SHAZAM: as relações familiares dos heróis e vilões

Compartilhe este conteúdo:

O universo dos quadrinhos tem tomado as telonas no ano de 2019. Nesse cenário os universos mais famosos, Marvel e DC, dominaram as produções cinematográficas ao trazerem seus heróis, anti-heróis e vilões para o centro dos holofotes. O filme Shazam, baseado no super-herói da DC Comics, estreou no cinema em 2019, sob direção de David F. Sandberg, tendo como protagonista o ator Zachary Levy Pugh interpretando Shazam.

O mago Shazam está à procura de um ser humano que possua a mente e o coração puro, para que este herde seus poderes e continue a manter preso os sete pecados capitais, que se encontram alojados em sete estátuas de pedra. O primeiro ser humano que ele encontra é o garoto chamado Thaddeus Savana, mas este não era o escolhido, já que ao ser transportado para o templo do mago ele se sentiu atraído pelos espíritos dos sete pecados, demonstrando que não era o mais puro.

A busca pelo escolhido continua por um tempo consideravelmente grande, tempo suficiente para que Thaddeus que era só um garoto, crescesse e virasse um homem adulto a procura do templo do mago, para buscar vingança pela rejeição sofrida na infância.

Fonte: encurtador.com.br/ktuA9

Ao encontrar o mago Shazam, Thaddeus lhe diz “Você sabe o quanto dói para uma criança ouvir que ela nunca vai ser boa o suficiente?”, para em seguida ceder a atração dos sete pecados capitais, servindo como receptáculo dos sete espíritos.

Esse evento catastrófico faz com que o Mago Shazam precise se apressar em encontrar o ser humano puro de mente e coração, sendo escolhido então o garoto Billy. A história de Billy se assemelha a de outros personagens de quadrinhos como Batman, Coringa, Super-Man, que passaram por acontecimentos de vida traumáticos antes de se tornarem heróis ou vilões.

Billy se perdeu da sua mãe quando criança em um parque de diversões, e desde então, já com 14 anos de idade ainda não conseguiu encontrá-la. Devido a esse fato, ele cresceu em lares adotivos, e nunca se conformou com esse destino.

O filme retrata a dificuldade de Billy em permanecer nas instituições de abrigo, tendo ele fugido 13 vezes de diversas delas. As fugas se dão pelo fato de ele não se sentir pertencente ao lugar, relatando que não é a mesma coisa que se ter um a família. Bowlby (1952) apud Cavalcante; Magalhães (2012, pág. 78) chamam atenção para a dificuldade das crianças de lares adotivos “estabelecer trocas afetivas e contínuas com os cuidadores substitutos (…)”, sendo comum atitudes de resistência.

Fonte: encurtador.com.br/knpB5

Contudo, no regresso da sua décima terceira tentativa de fuga, Billy aceita ir para mais um lar adotivo, e neste ele encontra a sua verdadeira família. Tal família é composta por mais 5 crianças adotadas ( Pedro, Eugene, Mary, Freddy e Darla) e os pais adotivos Victor e Rosa. Esse contexto familiar diversificado e amplo, de acordo com Bronfenbrenner (1996) apud Cavalcante; Magalhães (2012) colabora para a construção de relações e o desempenho de variados papéis, que influenciam e beneficiam o desenvolvimento de uma criança.

Entretanto, vale lembrar que para haver a possibilidade de que esse desenvolvimento seja saudável, é preciso que “o meio físico e social favoreça a assimilação de padrões de interação recíproca com seus pares e cuidadores que desempenham papel parental (…) (CAVALCANTE; MAGALHÃES, 2012, pág. 78)”, haja vista a importância disso para que relações de afetos sejam estabelecidas.

E como todo herói tem seu vilão, Billy que agora também é Shazam, precisa enfrentar Dr Thaddeus Savana, que carrega em seu corpo os espíritos dos sete pecados capitais. O interessante é que o nosso vilão também possui questões mau-resolvidas com seu ambiente familiar, mas principalmente com seu pai.

Thaddeus sempre fora desprezado e rejeitado pelo pai e irmão. Quando criança era alvo de xingamentos e piadas por parte destes que o descreviam como inútil e causador de todos os problemas, sendo esse contexto característico da violência intrafamiliar. Em razão disso, Thaddeus cresceu com um forte desejo de vingança em relação ao pai, o que pode ter sido influenciado pela violência sofrida em sua infância (MARTINS, 2010).

Fonte: encurtador.com.br/FLN09

Além do sentimento de vingança já existente, o vilão passa a sentir inveja de Shazam/ Billy por ele ter uma família que o amo e apoia. E é aqui que ele é derrotado, já que o espírito do pecado capital da inveja havia encontrado abrigo nos anseios de Thaddeus, e se sentiu tremendamente insultado quando Shazam lhe afrontou e afirmou que ele era um espírito fraco, que apenas desejava ter o que ele tinha.

Shazam e Thaddeus, herói e vilão, ambos imersos em contextos familiares singulares, experienciando as dores e prazeres de se fazer parte de uma família, nos fazem refletir o quanto cada indivíduo tem a necessidade de se sentir amado e acolhido pelos seus pares. Independentemente de ser uma família de sangue ou adotiva, as relações, quando são estabelecidas baseadas em vínculos genuínos, verdadeiros e amorosos, tem o poder de influenciar uma melhor experiência de vida.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: encurtador.com.br/gouR1

SHAZAM

Titulo Original: Shazam
Direção: David F. Sandberg
Elenco: Zachary Levi,Asher Angel,Mark Strong
Ano: 2019
País: Estados Unidos
Gênero: Ação,Fantasia

REFERÊNCIAS:

CAVALCANTE, Lília Iêda Chaves; MAGALHÃES, Celina Maria Colino. Relações de apego no contexto da institucionalização na infância e da adoção tardia. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 30, n. 68, p.75-85, mar. 2012. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/view/20015/19301>. Acesso em: 07 abr. 19.

MARTINS, Christine Baccarat de Godoy. Maus tratos contra crianças e adolescentes Maus tratos contra crianças e adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Cuiabá, v. 4, n. 63, p.660-665, jul. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reben/v63n4/24.pdf>. Acesso em: 07 abr. 2019.

Compartilhe este conteúdo:

Ressentimento: outro olhar sobre o tema

Compartilhe este conteúdo:

Psicologia em Debate é um evento que acontece semanalmente (quartas-feiras) no Ceulp/Ulbra. A palestra do dia 08/03/17 foi ministrada pelo acadêmico Lenício Nascimento, com tema: “Você é uma pessoa RESSENTIDA?”. O embasamento teórico veio do conceito do filósofo Luiz Felipe Pondé. O acontecimento teve a participação dos alunos e alguns professores, ocorreu na sala 203, às 17h, prédio 2.

Então, ao entrar na sala, me deparei com um movimento maior do que o normal, abalizado na minha experiência, acredito de antemão, que este assunto mobilizou grande parte das pessoas. Particularmente, fiquei extremamente intrigada com o tema ressentimento na concepção de Pondé. Se formos analisar o significado da palavra ressentimento, segundo Minidicionário Aurélio, […] mágoa, ofensa, melindre, raiva (SCOTTINI, p.401).

Fonte: http://zip.net/bxtH4M

Mas, o ressentir na minha humilde opinião (senso comum), como também diz respeito a mágoa, (angústias/amarguras), entendo como algo que envolve sentimentos mais intensos, com grau maior de dor e sofrimento, e que vem de alguém que é parte de você, ou seja, a família, ou pessoas que lhe são íntimas/importantes. E isso não acontece a todo momento.

Entendo que não sentimos mágoa de quem não amamos, sentimos raiva, tristeza, mas logo passa. Já a mágoa não! Ela perdura por toda uma vida, se não for elaborada. Compreendo que, não vem de qualquer pessoa, precisa que os lações sejam estreitos para que haja ressentimento. Sendo resultado de algo mais profundo. Não posso dizer que seria algo intrínseco do ser humano, penso que alguém possa passar pela vida sem ressentir.

Entretanto, para Pondé, a inveja é um dos fatores do ressentimento, vamos então para o significado desta palavra. “Vontade de possuir algo, de ser como outrem, e não conseguir, sentindo por isso depressão; cobiça de obter coisas (SCOTTINI, p.256). Minha intenção não é discordar, e sim tentar entender. Durante a palestra, fiquei instigada a trazer minhas considerações, mas percebi que seria uma viagem de minha parte, pois minha concepção a cerca desta temática, tem a ver com minhas experiências, relatos de outras pessoas.

Fonte: http://zip.net/bjtG7F

Para tanto, saí do Psicologia em Debate com muita vontade de entender melhor sobre ressentimento na visão deste autor. Com intuito de ampliar meus conceitos, e sair do senso comum, fomentar melhor minhas conclusões a respeito do tema, como também avaliar minhas inquietações, pois a palestra me mobilizou, ou seja, tirou-me da zona de conforto, posso assim descrever. Talvez o ressentimento é mais simples do que posso imaginar, e quem sabe posso dar a este sentimento o que acho que cabe a ele, algo para refletir!

Os meus questionamentos foram compartilhados por alguns nos corredores da Ulbra, pois este autor nos surpreendeu. Cabe esclarecer que, ainda não sei na íntegra o que Pondé relata em seu livro, quero aqui destacar minha vivência no dia do evento, sem que ela seja alterada (com a leitura do livro). Respondendo ao tema desse relato, não sou uma pessoa ressentida, esse sentimento não cabe no meu coração, eu não planto, não adubo, e não rego o que me faz mal. A importância que dou aos meus sentimentos ruins, são os únicos que cabe a eles, não mais que isso.

 “Deus”, me permite passar pela vida sem ressentir com quem quer que seja.

REFERÊNCIAS:

SCOTTINI, Alfredo. Minidicionário Escolar da Língua Portuguesa. Edições TodoLivro. Blumenau, 1998, p. 256,401.

Compartilhe este conteúdo:

Pecar e Perdoar – Não existe “inveja branca”

Compartilhe este conteúdo:

“Se quiséssemos apenas ser felizes, seria fácil. Mas queremos ser mais felizes que os outros, então é difícil, pois achamos os outros mais felizes do que realmente são” – Montesquieu

Sucesso de crítica, “Pecar e Perdoar – Deus e o Homem na História” (Editora Nova Fronteira), do professor Leandro Karnal (Unicamp), é de uma clareza e lucidez tocantes. Em 204 páginas e com uma linguagem leve e apropriada, Karnal aproxima do grande público um tema que a priori parece espinhoso, ainda sob a égide da filosofia e da teologia, mas que é pertinente e incrivelmente presente na vida da maior parte das pessoas (os cristãos diriam que está presente em todos, tendo em vista a inclinação básica para “o pecar”). Este tema, que salta aos olhos em relação às demais abordagens do livro, é a famigerada inveja.

Como parte dos clássicos “Sete Pecados Capitais” da Igreja Católica – que delinearam e foram a base moral e ética de toda a civilização Ocidental, tal qual a conhecemos hoje –, a inveja – assim como os demais pecados – é explicada a partir da perspectiva do perdão. Desta forma, como defende Karnal, “o erro nasce com o perdão, ou a explicação pelo erro”.

E o que isso tem a ver com o nosso tempo? Karnal diz que a experiência humana – cujo ápice é a sua própria inserção no mundo real (fenomenológico) – recebe (como já defenderam vários teóricos) grande influência coletiva dos preceitos religiosos. Esta influência estaria incrustada  tanto no inconsciente coletivo quanto na formação psíquica individual.

Em que pese os alertas de que os monoteísmos de forma geral – se houver abordagem exclusivista e teísta-antropomórfica – e a ênfase fundacionista em particular, notadamente quando usadas sem refreio pelas três grandes religiões abraâmicas, geram mais dissabor que inclusão, não se pode “jogar para debaixo do tapete” as influências que tais traições ainda exercem no cotidiano da vida ocidental, seja na política, nas artes, na educação e justiça. E são muitas as boas influências. É este um dos alertas que Karnal faz em seu livro, de forma direta ou indireta. Reverbera, também e complementarmente em suas palestras sobre o tema, um assunto que a professora Rochelle Cysne (Universidade Católica de Brasília) defende com propriedade: a atual “crise existencial” do Ocidente se deve, em parte, às tentativas de execrar o cristianismo da Europa para substituí-lo pelo secularismo com realce ao ateísmo militante (ateísmo antirreligioso). Tanto Karnal – em suas exposições públicas e neste livro em questão – quanto Rochelle dizem que o grande problema é que as artes seculares e a própria ciência – no primeiro caso, uma porta voz “natural” da vontade de imanência, a partir do século “das luzes” – não estariam conseguindo impingir a mesma experiência estética que as tradições religiosas produzem. O resultado: uma sociedade desesperançada, sem conexão com aspectos teleológicos e num autocentrismo estridente. Este autocentrismo não representaria autopoiese. Antes, é uma forma de projetar-se para o mundo sem (re)conhecer a si próprio, numa escalada de “esvaziamento da subjetividade”. Daí a “enxurrada” de transtornos psíquicos supostamente típicos da contemporaneidade. Este é um tema que daria outro texto (portanto, não será aprofundado no momento), e que encontra eco na “Civilização do Espetáculo”, do Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa, para quem “o declínio da linguagem”, que passou a sofrer com a proeminência imagética, desembocou em tal estado de coisas.

Sobre o processo de resignificação do pecado – que passa de algo execrável para tolerável, no sentido e uso comum –, a inveja também é apresentada por Karnal como algo sutil e venenoso, por isso não haveria “inveja branca”. De acordo com Karnal, que se utiliza de um humor ao mesmo tempo fino e ácido, “invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela”. Assim, Karnal considera a cobiça menos danosa e, em alguma medida, propulsora da ação. Ao cobiçar algo, o agente se move em direção à conquista. Portanto, o desejo de ter a mesma capacidade e/ou habilidade que outra pessoa configura-se, em súmula, numa grande diferença em relação a inveja. A cobiça, desta forma, seria até essencial para a existência.

Karnal acrescenta que a inveja é uma espécie de “pecado avergonhado”, tendo em vista que boa parte das pessoas pode até admitir publicamente que vive pelo (impulso ao) sexo, pela comida ou mesmo pela vaidade estética. “Mas você já encontrou alguém que diga que é muito invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso? Acho que não”, provoca o professor da Unicamp. E isto ocorre, segundo Karnal, porque

A inveja nunca é boa, ou usando uma expressão duvidosa, nunca é “branca”. A inveja é sempre destrutiva, sempre terrível e sempre “ruim”. Não existe inveja boa. O que pode ser menos danoso é um tipo de cobiça muito especial. (KARNAL, 2015, p. 68)

Desta forma, a existência de uma “cobiça branca” no tecido social é algo desejável. Age de modo semelhante ao estado dionisíaco executado por tempo determinado e observado de perto. Esta cobiça pode ser propulsora de boas mudanças e geradora de progresso.

A inveja, prosseguindo, é algo corrosivo, pois quem inveja não consegue perceber o esforço que o interlocutor fez para chegar a tal patamar. Esta assertiva leva a outros desdobramentos, como o fato de que o período pós-moderno pode acabar por influenciar reações de inveja, já que exorta os indivíduos a saírem do âmbito do privado para se projetarem, incessantemente, no ambiente do público, sobretudo através da comunicação por redes. Ainda assim, diriam os existencialistas, há uma vontade-base que depende exclusivamente de quem inveja. Em outras palavras, o invejoso tem condições de, por si só, decidir parar de invejar.

Karnal diz que ao optar pela inveja, o invejoso torna-se um cego espiritual (e aqui ele não se refere a “cego religioso”), num frenético jogo de comparações com o mundo externo. Desta forma,

O centro do olhar do invejoso é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas limitações. Em linguagem filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo. (KARNAL, 2015, p. 69)

Leandro Karnal aponta para as prováveis raízes da dor causada pela inveja. “Ela dói porque ela me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil, eu não consigo ou não tenho” (KARNAL, 2015). Há, portanto, uma pressão psicológica provocada pela falsa ideia de que o invejoso foi “excluído dos eleitos”, num desgaste interno que é lento e ressentido. Isso leva a outra investida, não menos danosa: a de “querermos nos parecer bem e felizes sempre”, para pelo menos de forma superficial – através de “likes” em postagens, por exemplo –, ter o prazer de receber o feedback e a aprovação do mundo. Esta é uma dinâmica que poderia ser a causa de algo ainda mais sério, o narcisismo patológico. Zizek já apontou para este caminho em um de seus últimos escritos.

Por fim e em resumo, a inveja aponta para um duplo caminho. Se por um lado ela age como uma “entorpecedora” da alma, ao obstruir os próprios referenciais – em decorrência da aflição com a condição do outro -, por outro lado ela desencadeia uma quase patológica necessidade de se apresentar para o mundo de forma superficial e aparentemente impecável. E haja energia para manter tantas “máscaras”! Sobre tema semelhante, certa vez Jung já advertiu que “quem olha para fora, sonha; que olha para dentro, desperta”.

No fundo, Leandro Karnal tenta, através de “Pecar e Perdoar”, despertar o máximo de pessoas de uma suposta letargia contagiante que ronda o contemporâneo. Trata-se de um livro atual e instigante.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

PECAR E PERDOAR – DEUS E O HOMEM NA HISTÓRIA

Autor: Leandro Karnal (Unicamp)
Publicação: Editora Nova Fronteira
Páginas: 204
Temas: História, Teologia, Filosofia, Vida Cristã

REFERÊNCIAS:

KARNAL, Leandro. Pecar e perdoar – Deus e o Homem na História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura; tradução Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

ZIZEK, Slavoj. Problema no paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

Compartilhe este conteúdo:

A Rainha Má de Branca de Neve e a inveja

Compartilhe este conteúdo:

Branca de Neve é um dos contos de fadas mais populares. Diversas adaptações para cinema, televisão já foram feitas com base nele.

A estória de Branca de Neve começa nos apresentando uma princesa que ao nascer perde a sua mãe. Seu pai então se casa com uma nova mulher. Ao crescer a beleza da menina desperta na Rainha inveja motivando sua crueldade, a ponto de tentar cometer assassinato. O tema da mãe que morre e uma madrasta que entra em seu lugar é um tema recorrente nos contos de fadas.

Mãe e madrasta na verdade são a mesma pessoa. São duas faces da mesma moeda. E no desenvolvimento da personalidade, a transformação da mãe boa em mãe terrível torna-se estritamente necessário. A expulsão do paraíso materno é um fator preponderante para o processo de individuação. Sem essa expulsão ficamos na zona de conforto e não nos desenvolvemos. Seremos o eterno “filhinho (a) da mamãe”.

Além disso, os contos de fadas costumam apresentar de forma simbólica sentimentos comuns a toda humanidade. E em Branca de Neve temos um sentimento básico em evidência: A inveja.

A Rainha, madrasta de Branca de Neve, inveja a beleza da menina, pois não se conforma com o envelhecimento e com a perda do posto de mais bela.

 

 

A esse respeito, Betthelhein (2002) diz o seguinte:

A perda da proteção materna sofrida por Branca de Neve a deixou vulnerável a uma outra mulher que não a acolheu como filha, pois a Madrasta, vítima da necessidade de ser bela, sedutora, a desejada por todos, não conseguia cuidar de outra mulher que, mesmo sendo menina, se constituía numa ameaça.

Pode-se dizer que Branca de Neve, trata de uma estória do desenvolvimento feminino. Apontando como a psique da mulher pode evoluir e se desenvolver. Não que os homens não possam se beneficiar desse conto, mas neles o benefício será mais no aspecto de sua anima.

No desenvolvimento psíquico o ego das mulheres, até certa idade, se estrutura em torno da beleza e sedução. Não quero entrar no mérito da questão, nem dizer o que é certo ou errado, mas nosso inconsciente coletivo está pautado nessa estrutura – basta observar que a indústria de cosméticos, moda e tudo aquilo que se liga à beleza é voltada em sua maioria esmagadora para a mulher. E nos mitos, temos geralmente como representante da beleza uma deusa, exemplos disso são Afrodite na Grécia, Vênus em Roma e Oxum na África.

 

Com o passar dos anos e a conseqüente degradação do corpo, a mulher que se encontra no processo de individuação já deveria estar em contato com outros aspectos da psique, como o animus e o Self. E nesse processo de amadurecimento o centro de sua psique deveria deixar de ser ego e passar a ser o Self e essa identificação com a beleza diminuída.

Não digo que com isso as mulheres não devam mais ser vaidosas, mas é necessário deixar de fazer da beleza e da juventude seus únicos atributos.

Infelizmente o que vemos atualmente em nossa sociedade é uma grande quantidade de mulheres, principalmente no ocidente, onde a perda da juventude e da beleza é algo aterrorizante. E esse é o drama da Rainha que vê em sua filha a passagem do tempo e a diminuição de sua beleza. Ela é uma mulher extremamente imatura a ponto de deixar de ser uma mãe cuidadosa.

 

Note que ela não possui um relacionamento com o inconsciente, ela está completamente identificada com sua persona. Seu animus é quase inexistente, pois o marido é omisso na relação dela com a Branca de Neve, não exercendo a sua função de discernimento e reflexão.

Quantas mulheres atualmente em nossa sociedade, onde a imagem é privilegiada, não “assassinam” a sua própria criação em função de uma atitude unilateral, sufocando sua criatividade.

 

Entretanto, a Rainha tem um caminho para o seu desenvolvimento, projetado em Branca de Neve. Através da princesa e sua jornada, a Rainha pode se desenvolver e sair da unilateralidade. E a jornada de Branca de Neve possui muitos paralelos com o mito grego de Psique.

No mito Afrodite, a deusa mais bela, com inveja da beleza de Psique a pune enviando-a (assim como a Rainha) para ser sacrificada. Entretanto Eros, filho de Afrodite, se compadece e se apaixona por Psique, salvando-a do destino trágico.

Em Branca de Neve temos a figura do caçador que se compadece da princesa e entrega a Rainha o coração de um veado. Aqui a figura do animus começa a aparecer e começa a apresentar vestígios de reflexão e de proteção, mesmo sendo considerado apenas um simples servo.

Após esse episódio, Branca de Neve vai viver em uma casa com os sete anões. Onde passa a cuidar da casa para eles, lavando, limpando e cozinhando.

Nesse estágio, a princesa encontra o animus em sua forma múltipla, ainda que indiferenciado, e um tanto primitivo. Mas ele já apresenta seu lado prestativo e o mais importante Branca de Neve se relaciona com ele, vive com ele e negocia com ele: Ela cuida dos anões em troca de proteção.

 

Um aspecto importante dos anões é que eles trabalham nas cavernas garimpando pedras preciosas. A caverna é um símbolo do inconsciente, portanto o trabalho de retirar os tesouros do inconsciente para a ampliação da consciência já está sendo feito pelo animus.

A Rainha descobrindo o paradeiro de Branca de Neve tenta por três vezes matá-la. Na primeira vez ela amarra de uma forma violenta, uma fita ao redor da cintura da menina fazendo-a perder o fôlego, da segunda vez da um pente envenenado a menina e na terceira vez ela da à menina a tão famosa maçã envenenada.

Essa estrutura de três provas, ou três tentativas é muito comum em contos de fadas. Na verdade, esse “três” sempre se desdobra para um “quatro”, o número da totalidade, por isso nos contos há três tentativas, com uma quarta completamente diferente das anteriores.

Nota-se que as duas primeiras tentativas de matar Branca de Neve estão associadas à vaidade e a terceira à sedução, pois a maçã na mitologia grega está associada a da deusa do amor, da beleza e da sedução, Afrodite. E ela sucumbe a todas as tentativas, sendo auxiliada nas duas primeiras pelos anões.

Em seu mito, Psique também sucumbe em sua ultima tarefa, que foi pegar o creme de beleza de Perséfone, a qual foi alertada a não abrir. Mas sua curiosidade e vaidade femininas fizeram-na abrir, levando-a a cair como morta. Ou seja, Branca de Neve e a Rainha devem amadurecer em relação à beleza e sedução, o que equivale a perder a ingenuidade e desenvolver a capacidade critica provinda de seu animus.

 

O desfecho é conhecido: um príncipe que andava pelas redondezas avistou o caixão de vidro feito pelos anões, ficando apaixonado. Ele leva o caixão para seu castelo. No caminho, a carruagem tropeça, e o pedaço de maçã que estava na garganta de Branca de Neve sai, e ela volta a respirar. O príncipe a pede em casamento, e convida para a festa a Rainha, que comparece, morrendo de inveja. Como castigo, ao sair do palácio, acabou tropeçando em um par de botas de ferro que estavam aquecidas. As botas fixaram-se na rainha e a obrigaram a dançar; ela dançou e dançou até, finalmente, cair morta.

Diferentemente de Afrodite, que no mito é transformada pela jornada de Psique, fazendo-a mudar de atitude e aceitar a beleza da jovem. A Rainha mantém sua atitude unilateral, permanecendo na inveja em relação a Branca de Neve, que agora alcançou um desenvolvimento de sua personalidade e iniciou um relacionamento com seu inconsciente, simbolizado pelo seu animus – príncipe.

Infelizmente, a Rainha não consegue demonstrar alegria e amor pela filha. Muitas mães infelizmente invejam a beleza e a as conquistas de suas filhas. Suas vidas não vividas e pautadas no ego são fonte de amargura e raiva. E a Rainha, tristemente, encontra o destino de todo aquele que mantém uma atitude radicalmente unilateral, que é a morte.

 

Referências:

BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. – Paz e Terra: São Paulo: 2002

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São    Paulo:2002.

Compartilhe este conteúdo:

A beleza que gera conflitos

Compartilhe este conteúdo:

Através da evolução tecnológica, o ser humano também buscou aperfeiçoar ou alterar completamente os traços físicos, com a intenção de alcançar a beleza e promover o aumento na auto estima. De tal forma que passou a investir em mudanças no rosto e no corpo, com aplicação de substâncias como botox e silicone, em partes do corpo, ou fazendo musculação, frequentando salões de beleza e até comprando nova cor para os olhos. O que antes era mito, passando pela crença de que a beleza era algo que poderia ser cuidado apenas pelo Ser Supremo, agora, o homem, tomou a liberdade, tornando comum, e desmistificando a beleza.

O complexo de inferioridade pode levar o ser humano a atos que prejudicam sua relação de convívio com a sociedade, gerando fundamentos para futuros conflitos. “Aquela garota é metida” – “esse cara se acha”, são frases comuns que em certos casos podem até ser discriminação ou inveja pela beleza. O preconceito possui diversas formas, em certos casos a vítima é alvo devido sua fisionomia menos favorecida em comparação a outras, um julgamento subjetivo de aparência estabelecido pela sociedade e seus mitos. Já em outros casos incomuns, esses preconceitos geram vítimas em pessoas que possuem características de beleza física e que chamam a atenção.

Esses casos de discriminação costumam inserir novos conceitos na sociedade popularizando palavras para nosso vocabulário, que é o caso do famoso recalque. No sentido técnico e psicanalítico, o recalque é uma defesa da personalidade, pessoas se recalcam porque se sentem ameaçadas.  O assunto virou hit popular, principalmente pelas redes sociais, por causa do sucesso da música da funkeira carioca, Valeska Popozuda. “Beijinho no ombro pro recalque passar longe” serviu até de paródia para outros temas como o futebol e a política. A funkeira já admite de início possuir inimigas e ironiza:“desejando a todas vida longa para que elas vejam por muito tempo sua vitória”, diz um trecho da letra.

Mesmo que o assunto da letra da música de Valeska Popozuda seja para fins lucrativos, não deixa de ser uma severa crítica para as relações entre a sociedade e seus integrantes. A preferência do mercado de trabalho por candidatos com tendência a beleza e que se produzem de acordo com a moda, já é o suficiente para um concorrente criar barreiras e se alimentar do sentimento de inferioridade. Em outros casos,pessoas pouco comunicativas e que possuem características de vaidade, podem ser taxadas de metidas e carregarem opiniões negativas de outras pessoas.Tudo isso, contribui para fatores psicológicos ligados diretamente a saúde mental.

O modelo fotográfico Moisés Bruno Bissoto trabalha em uma empresa na área da moda. O modelo admite sofrer discriminação não pelo fato de se achar bonito, mas pelo status de trabalhar como modelo de moda. “Principalmente em festas ‘alguns caras’ que me conhecem e sabem que sou modelo ficam com inveja e querem brigar comigo por chamar a atenção somente pelo status de modelo”.

Moisés diz não se apresentar como modelo para evitar problemas de relação até mesmo com as mulheres. “Em outros casos, não conheço as pessoas e fico depois sabendo que algumas pessoas não gostam de mim pelo fato de me achar metido, por isso eu prefiro não me identificar como modelo de moda”, afirma.

Patricia Klein, 23 anos e modelo desde os 14 anos, viajou para sete países e conta que sempre sofreu preconceitos até mesmo dos amigos. ”Quando eu voltava para minha cidade eles me apresentavam como modelo e eu percebia que as pessoas me olhavam de forma diferente, me viam como uma pessoa superior e eu percebia inveja nisso”.

Patrícia Klein denuncia ainda que, entre as modelos existe muita competição, e isso pode gerar violência. “Isso tudo me incomoda, me deixa insegura, pois gosto de ser tratada como normal”, desabafa.

De acordo com a psicóloga, Mariana Miranda Borges, os modelos fotográficos de moda, são foco de muita atenção tanto pelas experiências que a beleza lhe proporciona como a própria beleza.

“Existem pessoas que são tão bonitas que ficamos olhando bastante para elas, admirando, isto incomoda algumas pessoas, pelo fato de ser o centro das atenções”, além da inveja, a psicóloga explica a questão do sistema límbico. “Coisas feias e que nos dão nojo não são tão bem aceitas pelo nosso sistema nervoso, temos repulsa, o que já não acontece com o que é belo, como um processo orgânico”, afirma.

As rede sociais, se transformaram em mídia particular para anônimos que hoje encontram-se em processo avançado de inclusão social da internet. Pelo facebook, twitter e instagran é normal identificar frases que usam da ironia e do humor para servir de recado aos possíveis inimigos. “Quem não me conheçe já ouviu falar porque sempre tem uma recalcada pra me divulgar”. Até mesmo comunidades virtuais são criadas para divulgar conteúdos que servem de contra ataque a inveja ou a discriminação. A comunidade no facebook: https://www.facebook.com/LigueParaMinhaBelezaEVeSeElaAtendeSuaInveja> é um exemplo de frases que emitem intolerância com a inveja.Seu recalque bate no meu perfume importado e volta como revista da Avon, pra você esfregar no pulso”, frase citada na comunidade.

Outro caso comum de discriminação pela beleza é o aumento de mulheres se profissionalizando como auxiliares de árbitros nas partidas de futebol. Além do fato de serem mulheres, essas bandeirinhas se destacam pela beleza física e chamam atenção pelo vestuário adotado no futebol: short curto e roupas coladas.

A bandeirinha Maira Americano Labes, foi chamada de “gostosa” pelo técnico do Juventus, Celso Teixeira, em partida contra a chapecoense válida pelo Campeonato Catarinense. O técnico reclamou com a bandeirinha e acabou sendo expulso da partida. De acordo com a súmula do árbitro, antes de sair do campo, o técnico Celso Teixeira falou para a bandeira: “vou sair, sua gostosa”.

A discriminação pela beleza pode ser comparada com os antigos casos conhecidos nas escolas, em que, os considerados inteligentes, são até hoje, discriminados por serem dotados de dedicação e capacidade rápida de raciocínio, por esse motivo, gerando agressões ingênuas. Mesmo que não seja um fato alarmante, podemos estar vivenciando futuras histórias de agressões pela beleza, casos singulares e que enfraquecem a motivação espiritual do ser humano.

Cobrança de imposto pela beleza

O escritor argentino Gonzalo Otálora, causou polêmica ao defender a cobrança de impostos das pessoas consideradas mais belas para compensar o “sofrimento” daqueles que supostamente foram menos favorecidos pela natureza. De acordo com o portal G1 o escritor disse que sua iniciativa tem o objetivo de provocar um debate sobre o culto à beleza. O escritor não ficou apenas na teoria, no ano de 2008, ele com um megafone foi à frente da Casa Rosada, palácio do governo argentino reclamar os “direitos” dos feios. Esperava contar com o apoio do então presidente Kirchner,da república argentina, a quem classificava como “pouco atraente”.

A reportagem do G1 conta ainda que Gonzalo Otálora sofria deboches na infância e que isso poderia ter prejudicado sua auto-estima e atrapalharam na conquista de melhores empregos. O manifestante defendia a representação de “todos os tipos de constituição física” nos desfiles de moda. Otálora tinha em seu discurso teórico que, a inveja é alçada ao patamar de justiça, e a mediocridade é enaltecida enquanto o superior é condenado por suas virtudes, e não vícios.

Fonte g1.com

Compartilhe este conteúdo:

O Medo, a Inveja e a Vergonha em uma reflexão sobre as Paixões

Compartilhe este conteúdo:

Uma boa razão para estudarmos as paixões seja, talvez, a possibilidade de melhor entendermos a alma humana em toda sua complexidade. Desde Aristóteles até Greimas as paixões suscitam discussões e teorias que sugerem ainda um tema inesgotável. Para os antigos, a paixão era associada à doença, à loucura; uma vez que a opunham à lógica, à razão; modernamente é concebida como uma força motriz que leva o homem à ação (FIORIN, 2007, p. 10).

As paixões estão presentes nos diferentes tipos de discursos: publicitário, político, acadêmico, religioso etc. Entretanto, segundo Fontanille (2008, p. 93) o tipo de discurso no qual a dimensão passional mais se manifesta é o literário, narrativo ou poético mais explicitamente.  Há fartos exemplos disso: em Otelo, de Shakespeare, o ciúme e a manipulação são os elementos fundamentais; em Memorial de Aires, de Machado de Assis, é o apego que se estende até após a morte do ser amado; Um amor de Swann, de Marcel Proust, trata da paixão do ciúme; em Os desastres de Sofia, de Clarice Lispector, é a vergonha a paixão retratada. Outro bom exemplo, é o surpreendente conto La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, em que a história de Vincent Moon nos leva a refletir sobre a condição humana, sua instabilidade, suas fraquezas e motivações.

Ainda crianças somos orientados a temer desde coisas concretas, como o fogo, a água, objetos cortantes, até aquilo que não conhecemos. Disso se depreende que o medo é fruto da consciência da finitude humana, isto é, tememos basicamente aquilo que ameaça nossa vida e das pessoas que amamos.

Para Fontanille (citado por NASCIMENTO; LEONEL, 2006, p. 628) o medo, o temor e o terror são paixões que nos igualam aos animais e se distanciam de paixões mais nobres, que dão sentido à existência, como o amor, o ciúme, a ambição entre outras; isso porque nestas, o sujeito busca o objeto; naquelas, o sujeito atemorizado foge, rejeita o objeto, o que significaria a decomposição do sentido.

Fontanille criou uma tipologia para o medo baseada no desenvolvimento das formas observáveis e na intensidade da expressão dinâmica. Quando esses dois elementos são fortes surgem os “atores do medo”. Nessa construção, o medo se revela por motivos estereotipados, imediatamente reconhecidos, como a fera, a tempestade, o bandido. Quando o desenvolvimento das formas é fraco e a intensidade forte, surgem as “forças do medo”, nas quais o medo se revela por formas indefinidas, impalpáveis, em que o sujeito somente vê formas e cores, por exemplo. Quando a intensidade é fraca e o desenvolvimento forte, ocorrem as “formas do medo”, nas que o medo se dá por coisas monstruosas, fantásticas, cujo tipo de ação o sujeito desconhece. O último tipo de medo acontece quando os dois elementos são fracos, é a “aura do medo”, que se caracteriza por um mal-estar indefinido. A partir dessa tipologia o percurso do medo é descrito, permitindo observar as transformações textuais, que podem passar da “aura” ao “ator”, à “forma” e à “força”, por exemplo.

Ainda segundo Fontanille, no sujeito amedrontado pode haver, inicialmente, o enfraquecimento da competência modal ou perda do querer, do saber e/ou poder; em seguida pode haver a declinação de componentes corporais, isto é, o corpo manifesta reações de defesa que podem variar muito: frêmito, arrepios, palpitações, paralisia etc.  No entanto, por mais humano que seja, muitas vezes o medo é um sentimento associado à fraqueza, à covardia. Existem situações em que não se pode demonstrá-lo. Um revolucionário não deveria ser um covarde.

Segundo Chauí (1996, p. 56), a origem e os efeitos do medo fazem com que não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras, determinando o modo de sentir, viver e pensar do sujeito amedrontado. Para Harkot-de-La-Taille (1999, p. 18) a paixão da vergonha é intersubjetiva, surge do cruzamento de outras configurações em que o destinatário assume a perspectiva de um destinador julgador. O sujeito se divide em dois simulacros existenciais: num ele pensa ter certa competência modal positiva, constrói para si uma imagem que acredita representá-lo verdadeiramente; noutro, vê que não possui tal competência, isto é, não é o que pensava ser. Trata-se de uma paixão definida pela combinação do querer ser, não poder não ser e saber não ser. Isso tudo diante do olhar real ou virtual de um espectador cuja opinião importa muito ao sujeito envergonhado.

Vale lembrar as palavras de Chauí (1986, p. 56), para quem “O medo nasce de outras paixões e pode ser minorado (nunca suprimido) por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser aumentado por paixões mais tristes do que ele.”

Costumamos confessar a inveja acompanhada de adjetivos atenuantes, como “boa” ou “saudável”, sentimento facilmente confundido com admiração ou mesmo cobiça. Para Ventura (1998, p. 11), ainda que se refira à inveja como um dos sete pecados capitais, “a inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. O ódio espuma. A preguiça se derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulha brilha. Só a inveja se esconde.” Ainda segundo o autor, a inveja se distingue do ciúme, que se caracteriza por querer preservar o que se tem; e da cobiça, desejar o que não se possui. A marca da inveja é não querer que o outro tenha.

Para Mezan (1986, p. 119), a inveja está associada aos olhos, afirmação que se justifica na própria etimologia da palavra, do latim invídia, formada a partir do radical ved-, de vedére. Ainda segundo o autor, outra associação entre a inveja e os olhos está presente no Canto XIII do Purgatório, na Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que os invejosos têm as pálpebras costuradas por um fio de arame como castigo, impedindo-os de ver, inutilizando o órgão através do qual pecaram quando vivos.

Para se analisar mais detidamente o comportamento de algumas pessoas é necessário retomar a paixão da vergonha. Harkot-de-La-Taille (1999) lembra que se pode superar a vergonha assumida de três maneiras: pelo esquecimento ou negação, pelo humor ou pela confissão. Por exemplo, o personagem Moon, do livro La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, faz uso da confissão para vencer sua vergonha. Ora, o confessando se auto-rebaixa objetivando limpar-se da mácula. Assume e condena o próprio erro e espera ser perdoado, quer que o confessor sinta pena dele, que o aceite, por mais vil que se revele.

Daí o caráter polêmico da confissão, que pode não simbolizar necessariamente arrependimento sincero, culpa ou pesar pela falta cometida. Ela também pode funcionar como estratégia visando a autovalorização do sujeito envergonhado. Através dela o confessando se coloca em situação superior ao do confessor. É como se Moon dissesse a Borges: “Sou covarde e traidor sim, mas sou capaz de reconhecer isso, o que me dignifica”.

Harkot-de-La-Taille (1999) lembra, ainda, que é sincero o fazer-parecer do humor e da confissão resultantes da vergonha, pois, o sujeito envergonhado acredita na imagem que constrói de si mesmo, e o fato de insistir em parecer, representa a luta para que seu valor seja reconhecido.

Enfim, cinco situações básicas de vergonha nos são apresentadas pela autora, que lembra que tal categorização é limitadora, tendo em vista a complexidade dessa paixão. De qualquer forma, a quinta situação básica é a “de expor uma falta moral: crime, maldade, omissão de socorro, omissão ou mentira por silêncio, etc.” (HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999, p. 135). Desse tipo de vergonha, uma característica fundamental é a autorresponsabilização do sujeito. Mas, inicialmente, o ofensor arrependido age como se as projeções que faz de si mesmo e os efeitos de seus atos não se comunicassem, como se a imagem positiva que tem si mesmo não pudesse ser afetada por seus atos.

Embora quando perceba que sua imagem foi atingida por sua atuação, poderá sentir vergonha, mas para que isso aconteça, o sujeito envergonhado deve estar em sincretismo com o destinador julgador. Não obstante, a vergonha por falta moral não é garantia de comportamento moral. Serve, sem dúvida, como freio e controle para possíveis transgressões, assim mesmo pode levar o sujeito a cometer outras transgressões.

Referências:

BORGES, J. L. Artificios. Madrid: Alianza, 1993.

CHAUÍ, M. Sobre o medo. In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

FIORIN, J. L. Semiótica das paixões: o ressentimento. In Alfa: revista de linguística. Vol. 51, no. 1. São Paulo, 2007.

FONTANILLE, J. A conversão mítico-passional. In LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L, EMEDIATO, W. (org.). Análises do discurso hoje. Vol 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensaio semiótico sobre a vergonha. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 1999.

MEZAN, R. A inveja.  In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das letras, 1986.

NASCIMENTO, E. M. F. S., LEONEL, M. C. O medo como paixão. In Estudos Linguísticos XXXV, pp. 627-636, 2006.

VENTURA, Z. Mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

Compartilhe este conteúdo:

A tristeza pela felicidade alheia: a Inveja

Compartilhe este conteúdo:

Tristitia de alienis bonis
(Tomás de Aquino)

A tristeza em relação às coisas boas dos outros. É essa a definição de Tomás de Aquino para a inveja. Napoleão Bonaparte, por sua vez, costumava afirmar que “a inveja é um atestado de inferioridade”. Ao contrário dos demais pecados, a inveja é um pecado que causa vergonha, que não goza de boa reputação.

Dizer-se guloso não é problema para ninguém. Dizer-se luxurioso é, muitas vezes, motivo para gabar-se. O pecado da ira é, em nossos dias, comum no trânsito, nas relações de trabalho e nas familiares. Mas dizer-se invejoso, ah isso não. Quase nunca admitimos que temos inveja de algo. E quando admitimos, dizemos que é uma inveja branca, o que não existe!

Para Espinosa, “Se imaginarmos que alguém se alegra com uma coisa que pode ser possuída apenas por um só, esforçar-nos-emos por fazer de maneira que ele não possua esta coisa. […] Vemos assim como os homens são geralmente dispostos por natureza a invejar aqueles que são felizes e a invejá-los com um ódio tanto maior quanto mais amam a coisa que imaginam na posse do outro”.

Renato Mezan, em um artigo publicado em Os Sentidos da Paixão, vai nos dizer que a “inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o roubo e a rapina; há algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é indeterminado, variando do ‘qualquer coisa’ ao ‘tudo’”. E, por isso, devemos estar atentos à diferença entre a cobiça e a inveja. Cobiçar é desejar o que os outros têm. E esta pode ser positiva. Agora a inveja nunca é positiva, é sempre tristeza pela alegria alheia, pelo que o outro tem.

Neste aspecto, voltamos à etimologia da palavra, que vem do latim invidia, aquele que não vê. O invejoso não vê a si, só vê os outros. No Inferno de Dante, os invejosos têm os olhos costurados com arame. O que está relacionado com a não visão que a inveja provoca.

Pintada como uma mulher sinistra por Giotto, a inveja tem uma serpente que sai de sua boca e que retorna a ela, penetrando-a pelos olhos, parecendo querer dizer que a energia enviada pela pessoa invejosa retorna sobre o sujeito, cegando-o, envenenando seu olhar, infundindo-lhe um olho mau.

Giotto, A Inveja, Capela dos Scrovegni (Pádua, Itália)

 

Ainda sob o aspecto da visão, não é demais lembrar o “olho gordo” da inveja, que seca, esteriliza e mata. A palavra também quer dizer olhar com malícia. É comumente associada à cor verde, como na expressão “verde de inveja”. A frase “monstro de olhos esverdeados” (green-eyed monster, em inglês) se refere a um indivíduo que é motivado pela inveja. A expressão é retirada de uma frase de Otelo de Shakespeare, cuja personagem Iago é a personificação da inveja.

 

Travamos contato com a inveja nas primeiras histórias e nas primeiras leituras que fazemos. Em Cinderela, dos Irmãos Grimm, a inveja motiva a ação das irmãs ao verem o interesse do príncipe por uma misteriosa moça, elegantemente vestida e usando um sapato de cristal. Elas querem o coração do príncipe. E elas são capazes de cortar o pé para que o sapato sirva.

 

A madrasta encomenda a morte de Branca de Neve por um só motivo: a inveja de sua beleza, que agora é a “mais bela de todo o reino”.

 

Em outro conto, agora o da Bela Adormecida, é a inveja que também motiva a bruxa a lançar sobre a princesa o feitiço do sono: a bruxa não tinha sido convidada para a festa de batizado.

 

 

A inveja está fundada no ódio e a espoliação se faz com agressividade. No entanto, é importante atentar-se para o fato de que, embora esteja ligada à voracidade, a inveja não se confunde com ela: o voraz quer obter algo para si, o invejoso, não. O objetivo do invejoso é tirar algo do, o invejoso não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. É o que ocorre entre Caim e Abel:

1Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Possuí um homem com a ajuda do Senhor.” 2E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. 3Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. 4Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, 5mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. 6O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? 7Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. 8Caim disse então a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo.” Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o (Gn 4,1-9).

A representação de Ovídio é peculiar:

A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas […]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor […]. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício (OVÍDIO, 1996, p. 770 e seg.).

A inveja também é um personagem do anime/mangá Fullmetal Alchemist, que possui cabelos verdes/negros, e o poder de transformar-se em qualquer objeto: Envy (Inveja): É um homúnculo frio, sarcástico, impaciente e piadista. Possui a habilidade de se transformar em diferentes animais e pessoas. No anime, foi criado pelo clone do pai dos irmãos Elric, e tem o objetivo de destruí-lo. No mangá, ele é um monstro reptiliano de oito membros; olhos diferentes e corpos nas costas e na língua, cometeu suicídio após ter sido derrotado por Roy Mustang. Ele aparece na forma de um dragão em um longa da série.

Em Amor à Vida, nova novela das 21h da Globo, Félix (Mateus Solano) cobiça o patrimônio do pai, mas, antes de tudo, inveja a irmã Paloma (Paola Oliveira): o fato de ela ter tudo de seu pai, inclusive a atenção e o amor.

A inveja está relacionada com alguém próximo a nós. Não invejamos a quem está longe, mas invejamos o cunhado, o colega de trabalho, o vizinho. E muitas vezes colocamos a inveja como o motivo de nossa falta: o fato de não ter conseguido um emprego, o fato de não ter conseguido uma vaga na universidade, o fato de não ter conseguido uma bolsa de estudos.

Se postarmos agora no Facebook o seguinte: “Estou muito feliz, fui promovida, estou bem de saúde e amando!”. Que respostas teremos? “Hummm…”, “Sei.”, ou o silêncio. Mas e se postarmos “Luto”, logo teremos uma lista enorme de solidariedade. O invejoso não se reconhece, o invejoso não vê (novamente a etimologia da palavra).

Inveja é a última palavra de Os Lusíadas de Camões:

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.

O poeta, na instância 156, chama a atenção para o fato de os lusíadas (os portugueses) não precisam ter inveja de Aquiles, pois Aquiles fora cantado por Homero e o povo português pelo próprio poeta (Camões). Neste caso, já podemos entender que, de certa forma há uma pitada de inveja de Homero por Camões.

O invejoso sempre almeja o que não tem, tal como Machado de Assis nos mostra no poema Círculo Vicioso:

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

– Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:

– Pesa-me esta brilhante aureola de nume…
Enfara-me esta azul e desmedida umbela…
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

Machado de Assis nos diz que, em vez de pensar-se a si mesmo, a inveja nos dá a cegueira para não enxergar a nós mesmos. Estamos, sempre, buscando o que nos falta, pela comparação com o outro. E sempre haverá alguém pior e alguém melhor do que eu.

Para finalizar, uma ideia sobre a inveja está ligada à ideia de justiça social. Aquilo que deve ser distribuído é aquilo que eu não tenho, então deve ser distribuído. E ainda: quando eu não tenho nada, defendo que tudo seja distribuído. Enfim, não é nosso foco, mas é para pensar.

 

Bibliografia:

ABREU, A. S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. São Paulo: Ateliê, 2001.

ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BÍBLIA. Versão eletrônica 1.0, 2005.

FELDMAN, E.; DE PAOLA, H. Uma investigação sobre o conceito de inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 32, n. 2, 1998.

FIGUEIREDO, Maria Flávia; FERREIRA, Luis Antonio. Olhos de Caim: a inveja sob as lentes da Linguística e da psicanálise. In: Sentidos em movimento: identidade e argumentação. Disponível em: http://publicacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestradoEmLinguistica/article/viewFile/417/344, acesso em 25 de maio de 2013.

KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MEZAN, R.. A inveja. In A. Novaes. Os sentidos da paixão (pp. 117-140). São Paulo: Companhia das Letras.

Compartilhe este conteúdo: