Toda a sua História: somos capazes de lidar com nossas memórias?

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Black Mirror, uma série britânica criada por Charlie Brooker, traz a cada nova temporada reflexões sobre avanços da sociedade moderna e seus efeitos no cotidiano dos sujeitos mostrando um futuro não muito longínquo.

Buscando uma visão não tão distante do ponto no qual nos encontramos pela diversidade tecnológica que dispomos, o terceiro episódio da primeira temporada, traz uma amostra de tais tecnologias expondo um implante chamado “Grão”, usado na intenção de possibilitar o controle total de memórias a cada um de seus usuários, permitindo-os a reprodução das mesmas através de seus olhos, ou até a projeção em televisões.

Fonte: https://goo.gl/TZqi4r

Fazendo uma analogia visando o contexto da literatura brasileira, a história de Liam e Fi, pode ser observada com os mesmos olhos de Dom Casmurro, uma obra de Machado de Assis, publicada em 1899, na qual toda a trama se desenvolve a partir do questionamento “Capitu traiu ou não Bentinho?”, trazendo certo suspense para o enredo.

Liam (TobyKebbel) é um advogado em emergência, que dá início ao episódio em uma entrevista de emprego. Casado com Fi (Jodie Whittaker), Liam começa a desconfiar da esposa após um encontro de antigos amigos no qual nota certa tensão entre ela e Jonas (Tom Cullen), comportamentos estranhos e determinada omissão de informações por parte de ambos. Obcecado por descobrir qual o tipo de relacionamento existente entre os dois, Liam começa a repassar incansáveis vezes suas memórias sobre a noite passada e confronta sua esposa de uma maneira incessante.

Freud em 1895 postula reflexões sobre os chamados mecanismos de defesa, pelos quais o Ego frente às exigências das demais instâncias psíquicas, Id e Superego, se manifesta de forma a proteger o sujeito de conteúdos que para si sejam potenciais vias de adoecimento. O recalcamento, um dos mais antigos mecanismos, tem como função principal a eliminação de partes inteiras da vida afetiva e relacional profunda do indivíduo. Bergeret (2006) define o recalcamento como um processo ativo, destinado a guardar fora da consciência as representações inaceitáveis para a pessoa.

Fonte: https://goo.gl/1gKWrG

Este episódio da série em especial, traz reflexões sobre as limitações mentais do ser humano e até que ponto o total controle de seus pensamentos, emoções e memórias podem ser considerados saudáveis e sobre o possível distanciamento dessa condição no processo de saúde e doença. Liam, se torna obsessivo em relação a análise de todas as situações vividas por ele, trazendo desconforto ao mesmo de tal maneira, que todas as situações, que possivelmente para todos seriam ignoradas ou menos significativas, para Liam acabavam em pontos de intermináveis discussões. Não obstante o fato da real traição da esposa, a grande reflexão proposta aqui é sobre o uso excessivo do dispositivo, não sobre a ocasião da traição.

Os mecanismos de defesa psicanalíticos na maioria das vezes têm como função principal o alivio de tensão psíquica do ser humano, servindo como via de escape para problemas de pouca (ou maior) importância, possibilitando certa “qualidade de vida” ao sujeito em hipótese. Após incansáveis análises aos fatos ocorridos, Liam chega à conclusão de que realmente ocorrera o ato de infidelidade, entra em conflito com Fi e sai de casa deixando esposa e filha, removendo por conta própria ao final o Grão.

Levando em consideração aspectos ainda não citados, todas as pessoas que por motivos diversos não se utilizavam desta tecnologia, eram tidos como estranhos no meio social, se relacionando a posicionamentos políticos pouco convencionais, divergentes dos meios de vida vigentes. Zygmunt Bauman(2003), sociólogo polonês, trata em sua obra Modernidade Líquida sobre temas como estes, o movimento da sociedade em convergência com o avanço da tecnologia e reflexões sobre o desenvolvimento do ser humano em relação a ela. Como última reflexão, deixo este trecho do livro, que de alguma maneira reflete o que foi discutido aqui.

Fonte: https://goo.gl/TFLTAL

Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever público […] (BAUMAN, 2003).

REFERÊNCIAS:

Bergeret, J. O problema das defesas. In: Bergeret, J. …[et al.]. Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: Artmed, 2006.

Freud, Sigmund. (1915). O Recalcamento. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

 

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A natureza nos tempos do Self

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“A sociedade do século XXI não é mais uma sociedade disciplinar, mas é uma sociedade da performance”
Byung-Chul Han

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O presente texto procura discutir o fenômeno da personalização da Natureza na pós-modernidade, com total sublimação de significado histórico, que passa a ser preenchido com as neuroses de performance da nossa época, em contraste com a visão clássica, onde havia a alusão a fecundidade presente em Gaia, a sensualidade em Afrodite e Inana, perpassando pelo santificado, com a Virgem Maria, até chegarmos à liquidez no pós-capitalismo.

A Natureza personifica nuances pseudo-humanos na pós-modernidade. Perde a aura de força e mistério para refletir imageticamente o discurso de quem a usa; deixa de ser cenário para ser personagem com papéis específicos que são modificados de acordo com o gosto do fotógrafo. Uma cachoeira, o mar, uma floresta agora são uma extensão da psique, formas de expressão pasteurizadas onde, teoricamente, a completude interna demonstra equilíbrio com algo maior e superior.

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O paradoxo está na exposição e na mercantilização do ambiente “natural” em dois cenários, ambos com o mesmo propósito: retificar o propósito humano, através de ações performáticas, ao cenário que o cerca. Para exemplificação, primeiro temos “Largados e pelados”, um reality produzido pelo Canal Discovery que consiste em colocar pessoas em lugares inóspitos sem comida, roupas e água. A experiência é observar os métodos de sobrevivência que cada componente utilizará e como se dará as relações, por exemplo, de cooperação e empatia, que podem surgir ou não entre eles. Aqui, a Natureza perde seu popular aspecto materno, tão utilizado pelo discurso de massas, e se apresenta crua; existe, durante os vários episódios do programa, um choque entre o microcosmo humano e o macrocosmo natural (ressalto que ao utilizar tal palavra, remeto a total capacidade de incompreensão do homem pós-moderno do que seja natural quando inserido nesse cenário).

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No extremo oposto, somos “presenteados” constantemente com imagens de todos os tipos e ângulos nas redes sociais de um “maravilhoso” por do sol, “a ternura” de um grupo de pássaros voando e “a beleza” das ondas do mar. Os adjetivos são limitados tal qual a frágil crença de felicidade a tudo que remete ao “natural”. Há uma confusão se aquele cenário é um objetivo em si ou uma extensão de uma expressão interna, isto por que aquele que compartilha a experiência nunca deixa de ser o personagem principal da imagem, ao contrário do que as hashtags e as legendas parecem querer demonstrar. O absurdo se dá quando a ferramenta que utilizo para materializar o momento além de uma lente é o próprio indivíduo, a disfarçar, em uma contemplação forjada, a mão que segura a câmera ou o pau de self. Nestas imagens há sabedoria, fecundidade, proteção, equilíbrio e, acima de tudo, beleza, – sem essa última, não há self – segundo a liquidez dos seus significados contemporâneos.

A problemática, além da “coisificação” da Natureza em sua essência, são as conexões que remetem ao feminino e aquilo que a significamos como tal, mas agora objeto, usado com fins de angariar audiência ou likes.

 

A NATUREZA COMO OBJETO DE EXPLORAÇÃO

No livro “A prostituta sagrada – A face eterna do feminino”, a analista junguiana Nancy Qualls-Corbett traz luz a um primevo arquétipo feminino, muitas vezes desconhecido pela sociedade moderna, até por aquelas que deveriam representá-la. Ao utilizar como referência sua obra, quis relacionar as características exaltadas pela autora com meios de significar a completude da psique da mulher e estendê-la à Natureza, relacionando-a aos arquétipos das civilizações antigas. Segundo a autora (1988, p. 21), “‘Natureza’ implica naquilo que é inato, real, não artificial; este é o significado que desejo dar quando falar da natureza psíquica do feminino.” É necessária a recuperação deste símbolo e, principalmente, um retorno ao seu significado primordial sem, como a própria autora ressalta, amarras moralistas para um esclarecimento e expansão da identidade feminina e suas possibilidades esquecidas. “Na verdade, o termo ‘prostituta sagrada’ representa um paradoxo para a nossa mente lógica, pois, como mencionei, não estamos propensos a associar o sexual com o que é consagrado aos deuses.” (QUALS-CORBETT, 1988, p. 16)

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Ao citar a “mente lógica”, Corbet introduz o aspecto racional da nossa época, com raízes profundas em um sistema patriarcal, onde o logos se tornou o meio e o fim, a essência do progresso e do desenvolvimento. Não há meio termo e o resultado é visível em uma sociedade que fica a cada segundo mais a mercê de si própria, em uma insatisfação que a puxa como um ávido buraco negro, onde a motivação não passa de movimentos de reação ao coletivo.

Em contraposição ao arquétipo referente a anima, temos arraigado de maneira exacerbada sua face sacralizada e materna, formas moralistas do aspecto feminino diante do masculino. Por extensão, o conceito inconscientemente reproduz para todos os âmbitos sua incompletude. Assim, algumas linhas de pensamento conectam a Natureza à beleza, o equilíbrio e a fecundidade como a essência a ser mantida, enquanto Corbet procura resgatar o poder, a sedução e o mistério como alguma das características a serem experienciadas. Explica Qualls-Corbett (1988, p. 16)

“Sem essa imagem, homens e mulheres modernos continuam a viver desempenhando papeis típicos contemporâneos, sem jamais compreender a profundidade da emoção e a integridade de vida inerentes ao cunho de sentimento que envolve a imagem da prostituta sagrada.”

Porém, o que se observa é a psique fragmentada e refém, pois continua objeto de exploração do sistema patriarcal vigente. Ganha eco a obrigação da maternidade, estabilidade e equilíbrio do lar e a formosura e beleza no âmbito social. É inapropriado tudo que remete ao feio, violento e instável. Em um paradigma, podemos observar estas obrigações e deveres do feminino pelo sistema patriarcal – e quando falo sistema patriarcal ressalto a inclusão das mulheres na perpetuação desse modelo – com a conexão das mudanças de humores decorrentes de processos naturais do seu corpo, com os desastres naturais que acontecem constantemente no planeta. Ambos os acontecimentos trazem a idéia de descontrole, destruição e desequilíbrio com a solicitação de intervenções drásticas para manter a harmonia. Esse mesmo poder de uma sociedade patriarcalista é externalizado no programa Largados e Pelados, quando os seios de suas participantes são censurados. Sentencia Qualls-Corbett (1988, p. 18)

“Quando o feminino divino, a deusa, deixa de ser reverenciado, estruturas sociais e psíquicas tornam-se supermecanizadas, superpolitizadas e supermilitarizadas. O pensamento, o julgamento e a racionalidade tornam-se os fatores dominantes. Necessidades de relacionamento, afeto, carinho e respeito pela natureza permanecem negligenciadas. Não há equilíbrio nem harmonia, seja dentro de si mesmo, seja no mundo externo. Com o desprezo pela imagem arquetípica tão relacionada no amor apaixonado, ocorre na mente divisão de valores, unilateralidade. Como resultado, ficamos tristemente mutilados em nossa busca da integridade e da saúde.”

Com essa explanação não chega a ser uma ironia constatar que essa mesma sociedade que produz programas, documentários e fotografias “belíssimas” da Natureza seja a mesma que provoca sua deterioração.

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NATUREZA E LOGOS

Essa busca utópica de representações de felicidade e paz com a Natureza acaba por se tornar uma extensão neurótica de uma sociedade patriarcalista viciada em controle e poder. O programa Largados e Pelados e as selfs são a materialidade da performance do expectador, e não uma conexão com o ambiente. Conectar-se seria reconhecer as fragilidades, adaptar-se e viver, sem apegos neste cenário. O filosofo coreano Byung- Chul Han esclarece esse pensamento:

“Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si.” (HAN, 2015)

Em uma comparação, não estaríamos longe da nossa “natureza” nas selvas de pedras do nosso cotidiano. Para Han, estamos mais próximos dos seres selvagens, no entanto, sem o mecanismo de conexão e desconexão presentes nos animais que o permitem sobreviver de maneira integrada ao seu ambiente. Nosso diferencial seria o Eros, a simples contemplação, porém ao tentarmos sacralizar o cenário e o momento, cedemos ao Logos no instante que interferimos no processo de contemplação com a busca de ângulos para fotos e, irremediavelmente, na sua publicação nas redes sociais. O que deveria ser oferecido a Psique como uma manifestação de prazer e contentamento, cede diante das pressões do Ego. Talvez a forma mais íntegra de conexão nos moldes impostos pelas redes sociais, seria uma imagem, no seu melhor ângulo, de uma pessoa meditando sorridente diante de um Tsunami ou terremoto. Assim, estaria curvado diante do “poder do universo”, reconhecendo a incompletude ao ceder a essa força, e não torná-la escrava de uma forma.

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As referências clássicas arquetípicas das deusas que temos estão ligadas ao poder, completude e entrega enquanto as imagens modernas reforçam uma conduta da reverência e controle com condescendência.

 

CONSCIÊNCIA NO VERDADEIRO SELF

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O presente texto procurou refletir sobre o significado da Natureza quanto ao seu aspecto feminino tão popular desde épocas imemoriais e sua repercussão na pós-modernidade. Ainda é perceptível essa crença, no entanto, com outros significados. Ao cedermos a padrões performáticos e sua disseminação, por exemplo, nas redes sociais, estamos à mercê do logos, do animus, o patriarcado exercendo inconscientemente seu poder de apropriação e mercantilização. É necessária uma reflexão sobre a ação, e diferenciar entre os possíveis e reais efeitos desta dinâmica sobre a mente. A analista Qualls-Corbett (1988, p. 23) diz,

“Qualquer que seja sua origem individual, tal resistência possui fundamento que encaro com seriedade: nossa cultura excessivamente voltada PA o Logos. Esse tipo de atitude, para o qual somo todos mais ou menos propensos, leva-nos a dar valor muito maior ao fazer do que ao ser, ao alcançar do que ao vivenciar, ao pensar do que ao sentir.”

E continua,

“A imagem da prostituta sagrada, que estabelece relação entre essência da sexualidade e a da espiritualidade, podia ser discernida de várias maneiras, visto que ela estava presente no material inconsciente de cada indivíduo. Era interessante ver que, uma vez que a imagem se tornara consciente, percebia-se notável mudança nas atitudes da pessoa.” (QUALLS-CORBETT, 1988, p. 20)

 

A Natureza como meio de atingir a completude da Psique é possível; a transformação perpassa a alma e não é direcionada ao exterior. A experiência, aparentemente externa, rememora o que há de mais sagrado no ser humano: a possibilidade de conexão com o todo. A mudança é evanescente para as lentes de uma câmera, mas sensível para o verdadeiro self.

 

REFERÊNCIAS:

QUALLS-Corbett, Nancy. A prostituta sagrada – a face eterna do feminino. São Paulo: Paulus, 1988;

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.

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A seleção brasileira, Médici e os anos de chumbo

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A história de aproveitamento ilícito da imagem da seleção brasileira de futebol – apesar de não ser conhecida por todos e todas – não tem início na copa de 1970. Segundo Gastaldo (2002), o aproveitamento da imagem da seleção brasileira enquanto instrumento de propaganda – busca de popularidade que até o momento não existia – tem início na copa de 1966 na Inglaterra quando “todos” queriam se aproveitar da imagem do time bicampeão – a seleção passou por cinco cidades antes de viajar para Europa, Lambari, Caxambu, Teresópolis, Três Rios e Niterói.

No “pacotão da repressão” de Médici – que não media esforços para atrelar sua imagem a imagem da seleção – o futebol tinha espaço de destaque antes mesmo da copa do mundo de 1970. Quando Pelé fez seu milésimo gol, Médici o condecorou em Brasília numa perceptível tentativa de relacionar a imagem vencedora do Pelé ao regime militar.

O resultado da copa do mundo de 1966 não foi o esperado pela ditadura. A seleção brasileira de futebol cometeu um fiasco saindo da competição ainda na primeira fase. Logo existia uma insatisfação pública com o desempenho da seleção. Passou a ser uma temeridade o futuro na copa do mundo de 1970.

No Brasil […] […] a relação entre Estado e organização esportiva assumiu durante a ditadura do Estado Novo um caráter corporativista que persistiu até o fim da ditadura militar do pós-64. A relação corporativista é caracterizada por uma imposição das regras por parte do Estado autoritário, fazendo retroceder ao mínimo o grau de autonomia da organização esportiva. Interessante é, no entanto, que as organizações esportivas, mesmo no capitalismo avançado, mantêm laços estreitos de ligação com o Estado. É que as organizações esportivas passaram a cumprir funções públicas nas quais o Estado tem interesse. (BRACHT, 1997, p. 75).

Mas é na copa de 1970 no México que o “mito verde e amarelo” (BRACHT, 1997) tem início com a utilização da imagem da seleção como um dos instrumentos centrais de divulgação do regime empresarial/militar ditatorial.

Até a copa de 1970 o futebol brasileiro nunca tinha tido tanta importância e visibilidade para o governo empresarial/militar como teve para o governo de 1970 do então presidente Emílio Garrastazu Médici (30/10/1969 a 15/3/1974)[1].

Nesta ação de tratar o sucesso da seleção brasileira de futebol de forma indissociável com o regime empresarial/militar[2] foram utilizadas frases como “Ninguém Mais Segura Este País” – Ninguém segura essa seleção – ou “Pra Frente Brasil” – Pra frente Brasil, salve a seleção. Essa atitude do governo militar foi uma tentativa expressa de neutralizar a luta de classes, mistificar a realidade, pois o “canto da sereia” do futebol/seleção brasileira possibilitava/possibilita reduzir a compreensão das condições materiais e sociais da existência do povo brasileiro.

Na preparação para copa do mundo de 1970 os resultados não eram satisfatórios, foi daí que João Saldanha – até antes de assumir a comissão técnica da seleção era comentarista esportivo e um dos principais críticos da seleção brasileira – foi contratado pela então Confederação Brasileira de Desportos – CBD que era dirigida a época por João Havelange[3]. Este incluisve chegou a declarar que o contratou para tentar diminuir as críticas ao selecionado brasileiro (GASTALDO, 2002).

João Saldanha conseguiu classificar a seleção para a copa de 1970 de forma esplendorosa, mas foi demitido por motivos expressamente políticos/ideológico, pois Saldanha era militante do Partido Comunista Brasileiro e após uma declaração do presidente Médici sobre uma lista de convocados, Saldanha declarou publicamente que “O presidente escala o ministério dele que euescalo o meu time”. Poucos dias após a declaração Saldanha foi demitido do cargo de técnico da seleção brasileira de futebol[4](MAGALHÃES, 2012).

Segundo Magalhães (2012), Oliveira (2012), é a partir desse momento que a seleção brasileira de futebol passa a ser questão de segurança nacional.

[…] o então ministro da Educação e Desportos Jarbas Passarinho determinou que a situação e a crise na seleção afetavam diretamente o país […] […] Havelange foi convocado para conversar com o próprio Ministro e com o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), o general Carlos Alberto de Fontoura; com o chefe do Gabinete Civil, João Leitão de Abreu; e o chefe do Gabinete Militar, João Baptista Figueiredo. O encontro mostrava o interesse do governo na questão ‘seleção nacional’, e o tema passou a ser cada vez mais controlado pelo regime. (MAGALHÃES, 2012, p. 237).

‘Notícias do México dão conta da perturbação que a notícia do sequestro provocou no ambiente do nosso selecionado. Pelé, Rivelino e outros jogadores manifestaram-se, condenando o ato terrorista’. ‘As ‘notícias’ a que a Folha se referiu eram, na verdade, uma nota oficial do Ministério do Exército […]’ (GUTERMAN, 2004, p. 273).

Como não é difícil acertarmos o resultado da copa do mundo de 1970, logo precisamos fazer uma análise mais acurada do que a conquista da copa do mundo de 1970 representou para o regime golpista. Para Magalhães (2012) esse foi o maior triunfo propagandista do regime militar. “A ditadura militar consolidou-se como forma de poder de Estado reproduzindo continuamente o ato de força com que se instaurara: na síntese histórica objetiva, a ditadura é o golpe continuado e o golpe o primeiro ato da ditadura” (MORAIS, S/D, p. 04).

Precisamos entender que a situação de repressão, torturas, exílios, assassinatos não se davam por acaso. No final dos anos 60 e início dos anos 70 a resistência contra a repressão militar foi muito grande por parte da esquerda brasileira tanto na cidade quanto no campo e é a partir daí que se iniciam os “anos de chumbo” (MAGALHÃES, 2012).

[…] os ideais “constitucionalistas” e “liberais” de 1964 foram traídos pela pressão da linha dura que, em confronto com o radicalismo da guerrilha de esquerda, teria exigido um “golpe dentro do golpe”, tal como ficou conhecidaa promulgação do Ato Institucional n°5, marco da legislação repressiva do regime, em 13 de dezembro de 1968. Com o AI-5, a ditadura “envergonhada” teria se transformado em “ditadura escancarada” isolando-se da sociedade. (NAPOLITANO, 2011, p. 217).

Segundo Morais (S/D), os anos finais dos anos 60 foram problemáticos para o regime militar. Vários setores da sociedade civil – principalmente estudantes e militantes de organizações da esquerda armada – tomaram as ruas de algumas capitais.

Ora, em 1968, quando os grupos que mais tarde iriam formar a ALN[5] e a VPR[6] já haviam constituído o núcleo de suas organizações clandestinas respectivas, irromperam as lutas estudantis, logo ampliadas a largos setores da opinião democrática e reforçadas pelas greves de Contagem e de Osasco. Pela primeira vez desde o golpe, o regime militar era colocado na defensiva política. (MORAIS, S/D, p. 06).

As manifestações populares de 1968 só foram superadas em 1984 durante as manifestações do que ficou conhecido como “diretas já”, mas mesmo assim a duração das manifestações de 1968 foi bem maior, aproximadamente 8 meses (MORAIS, S/D).

Devemos tomar cuidados para não tomarmos um “golpe antes do golpe”, e aprendermos com a história, pois quando o regime militar percebeu que perderia a hegemonia e por consequência opoder, não aprovaram as “diretas já” e montaram um congresso nacional constituinte nos moldes da ditadura – com pequenas exceções – e nossas manifestações pacíficas foram incapazes de mostrar a nossa verdadeira vontade/necessidade. Isso nos faz questionar como Bertolt Brecht (2009) no poema “De que serve a bondade”?

Fica assim evidenciado que a reação do regime militar na tentativa de “recompor a hegemonia” precisava de um algo a mais além da repressão, das torturas, exílios e assassinatos para convencer o povo brasileiro da sua suposta legitimidade, infelizmente a seleção brasileira de futebol foi – ou é? – parte importantíssima nesta engrenagem.

Referências:

BRACHT, Valter. Sociologia critica do esporte: uma introdução. UFES, Centro de Educação Física e Desporto. (1997).

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Editora 34 Ltda, São Paulo, 2009.

GASTALDO, Édison Luis.Notas Sobre um País em Transe: Mídia e Copa do Mundo no Brasil.Disponível em<https://periodicos.ufsc.br/index.php/motrivivencia/article/view/5925> Acesso em 25/10/2011.

GUTERMAN, Marcos. Médici e o futebol: a utilização do esporte mais popular do Brasil pelo governo mais brutal do regime militar. Disponível em <http://www.ludopedio.com.br/rc/index.php/biblioteca/recurso/279> Acesso em 16/06/2012.

MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Ditadura e futebol: O Brasil e a Copa do Mundo de 1970.Disponível em <http://historiapolitica.com/datos/boletin/Polhis9_MAGALHAES.pdf> Acesso 05/03/2010.

MORAIS, João Quartim de. Amobilização democrática e o desencadeamento da luta armada no Brasil em 1968: notas historiográficas e observações críticas. Disponível em<http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v012/a_mobilizacao.pdf Acesso em 05/05/2012.

NAPOLITANO, Marcos. O golpe de 1964 e o regime militar brasileiro: apontamentos para uma revisão historiográfica. Disponível em <http://marxismo21.org/50-anos-do-golpe-de-1964/> Acesso 05/02/2014.

OLIVEIRA, Marcos Aurelio Taborda de. Esporte e política na ditadura militar brasileira: a criação de um pertencimento nacional esportivo. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 18, n. 04, p. 155-174, out/dez de 2012.


[1]A Arena/PSD partido da autocracia militar burguesa infelizmente nos deixou dois herdeiros legítimos o Democratas – DEM que já teve o nome Partido da Frente Liberal-PFL &o Partido Progressista-PP, este infelizmente hoje dirige a cidade de Palmas-TO onde a especulação imobiliária, o monopólio do transporte público e os latifúndios urbanos ainda imperam.

[2]Vide “Compreensão histórica do regime empresarial-militarbrasileiro” de Fábio Konder Comparato em http://www.unisinos.br/blogs/ihu/caderno-ihu-ideias/compreensao-historica-regime-empresarial-militar-brasileiro-edicao/

[3]João Havelange ficou a frente da CBD de 1956 a 1974 e Ricardo Teixeira de 1989 a 2012 bem democráticos não?

[4]Para saber mais sobre, assista a entrevista de João Saldanha ao programa “Roda vida” da TV Cultura, https://www.youtube.com/watch?v=Kt4uJHHwAgE

[5]Ação Libertadora Nacional.

[6]Vanguarda Popular revolucionária.

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