A Psicologia através do Homem-Aranha

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A tríade do Homem-Aranha, de Sam Raimi, bem como a nova série “O Espetacular Homem-Aranha”, se refere ao processo de desenvolvimento de Peter Parker, e também da nossa diferenciação, enquanto heróis da nossa própria vida. O primeiro filme aborda a aflição que origina o herói: o remorso pela morte do tio Ben. O segundo filme se trata sobre a insegurança de Peter se ele deve continuar sua trajetória de herói ou não. O terceiro é a resolução dessa dúvida, pois Peter se identifica com sua função de herói, o que distingui sua sombra: Venon, que terá que confrontar para o bem de sua integridade anímica. A série atual já modifica a ferida do herói para o abandono dos pais, fato que irá refletir em todos os filmes, principalmente na inseguridade e no sentimento de solidão de Peter. Um estudo mais categórico dessa série só é provável ao seu término, para encaixar um filme ao outro e verificar para onde a aventura está caminhando.

Peter, coerentemente, é um pesquisador, mas tem que responsabilizar-se de seus sentimentos, processos opostos às ideias. Enquanto aranha, ele “flutua” de um oposto anímico para outro, a fim de alcançar a condição de equilíbrio, sem se caracterizar com um ou outro, uma vez que ambos fazem parte da vida e da mente. O azul caracteriza-se à tranquilidade, à pureza, à exatidão, ao frio, à imaterialidade e à espiritualidade. O vermelho é associado à vida, aos instintos, à vigilância, à inquietude. Perceber-se com um deles, sejam eles quais forem, é querer tornar-se um deus, resolver tudo de uma só maneira, como em uma “receita de bolo”, o que nos torna impiedosos para com aqueles que se identificam com o lado oposto. Isso é bem ilustrado no Homem-Aranha 3, na forma como é cruel com Mary Jane e seu amigo. Por isso a aranha, que possui oito patas, faz uma mandala no peito do herói, um símbolo de integridade, de dimensão dos opostos.

Fonte: encurtador.com.br/dhFI4

No primeiro filme, Peter assume o arquétipo de herói, simbolizada pelo uniforme, e tem a identificação com esse arquétipo. No segundo, sente necessidade de coibir a vida de herói, pois acabou deixando outras carências de lado, como a paixão por Mary Jane. Com isso perde seus poderes e fica novamente uma pessoa ignorante e difícil de lidar. Mas a solução para saber conciliar a vida de herói e com as necessidades humanas é a disciplina, e não a repressão. Esta é utilizada pelo sentimento de medo de usar de maneira compulsória seus poderes. Isso só ocorre quando de forma inconsciente de possuir as qualidades opostas, devido à repressão de um dos privilégios. Porém, o Aranha só vai perceber isso no 3º filme, quando descobre o tamanho que pode ser sua maldade.

Os vilões que o Aranha desafia configuram obstáculos em seu psiquismo que ele precisa dominar. Todos eles podem ser classificados em duas categorias: ou são cientistas, ou são objeto/produtos de estudo científico avançado. De alguma forma estão relacionados à atividade intelectual, e acabam por sucumbir ao poder. Os vilões dos dois primeiros filmes e de “O Espetacular Homem-Aranha” são admiradores da performance intelectual de Peter, como que denunciando o perigo de se fixar apenas em uma função ou qualidade psíquica. As quatro funções psíquicas (pensamento e sentimento, sensação e intuição) são formas de orientação da consciência para adaptação à vida. Elas formam pares em oposição, e não podem se desenvolver sem prejuízo da função oposta, pois uma interfere no funcionamento da outra. Por isso, quando o sentimento se desenvolve, a função intelectual não progride, e vice-versa.

As funções que não progridem. alcançam uma feição inferior, primitiva. Caem totalmente ou em parte no inconsciente e a partir daí operam através do indivíduo de forma involuntária, podendo ocasionar acidentes e todo tipo de erro. Isso está explicado de maneira mais extensa na monografia “A intuição e a sensação em dependentes de droga na perspectiva da psicologia analítica”, onde os opostos intuição e sensação são explicados com mais propriedade. Como Peter desenvolveu mais a função pensamento, e é do tipo psicológico intelectual, mas ao mesmo tempo sente necessidade de evoluir seu sentimento, pois percebe que não consegue lidar muito bem com pessoas caras em sua vida. Harry e Marko parecem ser do tipo sentimento, e são os únicos vilões que Peter perdoa.

Fonte: encurtador.com.br/vBHNV

Além do mais (Norman, Otto, Curt e Max) morrem no final, pois configuram diretamente o uso descomedido da inteligência que precisa cessar da vida de Peter. É como se estes representassem personificações de seu intelecto que precisava ser mais objetivo para que ele pudesse perceber seu intelecto melhor.

A expressão do desfecho, é oportuno fazer um link das aventuras do Homem-Aranha com a ordenação das fabulas dos heróis em geral. O herói quase sempre é vencido pelo monstro na batalha final, o que acontece com Peter quando é “devorado” pelo Simbionte, que encobre seu corpo com a indumentária negra. Isso acontece com Jonas, profeta da bíblia. É no interior da baleia que este começa a ajustar contas com ela, que nada na direção do nascer do sol (JUNG, 1991d, §160). No caso, o Aranha ajustou contas com a sombra coletiva na igreja, e depois ao explodi-la, quando o sol desponta. Somente assim Peter perdoa o Homem-Areia, uma menção há renascença.

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O arquétipo do Herói em Vingadores Ultimato

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais

Nesse momento da jornada ele enfrenta seu inimigo e conhece seus aliados, que é o sexto passo da jornada do herói, é quando também ocorre a maior identificação com o público.

O filme Vingadores Ultimato está atualmente em uma briga pela maior bilheteria da história, e notícias de Kevin Feige – o grande chefão da Marvel – afirmam que uma outra versão do filme com cenas novas, chegará em breve aos cinemas. No mais, o personagem alvo desta análise é nada menos que Thor, o deus do trovão (apesar que ele solta raios, mas essa piada é velha). Thor, filho de Odin e Frigga, apresenta ser um filho mimado em que seus pais parecem depositar grandes expectativas. É perceptível em seus filmes um amadurecimento como pessoa, mas continuou com comportamentos que mostram uma grande dependência dos pais. (Spoiler abaixo!!!)

A análise em questão é a representação do arquétipo do herói e como Thor passou por toda a jornada. Segundo Dell (2014), a jornada do herói é a tentativa de narrar uma experiência humana, que tem um propósito muito profundo. Assim a primeira parte da jornada do herói é a apresentação do mesmo e de um cenário onde o público venha a se identificar com alguns pontos, mostrando que ele é tão humano quanto qualquer um.

No primeiro momento do filme é mostrado como Thor lidou com o final trágico de Vingadores Guerra Infinita. Hulk e Rocket fazem uma visita a ele, e o cenário é uma casa com pouca iluminação onde ele e uns colegas passavam o dia bebendo e jogando vídeo-game, e quando questionado sobre sua vida ele afirma que estava tudo bem.

Fonte: encurtador.com.br/axCFP

O chamado à aventura seria o convite que Hulk faz para Thor, onde fala sobre uma última chance de consertar as coisas, através de uma volta ao tempo com as Partículas Pym como recurso, e Thor seria peça-chave nesta empreitada. Dessa forma, o coloca em confronto com o que ele estava negando enquanto se escondia vivendo daquela forma, e o fazendo refletir sobre uma correção do seu erro, sobre as vidas que ele pode salvar.

Thor nesse momento no filme não se acha digno de empunhar nem o seu Machado, o Rompe-tormentas, pois acredita que falhou como deus, falhou como amigo e por ter fracassado diante da única chance de ter matado Thanos no filme anterior. Dessa forma ele recusa o chamado, por medo de enfrentar a si mesmo. Mas ao final ele acaba aceitando ir, mesmo que isso não significasse que ele estava pronto para a jornada.

O plano consistia em voltar no tempo em diferentes momentos e “pegar as joias emprestadas” para tentar reverter o estalar de dedos do Thanos. Então, foram divididos em duplas, no qual Thor e Rocket ficaram encarregados da jóia da realidade, e foram enviados para a época em que ela estava no corpo de Jane, em Asgard. Nesse momento o nosso herói não estava engajado, e se separou de Rocket dizendo que ia visitar a adega para beber, mas ele acaba esbarrando com sua mãe, que o reconheceu mesmo ele afirmando ser o Thor daquela época.

Então tiveram uma longa conversa e ele tenta avisá-la sobre sua morte, mas ela o interrompe e fala que ela já sabe o que a aguarda. Toda a conversa entre os dois pode se caracterizar como o encontro com o mentor, que é quando ele recebe algo que dá um empurrão, seja conselhos, um treinamento ou um objeto. E antes de partir ele estende a mão e o Mjolnir, seu antigo martelo que havia sido destruído, atende o chamado mostrando que ele ainda é digno e assim ele resolve seu conflito e o seu papel naquela jornada.

Fonte: encurtador.com.br/eGOSX

Quando todos os heróis retornam ao presente, eles utilizam uma manopla criada por Tony Stark; Hulk se oferece para ser quem vai estalar os dedos, pois a radiação das jóias é a mesma dele. A tentativa se mostra um sucesso, apesar do dano que o braço do Hulk toma, e eles conseguem trazer de volta a metade que havia sido transformada em pó. E nesse momento de distração dos heróis, o Thanos do passado consegue vir para o presente e traz consigo todo o seu exército na tentativa de pegar as jóias e desfazer a reversão do estalar.

Thor nesse momento se vê diante do seu inimigo, e estendendo a mão empunha tanto o Rompe-tormentas quanto o Mjolnir e parece ganhar poderes além do que tinha anteriormente, caracterizando a travessia do primeiro limiar, que pode ser a aquisição de uma nova habilidade ou poder. Ele, juntamente com o Capitão América, luta contra Thanos que mostra suas habilidades sem depender da manopla e que por muito pouco ele não perde.

Fonte: encurtador.com.br/cluGZ

E nesse momento, o mais épico e cogitado do filme, Capitão América empunha o Mjolnir, e dá uma surra em Thanos salvando a vida de Thor. A fala do nosso deus do trovão nesse momento foi: “Eu sempre soube”. Como afirma Campbell (1990), não precisamos correr os riscos da aventura sozinhos. Nesse momento da jornada ele enfrenta seu inimigo e conhece seus aliados, que é o sexto passo da jornada do herói, é quando também ocorre a maior identificação com o público.

Thor fica no chão, pode tomar fôlego… esse momento se caracteriza como a caverna secreta, o instante onde o herói dá uma pequena pausa e que mostra o enfrentamento do seu grande medo, uma nova vitória do vilão. Mas nesse momento chegam os reforços mostrando a magnitude da batalha que estaria por vir e na qual ele se junta.

Chega o momento da provação, quando Thor aprende que precisa ir além e trabalhar em equipe dando tudo de si para que a jóias sejam enviadas para a época correta de cada uma utilizando a van do Homem-formiga. Mas no último momento ela é destruída e na tentativa de evitar que o vilão pegue a manopla nosso herói dá tudo de si em um golpe que atrasa o vilão dando chance para outros o deterem.

Ao final do filme ele nomeia a Valquíria como líder dos asgardianos restantes que estavam na terra, e a sua transformação ou retorno a sua confiança como herói pode ser a sua recompensa. Assim ele parte com os Guardiões da Galáxia como a representação de um caminho de volta onde ele escolhe um objetivo que beneficiaria de forma coletiva, e essa se torna sua ressurreição como deus do trovão.

Dessa forma, o retorno com o elixir que representa que nada será como antes, pode ser representado por essa nova jornada que ele opta por fazer, pois assim ele poderá proteger o universo juntamente com os Guardiões da Galáxia.

FICHA TÉCNICA:

VINGADORES: ULTIMATO

Título original: Avengers: Endgame
Direção: Anthony Russo e Joe Russo
Elenco: Robert Downey Jr, Chris Evans, Mark Rufalo, Chris Hemsworth, Scarlett Johasson;
País: EUA
Ano: 2019
Gênero: Ação, Aventura;

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph – O poder do Mito, São Paulo: Palas Athena, 1990.

DELL, Christopher. Mitologia: um guia dos mundos imaginários. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.

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Professor Marston e as Mulheres Maravilhas: a verdadeira história por trás da heroína

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A mulher maravilha tem sim uma identidade. Porque deve ocultar seu verdadeiro eu do mundo dos homens. William Marston

A Mulher Maravilha ou Wonder Woman como é conhecida originalmente, é uma super-heroína de origem grego-romana, sendo publicadas suas histórias e aventuras desde a Era de Ouro dos quadrinhos pela editora Dc Comics, junto de uma gama de super-heróis como Batman, Superman, Flash, entre outros. Para proteger sua identidade secreta a amazona e guerreira utiliza o codinome de Diana Prince entre os humanos. Pois, depois que o piloto da Força Aérea Americana Steve Trevor caiu na ilha sagrada das amazonas, Diana começa a ficar curiosa e a pensar que existe muito mais em seu propósito do que sua Mãe, a Rainha Hipólita, havia mencionado. Assim, ela decidiu ir junto com o soldado para o mundo dos humanos, lutar por paz e justiça.

Fonte: https://bit.ly/2MZeQEW

Dessa forma é contada a história de uma das maiores heroínas de quadrinhos e do cinema que já existiu em todos os tempos, embora que, por trás de um grande herói sempre há algo a mais. No caso de nossa Mulher maravilha, existe um ingrediente secreto a se acrescentar. Visto que, sua narrativa cativa e remete a temas além do que as outras super-heroínas vinham tratando, como feminismo, autonomia para as mulheres, liberdade de expressão e sexual. Poucos sabem a verdade por trás de suas aventuras e isso se deve ao fato de existir um ponto a mais a se acrescentar em sua gênese, uma história de amor que para se consolidar, teve que enfrentar muitos outros desafios na época.

A Mulher Maravilha foi criada na década de 1940 pelo psicólogo e professor William Moulton Marston; ele preferiu esconder sua identidade por motivos pessoais e assinava os quadrinhos como Charles Moulton. O autor era um estudioso que buscava difundir sua teoria DISC, que traduzida do inglês significava: dominação, indução, submissão e conformidade, sendo interpretadas que as relações humanas se dividem na interação dessas quatros categorias de emoção. Casado com uma mulher também estudiosa, independente e de uma intelectualidade bastante invejada, Elisabeth Holloway Marston, que ao lado de seu marido, descobriu que a pressão arterial sistólica aumentava na medida em que a pessoa mentia sobre algo, assim descobriram o famoso polígrafo. Sua mulher não apenas o ajudava com suas ideias e conceitos, mas tentava se destacar em um tempo em que as mulheres lutavam pelos seus direitos. Elisabeth não apenas serviu de inspiração para a Mulher Maravilha, como também a fez existir com sua personalidade forte e força de vontade.

Fonte: https://bit.ly/2WNlqTL

Outra figura importante a ser citada para entendermos melhor a personalidade da Wonder Woman, foi Olive Byrne, uma estudante que se encantou com as mentes brilhantes dos Marston; Olive era filha de Ethel Byrne e sobrinha de Margaret Sanger, duas ativistas que lutavam pelos direitos das mulheres naquele tempo.

O casamento entre os dois ia indo “normalmente”, até que Olive entra na vida dos dois. William logo se interessa pela jovem e espirituosa mulher, quando menciona isso a sua esposa, ela o encoraja a seguir seus instintos, porém sente ciúmes de forma contida pelo marido e acaba tentando afastar a moça deles. Até que percebe que a jovem também se apaixona por ela. Logo os três decidem arriscar-se num relacionamento poliamoroso, que para os padrões do período não era visto com bons olhos, porém apimentado com exploração dos prazeres sexuais de todos, inclusive Bondage. Eles passam a viver juntos na mesma casa e para proteger sua nova família, assumem uma identidade diferente do que realmente vivem.

Não reprimindo completamente suas vidas fora dos muros de casa, William continua pesquisando e atualizando suas teorias e ligando todas as peças do quebra-cabeça de suas vidas. Até que ele percebe a personificação da heroína e maior ícone feminista dos quadrinhos dentro de seu lar. Ele encontra a mulher maravilha em suas próprias mulheres maravilhas. Elisabeth é a personalidade dela, uma mulher guerreira, autônoma que trabalha para sustentar a família, objetiva, uma secretária (identidade secreta) inteligente, que usa um laço da verdade e da justiça (polígrafo). Já Olive era a alma e o corpo da super-heroína, ela usava constantemente braceletes que desviavam balas, tinha muita bondade, sensível, acreditava na paz e na justiça.

Fonte: https://bit.ly/2WSFmod

Com as histórias da personagem,  Marston defendia os direitos das mulheres, a luta pelo sufrágio feminino, como também a independência intelectual, de trabalho para elas e soberania na expressão sexual de seus corpos. Via nela a oportunidade de mostrar a força e poder das mulheres, dentro e fora da sociedade, o que provavelmente não deixou muito feliz muitos segmentos da sociedade, que logo censuravam suas aventuras.

William, Elisabeth e Olive eram pessoas extraordinárias, que se amavam e não tinham uma vida convencional como muitos almejavam, mesmo que essa história tivesse acontecido décadas depois ou até nos dias atuais, não significa que também seriam aceitos. Professor Marston e as Mulheres Maravilhas é um filme que proporciona essa reflexão: será que estamos prontos para aceitar os outros como realmente são? Mesmo em nome do amor, tudo realmente é possível? Sendo sim ou não, podemos admitir que agora vamos ver nossa super-heroína com olhos ainda mais aguçados, seja pela sua verdadeira história, seja pelas histórias que ela ainda irá contar.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

PROFESSOR MARSTON E AS MULHERES MARAVILHA

Título original: Professor Marston & The Wonder Women
Direção: 
Angela Robinson
 Elenco: Bella Heathcote, Rebecca Hall, Luke Evans, Connie Britton;
País: Estados Unidos
Ano: 2017
Gênero: 
Drama, biografia

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Em reverência a Stan Lee, criador do meu herói favorito

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Eu adoro os super-heróis, especialmente os atormentados, os que têm dúvidas sobre os próprios poderes, os humanos o suficiente para nunca estarem totalmente certos se tais poderes são uma benção ou uma maldição.

Ultimamente têm se produzido muitos filmes protagonizados pelos clássicos heróis dos quadrinhos. Gosto particularmente, daqueles que vão além dos efeitos especiais e da eterna e manjada luta do bem contra o mal e se dedicam a nos revelar a mente atormentada do protagonista, suas fragilidades e, sobretudo, o ônus imposto pelos poderes que receberam, quase sempre, sem o direito de escolha.

Fonte: https://bit.ly/2OMglpC

De todos os heróis atormentados Hulk é o meu preferido. Uma pena os últimos filmes deste herói terem explorado mais seus músculos que sua mente atribulada, quase esquizóide. Prefiro o Hulk da década de 80, estrela do seriado Incrível Hulk, de muito sucesso na época. No seriado, Dr. Bruce Banner é um médico cientista que, depois de uma superexposição aos raios gama experimenta uma transformação intensa no corpo – acompanhada de força, resistência e vigor sobre-humanos – sempre que fica com raiva. Raiva essa que nosso herói sempre tenta, mas, nunca consegue controlar. Sendo assim, os atos heróicos do monstro verde, que sempre surge após um acesso de ira, sempre são vistos por Dr. Banner como um erro, um fracasso na tentativa de controlar-se. Fracasso que ele tenta resolver se mudando de uma cidade para outra sempre que Hulk se revela, numa tentativa, também fracassada, de fugir de si mesmo. No final de todo episódio da série, repetia-se a cena de Banner pedindo carona na estrada em direção incerta, cena embalada por uma musiquinha melancólica, aliás, inesquecível.

O que torna Hulk tão especial, a meu ver, é que, diferentemente dos demais heróis, a natureza de seus poderes é involuntária, ou seja, Banner tem muito pouco ou nenhum controle sobre eles. Hulk é para Banner um outro, um estranho. Neste caso, Banner não goza do poder que lhe foi dado, ao contrário, é o poder de Hulk que goza dele, do seu corpo e da sua vida. Nada mais humano que isso, não?

Fonte: https://bit.ly/2TbMj1D

É dito que somos animais racionais, o que supostamente nos possibilitaria ter o controle sobre nossos instintos, paixões e emoções, mas a verdade é que, a todo momento, somos tomados, atropelados por um outro que nossa razão é incapaz de controlar. O tal monstro verde invariavelmente rouba a cena e aí falamos ou fazemos o que não queríamos, poderíamos ou deveríamos falar ou fazer. Mas existe uma pergunta que Banner certamente se faz e que torna seu tormento ainda mais especial e interessante: sua verdade está em Hulk ou no Dr. Banner? Será ele é um Hulk reprimido por Banner ou um Banner atormentado por Hulk? Essa também é uma dúvida que sempre nos atormenta. Quando falamos ou fazemos algo que não queríamos, onde está o nosso eu? No que estava controlado pela razão ou no que conseguiu escapar dela?

O que me provocou a escrever este texto foi o filme – Os Vingadores – lançado nas últimas semanas*, e que eu gostei muito, aliás. Gostei, em especial, pelo Hulk do filme, porque ficou psicologicamente mais parecido com aquele do seriado da década de 80. Dr. Banner, antes de ser convidado para compor o grupo dos Vingadores, encontra-se recluso na Índia, exercendo caridosamente a medicina, evitando assim os estresses que trazem Hulk para a superfície. Fica claro no filme que Banner só aceita se unir aos Vingadores porque lhe garantem que o interesse deles é por seu conhecimento a respeito dos raios gama, ou seja, Hulk não será necessário. Neste momento fica evidente: é Banner negando Hulk.

Fonte: https://bit.ly/2K1jkcL

Mas a maior sacada do filme começa numa conversa entre Tony (o Homem de Ferro) e Dr. Banner, na qual este último, ao tratar de sua condição, se refere ao Hulk como “o outro cara”. Tony, por sua vez, ao perceber o incômodo que Hulk é para Banner, relata a este sua própria experiência de também possuir um estranho em seu corpo, no seu caso, o pequeno dispositivo eletrônico que carrega no peito e que mantém seu coração batendo. O que Tony quer mostrar a Banner é que o mesmo estranho responsável por lhe tornar uma aberração, também é o que lhe possibilitou estar vivo. O médico então conclui: – Você está dizendo que Hulk foi o quem me salvou de sucumbir aos raios gama? Tony não responde… Nem é necessário.

O filme segue e, mais tarde, como era previsível, Hulk irrompe no corpo de Dr. Banner depois que este fica perigosamente preso sob uma viga. E após dar vazão a toda a sua ira, destruindo tudo por onde passa, Hulk se retira para longe, a fim de se acalmar e permitir, então, que Banner retorne. Durante sua ausência, o filme segue e chega ao seu clímax: a aguardada luta do bem contra o mal. E é quando os demais Vingadores já se ocupam desta batalha que Banner aparece entre eles, numa motocicleta. Ao vê-lo chegar em sua frágil forma humana, o Homem de Ferro sabiamente recomenda: – Acho bom você começar a ficar com raiva. E a resposta de Banner é genial, e a meu ver, vale por todo o filme. Ele diz: – Vou te contar meu segredo, (e diz isso enquanto vai se transformando no temível monstro verde e parte com sua fúria para socar o inimigo que avança sobre todos), eu sinto raiva o tempo todo. A cena é genial, porque esta frase é iniciada por Banner e finalizada por Hulk. É possível enxergar nela nosso herói atravessando seu fantasma, se apropriando de sua raiva, aquela que vinha tentando de toda maneira negar e esconder. Vemos Banner convocando e assumindo Hulk, e Hulk raciocinando e falando como Banner. Ali não se trata mais de Banner ou Hulk, mas de uma síntese que inclui Banner e Hulk.

Fonte: https://bit.ly/2PV67Yj

Freud, com seu conceito de inconsciente, nos fez compreender que, ao contrário do que tendemos a crer, o eu não é o senhor em sua própria casa. Lacan, em sua releitura de Freud, também vai tratar desta divisão do sujeito afirmando que o sujeito pensa onde não está e está onde não pensa, nos fazendo concluir que o sujeito, na verdade, está nos dois lugares. Partindo dessa premissa da psicanálise poderíamos então concluir que a verdade do meu herói preferido está em Banner e em Hulk, ou seja, ambos são importantes e necessários. A força de Banner está na ira incontrolável de Hulk e a razão de Hulk provavelmente está na inteligência racional de Banner.

Possivelmente amamos os heróis porque nos identificamos com eles. Também recebemos nossos poderes, não tão extraordinários, é bem verdade, mas igualmente perturbadores. Poderes que, às vezes, nos parecem ser nosso maior defeito, mas ao mesmo tempo os responsáveis por nossos maiores êxitos e vitórias. E como fazer se nossa mais potente força é também, nossa pior maldição? O Hulk dos Vingadores nos dá a dica.

Fonte: https://bit.ly/2Fi3s6U

 *Nota: texto produzido no ano de 2012. 

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Mad Max: Estrada da Fúria – o (re)nascer do herói

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Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa?
Filho do homem 
não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, e as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos, e nenhum rumor de água a latejar na pedra seca.
Apenas uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto de tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”.
Wasteland, de T. S. Eliot por Ivan Junqueira.

O fosso da queda

Max Rockatansky não é um louco, como os títulos da franquia do personagem pressupõem. Ao menos esta não é sua estirpe essencial no início de sua concepção, nos idos de 1979, com o longa-metragem Mad Max (sabiamente não traduzido, o que manteve a força da pronúncia) de George Miller, também idealizador do argumento da obra; o que há diante de nós é um policial, já assolado pela cruel realidade vivenciada por ele e sua família, se perguntando qual a diferença entre usar ou não um uniforme nas estradas combatendo o crime. Ao final deste primeiro filme, e ao longo das duas sequências Mad Max 2: a caçada continua (Mad Max 2: The Road Warrior, 1981) e Mad Max: além da cúpula do trovão (Mad Max: Beyond Thunderdome) é que Max se tona Mad, sendo possuído por sua dor, agonia, arrependimento e ódio do mundo que lhe tirou tudo.

Max, início do filme de 2015.

Estas considerações são fundamentais para entendermos o que é, ou ao menos esboçar, a significância por trás do road movie Mad Max, Estada da Fúria (Mad Max, Fury Road do original) lançado em 2015. Nas investidas originais da franquia, Mel Gibson deu corpo, força e profundidade ao ex-policial de um mundo cada vez mais decadente e, três décadas depois, após inúmeros problemas de produção e adiamentos, Tom Hardy assume o posto deixado por Gibson, e a mudança conseguiu dar vitalidade e novas facetas para personagem, o apresentando e modernizando para nossa época, linguagem e público.

Este novo Max nem que quisesse seria o mesmo do longa inicial de 1979, muito menos o guerreiro implacável dos dois filmes posteriores. Estrada da fúria é um conto sobre alguém perdido em si mesmo, quase uma negação de estudo sobre o personagem título, já que pouco dele nos é apresentado, justamente pela vontade de esquecer-se da própria vida: “Eu era um policial. Um guerreiro da estrada, em busca de uma causa justa” (Max Rockatansky), uma sombra do passado, caminhando num presente sem sentido.

Mel Gibson e Tom Hardy como Max, respectivamente. Fonte: www.imdb.com

Nas telas da obra de 2015 vemos a penumbra do herói que um dia viveu nas infindáveis estradas do deserto que se tornou o mundo. O que vemos nesta versão do personagem é a sua mais profunda condição de fuga, sobrevivência e introspecção, agregados ao peso de seu passado, ações e decisões: “Eu sou aquele que foge tanto dos vivos quanto dos mortos. Caçado por saqueadores. Assombrado por aqueles que não consegui proteger” (Max Rockatansky).

Mas, ao mesmo tempo, o roteiro não nos entrega uma versão anti-heroica de Max, o que seria uma via tentadora, algo reincidente na atual indústria cinematográfica. Desta forma, não uma vendeta ou grande catarse na qual o protagonista trilha seus passos, dos cenários, objetos pessoais e trejeitos não emanam pomposidade ou luminescência moral. O instinto de sobrevivência prevalece como causa e condição para seguir alimentando o andarilho das terras desoladas em Estrada da Fúria.

E, este estado em que se encontra o novo/velho Max é que intrigou boa parte do público que assistiu aos longas clássicos. Apesar da riqueza e espetacularidade – há muito não vistas nas maçantes computadorizações do cinema contemporâneo – do filme apresentado por Miller, a impressão que se teve em muitas pessoas foi de estranhamento em relação ao herói título, muito mais por resistência em mergulhar na proposta de seu renascimento do que na incontestável qualidade do filme, um dos mais premiados e elogiados dos últimos anos.

A viagem pela Estrada da Fúria

O realismo e discussões propostas por Miller só encontraram tamanho eco na indústria cinematográfica a alguns anos, com o Cavaleiro das Trevas (The Dark Night, 2008) de Christopher Nolan. Não há transparência da virtualidade nos cenários e ambientações, vemos o sangue, a ferrugem, a areia e o sol de uma maneira crível e temível, como um mundo distópico suporia ter.

O filme inicia sua jornada com uma das aberturas mais intensas já registradas por Hollywood e que, certamente, ecoará por muitos anos em obras similares. Desde a concepção de sua distopia arenosa Miller viu sua maior criação ser objeto de diversas investidas plagiosas e por vezes falíveis, como O livro de Eli (2010), O Justiceiro (2004) e o brasileiro Reza a Lenda (2015). Mas o filho pródigo retornado às mãos do seu genitor atinge um patamar ainda a ser debatido em sua totalidade.

Os temas trazidos direta e indiretamente ao longo de suas duas horas de duração não temem as reações que possam causar inquietude ao público, como o feminicídio e exploração sexual e corporal das mulheres; a crítica aos extremismos religiosos em torno de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e seus seguidores; toda a crítica ao armamento nuclear, causador do apocalipse que devastou o mundo; e a raridade, distribuição e consumo de petróleo e água; a adoração aos objetos acima de qualquer coisa, neste caso os carros e suas corridas representando este argumento crítico, dentre tantas outras nuances sobrepostas nas camadas de Mad Max, Estrada da Fúria.

Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne).

E não menos importante que todos os pontos já levantados, há a questão do papel de coadjuvante destinado a Max em seu próprio filme, uma consequência e resultado de todos os elementos supracitados. A depreciação corporal, moral, sexual e natural do mundo em Mad Max: Estrada da Fúria é o ponto de sustentação da essência do seu protagonista, um homem que lutou até as últimas forças contra tudo e todos, mas no momento apenas se arrasta como um ser inerte à própria existência.

Era preciso dar força à desgraça de Rockatansky, e a atuação internalista e brutal de Hardy interligada à visceralidade e camadas da Furiosa de Charlize Theron para aumentar toda a potência dos momentos em que estão juntos, em lados contrários ou como aliados. Furiosa é todo o que Max foi um dia e deixou de ser, sua crença, luta e persistência remete à versão oitocentista do herói caído e, não por coincidência, a partir dela o filme se estrutura e desenvolve, aos poucos mostrando a Max uma nova chance, ou ao menos, algum propósito em seus dias terrenos. A relação dos dois é intensa, bruta, real, talvez, por estas razões, não foram poucas as notícias de conflitos entre os dois atores durante as filmagens, devido a vontade mútua de transparecer em máximo realismo possível os sentimentos e contextos de seus personagens.

Furiosa (Charlize Theron) e Max.

E lembremos, é Furiosa quem apresenta a Max uma chance dele buscar algo, um propósito, um sentido para sua caminhada na estrada. Porque se ela é, no contexto do filme, o que Max deixou de ser, portanto, faz todo sentido que nela seja encontrada a rota para sua identidade.

“Furiosa: Você nunca vai ter uma chance melhor.
Max: Em quê?
Furiosa: Redenção.”

Theron/Furiosa é forte, convicta, justa, emocional, profunda e, assim como o personagem título, carrega consigo um peso do tempo em que viveu e vive neste mundo devastado e, mais do que isto, em meio às cores cruas do mundo em que vivem: vibrante e pulsante no cinza, amarelo e sombras, seu sonho, sua almejada redenção reside na busca pelo Vale Verde (menção intertextual à esperança).

Esperança esta também apresentada e dividida, a pós o embate inicial com Max, que passa a acreditar na chegada a este lugar. O vai e vem da história não deixa de ser uma reminiscência ao eterno retorno nietzschiano, pois mesmo negando-nos nossa essência, ela estará lá, mesmo esquecida ou relegada ao ostracismo por muito tempo. O arco envolvendo Furiosa remete a esta alegoria numa linguagem criativa e adequada para este reinício da franquia.

Portanto, devemos entender, ou tentar compreender, que Max não luta ou compete contra Imperatriz Furiosa, Immortan Joe ou Nux, até porque nenhum destes – principalmente a líder da fuga da Cidadela – precisam de outro personagem para se impor, cada qual possui sua história e complexidade. A luta de Max, o seu enfrentamento é consigo próprio, e com isto, e somente e partir disso, a força, fúria e potência de suas convicções e motivações tomam ainda mais importância para sua regeneração, após anos em meio ao seu breu pessoal.

Novos Aliados, pontes para a reificação de si.

O herói renascido de suas cinzas

Após a alucinante sequência inicial, orquestrada de maneira crível e sufocante por Miller, é possível observar, aos poucos, a maneira como o herói morto em Max começa a se reerguer, combatendo o ceticismo dele mesmo ao longo do desenvolvimento do longa. Alguns sinais desta (re)descoberta de si podem ser vistas em momentos-chave e elementos que compõem a mitologia construída ao longo da herança oitocentista de Mad Max.

Por exemplo, as aliadas, lideradas pela Imperatriz Furiosa em sua fuga; a preocupação com os mais novos e inexperientes neste mundo, sendo Nux (Nicholas Hoult) e as pariedeiras seus principais representantes; a recuperação de sua vestimenta, tal como as botas e sua icônica jaqueta, além de suas armas; por fim, mas ainda de maneira subjetiva o embate com seu carro, parte fundamental da construção da identidade do andarilho da terra devastada.

Finalmente a última consideração, não necessariamente sobre Mad Max, Estrada da Fúria, mas sob o personagem título da obra. Os pré-julgamentos e desprendimento da carga iconográfica e sígnica das atuações originais de Mel Gibson construíram uma cortina de fumaça, um velamento analítico sobre este Max do século XXI, e assim como ocorre ao novo Homem de Aço de Zack Snyder ou o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, neste filme temos não necessariamente o herói que queremos, mas o que merecemos. Um alguém humano, assolado por seus erros e, mesmo que relutante, em busca de um fio de esperança em meio às cinzas, sombras e derrotas.

A contemporaneidade é mais fria, descrente e hipócrita que a 30 anos atrás, no período de lançamento das primeiras obras do universo megalomaníaco de Miller. A chegada do Max de Hardy não poderia, nem deveria, ser de outra maneira. Um homem carregado pelas cicatrizes de anos a fio num deserto de decepções, enfrentamentos e sobrevivência. No fim das contas, Mad Max Estrada da Fúria é um filme de (re)começos, Furiosa e Max, representam este plot do roteiro, e todo o percurso de ida e volta que assistimos demonstram isso explícita e cruamente.

Mas não nos esqueçamos, o Max que em certo porto da fuga na estada da fúria profere sua sentença de erro sobre a esperança, é o mesmo que a mantém para o grupo de pessoas que decide ajudar. No fim da loucura e maldição do sangue e sal em que estão afundados, o herói renascido do seu fosso assume seu papel de mantenedor de uma crença no possível, uma via de desconstrução para sua realidade distópica e esquizofrênica. Este é o Max que o público, em sua maioria, deixou de apreciar, (re)ver e deixar-se (des)envolver.

Pelo menos assim nós vamos ser capazes de,  juntos,
se deparar com algum tipo de redenção.”
Max Rockatansky

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA

Diretor: George Miller
Elenco: 
Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne
País:
Austrália e EUA
Ano:
2015
Classificação:
16

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A consciência patriarcal Rogue One: Uma História Star Wars

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Concorreu com duas indicações ao OSCAR:

Melhores Efeitos Visuais e Melhor Mixagem de Som (David Parker e Stuart Wilson).

Banner Série Oscar 2017

Os eventos de Rogue One se passam em um momento posterior ao surgimento de Darth Vader e antes dos eventos de Star Wars. A galáxia então se encontra dominada pela ditadura, escravidão e opressão. O Império Galáctico, inicia então uma busca por pessoas que possam contribuir para a construção de uma super-arma de destruição em massa.

Rogue-One-Banner

O designer de armas Galen Erso, é recrutado a força pelo diretor Imperial Orson Krennic para completar o projeto da Estrela da Morte, uma estação espacial capaz de destruir planetas inteiros. O filme traz então questões que são muito atuais, como o advento de um poder tirânico e opressor de escala mundial. A filha do designer – Jyn Erso – se esconde, para não ser morta pelo Império. Após 13 anos, agora uma adulta, Jyn é liberta do cativeiro Imperial pela Rebelião, que planeja usá-la para rastrear seu pai, e depois matá-lo para impedir a arma que está sendo construída.

Jyn é mais uma nova heroína dessa safra de mulheres fortes e guerreiras que estão despontando no cinema. Em meu texto sobre O Despertar da força, aponto que na primeira trilogia, o herói Luke segue bem a cartilha do típico herói mitológico. Luke é o escolhido, aquele que vai restabelecer a situação saudável e acabar com o mal. E assim como em O despertar da Força temos aqui uma mulher como heroína. Ainda no texto sobre O Despertar da Força, cito que a Trilogia inicial de Star Wars é baseada na Jornada mítica do herói Solar. Onde toda sociedade Ocidental se encontra sob o estigma desse herói que pautou a entrada da era Patriarcal do homem Ocidental.

Jyn Erso (Felicity Jones).
Jyn Erso (Felicity Jones).

Erich Neumann (1995), trata com detalhes esse assunto do herói Solar, afirmando que a consciência do ego tem um caráter masculino e que a relação consciência – dia/luz, e inconsciente/escuridão/noite se mantêm independente do sexo. Ele diz também, que a consciência é masculina mesmo nas mulheres, assim como o inconsciente é feminino. Ele então define a consciência patriarcal, que se separa do inconsciente e fica livre de suas influencias.

Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).
Jyn Erso (Felicity Jones) e Cassian Andor (Diego Luna).

Portanto, para Neumann, a mulher moderna, assim como os homens, possui uma consciência patriarcal e um ego denotado pelo herói masculino solar. O que as recentes adaptações têm feito é transformar a figura feminina em uma cópia exata do modelo masculino. Para a psicologia analítica os heróis míticos e dos contos de fadas são modelos arquetípicos para o ego humano. O herói masculino não deve ser considerado como um humano, mas como um modelo ideal de um ego em consonância e harmonia com a totalidade psíquica.

Tanto heróis como heroínas servem como modelo arquetípico, para homens e mulheres, do masculino e feminino. Apesar da crescente aparição das heroínas representar a busca de expressão feminina que foi reprimida durante muitos séculos, vemos um movimento ainda de unilateralidade, onde os valores tipicamente masculinos estão sendo valorizados também nas mulheres.

"Que a Força esteja conosco."
“Que a Força esteja conosco.”

Jyn Erso possui também traços do herói solar: assim como Luke, ela está em busca do Pai. O Pai na psicologia analítica simboliza a realização externa, a segurança material, a eficiência, a realização profissional. Ou seja, tudo aquilo que é voltado para a realização no mundo externo. E essa premissa é o que ainda norteia nossa sociedade, à custa de uma separação do mundo interior.

Como uma Electra vingativa, Jyn busca a revanche pela sua morte e pela sua memória manchada. O mito de Electra, que planeja a morte da mãe coagindo seu irmão Orestes a matá-la junto com o amante, em função do assassinato do pai, é o mito que mostra a transição do matriarcado para o patriarcado. Porém, apesar de estarmos ainda enraizados no patriarcado, essa representação mais expressiva da mulher guerreira no cinema, já mostra um indicio de uma reflexão sobre o que é ser feminina. As discussões são muitas sobre a questão do feminino, mas ainda estamos longe de resgatar esse arquétipo para a consciência coletiva, pois temos como referência ainda o que é masculino.

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Por isso, com esse texto resolvi abrir essa discussão, pois a unilateralidade, prejudicou não somente as mulheres, mas os homens também. Até a masculinidade madura foi suprimida da sociedade, e no lugar do masculino sábio, encontramos meninos perdidos, pois o processo de desenvolvimento psíquico individual e coletivo ocorre na dinâmica e interação desses dois princípios. Masculino só pode ter referência com o feminino e vice versa.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

NEWMANN, E.História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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ROGUE ONE: UMA HISTÓRIA STAR WARS

Diretor: Gareth Edwards
Elenco: Felicity Jones, Diego Luna, Donnie Yen, Mads Mikkelsen
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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Star Wars – O Despertar da Força: o herói solar

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Com seis indicações ao OSCAR 2016

Edição de Som, Mixagem de Som, Trilha Sonora Original, Efeitos Visuais, Montagem, Edição

Banner Série Oscar 2016

É bem sabido que a Trilogia inicial de Star Wars é baseada na Jornada mítica do herói Solar. Sobre isso é importante salientar que toda sociedade Ocidental se encontra sob o estigma desse herói que pautou a entrada da era Patriarcal do homem Ocidental.

Erich Neumann em sua obra A História da Origem da Consciência (1995), trata com detalhes esse assunto do herói Solar, afirmando que a consciência do ego tem um caráter masculino e que a relação consciência – dia – luz, e inconsciente – escuridão – noite se mantêm independente do sexo. Ele diz também, que a consciência é masculina mesmo nas mulheres, assim como o inconsciente é feminino. Ele então define a consciência patriarcal, que se separa do inconsciente e fica livre de suas influencias.

Essa fase da humanidade foi muito importante para o desenvolvimento da intelectualidade, tecnologia e cultura, No entanto, a figura arquetípica herói solar possui alguns aspectos negativos, que quando unilateral se torna destrutivo: ele é separatista, pautado na perfeição e não na completude, tem medo da morte e do inconsciente e não aceita o seu destino.

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Star Wars – O despertar da Força também segue o script da Jornada do Herói. Mas de forma incomum, tendo uma mulher como heroína. Na primeira trilogia, o herói Luke segue bem a cartilha do típico herói mitológico. Luke é o escolhido, aquele que vai restabelecer a situação saudável e acabar com o mal. Como se trata de uma Jornada do Herói então temos um rito de passagem para a heroína.

Portanto, para Neumann, a mulher moderna, assim como os homens, possui uma consciência patriarcal e um ego denotado pelo herói masculino. Ou seja, o herói Solar. O herói solar típico possui aspectos de uma consciência patriarcal que ao buscar a perfeição exclui os defeitos e o mal, por essa razão o herói usa a espada para cortar o mal e assim ela exclui a totalidade.

Em “O Despertar da Força” ainda vemos aspectos do herói solar na heroína Rey, mas agora com diferenças marcantes. Diferenças essas que refletem mudanças em nossa sociedade Ocidental, necessárias para sairmos da unilateralidade.

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Para iniciar é importante analisar Rey, a heroína em questão.

A moça é bem diferente do grande herói de Star Wars, o Luke Skywalker. Ela não é indefesa e não tem duvidas quanto ao que deve fazer. Apesar de não se imaginar uma Jedi ela não foge das responsabilidades. No entanto, ela ainda possui traços do herói solar: assim como Luke está em busca do Pai e sua figura é um tanto perfeita demais.

O Pai na psicologia analítica simboliza a realização externa, a segurança material, a eficiência, a realização profissional. Ou seja, tudo aquilo que é voltado para a realização no mundo externo. E essa premissa é o que ainda norteia nossa sociedade, à custa de uma separação do mundo interior. Contudo, o filme mostra já algumas mudanças em relação a esse tipo de consciência e parece que há uma busca por equilíbrio, mesmo que lenta.

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Já vemos uma mulher passando por essa jornada, coisa que não vemos nos outros filmes. Apesar da Princesa Lea ter um importante papel na trama, ela nunca tem o verdadeiro destaque. Além da garota Rey que é catadora de sucata, temos um negro, dissidente do lado negro e que auxilia Rey e que também irá passar por uma jornada semelhante de autodescoberta. Vemos então figuras perseguidas pelo preconceito com destaque de heróis.

O mais interessante no filme é que Rey não é heroína sozinha. Nos filmes anteriores, Luke resolvia os problemas, já nessa nova versão vemos uma equipe trabalhando junta. Não é Rey quem desativa os escudos, não é ela que destrói o Starkiller. Isso mostra uma mudança significativa, pois hoje vemos cada vez mais que precisamos do outro (uma típica característica da Era de Aquário), e que a busca de realização pessoal não pode mais ser centrada em nosso próprio ego.

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Para Jung, a individuação é um processo de diferenciação que tem por meta o desenvolvimento da personalidade individual. Assim como o individuo não é um ser isolado, mas supõe uma relação coletiva com sua existência, do mesmo modo o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso o geral (JUNG, 1991).

Outro aspecto importante a se observar é o vilão do filme: Kylo. Apesar de diversas vezes se apresentar como fraco, ele também apresenta uma dimensão bem humana. Ele questiona algumas vezes seus atos e se emociona com o lado luminoso as Força. Ele é apenas um garoto mimado que precisa se sentir forte e se destacar; por essa razão se aproximou do lado sombrio da força.

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Kylo simboliza aquele que sucumbe à sombra. Que não estabelece uma relação com seu inconsciente, nem com seu processo de individuação. Ele também mostra algo sintomático: quando tentamos excluir o mal, para nos tornarmos perfeitos, somos pegos pela sombra e dominados por ela. Ele é oposto de Rey, responsável e madura. Quantos jovens hoje não se encontram infantilizados como Kylo. Temos uma sociedade que não aceita responsabilidade, pressão, quer tudo na hora e faz cenas (como Kylo fez diversas vezes no filme). Ele também mata seu pai, mostrando o tema edípico que pautou a psicanálise e o inicio do estudo do inconsciente.

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O parricídio é um tema constante na Mitologia. Newmann (1995), aponta como uma fase do desenvolvimento da consciência do herói, tanto para o homem quanto para a mulher. Simboliza o afastamento do inconsciente e o medo do herói de ser castrado e morto. Édipo, conforme os estágios de desenvolvimento do herói solar, foi o matador de dragão (esfinge), que simboliza a Grande Mãe e assassino de seu pai.

No entanto aqui cabe o questionamento sobre essa teoria que pauta até hoje a Psicologia Analítica. Édipo falhou em sua jornada. Sua falha foi justamente a de não aceitar o seu destino: ao fugir dele, simplesmente corre em direção a ele. Ele mata literalmente seu pai e, ao final, sucumbe ao incesto, ficando cego. A cegueira é, como aponta Neumann (1995), uma das formas de castração. Uma castração que vem “de cima”, sendo uma fase arquetípica do herói-sol que é castrado e devorado.

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Édipo não encontra a Anima, ou melhor, ela ainda se encontra contaminada pelo complexo materno. Ele deveria libertar o aspecto fecundo e benéfico do elemento feminino, mas falha nisso, regredindo ao estágio de filho. Segundo Neumann (1995), ao assassinar o pai, Édipo se rebela contra a velha lei, os velhos costumes, e a consciência moral existente, pois o pai incorpora o sistema cultural dominante no meio ambiente do filho.

No entanto, no filme, ao matar o pai Kylo se torna mais fraco e Rey mais forte. Ele não se torna um herói. Na verdade, Kylo possui duas figuras paternas: seu pai biológico e um pai espiritual Snoke. Esse pai divino na Mitologia costuma ser positivo e, no entanto aqui ele é a força do mal. Aqui fica o questionamento: a figura de Kylo é trágica como Édipo e se torna fraco enquanto a moça cresce em força, talvez devêssemos desenvolver um novo olhar sobre essa teoria.

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Muitas supresas nos aguardam para o próximo episódio. Kylo irá enfrentar seu tio materno, Luke? Segundo Neumann (1995), é o portador daquilo que denominamos “céu”, símbolo da masculinidade. O tio materno representa a lei coletiva, a consciência ética. Com esse enfrentamento talvez consigamos observar as mudanças, pois será através dele que o elemento feminino poderá trazer a união de ambos aspectos, para que a sociedade ocidental chegue mais perto da completude.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

KAWAI, H. A Psique Japonesa – Grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007.

NEWMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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STAR WARS EPISÓDIO VII – O DESPERTAR DA FORÇA

Direção: J. J. Abrams
Elenco: Daisy Ridley, John Boyega, Harrison Ford, Adam Driver
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 12

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O desvelamento monomítico em “Man of Steel”

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My father believed that if the world found out who I really was, they’d reject me… out of fear. […]Because he was convinced that I had to wait. That the world was not ready. What do you think?
Kal-El

Prólogo

“O coração do novo ser bate eloquentemente. Num lugar onde a existência se tornou algo controlado e previamente estabelecido, sua chegada sela o fim de um ciclo e irrompe início de outro. A perfeição de um mundo pleno decai com seu colapso, levando consigo todos que o construíam, habitavam,  prosperaram e corromperam. Caberá a esta nova vida buscar seu propósito, cravar no tempo os traços de sua trajetória e escolhas. Seu futuro será marcado, a partir deste momento, em ter em si a incumbência de pertencer, ao mesmo tempo, à laços fraternais distintos e padrões morais, estruturas sociais, histórias e destinações, de igual modo, diversas.  A anos-luz de distância a esperança de um recomeço é lançada, desta vez, num prospecto diferente, cercado por uma sociedade consciente de seu arbítrio, falhas e questionamentos, apesar da potencialidade para a compleição de maravilhadas jamais imaginadas. Neste novo lar, o filho das estrelas deverá, por conta própria, encontrar a razão que definirá seu estado de existência entre estes dois mundos.”

Introitos elucidativos

Antes de se iniciar a análise do filme Man of Steel (2013), traduzido como O Homem de Aço no Brasil, é preciso apresentar algumas das escolhas efetuadas para a produção do longa, da filmagem à direção de arte. Em seus 143 minutos de duração há uma roupagem nova para o mais conhecido dos heróis, as ideologias e simbologias da sua existência são exploradas, o peso das suas decisões é colocado em potência de impacto jamais visto no cinema, e uma nova leitura do ícone (pós?) moderno do monomito para o século XXI – o conceito será tratado posteriormente om maiores detalhes, pois sua estrutura é a base não apenas deste filme, mas para toda uma concepção heroica e fantástica do Ocidente.

Há uma sugestão realista, sombria e existencial do homem de aço neste filme de 2013, um sinal dos temos do questionamento do público em relação aos heróis, iniciado nos quadrinhos na década de 1980 em clássicos como V de Vingança (1982), Wacthman (1986) e O Cavaleiro das Trevas (1986). A escuridão e a luz, as virtudes e as fraquezas, as dúvidas e as certezas, todos estes extremos são colocados em picos e vales de composição da jornada dos heróis de nossos tempos. Após a bem sucedida experiência de Christopher Nolan e seu Batman pautado num mundo real e palpável, o mesmo caminho seria seguido pelo maior ícone heroico da DC/Warner Bros. nos cinemas.

Henri Cavill, o novo Superman
Fonte: www.imdb.com

Os efeitos dos eventos pós 11 de setembro de 2001ainda recaem e influenciarão muitas obras fílmicas, literárias e artísticas, não apenas norte-americanas. A dubiedade presente em cada diálogo do filme de 2013 de Zack Snyder, com roteiro de David Goyer, nos remete ao tempo que vivemos envolto em ceticismo e transvalorizações morais, e não mais em lados definidos de um longínquo pós-guerra, já em desgaste, e suas ideologias monocromáticas da era de Reeve e Donner à frente dos filmes do homem de aço. Os editores dos estúdios Warner preparam o ambiente para esta nova visão: “não é o filme que merecemos, mas é o filme que precisávamos” calculando o impacto que a mesma traria ao público e crítica.

De início, o epicentro do todo, o homem por trás do símbolo. A escolha do ator Henri Cavill vai ao encontro da proposta de Snyder para a humanização da personagem. Com seus 1.85m, o ator britânico – o primeiro não americano a representar Superman em grandes mídias – é o mais baixo para o posto do super-heroi (Christopher Reeve, 1.93m; Tom Welling, 1.90; Brandon Routh, 1.89). O corpo, apesar de apresentar o montante de músculos comuns ao papel, mostra sutilizas humanizantes, como os cabelos desgrenhados, o sorriso imperfeito, o dorso ao natural e uma postura menos divina e mais grega do rebento em relação aos seus poderes. Se no início o ator se mostra não tão à vontade no papel, principalmente em sua versão humana, ao vestir o icônico traje, assume para si todo o peso desta nova interpretação da mitologia do heroi.

O restante do elenco do filme pode ser dividido em dois grupos distintos, os atores que conseguem colocar o seu papel em pé de igualdade, e, em alguns momentos, até superar o foco de atenção com o protagonista, casos como Russel Crowe em sua personificação de Jor-El e Michael Shannon com a efusiva psicopatia do novo General Zod, e o pessimismo e preocupação do Jonathan Kent de Kevin Costner. Os destaques femininos ficam por conta da gélida assecla Faora-Ul de Antje Traure e a mãe kryptoniana de Kal-El, Lara Lor-Van de Ayelet Zurer, em seus breves minutos em tela. O ponto baixo das atuações ficam com os atores subaproveitados pela trama, especialmente Laurence Fishburne e seu deslocado Perry White, a Martha Kent de Diane Lane podendo ser muito mais impactante como vinculo fraternal de Clark, e o excesso de ajustes no arco do enredo para inserção, por vezes desnecessárias, da Lois Lane de Amy Adams durante o filme.

Sobre a técnica de filmagem destacam-se os filtros cinza e sépia nos cenários, assim como paisagens nebulosas que reforçam este tom mais introspectivo desta versão do Superman. Os planos abertos, principalmente em focos individuais de personagens-chave, são frequentes assim como os flares ao longo de todo o filme. Por se tratar de uma história de origem das mais conhecidas pelo público em geral, foi optado uma maneira não linear de contá-la no primeiro ato da obra, fazendo-se uso de flashbacks para tanto, por vezes com auxílio de cores quentes para denotar a atemporalidade das memórias expostas no momento.

A trilha sonora é formada por belas composições de Hanz Zimmer, colaborador frequente doe estúdios do filme, como Flight, I Will Find Him e An Ideal of Hope, que misturam elementos militares, passagens metálicas e ficcionais com uma tonalidade épica exigida pela narrativa. Novamente, com o intuito de se afastar das representações pregressas do herói nos cinemas – e quadrinhos –, não há menção às notas clássicas de John Willians, acompanhando a mudança da tonalidade aventuresca de outrora para a épica e científica ficcional desta roupagem contemporânea.

No entanto, apesar da banda sonora se afastar das referências clássicas, em diferentes passagens do filme existem falas, imagens ou algum sinal da base original do Superman. Assim, em diferentes momentos, obras clássicas dos quadrinhos são utilizadas como referência, principalmente aquelas voltadas ao estudo do personagem, algo presente em quase dois terços do filme. Alguns exemplos destas inspirações vindas da nona arte são: Action Comics (1938), Return to Krypton (1960), O Legado das Estrelas (2003), O Reino do Amanhã (1996), Para o homem que tem tudo (1985), O Homem de Aço (1986), A Morte do Superman (1990), Superman, Paz na Terra (1998), Entre a Foice e o Martelo (2003) e Grandes Astros, Superman (2006).

Dos quadrinhos o personagem alçou voos mais longínquos, em mídias diversas, do rádio ao cinema, dos livros à tiras de jornais, também com alguns pinceladas de easter eggs em Man of Steel. Em forma de estudo, romance ou crônica fictícia há Os Últimos dias de Krypton (2007), de Kevin Anderson, Fazendo  o Homem Acreditar (2014) de Felipe Morcelli, e Superman e a Filosofia (2013) de Willian Irwin. Séries como Superboy (1988-1992), Louis and Clark: The New Adventures of Superman (1993-1997) e Smallville (2001-2011), e filmes como os clássicos de Richard Donner, com Christopher Reeve à frente do heroi. E além destas plataformas de representação, ainda computam-se diversas séries animadas durante décadas de exposição midiática da personagem.

E, além, destas referências, o diretor Zack Snyder é conhecido por ser um esteta da sétima arte, com grande apuro no engendramento dos constructos artísticos de seus longas-metragens. Mas, apesar de ter havido erros de percurso como Sucker Punch (2011), predomina em sua filmografia acertos como Dawn of the Dead (2004), 300 (2006) e Watchmen (2009), sempre primando por um cuidado com a cenografia, direção de arte, figurinos, linguagens gráficas e efeitos especiais. A partir destes introitos é possível passarmos para uma análise mais detalhada de Man of Steel, como sugerido na capitulação do texto.

Krypton

A representação de Krypton em Man of Steel é a mais ousada já vista. O ambiente é hostil, entrelaçado a uma tecnologia anos-luz mais avançada do que conhecemos. O brilho de Rao, o sol vermelho do seu sistema solar encobre seu horizonte em várias passagens dos primeiros minutos do longa. O início da história do Superman ocorre com o fim do mundo em que este nascera, condenado por uma iminente explosão do seu núcleo. E, neste ponto há até mesmo uma mensagem ambiental na deflagração do fatídico fim do planeta Krypton, pois, Jor-El explana, nos poucos minutos em cena, que, a ambição tecnológica e questões políticas destruíram sua terra natal, e o fim não mais poderia ser evitado a partir daquele ponto.

O termo Krypton vem do grego crípton, que significa oculto, talvez pelo mistério que este lugar carregaria na mitologia do primeiro super-heroi dos quadrinhos. Na releitura de Man of Steel ainda persiste uma elevação da sociedade kryptoniana, em comparação com os terráqueos. A textura de deuses olimpianos, normalmente encontrada em outras linguagens da mitologia do Superman dá lugar um visual mais hipertecnológico. E, se no original de 1938, em inferência ao monomito grego, a organização social lembrava uma sociedade pacifista e de zelo ao saber, com seus cristais e candura, nesta versão de Man of Steel o planeta e sua civilização lembram mais a Esparta da antiga Grécia, com seus brasões, expansionismo (neste caso estelar, mesmo que abandonado, como lembrado por Jor-El) e inclinação militar.

Krypton (Cidadela da casa de El, lua de Wegthor e um ser nativo)
Fonte: Man of Steel

Outra referência narrativa sobre os kryptonianos se dá por indícios das lendas humanas dos deuses astronautas. Já que, neste processo de expansão interestelar de Krypton, a Terra já teria sido visitada há milênios, como posteriormente seu último sobrevivente iria descobrir. Gnosiologicamente pode-se interpretar então que nós, humanos, seríamos um projeto abandonado dos “deuses” kryptonianos, e, muitas eras depois um deles encontraria aqui, neste mundo, sua nova morada.

A proposta de oferecer um filme de ficção científica, além da forma como a obra foi elaborada e apresentada ao público, se evidencia por algumas opções cenográficas presentes no decorrer da projeção deste novo Krypton. Destas influências nas escolhas da direção de arte, uma das mais claras é à clássica obra Alien, o 8º passageiro (1979) de Ridley Scott. Dois exemplos podem ser utilizados para esta inferência de representação e homenagem, a primeira delas é o (novo) visual do planeta, muito mais orgânico, alienígena e até mesmo distópico que algumas de suas concepções clássicas; a outra, mais frequente durante todo Man of Steel são as armaduras de combate dos kryptonianos, suas naves e equipamentos, fazendo alusão ao space jockey também do clássico de horror de 1979.

Além desta homenagem, no que se refere à estética extraterrena dos elementos kryptonianos trazem à tona muitas das linhas e imagens do artista plástico suíço Hans Rudolf Giger – conceituador original do visual da franquia Alien –, com uso de luzes opacas, objetos e formas fálicas, tons no espectro cinzento em grande quantidade, formas tentaculares etc.

Faora-Ul e Nam-Ek
Fonte: Man of Steel

Um ponto positivo a ser ressaltado nesta visualidade estética kryptoniana – e também terráquea – de Man of Steel é a não misoginia em relação às representantes femininas. Faora-Ul, Martha Kent, Lara Lor-Van e Lois Lane possuem força considerável no decorrer do filme, esta última em certos momentos excessivamente. Esta é digna de nota pois as jornadas (super)heroicas são normalmente recheadas de sexualização ou vitimização do gênero feminino, e se Snyder acerta ao colocar Faora em pé de igualdade com Superman, novamente, falha ao não equalizar a posição de Lane da mesma maneira, recorrendo à demasiados arquétipos seiscentistas à personagem, não mais coerentes com o fortalecimento do gênero feminino nas últimas décadas.

De todo modo, esta visão de Krypton é, sem dúvida, algo que o personagem necessitava para se desprender dos seus arquétipos anteriores no cinema e banda desenhada. O aproveitamento desta estética é de fundamental importância para a composição de todo o desenvolvimento deste novo Superman.

A gênese e o apocalipse

General Zod e Jor-el
Fonte: Man of Steel

Se pensarmos com apoio da gnosiologia, Zod e Jor-El representam deuses com pontos de vista diferentes. Ao admitirmos, a partir das referências do próprio filme, que a humanidade é um projeto há muito esquecido pelos kryptonianos, então a maneira como estes veem nosso planeta é um destaque no desenvolvimento do enredo de Man of Steel, fundamental para os rumos da história.

De início há a criação, esperança e aposta no potencial humano, exemplificados nas ações e falas do pai biológico do Superman (Jor-El), quando a projeção virtual deste, já na Fortaleza da Solidão, diz para o filho, em dúvida sobre seu propósito na Terra: “You will give the people of Earth an ideal to strive towards. They will race behind you, they will stumble, they will fall. But in time, they will join you in the sun, Kal. In time, you will help them accomplish wonders.” (Jor-El). Ou seja, há o depósito de total crença no devir e existir humano, tendo seu filho Kal-El com ponte para o alcance de tal grandeza e destino da humanidade.

Já para Zod, também em falas para o último filho de Krypton, torna clara sua posição de demolição do lar no qual vive Kal-El, para que enfim o planeta do sistema Rao possa reviver, deixando abaixo as cinzas de um mundo não digno da superioridade kryptoniana: “A foundation has to be built on something. Even your father recognized that.”. E coaduna a este pensamento sua forma de pensar, e o motivo pelo qual toma as decisões perante aqueles que não aceitem as consequências da não obediência do seu poder: “Look at this. We could have built a new Krypton in this squalor, but you chose the humans over us. I exist only to protect Krypton. That is the sole purpose for which I was born” (General Zod).

Esta narrativa dual acompanha a vida de Kal-El/Clark Kent/Superman em todo o desenvolvimento do filme: A Terra e Krypton; pais humanos e kryptonianos; poder capaz de garantir a salvação ou provocar a destruição, etc. em sua um constante ser ou não ser, que enriquece a personagem desde a sua criação. Nas figuras de Jor-El e General Zod, esta dualidade chega ao seu ápice, pois elabora do primeiro ao último ato, a essência de dúvida na consciência do homem de aço sobre o significado, importância e impacto de sua presença no planeta dos humanos.

O Filho de Dois Mundos

O nome Kal-El, criado por Jerry Siegel e Joe Shuster em 1938, tem duas origens aceitas para seu significado: a junção de vocábulos havaianos ou hebraicos; nos dois casos há uma confluência de sentido para a voz, o chamado ou o escolhido; argumento recorrente em bases mitológicas de outros heróis e super-herois. Ainda como fortalecimento da mitologia do herói, há o símbolo da casa à qual pertence, o “S” do seu peito deixa o significado literal para um mais icônico: esperança. Esta mudança faz parte da remodelagem do herói na década de 1980, de modo a distanciá-lo de sua base ideológica inicial, americanzada e demasiada salvacionista para os padrões céticos do novo século.

Outro contraponto reincidente sobre o Superman diz respeito aos seus pais com posições diferentes, de um lado a proteção, e de outro, a motivação máxima do seu heroísmo. Em Man of Steel esta diferença é colocada nos limites mais altos da dialética que a conforma. Para os Kent, seu filho Clark, herdeiro de sua pequena fazenda no interior do Kansas, deve ser preservado, protegido e alertado sobre o impacto que seus poderes podem causar no mundo. O pai Jonathan é o maior apoiador desta opinião: “You just have to decide what kind of a man you want to grow up to be, Clark; because whoever that man is, good character or bad, he’s… He’s gonna change the world” (Jonathan Kent).

Seus pais da Terra são incumbidos de fazer do jovem com poderes divinos adaptar-se a esta condição, consigo próprio e com seu dia-a-dia. Martha Kent demonstra bem esta preocupação, ao socorrer sua prole na escola em dado momento de lembrança do jovem Clark/Kal-El no filme:

Martha Kent: Sweetie. How can I help you if you won’t let me in?
Clark Kent – age 9: The world’s too big, Mom.
Martha Kent: Then make it small. Just, um, focus on my voice. Pretend it’s an island out in the ocean. Can  you see it?
Clark Kent – age 9: I see it.

Estes temores com seu filho alienígena é evidenciado em rimas imagéticas e discursivas, principalmente do pai adotivo: “People are afraid of what they don’t understand. […] Clark, you have to keep this side of yourself a secret.” (Jonathan Kent). Mas, no limiar desta inclinação até mesmo pessimista dos pais humanos, reside a crença nos grandes feitos possíveis de serem realizados pelo futuro Superman: “He always believed you were meant for greater things, and that when the day came, your shoulders would be able to bear the weight.” (Martha Kent, sobre Jonathan).

Jonathan e Clark Kent
Fonte: Man of Steel

Clark e Martha Kent
Fonte: Man of Steel

Jor-El e Lara Lor-Van visualizaram, profeticamente, o que seu filho encontraria no mundo dos homens: a solidão, o desencontro, a desconexão, ostracismo, estranhamento, para só depois, a depender do arbítrio concedido por eles ao bebê de Krypton, este abraçar sua causa heroica para com o povo que o acolhera.

Lara Lor-Van: Goodbye, my son. Our hopes and dreams travel with you. Lara Lor-Van: He will be an outcast. They’ll kill him.
Jor-El: How? He’ll be a god to them.

O medo da mãe biológica é rapidamente suplantado pelo pai, que escolheu o destino da nave para a Terra, não apenas como uma projeção incerta sobre o futuro que aguardava o jovem Kal-El, mas a certeza, de que, mesmo se este não quisesse, teria de se submeter a uma trilha – a jornada monomítica – para então decidir-se protetor dos humanos.

O fardo do herói

A jornada do heroi é mais que um modelo antropológico e histórico da humanidade, é um padrão social dos contos maravilhosos que resiste à diversidade cultural, tempo e espaço. Estudiosos como Joseph Cambell e Carl Jung perscrutaram os padrões culturais humanos em busca de explanações que correspondessem a uma unidade passível de seleção analítica das culturas ao redor do mundo.

O panteão super-heroico de nossa era, aumentado em grandiosidade pelos mass media já é considerado uma nova suplantação de nossos anseios épicos, assim como ocorria com os antigos gregos, egípcios, vikings ou sumérios. Muitos são os estudos, em diferentes áreas, que estão registrando o fenômeno da escalada dos super-herois ao longo dos últimos 100 anos, dos pulp do início do século XX, como Conan e Zorro, às superproduções do século XXI, e, ao que parece, esta escalada ainda não dá sinais de enfraquecimento, já que, cada vez mais, aumenta o alcance do seu simbolismo e impacto em diferentes gerações ao redor do globo.

E aliado a este movimento do monomito nas bandas desenhada e cinematográfica, a sétima arte tem reservado releituras ao monomito de maneira competente e diversificada, em diferentes gêneros de enredo, heroísmo ou anti-heroísmo. Exemplos clássicos podem ser vistos em O Rei Leão (1994), O Poderoso Chefão I e II (1972 e 1975), Oldboy (2003) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Star Wars IV (1977), A Idade da Idade da Terra (1980), Abril Despedaçado (2001), Tropa de Elite I e II (2007 e 2010). Com protagonistas femininas podem ser citados Alien: O 8º Passageiro (1979), O Fabuloso Destino de Amalie Poulain (2001), Thelma & Louise (1991), Valente (2012), O exterminador do futuro II (1991), Mudança de Hábito (1992), A Liberdade é Azul (1993), Central do Brasil (1998), O Labirinto do Fauno (2006), O Silêncio dos Inocentes (1991) e muitos outros.

A partir deste esforço, e em combinação à evolução histórica do conhecimento, foram elaboradas teorias que são aplicadas às diferentes sociedades, e que demonstram padrões, nem sempre exatos, do ciclo do personagem heroico, o monomito de Campbell, ou os arquétipos de Jung, por exemplo.

Em suma há passos, etapas pelas quais o heroi (ou heroína) precisa passar que sua nova condição singularizante seja alcançada. Campbell dividiu estas fases em seu clássico O herói de mil faces, mas foi com Christopher Vogler (2006) que as conceituações do estudioso culturalista americano voltaram à tona. Vogler  se preocupa em demonstrar para novos escritores e roteiristas que é possível contar a mesma e maior história da humanidade, quantas vezes for necessária, garantindo o sucesso de seu enredo pelos degraus de desenvolvimento dos protagonistas:

(VLOGER, 2006, p. 50).

Ao longo de séculos de diversidade e proposições imaginárias para os mais incríveis contos possíveis, a humanidade tem reinventado este ciclo heroico, a jornada do outro dentre os iguais. O que estes autores fizeram foi padronizar estes passos na forma de teorias explicativas para o inconsciente coletivo da rota do herói.

Em um campo de maior introspeção reflexiva sobre tal jornada de elevação do herói diante de um mundo no qual este vê em situação de elevação, mesmo que em processo, há o ubermensh nietzschiano, corretamente traduzido como além-homem, mas adaptado por Siegel e Shuster como Super-homem, o Superman. Por esta razão, não é por acaso que este personagem seja não a mais recente, mas, certamente, a mais marcante releitura da jornada do herói de nossos tempos.

Na mitologia existem referências diversas à jornada do indivíduo elevado, que após um ciclo, aquele descrito por Campbell (1997) e resumido por Vloger (2006), alcança um novo estágio de compreensão consigo próprio e de alocação social diante do mundo que faz parte: Beowulf, Thor, Jesus Cristo, Hamlet, Hércules, Osíris. Pois assim descreve enfaticamente Campbell: “A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1997, p. 9). E complementa o autor que:

A Jornada do Herói é uma armação, um esqueleto, que deve ser preenchido com os detalhes e surpresas de cada história individual. A estrutura não deve chamar a atenção, nem deve ser seguida com rigidez demais. A ordem dos estágios que citamos aqui é apenas uma das variações possíveis. Alguns podem ser eliminados, outros podem ser acrescentados. Podem ser embaralhados. Nada disso faz com que percam seu poder. Os valores da Jornada do Herói é que são importantes. As imagens da versão básica — jovens heróis em busca de espadas mágicas de velhos magos, donzelas arriscando a vida para salvar entes queridos, cavaleiros partindo para combater dragões cruéis em cavernas profundas etc. — são apenas símbolos das experiências universais da vida. Os símbolos podem ser mudados ao infinito, para se adaptarem à história em questão ou às necessidades de cada sociedade. A Jornada do Herói se traduz facilmente para os dramas contemporâneos, comédias, romances ou aventuras de ação, bastando substituir as figuras simbólicas e os adereços da história heróica por equivalentes modernos. O velho ou a velha sábia pode ser um feiticeiro ou mago, mas também qualquer tipo de mentor ou mestre, médico ou terapeuta, um chefe “rabugento, mas benigno”, um sargento durão, mas justo, um pai, avô ou qualquer figura que guie e socorra. Os heróis modernos podem não estar entrando em cavernas e labirintos para lutar contra animais mitológicos, mas não deixam de entrar num Mundo Especial e numa Caverna Oculta quando se aventuram pelo espaço, pelo fundo do mar, pelos subterrâneos de uma cidade moderna, ou quando mergulham em seus próprios corações (VLOGER, 206, p. 47).

A fase eremítica acaba por ser a principal fase, ou de maior impacto, na composição da jornada do heroi. A similitude com outros eremitas da cultura ocidental não são mera coincidência na caminhada de Kal-El na Terra: seus 33 anos, a demora em aceitar-se como detentor de poderes de um deus e salvador da humanidade, a temeridade diante do poder de destruição em suas mãos, a dificuldade em se identificar com seus “iguais” naquele mundo deslocado de seu ser. Todos estes aspectos narrativos são elementos que fortalecem, e muito, um quase estudo de personagem em Man of Steel, parafraseando o crítico Pablo Villaça, como jamais fora arriscado antes nas representações da mitologia do Superman nos cinemas.

Clark Kent/Kal-El
Fonte: Man of Steel


Superman e Lois Lane
Fonte: Man of Steel

Na proposta narrativa do herói em Man of Steel vemos a inclinação mais realista, e muitas vezes pessimista, de como nosso mundo realmente se depararia com uma figura em tais condições perante nossa espécie. A condição de outro, alienígena, estrangeiro, deslocado é realçado no filme em diferentes passagens.

O elo do protagonista com seu novo mundo é estabelecido na figura de Lois Lane, em conjunto com seus pais adotivos. Infelizmente, esta é uma ponta enfraquecida do roteiro de David Goyer e direção de Zack Snyder, pois o papel de Lois poderia, ou deveria, ser melhor explorado na estruturação da jornada do herói, já rica pelos incrementos dramáticos e existenciais durante quase dois terços do longa.

Chave da Casa de El
Fonte: Man of Steel

Outros passos da jornada do herói, ou arquétipos heroicizantes podem ser destacados, tais como: o ancião conselheiro (Jonathan Kent, Jor-El), aliados (Lois Lane, General Swanwick), defensor de limiar (Faora-Ul e Nam-Ek), artefatos “mágicos” de ajuda (chave de kryptoniana, uniforme), a sombra (General Zod). Como pode ser observado, nestas constatações do monomito em Man of Steel, alguns elementos não estão presentes de forma obrigatória, como o pícaro, o mensageiro (dividido com a posição do mentor ancião) e o camaleão ou metamorfo. Caracterizações recorrentes e diversificadas para personagens reincidentes em diferentes moldes culturais:

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir — da mesma forma como o sabor do oceano se manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte (CAMPBELL, 1997, p. 6).

Clark Kent/Kal-El precisará encarar, ultrapassar e adaptar-se a todos estes passos, empecilhos e degraus em sua caminhada para se tornar o além-homem, ou super em nossa interpretação fantasiada do mesmo. A missão, fardo ou dádiva desta condição é colocada em seus ombros por seu pai biológico, Jor-El, que, como já afirmado, é o elo principal do Superman com sua ascendência superior: “Your mother and I believed Krypton lost something precious, the element of choice, of chance. What if a child dreamed of becoming something other than what society had intended? What if a child aspired to something greater? You were the embodiment of that belief Kal” (Jor-El).

Resistindo ao crepúsculo dos ídolos


Superman
Fonte: Man of Steel


Corpo de Zod e Superman
Fonte: Man of Steel

Se seguirmos os passos do monomito de Campbell podemos estabelecer que há a falta de dois passos importantes para a consolidação deste Superman de Snyder como novo herói: a limpeza de suas mãos, manchadas pelo sangue (mortes) da batalha, e o retorno para seu mundo, agora modificado pela sua nova condição heroica, mas aceito e glorificado pela sociedade que faz parte.

As imagens de Man of Steel denotam mais que as palavras retiradas das mesmas. Se o último filho de Krypton, o enviado das estrelas contempla a sensação plena dos poderes à luz do sol amarelo e paisagem etérea do ártico, nos minutos finais da projeção o que resta é o corpo do seu reverso heroico, em meio à destruição que o poder de ambos deixou atrás de si durante a colossal batalha, da qual os humanos no máximo poderiam correr ou acumular-se nos escombros.

Ao final do Man of Steel fica claro que os objetivos de reflexão de uma nova roupagem ao monomito pelo personagem Superman foram altos, e poderiam ter sido alcançados com uma dose menor de megalomania em seu terceiro ato. O tom realista do produtor Christopher Nolan – diretor da trilogia Dark Knight – foi bem aceita pelo público, revitalizando a mitologia de Kal-El nos cinemas.

O patamar de obra-prima não foi alcançado por Snyder, mas, fica o impacto de se colocar o mito no seu tempo correspondente, Superman Returns de 2006 fracassara pifiamente em tentar ajustar o ícone a uma sociedade que não mais o via naquele molde. Man of Steel talvez traga não o Superman que desejamos ou imaginamos, mas o que precisamos, um legítimo, trágico e falho heroi grego para nosso século. E este debate não parece estar próximo de seu fim, tendo em vista os vislumbres da vindoura sequência Baman v Superman: Dawn of Justice em 2016.

E, para o porvir há a esperança, sem trocadilhos, de que a seja inaugurada voos mais seguros ao mais antigo e revisitado dos super-herois, pois, por mais controverso que o personagem seja, sem dúvida é um dos pontos de inflexão com  maior alcance aos interstícios arquetípicos, culturais e imaginativos de nossa era.

“Summer nights and long warm days
Are stolen as the old moon falls
And the mirror shows another face
Another place to hide it all
And I’m lost behind
The words I’ll never find
And I’m left behind
As seasons roll on by”

(Seasons, Chris Cornell)

Epílogo

Folder do filme Batman v Superman: Dawn of Justice
Fonte: www.imdb.com

“Após a jornada, descansa em suas mãos os feitos e efeitos das escolhas tomadas. Ter consigo um poder para além de uma mensurabilidade humana traria sua consequências. Há outros lá fora, com menos, igual ou maior ímpeto (anti)heroico, ou capazes de propor uma equidade simbólica perante o novo herói. Lidar com a nova realidade de entrepor-se nestes extremos se caracterizar-se-á como nova jornada, em escala ainda maior que a predecessora. Saber-se consciente desta condição definirá o alvorecer dos novos limites a serem ascendidos”.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

MAN OF STEEL. Diretor Zack Snyder. Roteiro David Goyer. Warner Bros Pictures. 143 min.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. – 2.ed. -Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O HOMEM DE AÇO

Direção: Zack Snyder
Criadores do Superman: Jerry Siegel & Joe Shuste
Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Russell Crowe, Michael Shannon.
Ano: 2013
País: EUA
Classificação: 12

 

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Nota do Autor: Dedico este texto a Fabio Graciute da Rocha, remanescente d’Os Nove, e ao meu irmão Binho, por fazer o pretérito não apagar sua incandescência.

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Harry Potter e as Relíquias da Morte: o sacrifício do herói

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Harry Potter e seus amigos, Ron e Hermione, decidem não cursar o sétimo ano da Escola de Hogwarts. Após a morte de Dumbledore, a direção foi assumida por Severo Snape, que agora responde ao Lorde Voldemort. Os três amigos decidem encontrar e destruir as Horcruxes – objetos nos quais Voldemort depositou pedaços de sua alma para então se tornar imortal – antes que o vilão recupere totalmente seus poderes e mate Harry.

Antes de partirem, os três bruxos recebem itens deixados a eles por Dumbledore como herança: Hermione recebe uma cópia do livro “Os Contos de Beedle, o Bárdo”; Rony recebe o Desiluminador; e Harry, o primeiro Pomo de Ouro que ele pegou em um jogo de Quadribol com as inscrições “Abro no fecho”. Todos esses acessórios serão de grande utilidade a eles.

Mesmo com Voldemort ainda em busca da destruição de Harry, os três amigos vão em busca da Horcruxes. Um medalhão que está sob o poder de Dolores Umbridge no Ministério da Magia. A alma de Voldemort foi quebrada em sete pedaços e depositada em diversos objetos, para que assim continuasse vivo após ter o corpo destruído. Já comentei anteriormente que se trata da operação alquímica separatio, que consiste em pegar a prima matéria e separá-la em pedaços para que possa ser transformada.

Em nosso processo de digestão, as moléculas dos alimentos precisam ser quebradas e separadas para que o organismo consiga assimilar os nutrientes. Harry precisa confrontar cada parte da alma de Voldemort para que possa assimilar esse conteúdo sombrio. Sua alma e a do vilão na verdade são a mesma. O assassinato, a maldade são aspectos sombrios que Harry precisa encontrar e encarar. Tanto que em seus sonhos Potter consegue ver as ações de Voldemort.

Ron destrói o medalhão usando a espada de Grifinória, enfrentando seus maiores medos no processo. Cada Horcruxes representa um enfrentamento do medo e é um processo para que os jovens bruxos cresçam. Com isso, três Horcruxes estão destruídas (O diário de Tom Riddle, o anel de Tom Riddle e o medalhão de Salazar Sonserina), restando apenas três (Nagini, a taça de Helga Lufa-Lufa e o diadema de Rowena Corvinal), e também o pedaço da alma de Voldemort que ainda reside com ele.

Nesse ínterim os três jovens descobrem sobre as Relíquias da Morte: A Varinha das Varinhas, a Pedra da Ressurreição e a Capa da Invisibilidade, que juntos, dão ao seu mestre o poder de enganar a morte. Sobre essa história é importante salientar que as três relíquias formam uma reta, um circulo e um triângulo. Ou seja, elas seriam símbolos da vida tridimensional na Terra, ou seja, a vida humana.

Não é um símbolo de totalidade, pois falta um quarto elemento. Essa totalidade está no elemento sombrio e renegado pela consciência. No entanto, essas relíquias simbolizam a busca pela imortalidade que o ser humano anseia. A busca por vencer a morte. É o cerne a sociedade contemporânea. Cada vez mais se vê remédios e os cosméticos mostram essa ânsia pela juventude eterna e pela luta pela vida eterna. No entanto, a morte é extremamente importante. É por meio dela que se constela a vida. Fugir da morte só a atrai.

É o que se chama de enantiodromia.

Heráclito exemplifica esse conceito com o exemplo do arco e flecha: ao puxar a corda do arco em uma direção lançamos a flecha na direção oposta. O mesmo ocorre quando atiramos um objeto para cima: quanto mais forte o lançamos, maior é o impacto que causa ao retornar. Dessa forma, o retorno ao oposto da força seria uma lei natural da vida.

Em termos psicológicos, Jung (1973) dizia:

“Todo extremo psicológico contém secretamente o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar. Não existe rito sagrado que eventualmente não se inverta em seu oposto, e quanto mais extremo se tornar uma posição, tanto mais se pode esperar a sua enantiodromia, sua reversão para o contrário”.

Portanto aquele que domina a morte é o senhor da vida. Para Jung (1995),

“Só escapa à crueldade da lei da enantiodromia quem é capaz de diferenciar-se do inconsciente. Não através da repressão do mesmo — pois assim haveria simplesmente um ataque pelas costas — mas colocando-o ostensivamente à sua frente como algo à parte, distinto de si.”

Harry então está em busca dessa diferenciação, se colocando a frente daquilo que mais teme: a morte.
Paralelamente, Voldemort abre a tumba de Dumbledore e rouba a Varinha das Varinhas, apontando-a para o céu e invocando a Marca Negra. Harry e seus amigos seguem em busca das Horcruxes restantes. Para isso precisam retornar a escola que agora está sob a direção da professora Minerva. E assim começa a batalha entre Voldemort e os comensais da morte e Harry e os seus aliados.

Voldemort assassina Snape. E Harry descobre que tudo foi armado por Snape e Dumbledore, inclusive a morte do ultimo. Harry vê, então, as memórias de Snape e descobre que ele mesmo é uma Horcrux. Ele decide se entregar à morte e, após ver, dentro do Pomo de Ouro, a Pedra da Ressurreição, Harry vê seus pais e Sirius o que lhe dá mais forças para fazê-lo e se juntar a eles na morte.

É muito comum os filhos quererem, por amor, seguir os pais (ou um dos pais) na morte. Harry se sente dessa forma, pois os pais e o padrinho morreram. Ao encarar que já vivia na morte ele se conscientiza de que precisa viver, e que o amor deles é o combustível para que viva a vida plenamente. Harry é “morto” por Voldemort percebe que além de Voldemort não poder matá-lo quando era bebê, ele não pode fazer isso porque usou seu sangue para reconstruir seu corpo.

Harry percebe que ele é a vitima sacrificial.

É importante salientar que quando há um encontro do ego com o inconsciente, o ego sempre sente a experiência como uma morte. Isso ocorre com o problema dos tipos psicológicos, no enfrentamento da função inferior. Todo encontro com a função inferior resulta em uma morte para o ego, pois há uma transformação total da personalidade.

Harry vai passar por uma transformação profunda em sua mortificatio. Ele ouve de Dumbledore que Voldemort não pode matá-lo, pois parte de sua alma está nele. Nesse instante Harry se torna consciente de sua identificação.

Conforme Newmann (1995) no desenvolvimento da personalidade da fase do herói solar ocorre o assassinato dos pais. Esses pais não são os pais pessoais, mas figuras transpessoais internas – as imagos parentais – que prendem o ego ainda em um estágio indiferenciado e dependente. O herói precisa com isso provar a sua masculinidade e força.

Harry tem os pais mortos por uma figura sombria. Newmann (1995) ainda cita que em contos é comum o herói enfrentar um dragão, uma bruxa, um monstro e também um bruxo. Após esse enfrentamento o herói encontra a cativa e começa a se relacionar com a anima e se torna ele mesmo pai e alguém responsável.

O jovem então retorna da morte e se torna apto a matar Voldemort, travando um longo duelo com o bruxo. A conscientização de Harry se deu pela separação do eu e não-eu. Harry olha para seu complexo paterno de forma objetiva e retira a desidentificação, adquirindo forças para matar o bruxo, ou seja, para superar esse complexo aprisionador.

Após esses eventos, Harry se casa com Gina, e após 19 anos seus filhos vão para Hogwarts, juntamente com os de Rony e Hermione. Mostrando que novas aventuras estão por vir, novos enfrentamentos e que o processo de individuação é cíclico.


REFERÊNCIAS:

EDINGER, E. F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. C.W. V, 2.ª ed. Petrópolis : Vozes, 1973.

JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. C.W. VII/1, 10.ª ed. Petrópolis : Vozes, 1995.

NEWMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.

FICHA TÉCNICA

HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE

Direção: David Yates
Adaptação de: Harry Potter e as Relíquias da Morte
Série de filmes: Harry Potter
Música composta por: Alexandre Desplat
Autora da Série: J. K. Rowling
Precedido por: Harry Potter e o Enigma do Príncipe
Adaptações: Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1 (2010),
Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2 (2011);
Prêmio: Prêmio Andre Norton

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