo-nos “filhas do pai”, ou seja, estamos cada vez mais bem adaptadas a uma sociedade com orientação masculina, porém à custa da repressão de nossos instintos femininos. Essa “filha do pai” aparece na figura de Bela. A filha única e amada de seu pai. O que aponta, de forma individual, para uma mulher com complexo paterno positivo, com a idealização do pai. Como no caso da menina, o pai é o diferente, por isso a tendência à idealização.

No conto e no livro o pai de Bela acaba no castelo da Fera, que o mantém em cativeiro por ter roubado uma rosa de seu jardim. Bela então se torna prisioneira no lugar do pai. A rosa é um aspecto que representa o arquétipo materno, no sentido de flor como recipiente (Jung, 2008). Símbolo associado à deusa do amor e sexualidade Afrodite, e indica uma busca de amor erótico e transcendental, bem como a união com seu oposto. Ela deseja inconscientemente quebrar esse pacto de união amorosa e incestuosa com o pai e experimentar o amor por outro homem diferente. Além disso, a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Isso significa que o amor é um grande aliado no processo de individuação, pois é esse desejo de união que leva a coniunctio, que na alquimia representa a meta da individuação.

Ao pedir a rosa ao pai observa-se um pedido de ajuda inconsciente. Sua bondade e seu desejo de se livrar de conceitos que já não lhe trazem significado, está simbolizada na encomenda dessa rosa. O que ela não sabe é que, ao pedir a rosa, está a ponto de pôr em perigo a vida do pai e o relacionamento ideal existente entre os dois. É como se ela desejasse ser salva de um amor que a mantém virtuosa, porém em uma atitude irreal.

Ela idealiza o amor e assim não enxerga o homem real nem o relacionamento. Isso significa que Bela deseja sair da experiência do apego à lei masculina – representada no pai -, que transforma um homem em Fera, para o amor carnal através do seu lado feminino, do seu desejo e sexualidade. Para deixar o pai precisou aceitar o desejo erótico – que estava encoberto em uma fantasia incestuosa simbólica – para conhecer o homem animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. Para isso ela deve abrir mão dos aspectos paternais, como seu apego a intelectualidade.

Uma mulher presa a um complexo paterno tende a ficar bastante racionalizar e voltada ao mundo exterior com suas exigências. Ela se afasta de seus desejos, de sua essência feminina e sua adaptação ao mundo interno, mágico e recheado de emoções e intuições. Nos contos de fadas há um tema comum onde o pai que entrega ou vende a filha a um monstro ou demônio, como por exemplo, no mito de Eros e Psique, ou no conto A Donzela sem mãos. Isso mostra que o animus da mulher se desenvolve a partir da relação com o pai pessoal.

O demônio, monstro ou fera nos contos de fadas simboliza o animus negativo que ainda está contaminado pela imagem do pai. Além disso, o fato da heroína ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade dela, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus. Bela então vai sacrificar justamente esse “monstro” da intelectualidade unilateral, senão ela pode se torna igual ao seu pai: alguém muito inteligente, mas que não consegue progredir e se tornou pobre, sou seja, alguém com uma visão empobrecida e unilateral da vida.

A bruxa (ou feiticeira) que amaldiçoou o príncipe simboliza o feminino rejeitado na consciência coletiva. E nos mitos e contos de fadas vemos que o feminino não aceita bem a rejeição. O feminino quer ser aceito, incluso e adorado e quando isso não ocorre seu aspecto sombrio vem à tona sob a forma de vingança. Exemplos disso: Hera em sua cólera devido as “escapadas” de Zeus se vingava das amantes e filhos bastardos; Demeter quando teve sua filha raptada por Hades se vingou trazendo a esterilidade a terra.

Então, do ponto de vista coletivo, o desenvolvimento dos aspectos patriarcais da psique coletiva como, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico e da racionalidade (representado aqui pelo pai de Bela) que tanto nos auxiliou agora necessita diminuir, pois com ele também veio a exploração indevida da natureza o que faz um grande estrago na psique coletiva. E é isso que a bruxa no conto vem reclamar, que a consciência olhe para novamente para o feminino e a natureza que clama por atenção.

É comum nos contos de fadas que a heroína se submeta a uma situação, suportando o sofrimento com paciência e aguardando o tempo certo para agir. Isso ocorre, pois ela não deve agir da mesma forma que seu animus e os aspectos femininos da sua psique que foram reprimidos, como o seu desejo e sua irracionalidade, devem ser agora resgatados. Em nossa sociedade que privilegia a ação, a extroversão e o sempre fazer algo, ter paciência e aprender a suportar e esperar algo é um feito realmente heroico.

Bela mesmo a contragosto passa a cuidar da Fera e da casa e ao conviver com a Fera, ela percebe que ele é sensível e realiza todas as suas vontades a despeito de sua aparência. A redenção da Fera então é feita por meio do amor. De príncipe mimado, que não suportava ver a realidade da vida com seus aspectos mais feios (a feiura da mendiga simboliza a morte e a destruição presentes na natureza), ele se descobre um ser sensível e capaz de amar. Bela então sente saudades do pai e a Fera, por amor, permite que ela regresse para salva-lo.

E ao voltar, diferentemente do conto, ela enfrenta não as irmãs invejosas, mas um pretendente, Gaston, que não aceita ser trocado. O que é bastante interessante. O voltar para a casa original significa uma regressão da libido ao inconsciente original. E no filme não há um feminino sombrio, mas um masculino. Gaston representa as opiniões de um animus não diferenciado. É dele a frase na animação: “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias… a pensar”.

Individualmente então, ele representa um caráter regressivo da mulher, uma opinião infundada e obsessiva. Ele não olha para os desejos dela, ele não a apoia em seus sonhos. Ela é apenas um objeto. Em termos coletivos, Gaston representa a opinião coletiva da época. Até hoje vemos que mulheres muito inteligentes são tachadas com algum estereótipo e ainda hoje beleza e inteligência não são atributos que podem andar juntos em uma mulher.

E nesse confronto ela descobre que ama a Fera de verdade, pois com ele Bela se sente incluída, vista e respeitada em seus desejos. Tudo o que o feminino busca. A Fera e Gaston se enfrentam e ambos morrem. Dois polos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino. Mas quem morre é o aspecto animal, hostil e assustador da Fera e ele volta a ser um príncipe. Agora não mais mimado, mas um homem amadurecido que aceitou e integrou a morte e a feiura em sua vida.

Agora é possível a união com um animus positivo e o encontro com a plenitude. Esse masculino se liberta da maldição e o equilíbrio masculino e feminino é estabelecido na consciência. E Bela pode exercer sua função intelectual e o uso da sua imaginação sem cair na armadilha de se tornar fria e calculista. Agora ela se torna apta a atender as demandas externas e internas sem perder o contato com sua essência mais profunda. Com o animus positivo integrado, ela pode ser firme sem perder a feminilidade e a doçura.

FICHA TÉCNICA:

A BELA E A FERA

Diretor: Bill Condon
Elenco: Emma Watson, Dan Stevens, Audra McDonald, Emma Thompson
País: EUA
Ano: 2017
Classificação: 10

Referências:

EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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O feminino e o Masculino em: A Bela e a Fera

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O filme A Bela e a Fera de 2014, é uma produção franco-alemã adaptada do conto de fadas A Bela e a Fera de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, a Dama de Velleneuve. O conto de fadas original trata da redenção do amado de sua forma animal por meio do amor. No filme esse tema central se mantém, mas ocorreram algumas modificações na estória.

O filme se passa na França de 1810, onde um rico comerciante perde seus navios em um naufrágio. Ele é um viúvo e tem seis filhos: três homens e três mulheres, sendo a heroína Bela a mais nova de todos e a mais generosa, graciosa e humilde. Devido a essa catástrofe precisam se mudar para o campo e ficar longe da cidade, e assim o padrão de vida da família cai vertiginosamente.

No conto original Bela também é a filha mais nova de um rico mercador, que perde a sua fortuna. No entanto, esse tinha apenas três filhas e não há filhos homens. Como no filme as filhas mais velhas gostavam de ostentar luxo, com lindos vestidos, contrastando com a irmã caçula. Esse aspecto da personalidade de Bela a torna a favorita do pai. No conto original e no filme a heroína não tem mãe e vive em um estado simbiótico com o pai.  Essa é uma questão importante que começo abordando no aspecto pessoal.

Von Franz (2010) aborda que quando a heroína não tem mãe, supõe-se um complexo paterno. O animus na mulher se desenvolve, no geral, pela experiência dela com o pai pessoal, e encarna o arquétipo inato do pai, e a experiência se torna o complexo de pai na mulher, o que ira moldar suas relações com os homens em sua vida e o funcionamento da sua masculinidade interior.

O pai é o primeiro ser masculino com o qual a futura mulher entra em contato. Ele é então o outro, o estranho, algo a ser vivenciado e preenchido pelo mundo de imagens do inconsciente latente. Por isso a tendência na mulher a idealizar o pai.

Além disso, no desenvolvimento da personalidade a criança vive naturalmente na unidade mãe-filho. Quando um pai urobórico quebra a unidade mãe-filha e a menina o aceita ela sai da unidade com a mãe e entra no laço pai-filha. Uma mulher então confinada nesse laço pai-filha precisa passar pela aceitação de um homem diferente do pai. Se ela não passar por esse processo e não entrar nessa nova condição ela continuará em um incesto psicológico entre pai e filha (KAWAI, 2007).

Esse homem que quebra esse incesto psicológico é visto então como um monstro, que separou a filha do papai amado. E esse é o tema central de A Bela e a Fera.  Bela o enxerga como monstro e a redenção desse amado é quando ela se transforma pelo amor a esse homem, e o passa a enxergar como um homem desejável.

Mulheres nessa condição de incesto psicológico com o pai só conseguem se relacionar com os homens em forma de camaradagem. Em uma relação erótica ela o repudiará e se esquivará e toda investida romântica de um homem. Um dia então o pai de Bela, recebe a notícia de que um dos seus navios foi encontrado, e por isso ele resolve partir para a cidade. As duas filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendam-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pede apenas uma rosa.

É importante notar que no filme o pai de Bela possui navios. O barco, ou navio representa um receptáculo feminino, tanto que é comum entre os marinheiros colocar um nome feminino em seus barcos. O barco também se associa a Lua e as deusas lunares. Ele também facilita o comercio, a comunicação e a difusão cultural. Além disso, trata-se de uma invenção humana que permite flutuar sobre as águas, simbolizando uma qualidade uterina (VON FRANZ, 2011).

Apesar de ser uma construção humana, o barco carrega em si (assim como as outras invenções humanas), uma qualidade de revelação divina, sendo uma invenção que nasceu dos deuses. Psicologicamente o barco nos permite navegar as águas do inconsciente, nos protegendo contra o afogamento.

Nos contos de fadas, quando um arquétipo não está presente ou desaparece irá reaparecer em uma nova forma. No filme a mãe morta de Bela reaparece novamente. O barco encontrado é justamente o favorito da mãe. Podemos então supor que o fato desse barco não haver naufragado, mostra que a heroína tem a proteção para adentrar nas águas do inconsciente coletivo. Sem essa proteção ela pode afogar. Em termos coletivos, na sociedade ocidental, temos muitas mulheres com complexo paterno, ou materno negativo. Isso ocorreu devido a valorização dos aspectos masculinos na consciência coletiva, e a repressão do feminino que naufragou na repressão, voltando para o inconsciente coletivo.

O pai após uma viagem angustiante onde descobre que seu filho mais velho esta envolvido em atividades ilícitas com um grupo de mercenários e assassinos. Durante a volta para casa, sozinho e fugindo do grupo de bandidos, acaba se perdendo na floresta em meio a uma nevasca indo se abrigar em um suntuoso castelo. Ele então vê uma bela rosa e decide levar para a filha, porém é condenado à morte pelo proprietário do castelo, a Fera.

A rosa é uma flor comumente associada à Afrodite, ou seja, ao feminino. É a rosa que une os dois homens e tira Bela da simbiose com o pai. A rosa também indica a união dos opostos. Isso significa que o amor, é um grande aliado e força motriz no processo de individuação, pois o amor é o combustível para que o indivíduo tenha força para romper com o laço familiar.

Von Franz (2010), ressalta que uma das atividades do animus negativo é furtar, pois ele precisa tomar a vida onde ele se encontra, matando todo o aspecto feminino da vida. O pai da heroína agora fraco e sem suas posses (energia) e começa a furtar tudo àquilo que tenha vida e com isso não consegue manter a força da ligação pai-filha. O tema do pai que entrega a filha ao noivo monstro é um tema familiar da mitologia. No conto Eros e Psique há esse tema da entrega da filha e da redenção do amado.

No conto original e também no filme, ao conviver com a fera, Bela percebe que ele é sensível e que está disposto a realizar todas as suas vontades a despeito de sua aparência. Ela se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. No entanto, com o tempo e a convivência, ela passa a enxergar o masculino de forma menos hostil.

A imagem de pai de Bela agora está no pólo negativo do arquétipo paterno, e isso interfere na forma como ela vê o masculino. Ou ele é um ladrão como o pai e furta sua feminilidade, ou é uma fera assustadora. E com a convivência ela terá de enfrentar essa projeção de hostilidade em relação ao masculino, por esse motivo, Bela reluta em aceitar esse homem como amado.

Mas no filme há algumas diferenças em relação ao original. Bela e Fera se reúnem todas as noites para jantar, e aos poucos vão se conhecendo. Bela, – assim como Psique no mito – contudo não obedece as ordens de seu anfitrião e tenta desvendar os mistérios do seu castelo mágico. Ela descobre então sua trágica história de príncipe arrogante que é transformado em um monstro devido um crime horrível.

No conto original a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai, e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma bruxa, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia; quando ele então recusou, ela o transformou em um monstro. No filme vemos que o príncipe era arrogante e estava à caça de uma corça com pelos dourados. Na verdade ele estava obcecado por ela e por matá-la. Até que um dia, mesmo a despeito dos pedidos de sua mulher, ele mata a corça e tragicamente descobre que se tratava de sua própria esposa, que era uma filha do deus da floresta.

Mudando o foco agora, e analisando o filme em relação ao príncipe, podemos supor que ele possui uma relação bastante falha com o feminino. Em suas relações predomina o Poder, ou seja, ele vê o elemento feminino como um troféu a ser conquistado. Ele precisa resgatar Eros em suas relações, pois onde falta Eros, o Amor, o poder se instala.

Em termos coletivos, na sociedade ocidental predomina esse aspecto de poder, onde impera a exploração da natureza em busca de satisfação egóica. A corça, é um animal associado à deusa Artemis, um deusa lunar, da caça e da natureza. A caça sempre fez parte do sistema psíquico humano. No entanto, Artemis nos mostra que a caça faz parte de algo sagrado e deve ser feito com respeito e devoção, uma vez que ela sempre existiu com o propósito de alimentar os homens e não para satisfazer a sede de poder humana.

No filme a esposa do Príncipe pode ser considerada como uma filha de Artemis e quando ele a mata é punido pelo pai da moça, o Deus da Floresta, que aparece a ele em forma de trovão. Bem o príncipe cometeu um grande erro de atentar contra a própria alma, e quando isso ocorre não ficamos impunes e o Self nos pune pelo ato. Bem Artemis é filha de Zeus, e no filme o pai da moça aparece como um misto de trovão e raio. Esse “pai” da anima representa para o príncipe uma figura do velho sábio, com o qual a princesa mantém um relacionamento de incesto psicológico, o que significa que por trás da anima está a possibilidade de um desenvolvimento interior do herói (VON FRANZ, 2005).

Conforme Von Franz (2005), esse pai sobrenatural da anima representa uma sabedoria suprema que está em contato com as leis do inconsciente. É força sobrenatural, e parte do espírito e da sabedoria que foi negligenciada no desenvolvimento da civilização. Esse animus da anima então pune o príncipe de sua arrogância e somente com o amor pela verdadeira personalidade dele poderia ser liberto. Isso significa que ele terá que olhar além das aparências e amar a alma feminina.

Em termos coletivos esse príncipe representa a forma como a consciência coletiva se coloca diante do feminino e esse pai espiritual, esse Zeus, representa um aspecto do deus mais primitivo. Nossa consciência moderna não tem deixado espaço ou vida suficiente à alma, o feminino e a natureza, e, ainda, tenta excluí-la. Em consequência, a anima do homem e o feminino na mulher e agarram a esse espírito primitivo, porque ela sente que ele lhe promete uma vida mais rica (VON FRANZ, 2005). No filme ele a resgata e pune a consciência transformando-a em um ser monstruoso. Se nos encararmos com certa dose de sinceridade veremos esse monstro em nós.

O fato de ele ser um deus pagão mostra que a cosmovisão, de certa forma, dava à anima do homem uma chance muito maior e mais abundante de viver. Por essa razão é muito mais fácil para a mulher e a anima no homem se voltar ao paganismo, pois nessa manifestação o feminino possui muito mais liberdade em se expressar de forma completa e plena. E Bela descobre toda essa estória por meio da ajuda do espírito da esposa e princesa morta, que lhe revela a tragédia.

Isso significa que a mulher presa ao animus pode alcançar uma feminilidade muito mais profunda do que se conhece na consciência.  Sob a ótica do príncipe podemos entender que ele então não se relacionava com a mulher real. Ele apenas idealizava as mulheres e assim sua anima o auxilia nesse processo de entrega a um ser real, e não a uma divindade.

A estória então prossegue de forma semelhante ao conto, onde Bela sente saudades da família de origem e pede para revê-la. Mesmo a contragosto a Fera permite que Bela visite sua família. Esse retorno ao lar de Bela pode representar uma regressão do ego ao inconsciente original. Nessa regressão, Bela confronta projeções reprimidas e sombrias inconscientes. No conto original as irmãs sentem inveja de Bela e tentam evitar que ela volte para o príncipe. No filme essa ação invejosa das irmãs é menos nociva e o problema de Bela está no irmão mais velho, que a rouba e leva os ladrões para o castelo do príncipe.

Isso mostra que a heroína está em um conflito com o aspecto sombrio de seu masculino interior, cuja ação negativa é a de roubar o valor e a energia da mulher. Esse animus negativo costuma rebaixar a mulher a uma situação abaixo de sua capacidade e desprezar a sua feminilidade. A mulher presa nesse animus negativo despreza toda a feminilidade e quando tenta estabelecer um vínculo amoroso com um homem sofre dolorosamente.

O animus pode aparecer nos sonhos das mulheres como um grupo de homens. Isso porque ele representa a coletividade, o julgamento, um tribunal, onde a mulher pode ficar presa. Ou seja, ela pode ser presa de julgamentos sem sentido e inférteis em relação a si mesma e aos outros. No filme há então um embate entre os opostos desse lado masculino da heroína. E nesse embate a Fera é ferida e morre, sendo salva de seu aspecto monstruoso e revivendo por meio da flor que cresce no tumulo da amada morta.

A Fera e o grupo se enfrentam e ambos morrem. Dois pólos opostos se enfrentam. Ambos se odeiam, pois até então eram semelhantes. Ambos desprezaram o elemento feminino.  Portanto, através desse embate com esse aspecto masculino que Bela alcança autonomia em seu relacionamento, quebrando a simbiose com o pai e o incesto psicológico. E ao quebrar a simbiose e identificação a heroína sente falta do homem, e sincronicamente a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido, e seu lado humano pode se manifestar.

Ela conhece a sombra e a luz do príncipe e o ama. Muitas pessoas nesse estagio de retirada da projeção de anima e animus se separa por não suportar encarar o outro em sua humanidade.  Esse conto, portanto, nos mostra que a mulher, em termos coletivos, deve passar pela experiência de ficar presa ao seu animus fera (ou demônio), pois somente essa experiência o transforma em positivo e ela pode expressa-lo na realidade sem lesar sua feminilidade.

FICHA TÉCNICA

A BELA E A FERA


Direção: Christophe Gans
Elenco: Vincent Cassel, Léa Seydoux, André Dussollier
Gênero: Romance, Fantasia
Ano: 2014

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