Viktor Emil Frankl: uma biografia em busca de sentido

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Viktor Frankl nasceu em Viena (Áustria), no dia 26 de março de 1905, em berço judaico, sua família já contava com duas irmãs, seu pai era funcionário público, classe média alta, família vivia uma vida confortável até a chegada da Primeira Guerra Mundial, em 1914, que, assim como outras famílias judias mergulharam na pobreza e passaram depender de esmolas.

Aos 16 anos, enquanto fazia o ensino médio, em meados de 1920, Frankl se mostrava interessado nos estudos da Filosofia e Psicologia ministrou sua primeira palestra com o tema “O sentido da Vida” para o partido socialidade na Universidade Popular de Viena. Nessa mesma época, escreveu seu trabalho de conclusão de ensino médio, sobre a Psicologia do Pensamento Filosófico, publicado em 1923, nisso, começa a se corresponder com o famoso psicanalista Sigmund Freud que não só gosta muito do que lê, como o encoraja a continuar suas pesquisas e estudos.  

Em 1924, cursando o curso de medicina foi presidente do Partido Jovem Trabalhadores Comunistas, onde era membro ainda no ensino médio. Por seu envolvimento político, optou em ficar na Áustria mesmo com a invasão alemã na Segunda Guerra. Aos 19 (dezenove) anos, como estudante de medicina começa a estudar sobre casos de depressão e suicídio, com isso, publica seu primeiro artigo científico na revista International Journal of Individual Psychology. 

Fonte: encurtador.com.br/dopxF

Durante o seu egresso na Medicina desenvolvia lado a lado projetos como a prevenção ao suicídio para jovens estudantes e sempre ligando a filosofia e a psicologia, relacionando-os a vida e seus valores. Em 1926, em um congresso, fala pela primeira vez sobre Logoterapia, que segundo Frankl, seria a terapia focada em buscar o sentido da vida. Em seu livro “Em busca de Sentido” diz que: a logoterapia se concentra mais no futuro, ou seja, nos sentidos a serem realizados pelo paciente em seu futuro. (A logoterapia é, de fato, uma psicoterapia centrada no sentido.) Ao mesmo tempo a logoterapia tira do foco de atenção todas aquelas formações tipo círculo vicioso e mecanismos retro-alimentadores que desempenham papel tão importante na criação de neuroses. Assim é quebrado o autocentrismo (self center edness) típico do neurótico, ao invés de se fomentá-lo e reforçá-lo constantemente. Obviamente esta formulação simplifica demais as coisas; mesmo assim a logoterapia de fato confronta o paciente com o sentido de sua vida e o reorienta para o mesmo. E torná-lo consciente desse sentido pode contribuir em muito para a sua capacidade de superar a neurose (FRANKL, 1985, p. 68).

Para Viktor Frankl, o homem fica de forma centralizada, podendo ser interpretado como o resultado de um conjunto entre o corpóreo, o psíquico e o espiritual, tendo como impulso primário aquilo que chamou de “vontade de sentido”, ou seja, uma disposição a descobrir o sentido da vida, podendo ser encontrado em diversos campos como: a finalização de um trabalho/obra, no amor a si mesmo ou ao outro, na fé, enfim, sentidos diversos e singulares.

Sobre a Vontade de Sentindo, Frankl diz: a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido. Alguns autores sustentam que sentidos e valores são “nada mais que mecanismos de defesa, formações reativas e sublimações”. Mas, pelo que toca a mim, eu não estaria disposto a viver em função dos meus “mecanismos de defesa”. Nem tampouco estaria pronto a morrer simplesmente por amor às minhas “formações reativas”. O que acontece, porém, é que o ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores! (FRANKL,1985, p. 69).

Fonte: encurtador.com.br/cfFY8

Viktor Frankl fala sobre a Frustração Existencial: a vontade de sentido também pode ser frustrada; neste caso a logoterapia fala de “frustração existencial”. O termo “existencial” pode ser usado de três maneiras: referindo-se (1) à existência em si mesma, isto é, ao modo especificamente humano de ser; (2) ao sentido da existência; (3) à busca por um sentido concreto na existência pessoal, ou seja, à vontade de sentido (FRANKL,1985, p. 70).

O sentido da vida é algo a ser descoberto por cada indivíduo com impulsos primários ao longo da sua jornada, buscando encontrar respostas a suas vivencias diárias e colocando significados norteadores profundos. A Logoteria tem como tarefa ou objetivo principal ajudar o paciente a encontrar sentido em sua vida.

Em 1930, Viktor Frankl começou a ser conhecido e reconhecido em toda Europa como um homem à frente do seu tempo com 25 anos, no corrente ano, resolve fazer residência em neurologia e psiquiatria, nisso, assume uma ala conhecida por pavilhão do suicídio num hospital psiquiátrico em Viena (entre 1933 e 1937), ajudando a prevenir casos de suicídio feminino.

Em 1938, atendia em seu consultório de neurologia e psiquiatria era reconhecido como o criador do novo método de tratamento terapêutico, baseado em preencher o vazio existencial, mas teve que fechar depois do exército nazista anexar a Áustria. Nessa época, tornou-se chefe do Vienna’s Rothschild Hospital e Salva milhares de judeus da morte recusando-se a recomendar eutanásia aos pacientes com doenças mentais.

Fonte: encurtador.com.br/egKU2

Tilly Grosser, recém esposa de Viktor Frankl é obrigada a abortar o seu primeiro filho pelas tropas nazistas. Em 1942, seus pais, irmãs, esposa e ele próprio são encaminhados aos campos de concentração Theresienstadt e Auschwitz. Morrem: o pai e a esposa de exaustão, a mãe enviada à câmara de gás. A irmã sobrevive e foi refugiada na Itália.

Em 1945, acaba a Segunda Guerra e Viktor é libertado após três anos de trabalho forçado e condições sub-humanas. No mesmo ano, retornou para Viena e se tornou o chefe do departamento de Neurologia da General Polyclinic Hospital, escreveu suas ideias no livro “Em Busca de Sentido” em nove dias e lança em 1946. Casou-se novamente, teve uma filha, obteve o título de doutor em filosofia, tornou-se professor na Universidade de Viena (na qual permaneceu até 1990) e em outras universidades americanas, fundou e presidiu a Sociedade Austríaca de Medicina Psicoterapêutica.

Em 1992 foi fundado um instituto em Viena que carrega o seu nome (The Viktor Frankl Institute), considerada a terceira escola vienense, depois de Sigmund Freud e Alfred Adler e recebeu mais de 25 títulos honorários pelas suas ideias inovadoras e legado eterno transmitido em suas obras: Um sentido para a vida: Psicoterapia e humanismo, A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia, entre outros.

Em 02 de setembro de 1997, faleceu aos 92 anos, sendo vítima de colapso cardíaco.

REFERÊNCIAS

AQUINO, T. A. V. Viktor Frankl: Para Além de suas memórias. Rev. abordagem gestalt. [online]. 2020, vol.26, n.2, pp. 232-240. ISSN 1809-6867. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18065/2020v26n2.10. Acesso em: 22 de abril de 2021.

FRANKL. V. E. Em Busca de Sentido. Edição Norte Americana – de 1985. Disponível em: < https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/58/o/Em_Busca_de_Sentido_-_Viktor_Frankl.pdf>  Acesso em: 20 de abril de 2021.

OLIVEIRA, K. G. O sentido da vida, a religiosidade e os valores na cultura surda. (Dissertação de Mestrado). João Pessoa-PB, 2013. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/4239/1/arquivototal.pdf Acesso em: 23 de abril de 2021.

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1917 – A jornada de um guerreiro

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro original, Melhor Fotografia, Melhor Trilha sonora original, Melhores Efeitos Visuais, Melhor Direção de arte, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de som, Melhor Maquiagem e Penteado

O guerreiro é aquele que sabe quando precisa recuar e em momentos críticos consegue contornar a situação, sempre de olho em como atingir seu objetivo.

O longa acompanha dois jovens soldados britânicos, Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), em uma missão com grande risco de morte. Eles são encarregados de entregar aos aliados uma ordem de abortar um ataque contra tropas alemãs, evitando que 1.600 combatentes caiam em uma armadilha. Então eles cruzam o território inimigo para que esse aviso chegue ao destino.

Texto contém spoilers!!

O filme, apesar de ser em um ambiente de guerra, não é sobre a guerra, inclusive a missão faz com que eles precisem evitar qualquer batalha. A imersão que o filme provoca, faz com que percamos o fôlego em diversos momentos. Mesmo quando existe uma calmaria, permanece uma tensão no ar que nos leva a pensar no que ocorrerá a seguir.

Mesmo após a morte de Blake, o seu companheiro Schofield continua sua missão de uma forma quase inabalável. Isso remete ao arquétipo do guerreiro, onde ele nos convida a avançar com sabedoria, assertividade e com passos firmes. E fica bem claro essas características durante o filme, ele reconhece sua energia masculina e feminina, obtendo um equilíbrio entre as duas, onde seu coração é corajoso ao mesmo tempo que expressa alguma amorosidade.

Moore e Gillette (1993) que são estudiosos posteriores a Jung, caracterizam o arquétipo do guerreiro pela clareza de pensamento, precisão, força e habilidade de ficar sempre em alerta. Mas o guerreiro é aquele que sabe quando precisa recuar e em momentos críticos consegue contornar a situação, sempre de olho em como atingir seu objetivo.

Fonte: encurtador.com.br/gpyFI

Possui uma capacidade de suportar a dor e viver na iminência da morte. Encara os desafios sem temer, com responsabilidade, autodisciplina, distanciamento emocional dos problemas e de questões da vida pessoal. Weber (2004) descreve esse tipo de reação como uma ação orientada pelo sentido, ou seja, é uma reação por reflexo, algo inconsciente que é característica desse arquétipo.

O guerreiro também possui uma tropa, que pode ser interpretado como a família, e no filme ele parece ter medo de retornar para sua família. Mas ele carrega consigo uma caixa que contém fotos da sua esposa e ao que parece, duas filhas pequenas. Assim sendo, ele tem sua tropa e é ela que de certa forma impulsiona o guerreiro a avançar em nível físico, mental, emocional e espiritual.

Dentro do arquétipo existem os desafios e no caso do guerreiro, ele deve usar corretamente essa energia focada para se fortalecer, sendo que durante o filme ele parece sempre atento, por exemplo, quando entra no porão de uma casa para se esconder, mas acaba encontrando uma mulher com um bebê e esta pede para que ele fique. Mas ele logo retoma sua missão mesmo em meio a uma cidade cheia de inimigos.

Outro desafio é que ele mantenha uma comunicação de acordo com a sua verdade, e por mais que surjam oportunidades para o mesmo desistir, ele sempre persiste. Quando ele chega ao seu destino final e precisa entregar a ordem ao General Erinmore, ele escolhe bem suas palavras para que esse o ouvisse. Assim, escolher a forma de se comunicar faz parte do guerreiro, para que este consiga cumprir sua missão.

Fonte: encurtador.com.br/kvwIO

Campbell (1997) fala sobre o papel do guerreiro, onde ele é levado a combater forças opressoras, e durante o filme o personagem não luta apenas contra soldados do exército inimigo que surge pelo caminho. Schofield luta contra si mesmo, contra suas próprias limitações e as diversas possibilidades de desistir.

FICHA TÉCNICA:

Resultado de imagem para 1917

1917

Diretor: Sam Mendes
Elenco: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Richard Madden, Benedict Cumberbatch;
Gênero: Drama, Guerra
País: EUA
Ano: 2019

REFERÊNCIAS: 

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. – São Paulo: Cultrix/ Pensamento, 1997.

MOORE, Robert; GILLETTE, Douglas. Rei, guerreiro, mago, amante: a redescoberta dos arquétipos do masculino. Rio de Janeiro: Campus, 1993.

WEBER, Max. Economia e Sociedade – Vol. 1. Brasília: UnB, 2004.

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Morte, guerra e dor: entrelaços de uma vida nas lentes de Kevin Carter

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Carter teve sua trajetória como fotógrafo transformada no dia 23 de maio de 1994 depois que ganhou o prêmio Pulitzer [1] de fotografia, imagem fotográfica que levou críticas e condenações de outros fotógrafos e dos espectadores que o definam Carter como indiferente a Criança e mais interessado na imagem. Porém, há outros relatos de como foi tirado essa foto que fala da compaixão do fotografo diante da imagem. Nisso, não entremos nos critérios dos julgamentos de certo ou errado, mas na profundidade da imagem que mostra o horror da fome e da guerra que passa na sociedade como se não conhecessem ou existisse.

Fonte: https://goo.gl/X3jvoi

A trajetória da vida de Carter mostra um homem extremante intenso e profundo na sua forma de vida, inserido na realidade em que o mesmo vivia, cercado pelas guerras, fome, racismo e indiferenças. Foram essas características que fizeram Carter lançar seu olhar para o mundo fotográfico. Iniciou seu trabalho como fotógrafo no fotojornalismo no segmento do esporte, mas depois mudou seu olhar em busca de fotografar imagens de guerras e indiferenças que existiam na sua região.

Fonte: https://goo.gl/XKTkoK

A intensidade e a forma de vida profunda são características de um fotógrafo na qual mostra nas imagens suas indagações e indignações. Sua infância e adolescência não foi fácil, pois já testemunhava as injustiças e sofrimentos que os menos favorecidos e os negros sofriam diante dos seus olhos. Dentro dessa perspectiva sofreu por querer defender a vida dessas pessoas, até chegou a ser espancado por policias em uma dessas situações.

Carter foi o primeiro a fotografar uma execução pública necklacing (um tipo de execução e tortura praticada ao colocar um pneu de borracha, cheio de gasolina, em torno do peito e dos braços da vítima, e depois atear fogo) de negros africanos na África do Sul, por volta da década de 1980. A vítima era Maki Skosana, que havia sido acusada de ter um relacionamento com um policial. Carter, depois, falou sobre as fotografias: “[…]. Fiquei chocado com o que eles estavam fazendo, eu estava chocado com o que eu estava fazendo, mas, em seguida, as pessoas começaram a falar sobre as fotos […] então eu senti que talvez minhas ações não tinham sido de todo ruins. Ser testemunha de algo tão horrível não era necessariamente uma coisa ruim a se fazer”. [5]

Fonte: https://goo.gl/XKTkoK

Essas histórias mostram a profundidade e a força da vida de desse fotógrafo que, ao mesmo tempo, via sua função mostrar para o mundo as calamidades das guerras e do racismo, mas por outro lado vários conflitos se instauram diante dele ao ponto de levá-lo a cometer suicídio. São várias as perguntam que podemos fazer tentando desvelar o que de tão profundo e inquieto Carter tinha dentro de si, que o levou a um ato tão forte e brutal consigo mesmo. O que se tem registrado desse ato foi o que o próprio deixou, revelando nos seus escritos que a morte de um amigo em serviço foi algo que o marcou muito. Segundo Santos [3], Carter escreveu o seguinte texto antes de morrer:

Estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para pagar a renda, sem dinheiro para ajudar ao sustento da minha criança, sem dinheiro para pagar as dívidas, sem dinheiro! Sou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres e raiva e dor, de crianças feridas e esfomeadas, de loucos que assassinam alegremente, alguns deles polícias (…). A dor de viver ultrapassa a alegria ao ponto em que esta deixa de existir. Fui juntar-me ao Ken (seu colega fotógrafo que havia falecido há pouco tempo), se eu tiver tamanha sorte”.

Esta declaração mostra os entrelaces de sua vida, onde vivia entre guerras, mortes e injustiças sociais. Os mistérios de uma vida que perpassaram a subjetividade de Carter o levou a morte. Ele escolheu dar fim na dor e nos porquês sem repostas que apontaram a guerra, a fome e o racismo como violências humanas destrutíveis. Carter não suportou a dor quando buscou, através da sua linguagem, registrar as mazelas do mundo.

Fonte: https://goo.gl/vVt83c

Violências que geram violências internas, dor que geram dor, assim pode ser definido Carter na dor do outro, essa dor extrema que é revelada em suas imagens e que se tornou dor para si mesmo. Sem preparo psicológico, ele deixou que a morte do outro o levasse a própria morte. Nesse ínterim, Carter permanece em nosso imaginário por meio de suas imagens de dor, de choro, de violência, de indiferenças. Dores que ainda estão presentes no outro e no cotidiano. Ficamos com a sensação de impotência do que fazer diante da dor do outro.

Saiba mais:

[1] O Prêmio Pulitzer é um prêmio norte-americano outorgado a pessoas que realizem trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical. É administrado pela Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque.

Referências

[2] LEONY, Bruno; PAULA, Renata de. Fotojornalismo. Disponível em: <http://www.jornalista.com.br/fotojornalismo.html>. Acesso em: 25 abr. 2017.

[3] SANTOS, Marco. As várias mortes de Kevin Carter: Um abutre espera que a Mãe Natureza lhe sirva o almoço. Um fotógrafo também está à espera. 2008. Disponível em: <http://bitaites.org/fotografia/as-varias-mortes-de-kevin-carter>. Acesso em: 24 abr. 2017.

[4] UOL (Comp.). As várias mortes de Kevin Carter. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/min2w6lmbsk1/as-varias-mortes-de-kevin-carter-04020D1A3262C4A12326?types=A&>. Acesso em: 25 abr. 2017.

[5] WIKIPÉDIA (Org.). Kevin Carter. 2016. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Kevin_Carter>. Acesso em: 24 abr. 2017.

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Trumbo: a indústria cinematográfica desconstruída

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Com uma indicação ao OSCAR:

 Ator (Bryan Cranston) 

Banner Série - Oscar 2016

“The blacklist was a time of evil”

 

O homem e o personagem

Dirigido por Jay Roach, com script de John McNamara, com elenco formado por nomes consagrados como Bryan CranstonDiane LaneHelen Mirren, além de nomes de apoio proeminentes: John Goodman, Louis C.K à  Elle Fanning. Trumbo (traduzido no Brasil com o adendo Lista Negra) está fazendo muito sucesso em meio à crítica especializada desde seu lançamento em 2015, conseguindo indicações em prêmios como SAG Awards (prêmio do sindicato dos atores),  Globo de Ouro, Oscar, e muitos outros.

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O filme nos traz um roteiro adaptando uma fase da vida do roteirista Dalton Trumbo – por vezes chamado de Caso Trumbo­ –, um dos mais notáveis de sua geração, escrevendo ou colaborando em obras consagradas do cinema como Roman Holiday (1953), The Brave One (1956), Exodus (1960), Spartacus (1960) e Papillon (1973). Filiado ao Partido Comunista dos Estados Unidos, ele e mais dez roteiristas também comunistas ou simpáticos as ideias do partido são convocados a depor junto à Suprema Corte dos EUA, ficando conhecidos como membros do Blacklist de Hollywood (a lista negra) após serem denunciados por pessoas envolvidas com a indústria cinematográfica americana como o ator John Wayne e a crítica e ex-atriz Hedda Hopper.

Trumbo sofreu consequências mais pesadas que seus aliados, ficando preso por desacato e falta de cooperação às investigações do governo americano. Por conta desta perseguição, muitos de seus filmes foram lançados sem os créditos originais de roteirização, com pseudônimos ou com nomes “de aluguel”, muitos deles arrebatando prêmios (inclusive estatuetas do Oscar), igualmente não creditados ao autor original. A partir destes eventos, Trumbo desenvolve e nos apresenta sua trama, em seus 124 minutos de duração. Em síntese a obra é quase uma alegoria d’O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, fazendo a indústria do cinema olhar para seu reflexo autodestrutivo.

Título

1 

Por se tratar de uma biografia Trumbo conta com o apoio da atuação segura de Bryan Cranston, consagrado por sua intepretação na série Breaking Bad. O ator nos transmite o peso de uma mente genial e criativa, ao mesmo tempo em que por conta de suas escolhas de pensamento, precisa enfrentar todo o mundo que o cercava. E, de igual modo não santifica ou deixa sua adaptação cair em uma versão monodimensional da pessoal que está encarnando, um erro comum neste tipo de filme.

É interessante notar, dentro desse contexto de estilo de obra, que os filmes biográficos, assim como os reboots, estão sendo utilizado como uma via ara a falta (ou crise) de criatividade do Hollywood nos últimos anos, exemplos desta tendência pode ser visto em vários projetos: Uma Mente Brilhante (2001), Coco antes de Chanel (2009), Jobs (2013), Um sonho possível (2009), O Discurso do Rei (2010) e O Jogo da Imitação (2014).

Nesta imersão na vida do personagem título, os ritos de produção de Dalton Trumbo foram muito bem representados no filme, seu gosto em trabalhar numa banheira; a acurácia e ceticismo em analisar o mercado, a indústria cinematográfica, a crítica e público, levando em consideração tais elementos na composição de suas estórias; sua dedicação para com a família, incentivando-os a ter liberdade de pensamento, assim como fez diante de seu julgamento por conspiração, etc.

Para o roteirista não haveria nem deveria existir limites para o labor criativo dos enredos dos filmes, algo sempre visto com mal olhos por produtores e estúdios: “Dalton Trumbo: What the imagination can’t conjure, reality delivers with a shrug.” . Ao fazer esta escolha pela liberdade em seu pensar e modo de trabalhar acompanhamos também o sofrimento da família Trumbo, principalmente pelas interpretações eficientes de Daiane Lane (Cleo Trumbo) e Elle Fanning (Nikola Trumbo).

No período em que esteve rotulado como comunista, e mais precisamente nos seus anos de prisão, Trumbo perdeu um sem números de trabalhos, prestígio e parceiros de ofício, precisando se desfazer de sua casa e contar com a ajuda de amigos e entrando em conflito com seu núcleo familiar. Lane nos passa esta preocupação e aflição, ao ver sua vida ser destruída pela perseguição do governo:

Cleo Trumbo: You have no idea what you could lose.

Dalton Trumbo: Oh, please. My career and the first amendment and the country, am I missing anything?

Cleo Trumbo: Us! You’re losing us! Since prison, you don’t talk or ask. You just snap, bark. I keep waiting for you to start pounding the dinner table with a gavel.

Dalton Trumbo: So in addition to being a pariah out in the world, I also have the supreme joy of battling insurrection in my own home. Cl: Battling insurrection?!

Dalton Trumbo: When these 10 fingers literally clothe and feed and shelter us.

Cleo Trumbo: This isn’t just happening to you. We all hurt.

A situação só começaria a mudar com sua escolha em trabalhar anonimamente, conseguindo assim não apenas retomar sua rotina de escritor como também ajudando seus companheiros de motim contra a indústria cinematográfica – momentos estes mais chocantes e corajosos da projeção. Os próprios amigos temiam as represálias do governo, de modo a enfraquecer o movimento inicial contra as investigações, durante o filme na figura Alan Hird (Louis C. Clark) vemos como a relação até mesmo com seus apoiadores se deteriora: “Alan Hird: You talk like a radical, but you live like a rich guy”.

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 Trumbo é um daqueles filmes feitos na medida certa para as premiações, possui um grande elenco, direção de arte rica e detalhista, roteiro bem estruturado e grandes atuações. No entanto, o longa metragem não está alheio a problemas de escolha em sua produção, em especial dois aspectos: a trilha sonora poderia explorar melhor a riqueza musical do período em que ocorrem os fatos da obra, entre as décadas de 50 e 60, a tentativa de construir uma imersão diegética se mostra deslocada e arrastada, sendo o silêncio melhor aproveitado que a sonoridade; e também em alguns momentos aparentemente faltou mais determinação, ou permissão dos estúdios, para que o filme mostrasse mais do lado obscuro da Guerra Fria nos EUA e as políticas de perseguição do país, assim como ocorreu com a Lista Negra dos cinemas, assim como as alternativas de mercado restantes aos roteiristas, que mesmo marginalizados continuaram a fornecer trabalhos aos estúdios.

Hollywood no divã

Muitas questões postas em discussão em Trumbo são tão atuais com a reinvenção e reificação constante e inevitável no cinema. Um bom exemplo é o papel dos críticos, que nem sempre se pautam em um olhar aberto e analítico, misturando inclinações passionais, muitas vezes formando opiniões sobre grandes obras.

Outro ponto colocado de forma visceral diz respeito à própria produção de roteiros, se a prefixação “indústria” do cinema pode trazer um lado nefasto para si, pois esta característica reside na busca frenética por histórias de baixa ou questionável qualidade para abastecer o ritmo em série da sétima arte, pelo viés dos produtores e realizadores cinematográficos. Dalton Trumbo viveu e contestou estes dois fenômenos, e, felizmente, o filme que o retrata expôs estas situações em sua cinebiografia de maneira sutil e profunda.


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Cena do filme comparada a imagem real do julgamento

Em um ano no qual a Academia passa por uma das suas maiores crises de legitimidade, em meio à falta de diversidade em suas maiores premiações, é interessante observarmos que sua condição de estar próxima de si polêmicas não é dos dias atuais. Após décadas de uma política de manter suas regras engessadas a academia teve rever suas regras, tendo em vista escolhas no mínimo questionáveis como as indicações de Jennifer Lawrence por Joy e Matt Damon por The Martian – assim como em grotescas escolhas já ocorridas em premiações de melhor filme e atriz para Shakespeare Apaixonado (1998) e Conduzindo Miss Daisy (1989) ultrapassando Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee –, apenas comprovam esta situação, deixando de lado obras e atores claramente esnobados (Beasts of the no Nation, Steve Jobs, O Clã, Os Oito Odiados, A Travessia) por avaliadores que possuem sua análise pautada em um mundo datado, de décadas atrás.

E precisamos lembramos que não podemos julgar o Oscar por si, nem qualquer outro galardão, mas o que está por trás da premiação, que é a indústria do cinema (ocidental diga-se), e o filme Trumbo é uma grata surpresa, por expor isto. A história não é um capricho ou exagero, pois caso fosse não teríamos a reentrega dos óscares de melhor roteiro pra Dalton Trumbo, décadas depois dos eventos da Lista Negra.

Aos mais conservadores ou que optam por não lutar por suas convicções, a história de enfretamento de Dalton Trumbo surge como um caminho a ser visto, pensado e motivado, pois sem se opor à uma forma hegemônica e dominante não haverá mudanças: We can win! I wanna win to change”

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Os roteiros marcados pela lista negra, Trumbo está à esquerda.

REFÊRENCIAS:

TRUMBO. Direção de Jay Roach. Roteiro de John McNamara. ShivHans Pictures. Estados Unidos. 124min. 2015.

RAPOLD, N. ‘Trumbo’ Recalls the Hunters and the Hunted of Hollywood. The New York Times, 2015. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/11/08/movies/trumbo-recalls-the-hunters-and-the-hunted-of-hollywood.html?_r=0>. Acesso em: 05 de fev. de 2015.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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TRUMBO: LISTA NEGRA

Direção: Jay Roach
Elenco: Bryan Cranston, Helen Mirren, Diane Lane, Elle Fanning;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Alan Turing e “O Jogo da Imitação”: o que significa ser humano?

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Com oito indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Morten Tyldum), Melhor Ator (Benedict Cumberbatch), Melhor Atriz Coadjuvante (Keira Knightley), Melhor Roteiro Adaptado (Graham Moore), Melhor Direção de Arte, Melhor Edição e Melhor Trilha Sonora Original.

 

“O que eu sou? Sou uma máquina ou um ser humano? Um herói de guerra ou um criminoso?”

“O Jogo da Imitação” conta a história de um dos mais importantes cientistas do século XX, Alan Turing, responsável por descobertas em áreas que vão desde a computação até a biologia molecular. É o gênio que criou uma máquina, precursora dos computadores, capaz de quebrar o código da máquina alemã Enigma, ajudando os Aliados a vencer a Segunda Guerra Mundial, o que diminuiu de forma significativa muitas tragédias desenhadas em mapas de ataque alemães e, principalmente, segundo alguns historiadores, o tempo de duração da guerra. Com a publicação de vários artigos e os trabalhos realizados na Segunda Guerra, Turing revolucionou o campo da criptografia e seus métodos contribuíram com o desenvolvimento da área de Inteligência Artificial.

 

Alan Turing, Fotografado por Elliott & Fry studio em 29 de Março 1951

 

O herói de guerra e gênio da matemática morreu sozinho em sua casa (aos 41 anos –  1952) em meio às suas invenções, fórmulas e cianureto. Isso depois de ter sua mente e seu corpo destruído por um processo de castração química. Por quê? Por ser homossexual e, assim, não conseguir “controlar” seus desejos tão humanos em uma época e em um país (Inglaterra) que tal conduta era tida como uma conduta criminosa.

Até 1974 as conquistas de Turing durante a Segunda Guerra eram desconhecidas e foi apenas em 2013 que o “perdão” lhe foi concedido pela Rainha da Inglaterra. Nas palavras do ministro da Justiça, Chris Grayling, “Turing merece ser lembrado e reconhecido pela sua fantástica contribuição aos esforços de guerra e por seu legado à ciência. É um tributo apropriado a esse homem excepcional”.

 

 

Segundo o Diretor Morten Tyldum [1], duas grandes questões permeiam o filme: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?”.

Para mim Turing é tanto um filósofo quanto um matemático, porque suas ideias lidam com o que significa pensar. Só porque alguém ou alguma coisa pensa de forma diferente de você, isso não significa que ele(a) não esteja pensando.” (TYLDUM [1])

 “O Jogo da Imitação”, a expressão que deu nome ao filme, é o título de um dos capítulos de um famoso artigo de Turing, publicado na revista Mind [2]. O artigo propõe inicialmente examinar uma questão que permeia toda a sua obra:

‘As máquinas podem pensar?’ Isso deve começar com definições do significado dos termos “máquina” e “pensar”. As definições podem ser enquadradas de forma a refletir tanto quanto possível o uso normal das palavras, mas essa atitude é perigosa, pois se o significado das palavras “máquina” e “pensar” são definidos pela maneira como elas  são comumente usadas é difícil concluir que o entendimento do significado é a resposta para a pergunta… Em vez de tentar uma definição desse tipo, proponho substituir a questão por uma outra… A nova forma do problema pode ser descrita em termos de um jogo que chamamos de ‘jogo de imitação (Turing, [2])

Essa, então, é a proposta: um computador que fosse capaz de fazer o “jogo da imitação” de tal forma que em uma conversa entre um ser humano e uma máquina, uma terceira pessoa (que estivesse participando da conversa em outra sala) não conseguisse distinguir entre a máquina e o humano. Posteriormente, esse jogo foi denominado Teste de Turing.

 

 

O filme é uma adaptação do livro “Alan Turing: The Enigma”, escrito pelo matemático Andrew Hodges. O diretor Tyldum apresenta o filme como um quebra-cabeças formado a partir da junção (não linear) de três fases da vida de Turing:  quando ele estudou na Escola de Sherborne, na adolescência, e conheceu Christopher Morcom; na Segunda Guerra, quando ele liderou um grupo de gênios que desvendou o código da máquina alemã Enigma; e quando foi preso pelo crime de praticar condutas homossexuais.

“Sabe por que as pessoas gostam de violência? É porque faz você se sentir bem. Humanos acham a violência profundamente satisfatória. Mas retire a satisfação e o ato se torna vazio.” (Alan Turing – Filme)

Ao retratar a adolescência de Turing em 1928 (quando ele tinha 16 anos), é apresentado Christopher Morcom, seu único amigo na escola de Sherborne e seu primeiro amor (ainda que platônico), cuja morte prematura em 1930 marcou profundamente os rumos que Turing daria às suas pesquisas. Conforme relatado em [3], Alan tornou-se obcecado em desvendar a natureza da consciência, a sua estrutura e suas origens. Ele desejava entender o que tinha acontecido com Christopher, considerando um aspecto essencial: sua mente. […] E qualquer área do conhecimento que pudesse ter relevância nesse contexto tinha que ser explorada. Assim, ele mergulhou em trabalhos relacionados à biologia, filosofia, metafísica, lógica matemática e, até mesmo, mecânica quântica. Começou a entender, como natural, pensar sobre a mente como uma máquina inteligente, cujos processos podem ser modelados e previstos a partir do uso da lógica matemática.

Christopher Morcom e Alan Turing em 1928

 

Christopher deu a Turing um propósito, ainda que a ideia de um primeiro amor não vivido tenha contribuído ainda mais para amplificar alguns aspectos da sua personalidade, muitas vezes identificados como negativo, como sua arrogância e seu distanciamento das pessoas. Talvez o distanciamento fosse uma forma de sobreviver, já que seus pensamentos poderiam ser considerados complexos demais para a maioria das pessoas e sua homossexualidade era algo abominável no contexto em que vivia.

 

 

A segunda fase da vida de Turing é apresentada no período da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Nessa fase, tem-se o encontro de Turing com Joan Clarke (interpretada por Keira Knightley), uma estudante de matemática de Cambridge. Foi a única mulher que trabalhou como criptonalista em sua equipe. De uma família de eruditos, conseguiu, em parte, romper algumas barreiras impostas às mulheres na época. Talvez a proximidade entre ela e Turing tenha relação com o fato de ambos estarem à margem da sociedade da época, como se eles não se enquadrassem no contexto.

Durante os anos que viveram em meio a códigos e a pressão da guerra, tornaram-se grandes amigos, inclusive, como relata Joan Clarke em [4], em uma das viagens que fizeram, Alan, que não era propenso a contatos físicos, beijou-a e a pediu em casamento. Considerando que na época uma mulher tinha que, por obrigação social, casar-se e um homem não podia revelar-se homossexual, a questão do casamento entre amigos pareceu algo coerente a ser feito. Mas Alan não conseguiu levar isso adiante e o noivado foi rompido, mas não a amizade. De certa forma, Joan foi uma das poucas pessoas que Turing deixou se aproximar a ponto de enxergá-lo sem a máscara da genialidade ou da arrogância.

 

“A Guerra se arrastou por mais dois solitários anos. E a cada dia mostrávamos nossos suados cálculos. Todo dia decidíamos quem vivia ou morria. Todo dia ajudávamos os Aliados a vencerem e ninguém sabia… E o povo fala da Guerra como uma batalha épica entre civilizações. Liberdade contra tirania. Democracia contra Nazismo. Exército de milhões sangrando no chão. Frotas de navios afundando no oceano. Aviões lançando bombas do céu. A Guerra não era assim para nós. Éramos só meia dúzia de entusiastas numa vila ao sul da Inglaterra.”(Alan Turing – Filme)

A Segunda Guerra Mundial foi o marco de uma grande mudança: o vencedor não seria o mais forte, mas sim o mais preparado. E estar preparado envolvia a intersecção entre dois universos até então praticamente disjuntos: ciência e tecnologia. O conhecimento científico que antes estava preso aos muros da universidade, na cabeça de alguns pesquisadores, poderia, de fato, ser transformado em tecnologia capaz de mudar os rumos da história. E foi isso que Alan Turing fez. Mostrou que os artigos publicados antes mesmo dele completar 24 anos não eram uma série de linhas imaginárias ou conjuntos puramente abstratos povoando sua complexa mente, suas ideias poderiam ser usadas para criar máquinas ou definir métodos que resultariam, dentre outras coisas, no fim de uma guerra.

A equipe que trabalhou com ele, especialmente Joan Clarke, teve um papel importante em todo o processo mas, sem a máquina criada por Turing, que no filme foi denominada Christopher (em alusão ao seu primeiro amor), possivelmente os códigos da Enigma demorariam ainda mais a serem desvendados, o que prorrogaria a guerra e suas terríveis consequências. Ter nas mãos o quadro estratégico dos ataques alemães também significou ter que tomar decisões complexas. Como disse Turing no filme, “às vezes não podemos fazer o que nos faz sentir bem, nós temos que fazer o que é lógico”.

 

 

A terceira parte do quebra-cabeças é Turing no final da vida, aos 41 anos de idade, com dificuldade em fazer uma palavra-cruzada, com medo de ser afastado daquilo que lhe restou: suas máquinas e seus códigos. Segundo [5], “Turing admitiu abertamente a sua homossexualidade e como castigo o estado ofereceu-lhe uma escolha entre a prisão ou um tratamento hormonal (a castração química). Ele escolheu a segunda opção, que previsivelmente provocou danos em seu corpo e em sua mente. A condenação também custou ao herói de guerra suas habilitações de segurança e o impediram de viajar para os EUA e outros países”.  A interpretação de Benedict Cumberbatch trouxe à tona toda a fragilidade de Turing. De certa forma, sua mente sempre tão dinâmica e repleta de dados, parecia vazia e sem alicerce. Essa tragédia, que elimina um universo único, que é um ser humano, Turing não conseguiu evitar. A ignorância e a intransigência de certas pessoas, baseadas em determinadas leis, foram maiores que sua inteligência e espírito.

 

Alan: Conseguiu o que quis, não foi? Um trabalho, um marido, uma vida normal.

Joan: Ninguém normal poderia ter feito aquilo. Hoje, pela manhã, eu estava em um trem que passou por uma cidade que não existiria se não fosse graças a você. Comprei uma passagem de um homem que, possivelmente, estaria morto, se não fosse graças a você. Li em meu trabalho que todo um campo de investigação científica só existe graças a você. Agora, se você desejava ser normal… Posso te prometer que eu não iria querer isso. O mundo é, precisamente, um lugar infinitamente melhor por você não desejar ser normal.

Joan foi amiga de Turing ao longo de toda a sua breve vida e, também, sua confidente.  A forma como esse relacionamento é conduzido no filme é um dos seus principais méritos. A cena em que vimos um Alan quebrado e confuso, longe de seu habitual orgulho e do controle de suas habilidades cognitivas, questionando se era um inadequado, ou se não era “normal” o suficiente para ser feliz, é um dos momentos mais sensíveis do filme.

Alan Turing aos cinco anos de idade

 

Voltando às duas questões iniciais: “O que significa estar vivo? O que significa ser humano?” Não temos essa resposta no filme, nem creio que dar essas respostas era a pretensão do diretor. As questões levantadas já são suficientes para nos fazer refletir sobre uma parte importante da história, mas especialmente sobre questões relacionadas àquilo que consideramos certo ou errado, humano ou monstruoso, moral ou imoral.

Por muito tempo a Inglaterra relutou em conceder o perdão a Turing, pois dizia que era inapropriado conceder o “perdão” a quem “foi devidamente condenado pelo o que então era um delito”. A palavra “perdão” considerando, nesse contexto, o sujeito que perdoa e aquele que é perdoado carrega em si uma triste ironia. Estão perdoando alguém cujo crime foi ser humano, que buscava se sentir vivo, que usava sua mente complexa para tentar entender como pensamos e, considerando que isso seja algo maravilhoso, como podemos construir máquinas que possam ter a sua própria maneira de pensar.

 

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

 

Trailer:

 

 Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

FICHA TÉCNICA DO FILME

O JOGO DA IMITAÇÃO

Título Original: The Imitation Game
Direção: Morten Tyldum
Roteiro: Andrew Hodges (book), Graham Moore (screenplay)
Elenco Principal: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode
Ano: 2014
REFERÊNCIAS

[1] http://www.theguardian.com/science/2014/nov/14/imitation-game-alan-turing-benedict-cumberbatch

[2] Turing, A.M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-460. Disponível em: http://www.loebner.net/Prizef/TuringArticle.html

[3] http://www.nndb.com/people/952/000023883/

[4] My Engagement to Alan Turing by Joan Clarke (later Joan Murray). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MB2e9R7bXCk

[5] PICKETT, Brent. Alan Turing, Natural Law & Homosexuality. Dez, 2014. Disponível em: http://www.thecritique.com/articles/decoding-apologies-to-alan-turing-is-post-mortem-pardon-meaningless/

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As faces da guerra nas lentes de Robert Capa

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“Para mim, Capa vestia os trajes de luz de um grande toureiro, mas nunca para matar;
como grande guerreiro, ele embatia generosamente por si próprio
e
pelos outros em meio a um furacão.
Quis a fatalidade que fosse derrotado no auge de sua glória.”
Henri Cartier-Bresson

Robert Capa em Paris, 1952. Foto: Ruth Orkin

O testemunho visual do fotógrafo Robert Capa confirma a sua própria fé na capacidade do homem em persistir e triunfar. Obstinado, buscava superar seus limites quando o assunto era a documentação fotográfica. Obsessivo, queria a imagem mais verossímil possível e não media esforços para atingir seus objetivos. No campo de batalha, ia além do que a capacitação técnica dos aparelhos fotográficos da época permitia… Capa chegava perto, se aproximava da sua “presa”.

Robert Capa em atividade de documentação fotográfica

De posse de uma Leica 35mm, seus movimentos eram rápidos e discretos, a sagacidade com que se mobilizava o permitia focalizar rostos e gestos, o que nos permite, a cada mergulho em sua obra, experimentar uma sensação de envolvimento, como se estivéssemos presentes com ele na guerra. Uma das fotografias mais famosas de Capa mostra um combatente voluntário do governo espanhol sendo baleado. Sentimos a morte chegar com essa imagem. Caímos antes dele. Em 1936, quando foi publicada, ninguém jamais tinha visto uma imagem que transmitisse a tragédia com tanta proximidade, simultaneidade, verdade.

A morte de um legalista, próximo ao cerco de Muriano (fronte de Córdoba),
por volta de 5 de setembro de 1936.

Em 1938, então com 25 anos, Robert Capa foi consagrado pela revista britânica Picture Post como “o melhor fotógrafo de guerra do mundo”. Passados mais de 70 anos, críticos de fotografia acreditam que a cobertura de cinco guerras e a força de seus registros não tiram dele esse título. Sua obra é marcada por imagens que expressa um lirismo delicado e momentos decisivos que mostra a face da guerra como ela realmente foi. A guerra para o fotógrafo não possuía máscaras. Suas imagens, revestidas de sensibilidade, impressionam pelo verismo fotográfico.

Soldado americano morto por franco-atiradores alemães, Leipzig, 18 de abril de 1945

Capa tinha aversão da guerra e o que ela provocava nos indivíduos surpreendidos por ela – como ele próprio o foi. Embora fosse um homem corajoso, que se adaptava com facilidade aos rigores da vida militar nos campos de batalha, era um pacifista e não se achava capaz de se tornar um fotógrafo de guerra.  Da mesma forma que detestava os conflitos, Capa acreditava intensamente que, se a guerra tinha de ser a realidade do momento, era fundamental que o lado vencedor fosse o do bem, o da justiça.

Soldados perto de Nápoles, setembro de 1943

Em suas fotografias percebemos traços da personalidade de Capa. Com unanimidade, amigos que conviviam com ele o consideravam um homem extraordinário: generoso, perspicaz, detalhista, bem humorado. Desprezava hipocrisia e pretensão e jamais se considerou um artista. Embora suas fotografias sejam lembradas como um registro visual definitivo de acontecimentos decisivos, como o cerco de Madri, o bombardeio japonês em Hankou e a chegada dos aliados no Dia D, muitas das imagens de Capa são de uma qualidade eterna e universal, que transcendem os limites da história.

Tropas dos EUA desembarcando no Dia D em Omaha Beach, costa da Normandia, 6 de junho de 1944

Além de documentar a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), Capa passou seis meses na China em 1938 para registrar a resistência à invasão japonesa, e mais tarde prosseguiu com a cobertura da segunda Guerra Mundial (1941-1945), a Guerra de Independência de Israel (1948) e a Guerra da Indochina (1954). Enquanto fotografava as manobras francesas no delta do Rio Vermelho (Red River), Capa avançou sobre uma mina antimilitar e foi morto, em 25 de maio de 1954, aos 40 anos. A sua morte foi uma conseqüência revestida de ironia se pensarmos em seu próprio legado: “Se as fotografias não são suficientemente boas, é porque não se está suficientemente perto”.

No caminho de Namdinh a Thaibinh, 25 de maio de 1954. Uma de suas últimas fotos que Capa tirou antes de ser morto num campo minado.

Curiosidades:

  • Endre Erno Friedmann, verdadeiro nome de Capa, nasceu em Budapeste em 22 de outubro de 1913. Ativista de esquerda, foi obrigado a sair da Hungria, indo morar na Alemanha onde começou a trabalhar como assistente de revelação da Agência Dephot. Logo tomou gosto pela fotografia e começou se expressar por meio dessa linguagem.
  • O “fotógrafo americano” Robert Capa foi criação de Gerda, talentosa fotógrafa e o amor de sua vida, quando decidiu, com ela, partir para a Espanha, para apoiar a causa republicana. Lá ficou amigo de Ernest Hemingway, Martha Gellhorn e Herbert Matthews, correspondente do “New York Times”.
  • Durante a primavera e o verão de 1936, Capa cobriu o tumulto das passeatas, manifestações e ocupações de prédios parisienses durante a eleição da coalizão de liberais, socialistas e comunistas, conhecidas como Frente Popular, formada para combater o surgimento do fascismo.


Gerda Taro por Robert Capa

  • Depois que Gerda Taro, refugiada alemã que ele conheceu em 1934 foi morta por um tanque, em julho de 1937, Capa foi para Nova York visitar seus familiares e depois, em 1938, passou seis meses na China. Após seu retorno, em outubro de 1938, instalou-se em Barcelona, então bombardeada pelas tropas fascistas em rápido avanço. Algumas de suas fotografias mais emocionantes registram o êxodo da cidade para a fronteira francesa, no final de janeiro de 1939. Madrid resistiu até março, quando sua queda culminou com a vitória fascista.
  • Dos seus romances mais famosos, o mundo acompanhou o seu namoro com a atriz Ingrid Bergman (do filme Casablanca), com quem passou conturbado período. Bergman pediu que Capa a acompanhasse em Hollywood, onde ele trabalhou por algum tempo fazendo fotografias do set de filmagens de “Interlúdio” (1946), de Alfred Hitchcock.

Set de filmagens de ‘Interlúdio’ com Ingrid Bergman e a direção de Alfred Hitchcock

  • Hitchock acabou observando de perto a relação de Robert Capa e Ingrid Bergman e usou o romance como fonte de inspiração para o seu “Janela Indiscreta” em 1954. Ela, uma das mulheres mais cobiçadas da época, estava disposta a deixar o marido se ele se casasse com ela. Capa não quis. Um boêmio assumido,  prezava a liberdade a ponto de perder Ingrid para não se sentir preso.

Ingrid Bergman por Robert Capa

  • O roteirista Arash Amel vai adaptar o romance inédito “Seducing Ingrid Bergman”, escrito por Chris Greenhalgh. A obra irá retratar o tórrido e clandestino romance entre a belíssima atriz e Capa, que provocou uma mudança na imagem que o mundo tinha de atriz. A trama irá mostrar as decisões apaixonadas que fizeram Ingrid ser denunciada pelo Senado americano por causa de seu comportamento imoral. Acusada de adúltera e de mau exemplo para as mulheres americanas, ela ficou anos sem filmar nos Estados Unidos.
  • Na primavera de 1942, Capa havia percorrido os Estados Unidos de costa a costa, mas, para um fotógrafo que documentara com brilhantismo a Guerra Civil Espanhola e a invasão japonesa na China, esses trabalhos eram desestimulantes. Para ele, faltava emoção.
  • No Dia D, 6 de junho de 1944, Capa fotografou a chegada por mar das tropas americanas na costa francesa da Normandia, cujo codinome era Omaha Beach. Ele alcançou a terra com as primeiras tropas, um pouco antes do amanhecer, e fotografou os soldados enquanto avançavam numa praia fortemente protegida.
  • Com exceção de onze negativos de Capa, todos os outros foram danificados por um funcionário demasiadamente imprudente da câmara escura do escritório da Time Inc., que deixou o secador em temperatura muito alta no momento de secar os negativos.

Tropas dos EUA desembarcando no Dia D em Omaha Beach, costa da Normandia, 6 de junho de 1944.

  • As fotos de Robert Capa do Dia D inspiraram o diretor Steven Spielberg para o filme o Resgate do Soldado Ryan.
  • Em 1947, com seus amigos Henri Cartier-Bresson, David Seymor (“Chim”), George Rodger e William Vandivert fundou a famosa Magnum, uma agência cooperativa de fotografia. Foi presidente da agência de 1950 a 1953, época que dedicou seu tempo ao recrutamento e formação de jovens fotógrafos.
  • Em 1955, a revista Life e Overseas Press Club criaram o prêmio anual Robert Capa “para exímios fotógrafos com coragem e atuação excepcionais no exterior”.
  • Capa produziu em torno de 72 mil negativos e muitas imagens nunca foram publicadas. Parte de seu acervo está disponível para consultas no Robert Capa Archive localizado noInternational Center of Photography.

As balas abriam buracos na água a minha volta,
e eu corria em direção da proteção de aço mais próxima
.”
Robert Capa

Tropas dos EUA desembarcando no Dia D em Omaha Beach, costa da Normandia, 6 de junho de 1944.

Ainda era muito cedo e bastante escuro para conseguir boas fotos,
mas a água e o céu cinzas fizeram daqueles homens,
que se esquivam por entre o design surrealista antiinvasão
montado por especialistas de Hitler, uma imagem muito forte
.”
Robert Capa

Robert Capa em ação no Dia D

Referências:

CAPA, Robert.Images of Wart. Nova York: Grossman, 1964.
CAPA, Cornell e WHELAN, Richard. Children of War, Children of Place: Photographs by Robert Capa. Boston: Bullfinch Press/Little, Brown, 1991.
WHELAN, Richard. Robert Capa: A Biography. Nova York: Knopf, 1985.
KERSHAW, Alex. Sangue e Champanhe: A Vida de Robert Capa. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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Enfermeira Florence – “a dama da lâmpada”

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Pintura de J. Butterworth

“A Enfermagem é uma arte; e para realizá-la como arte, requer uma devoção tão exclusiva, um preparo tão rigoroso, como a obra de qualquer pintor ou escultor;
pois o que é tratar da tela morta ou do frio mármore comparado ao
tratar do corpo vivo, o templo do espírito de Deus?
É uma das artes, poder-se-ia dizer, a mais bela das artes.”

Florence Nightingale

Florence Nightingale nasceu no ano de 1820 em Florença, Itália, por isso, recebeu esse nome, uma homenagem a cidade em que nascera. Era de família rica, e seu destino seria como o de outras mulheres de sua idade e classe social: fazer um bom casamento, cuidar da casa e da família. Seu pai, William Nightingale, empenhou-se bastante na educação de suas filhas, algo que na época só poderia ser feito com os homens, pois até então, não viam a necessidade de proporcionar educação às mulheres. Por conta disso, Florence cresceu com grande interesse em relação aos estudos.

Florence Nightingale

Florence teve várias experiências religiosas, dentre elas, uma revelação de Deus de que tinha a missão de servi-lo. A maneira que ela encontrou de cumprir com a sua missão foi cuidar das pessoas doentes. Apesar da preocupação que seus pais tinham com sua educação, não concordavam com o fato de que mulheres de alto poder aquisitivo pudessem trabalhar, pois o trabalho era restrito àquelas que eram viúvas ou pobres. Mas, ela enfrentou sua família em busca de seus sonhos, passou a visitar hospitais em diferentes lugares para conhecer as necessidades e aprender como cuidar de pessoas enfermas. Em uma visita a um projeto destinado a cuidar de doentes, criado por um pastor da Igreja Luterana, decidiu que dedicaria o resto da sua vida à enfermagem.

Um membro do governo inglês convidou-a para chefiar um grupo de enfermeiras para cuidar dos feridos durante a guerra da Crimeia. Com bastante entusiasmo aceitou o convite, pois além de contribuir com o próximo, viu nessa viagem uma possibilidade de realizar tudo o que aprendeu durante as visitas nos hospitais.

Guerra da Crimeia – Cerco de Sebastopol

A Guerra de Crimeia nasceu de um embate entre russos e otomanos, mas acabou envolvendo outros países, fazendo com que o conflito durasse dois anos. Várias pessoas morreram. As principais causas da morte eram as doenças infectocontagiosas, a falta de higiene nas enfermarias e também a falta de preocupação das enfermeiras com a higiene pessoal dos pacientes. Obstinada a revolucionar a saúde dos militares feridos na guerra, Florence tentava realizar tudo que aprendeu com extrema dedicação e afinco.

Assim, caminhava pelas enfermarias durante a noite sob a luz de uma lâmpada para observar os feridos que ali estavam, e, por conta disso, ficou conhecida como a “dama da lâmpada”. Ficava horrorizada com a sujeira do local, bem como com a falta de higiene dos pacientes. Sua inclinação para a matemática teve bastante utilidade em estudos estatísticos que apontaram o alto índice de infecções. Isso a fez refletir sobre o quanto as medidas de higiene e limpeza seriam úteis nesse processo de cuidado. Passou a organizar “mutirões” de limpeza nas enfermarias, recrutou as enfermeiras que eram supervisionadas por ela, como forma de enfatizar a importância de manter a higiene do paciente. Preocupava-se constantemente em ensinar aos enfermos a realizarem o autocuidado, e os que já tinham sua independência eram responsáveis por ajudar os demais. Com isso conseguiu diminuir consideravelmente o número de óbitos e doenças advindas da limpeza ineficaz.

Nessa época, a enfermagem era subordinada ao profissional médico, não tinha autonomia de avaliar o cliente e realizar os cuidados que eles precisavam para ajudar no seu processo de cura. Florence era perseguida pelos médicos por causa de suas iniciativas, já que eles viam tais atitudes como desobediência. Muitas vezes, os médicos negligenciavam o atendimento a alguns enfermos por conta de os mesmos serem inimigos de guerra. Mesmo assim, Nightingale os desafiava em busca de colocar a saúde do ser humano acima de diferença de qualquer natureza.

Por causa de sua luta, foi merecidamente reconhecida pelas suas conquistas como enfermeira. Ao voltar da guerra, continuou contribuindo para que a enfermagem alçasse voos mais altos, alcançando sua independência. Fundou a primeira escola de enfermagem do mundo no Hospital Sain’t Thomas, em Londres; escreveu um livro sobre treinamento para enfermeiras e contribuiu com a comissão governamental sobre saúde dos militares.

A dedicação de Florence Nightingale pela enfermagem foi extremamente importante para torná-la uma profissão reconhecida. Com a criação da escola de enfermagem, a profissão passou a ter um maior reconhecimento, pois antes era realizada por mulheres que exerciam a função empiricamente, com péssimas condições de trabalho e baixa remuneração.

A enfermagem passou ter autonomia no planejamento e execução dos cuidados a serem prestados, não só como forma de curar a doença já estabelecida, mas, principalmente, visando a sua prevenção. Partindo da teoria ambientalista criada por Florence, existe uma maior preocupação com o ambiente em que o paciente está inserido, pois ela acreditava que se o doente estivesse em um local propício (com boa iluminação, boas condições físicas e de higiene), teria mais energia para contribuir com sua própria melhora.

Apesar da batalha de Florence ter dado visibilidade à profissão, podemos observar que ainda há muito que melhorar. A enfermagem é uma profissão muito bonita, porém ainda desvalorizada. O enfermeiro é uma figura de extrema importância em uma unidade hospitalar, pois são eles que ficam com os pacientes a maior parte de sua permanência. São responsáveis por eles desde sua entrada até sua saída do hospital, devendo entregá-lo de preferência melhor que quando deu entrada na unidade. Vemos muitos erros cometidos por esses profissionais, mas não paramos para pensar na baixa remuneração, fazendo com que a maioria deles trabalhe em dois ou mais lugares por necessidade, ocasionando o desgaste físico e a falta de estímulo para com sua própria profissão. A enfermagem é uma profissão que ainda luta por uma carga horária e um piso salarial dignos de quem dedica suas vidas a cuidar do próximo.

 

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Guerra Mundial Z: a resposta do herói pode estar dentro de si

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Um dos grandes lançamentos do cinema americano deste ano, estrelado pelo astro Brad Pitt, é Guerra Mundial Z, longa baseado no livro homônimo de Max Brooks e dirigido por Marc Forster. Com uma abordagem apocalíptica, que remete ao milenarismo cristão, sem dúvida é uma das obras recentes mais permeadas pelo mito do herói, pela cosmogonia do Oriente e do Ocidente e, claro, pela ideia de redenção através do reconhecimento de transcendência nas relações intersubjetivas.

Tudo começa com a descrição de uma pós-modernidade marcada pelas relações de distanciamento e desconfiança, como bem frisa o filósofo brasileiro Luís Felipe Pondé. O ápice desse molde, numa espécie de antítese que num primeiro momento pode até parecer válida, é o personagem principal.

Dentro de um núcleo familiar aparentemente perfeito, porém limitado e, logo, egoísta, Gerry Lane é instado a deixar o “conforto” do lar e da família para iniciar uma longa jornada, que poderia ser perfeitamente comparada à jornada do herói/guerreiro, brilhantemente descrita pelo mitólogo Joseph Campbell.

Gerry Lane se vê diante de uma circunstância em que é obrigado moralmente a sair de perto daqueles de quem ama, mesmo que o objetivo seja encontrar uma solução para dirimir – primeiramente – o sofrimento destes. O percurso, no entanto, o faz perceber que todos estão permeados pela mesma problemática, que a problemática não é exclusividade sua ou da sua família, e o personagem então passa a ampliar seu raio de empatia para uma quantidade maior de pessoas.

No filme, essa virada ocorre quando do estabelecimento emocional entre Lane e a soldado israelense ferida em combate. O segundo ato de percepção e de consolidação do reconhecer-se no outro ocorre no encontro de Gerry com cientistas da Organização Mundial de Saúde.

A receita, amplamente detalhada por Campbell no livro “O Herói de Mil Faces” é utilizada no filme e mostra um ser ordinário (Gerry Lane) ainda muito agarrado a questões e demandas estritamente pessoais (o que, na gnosiologia poderia indicar alguém fortemente influenciado pela matéria) que paulatinamente inicia um percurso de distanciamento e, o mais importante, de depuração da sensibilidade (mais próximo, então, do suprasensível).

Num dos momentos do longa (segunda metade da obra), Lane definitivamente já vê o “outro” não como um mero ser separado de si, mas como uma possibilidade de identificação e de trocas intersubjetivas. Há, então, uma mudança de perspectiva do personagem, que passa a perceber no próprio caos a saída para tamanho conflito.

Quando Gerry Lane percebe que a “cura” está na própria doença, por analogia ele reconhece (como no mito do herói) que as respostas de que sempre procurou estão mais próximas do que se imagina: por que não dentro dele mesmo? Dentro de cada um de nós?

Outra abordagem interessante do filme e que nos remete a uma cosmogonia tanto do Ocidente (Cristianismo) quando do Oriente (Budismo Tibetano) é a referência ao som como mecanismo de “despertar”. Zumbis em estado de “letargia” e que são “provocados” pelo som é uma alegoria que certamente se assemelha a gênese (condicionada ou não) de que “no princípio era o Verbo”, e a partir do Verbo (ou som, para os budistas tibetanos) vem o movimento.

Mas, estranhamente, no cerne do próprio movimento já está a semente da destruição. Assim, a vida andaria lado a lado com a morte. E se para viver tem que mover-se (como bem exortou Gerry Lane à família de latinos), é no movimento (Devir) que nos aproximamos da morte. Mas a morte, neste caso, pode ser definida como uma transição, como um sair do ordinário para uma vida mais ampla, menos egoísta.

Há de se observar também que os zumbis podem representar a própria “corporeificação” do inconsciente (Carl Jung)1, esse “gigante” desconhecido que vive conosco o tempo inteiro e que dele pouco sabemos, mas muito tememos. Esse é um tema amplo, que daria um novo artigo.

De resto, trata-se de uma excelente estória para nos contar que, em algum momento de nossas vidas, seremos “cobrados” a sair das zonas de conforto e iniciarmos nossa própria trajetória (ou trajetórias) em busca das respostas mais inquietantes, mas que apenas cada um de nós pode encontrá-las. E estas estórias (que cada um de nós escreve/percorre) certamente aparentam ser muito distintas, mas no fundo podem apresentar similaridades desconcertantes. Estamos prontos para iniciar nossa jornada?

Nota:

1 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Inconsciente, o estranho que vive em nós. Revista Mente & Cérebro. Editora Duetto, 2013, número 245.

Referências:

SEVERINO, Roque Enrique. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube do Livro, 2010.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995.

PONDÉ, Luis Felipe. Uma agenda para o Inverno – ambivalência, medo e coragem. Café Filosófico – CPFL CULTURA. Campinas: 2006. Disponível emhttp://www.cpflcultura.com.br/2008/12/24/o-diagnostico-de-zygmunt-bauman-para-a-pos-modernidade-uma-agenda-para-o-inverno-ambivalencia-medo-e-coragem/ . Acesso em 08/06/2013.


FICHA TÉCNICA DO FILME

GUERRA MUNDIAL Z

Título Original: World War Z
Gênero: Ficção científica
Ano lançamento: 2013
Diretor: Marc Forster
Roteirista: Matthew Michael Carnahan, Drew Goddard, Damon Lindelof
Produzido por: Ian Bryce, Dede Gardner, Jeremy Kleiner, Brad Pitt
Elenco: Brad Pitt, Eric West, Matthew Fox, David Morse, James Badge Dale, Mireille Enos, David Andrews, Elyes Gabel, Trevor White, Katrina Vasilieva
Duração: 116
Idioma: Inglês
País: Estados Unidos
Distribuidora: Paramount Pictures
Site Oficial: http://www.guerramundialz.com.br/

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A Hora Mais Escura: o mal é uma saída necessária

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Com cinco indicações ao Oscar:

Filme, Atriz (Jessica Chastain), Roteiro Original (Mark Boal), Edição, Edição de Som

 

No escuro da tela, ouve-se uma ligação, é a gravação real de um telefonema para a emergência no 11/09/2001. A última frase que ouvimos da pessoa é “estou queimando”.  Muda-se o foco, agora aparece um galpão em algum lugar do Paquistão e o que vemos é uma cena de tortura, um americano falando metodicamente que quer ouvir a verdade, uma pessoa de capuz assistindo a cena e mais dois encapuçados puxando as cordas que prendem os braços do prisioneiro.

Quando Zero Dark Thirty estreou em Dezembro de 2012 nos EUA gerou muita polêmica, em especial, por mostrar cenas de tortura praticadas por integrantes da C.I.A. (A Central de Inteligência Americana). E a impressão que se tem é de que a premissa principal do filme gira em torno do fato de que o Interrogatório Reforçado (ou seja, aquele na qual se usa a tortura como um meio para se chegar a um fim) foi a peça principal na descoberta do esconderijo de Osama Bin Laden e na sua consequente morte.

A minuciosa pesquisa jornalística do roteirista Mark Boal e da diretora Kathryn Bigelow (ambos ganhadores do Oscar em 2010 pelo filme “Guerra ao Terror”) sobre os acontecimentos em torno da “Caçada ao Osama” produziu um filme com uma sequência de fatos tão reais que tem provocado um grande desconforto em alguns membros do Senado e da CIA.

 

 

O filme conta a história a partir do ponto de vista de Maya (uma agente da CIA – um personagem que representa uma composição de algumas figuras reais). Maya muitas vezes é a única figura feminina em cena, mas sua forma, paradoxalmente, passional e lógica de conduzir o caso acabou fazendo com que ela se tornasse a mentora por detrás do quebra cabeças de fatos que conduziram à morte do Bin Laden.  Na primeira cena de tortura que ela acompanhou, o prisioneiro tentou apelar para os seus sentimentos, talvez julgando que uma figura feminina tivesse mais complacência. Mas, de maneira impassível, Maya apenas disse a ele o que o outro agente já havia falado: se não quiser ser torturado, fale a verdade.

As cenas de tortura presenciadas ou conduzidas por Maya são uma ode ao horror: espancamentos, humilhação, privação de sono, confinamento em caixa, afogamento. Para Maya, não há tempo para pensar na natureza de tudo aquilo, ela executa as ações que julga serem relevantes para alcançar seu objetivo: encontrar Osama. Graças à brilhante interpretação de Jessica Chastain, podemos acompanhar através de suas expressões sutis, especialmente do seu olhar, a angústia do personagem, desde sua tentativa de permanecer impassível até sua nítida perda de controle em alguns momentos. Mas, Maya tem que acreditar que a sua complacência perante a dor do outro tem que ser menor que seu objetivo final e ela acredita, foi treinada para isso.

Depois de 12 anos de busca, de muitas mortes (inclusive de amigos da CIA), Maya finalmente consegue comprovar que sua principal pista, um mensageiro da Al-Qaeda, ao contrário do que diziam outros agentes, estava vivo e poderia levá-los ao Bin Laden. Desta forma, ela consegue encontrar provas suficientes para que o alto escalão autorizasse um ataque aéreo surpresa e uma invasão na casa que, em tese, estaria Osama.  Quando, na reunião repleta de homens, o chefe de departamento da CIA pergunta quem é a mulher sentada na parte mais distante da sala, ela mesma responde: “I am the motherfucker that found the place,sir”.

 

 

A reconstrução de toda a operação realizada na casa na qual estava escondido Bin Laden é primorosa.  Enquanto crianças choram, mulheres se desesperam, homens são assassinados, o corpo de uma pessoa envelhecida cai ao chão. Bin Laden muda de status: da figura mais procurada pelo Governo dos EUA passar a ser o corpo inerte no terceiro andar. Então, colocam-no em um saco e levam-no para a sede da CIA no Paquistão.

 

 

E, assim, Maya fica diante daquilo que foi seu objetivo de vida durante 12 anos. Com uma expressão de quem está assustada pelo fechamento de um ciclo, ela se aproxima do corpo do Osama e confirma sua identidade.  Finalmente, a busca chegou ao fim, então ela entra em um avião e ouve-se uma voz: “Deve ser muito importante, tem um avião só para você. Para onde quer ir?”

Ela nada responde. Talvez com a morte do Bin Laden, não haja mais um objetivo, nem um lugar para ir.

 

 

Mais do que uma história sobre as consequências do fundamentalismo, do imperialismo político ou do fanatismo religioso, esse filme mostra como podemos nos acostumar com o mal e aceitá-lo como uma saída necessária em alguns dilemas. Muitas vezes, as categorizações que se formam em torno daquilo que assumimos como justiça, verdade ou moral podem ser responsáveis por criar cruzadas que vão além da nossa possibilidade de discernimento entre o bem e o mal. Talvez porque a maior parte dos dilemas não se encontra em um polo distinto de uma abstrata linha moral, e sim em trânsito entre uma coisa e outra.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

A HORA MAIS ESCURA

Título Original: Zero Dark Thirty
Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco Principal: Jessica Chastain, Jason Clarke, Jennifer Ehle, Mark Strong, Kyle Chandler e Reda Kateb.

Alguns prêmios:
AFI Awards – Filme do Ano
Austin Film Critics Association – Melhor Filme
Broadcast Film Critics Association Awards – Melhor Filme, Melhor Atriz (Jessica Chastain), Melhor Edição, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original
Golden Globes – Melhor performance de uma Atriz em um filme – drama (Jessica Chastain)

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