Um Sonho de Liberdade: ser livre como sentido de vida

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Quem tem porquê viver pode suportar quase qualquer como.
Nietzsche

Fonte: http://migre.me/vFtak

Foi em meio aos horrores da Segunda Guerra Mundial, a partir da experiência em campos de concentração, que Viktor Emil Frankl, um judeu, faz emergir a Logoterapia, também chamada como psicologia do sentido, ou a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia. Tal teoria fundamenta-se nos pressupostos humanístico-existenciais. A logoterapia é permeada pelo existencialismo cristão de Soren Aabye Kierkegaard (1813 -1855). Para este a existência precede a essência, esta afirmação salienta que o sujeito é um ser único e mestre dos seus atos e, por conseguinte, do seu destino. Este postulado é o cerne da angústia existencial, ou seja, ao se dar conta que o “Eu” é o próprio legislador da sua vida e ação, transportam o sujeito a um vazio de sentido (ALMEIDA, 2007).

Frankl visava compreender o ser humano em sua totalidade, o qual necessita de liberdade e é constituído pela capacidade de suportar o sofrimento, mesmo quando a vida parece não ter significado (RODRIGUES e BARROS, 2009). Como ressalta Moreira e Holanda (2010), a logoterapia concebe uma visão humana que se difere das demais concepções psicológicas de seu tempo, na medida em que propõe a compreensão da existência mediante fenômenos especificamente do ser humano e a identificação de sua dimensão noética ou espiritual.

Para Frankl (1984) a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, “esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprida somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido” (p.87). Esta busca de sentindo é individual e intransferível, e o sentido da vida é mutável, cada individuo deve buscar algo o satisfaça e o objeto de satisfação modifica-se conforme a perspectiva do sujeito e sua existência.

Um Sonho de Liberdade

Fonte: http://migre.me/vFtbo

O longa metragem “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Redemption, 1995), escrito e dirigido por Frank Darabont, usa como base a novela de Stephan King e narra a história de Andy Dusfresne (Tim Robbins). Nas primeiras cenas do filme o personagem descobre que está sendo traído pela esposa, esta e o amante são assassinados e Andy é condenado por duplo homicídio, crime o qual não cometeu.

Posteriormente, o personagem é encaminhado para a Penitenciária Estadual Shawshank para cumprir prisão perpétua. Já na entrada do presídio é possível vê a institucionalização do personagem, pois ao entrar, o sujeito perde sua identidade, isso fica visível no uniforme que lhe é dado, cuja função é de homogeneizar. Na prisão o indivíduo recebe um estigma, e a disciplina que lhe é aplicada tem a função de torná-lo dócil.

Como afirma Foucault (1999):

o corpo humano entra em numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica de poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas de rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim, corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (FOUCAULT, 1999. p. 110).

Fonte: http://migre.me/vFtcg

A partir disso, pode-se observar que uma vez institucionalizado e “docilizado”, o sujeito pode em algum momento, se acomodar com sua condição diante do sofrimento, encontra conforto neste sentimento e dá significado a sua dor. Afinal a vida é sofrimento, e sobreviver é encontrar significado na dor, e se de algum modo, a vida tem sentido, há propósito na dor e na morte (FRANKL, 1984). Dentro do universo cinematográfico do longa o sofrimento está dissociado do desejo de vida, torna-se sentido da mesma, o sujeito resigna-se e confortavelmente acomoda-se a realidade que o circunda.

Isso ocorre com Brooks, um idoso que se encontra preso há cinquenta anos na prisão de Shawshank; ao ser liberto, não consegue se desvincular do ambiente penitenciário e se adaptar à sociedade, pois, o cenário datado antes de sua prisão era mais estático e quando foi liberto, havia se modificado, tornando-se mais dinâmico. O mundo da prisão era estável, diferente do ambiente que se apresentava a ele naquele momento “a liberdade de agora era fictícia, pois permanecia preso as regra estabelecida aos detentos. Havia, portanto, assimilado a identidade dos prisioneiros” (MOTTA, 2011, p.1). Assim, o personagem idoso comete suicídio, pois prefere isso a encarar o desafio de se adaptar a uma nova vida, não conseguindo ressignificar e encontrar sentido de vida neste novo momento que iria experienciar.

O filme retrata o cerne dos conflitos do ser humano no contexto penitenciário. Além de todo o sofrimento ocasionado pela privação de liberdade, Andy ainda sofre violência sexual de outros presos, sendo que chega até a se tornar passivo diante dessa situação, uma vez que as reclamações e pedidos de ajuda não são ouvidos. Mesmo diante do supracitado, o protagonista demonstra uma civilidade, uma serenidade no agir divergindo dos comportamentos dos demais, como cita Red, personagem o qual nos narra a história.

Fonte: http://migre.me/vFtcM

Na prisão têm se todos os reflexos do contexto cultural de forma mais acentuada, assim, nota-se aspectos de uma sociedade individualista ainda mais forte no presídio uma vez que, não se pode confiar nas pessoas, pois, ocorre uma luta pela sobrevivência. Embora isso seja parte do cotidiano desses sujeitos, Andy consegue estabelecer relações de amizade, como ocorre com Red. O espirito de comunidade também se apresenta no filme, pois, os encarcerados, buscam estratégias de sobrevivência, seja por troca de favores ou contrabandos de alguns objetos feitos por Red para tentar amenizar a vida na cadeia.

Andy consegue desenvolver até mesmo o altruísmo, o que na vida lá fora talvez não fosse possível visto que, o personagem conta em algum momento que sua mulher se queixava que não conseguia compreendê-lo, interpretá-lo, sempre introspectivo. Porém, quando privado de liberdade, começa a repensar o sentido de sua vida e de suas práticas, desse modo, o personagem utiliza-se de sua experiência como bancário para facilitar sua vida e de seus companheiros.

Em relação a isso, temos uma cena emocionante na qual Red consegue que ele e seus companheiros trabalhem na área externa do presidio, na impermeabilização do telhado.  O protagonista auxilia um guarda com seu imposto de renda, como recompensa solicita cerveja para seus companheiros, ao contemplar esse momento, os personagens sente como se tivesse retomado sua vida antes da prisão. Sem dúvidas, o personagem consegue manter sua motivação para sair daquele lugar, no caos, ele consegue redescobrir o sentido da vida, desenvolve estratégias e se utiliza de toda sua história e potencial criativo para conquistar a tão sonhada liberdade.

Fonte: http://migre.me/vFtd1

Aproximação entre Viktor Frankl e Andy

Paiva (2009) aponta que a linguagem cinematográfica, em sua expressão, permite uma interação entre obra, autor e público, de modo que é possível alcançar uma abrangência intertextual, e ainda, a capacidade de olhar e interpretar o mundo sobre várias perspectivas. Assim, é possível recriar a vida, fato que se aproxima da filosofia, pois, o cinema revela as contradições da existência humana, mostrando seus conflitos e denunciando suas realidades.

A partir disso, percebe-se que o filme Um Sonho de Liberdade faz intertextualidade com a história do criador da logoterapia, Viktor Frankl, uma vez que assim como Frankl vivenciou os terrores de um campo de concentração nazista, o personagem do longa metragem passa por momentos angustiantes e é privado de liberdade por um crime que não cometeu.

Motta (2012) observa que a fotografia do filme nos mostra através das cores, uma alusão à Idade Medieval, período no qual os seres humanos viviam em conflito existencial, pairando entre o teocentrismo e o antropocentrismo; enquanto o primeiro estava ligado ao cristianismo, sendo que as pessoas pautavam-se nas leis bíblicas para controlar e docilizar os outros, o antropocentrismo configurava o desejo do ser humano se reafirmar, criar uma identidade e se fazer respeitar pelos outros.

Fonte: http://migre.me/vFtdA

Nesse sentido, a história do criador da Logoterapia nos mostra esses paradoxos de existir e afirma que não há sentido apenas na beleza e gozo da vida, mas que também é possível encontrá-lo mediante experiências devastadoras, pois, mesmo que essas reservam apenas uma possibilidade de configurar a existência, a atitude a qual a pessoa se coloca em face à restrição forçada de fora sobre seu ser, pode produzir o sentido da vida (FRANKL, 1984, p. 63).

Como ressalta o autor:

Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo. (FRANKL, 1984, p. 63).

Nota-se que ambos passam por momentos de profunda reflexão e busca do sentido da vida, sendo este a principal força motivadora do ser humano. Para tal, é imprescindível a vontade de sentido, nada é mais insubstituível – mesmo em circunstancias adversas, do que vivenciar o insight, isto é, compreender que sua vida tem sentido (PEREIRA, 2007).

Frankl (1984), quando retrata esses momentos de imersão em si mesmo, elucida que a tendência para a intimização percebida por ele em alguns prisioneiros, possibilita a mais viva percepção da arte ou da natureza uma vez que a intensidade desta experiência faz esquecer por completo o mundo que o cerca e todo o horror da situação.

Vemos então, que mesmo diante de uma tragédia, o ser humano pode re-significar sua existência através de um ajuste criativo. Ser saudável existencialmente não implica necessariamente em não experimentar sofrimento ou viver em um estado de constante tranquilidade; o que consiste em equilíbrio existencial é a coragem de assumir riscos e situações novas, ou seja, a capacidade de desenvolver estratégias para vivenciá-las da melhor forma possível (FORGHIERI, 1996).

Fonte: http://migre.me/vFtej

Forghieri (1996) ressalta que a coexistência de opostos é que nos dá o verdadeiro significado de cada um dos extremos que acreditamos ser contrastantes em nossa vida cotidiana, porém, esses polos constituem uma totalidade, assim, “se consigo sentir-me verdadeiramente alegre é porque já me tenho sentido profundamente triste; se consigo sentir plenamente a ternura de uma convivência amorosa é porque já conheço a angústia de minha solidão” (FORGHIERI, 1996, p. 103).

Assim, Frankl e Andy conseguem mesmo privado de liberdade, desenvolver estratégias para sobreviver naquele local. O primeiro, por ser médico, utilizava-se dos seus saberes para ajudar os enfermos, enquanto que o segundo teve experiências como bancárias e utiliza-se disso a seu favor para conseguir recursos para amenizar a vida na prisão, como por exemplo, a reforma da biblioteca.

O fluxo do existir e dos acontecimentos, vão modificando o sentido de existir, pois, o ser humano é mutável. O existir está repleto de incertezas, mesmo quando o sujeito tenta se apoiar em experiências do passado, pois, o presente é também abertura para o futuro e este é incerto (FORGHIERI, 1996).

Vale ressaltar, que ambos elaboram planos de fuga, o que afirma mais uma vez a tendência auto realizante do ser humano, ou seja, o desejo de sempre melhorar e ir além, pois está intrínseco ao sujeito a vontade de expansão, a busca pelo sentido da vida. Frankl tinha no amor pela esposa – a qual também estava presa em outro campo de concentração, a motivação para se manter vivo, e Andy, por sua vez, mesmo não tendo mais laços afetivos, consegue encontrar em si mesmo o sentido de viver.

Frankl, além de sobreviver ao horror dos campos de concentração, contribuir como logoterapeuta na busca de sentido das pessoas ao seu redor durante o cárcere, ainda deu sentido ao seu sofrimento e dor ao elaborar a sua teoria, negando o pessimismo e dizendo sim à vida, em todos os seus aspectos.

Um simbolismo muito forte presente no longa metragem, diz respeito à fuga do personagem , pois, no início, o interlocutor acredita que Andy é culpado, este passou por um túnel impuro e imundo- o que também é retratado pelas cores frias da fotografia do filme, e saiu do outro lado, puro e limpo para recomeçar uma nova vida (MOTTA, 2012).

Fonte: http://migre.me/vFteW

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, J. M. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano III – Número III – janeiro a dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/existenciaearte/Edicoes/3_Edicao/Jorge%20Miranda%20de%20Almeida%20FILOSOFIA%20ok.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2016.

FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Porto Alegre, 1984.

FOUCAULT. M. Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão. Ed. Vozes. Petrópolis, 1999.

FORGHIERI, Y. C. Saúde e adoecimento existencial: o paradoxo do equilíbrio psicológico. Revista Temas em Psicologia, vol.4 no.1 Ribeirão Preto, 1996.

MOTTA, C. M. M. Um Sonho de Liberdade – Análise Semântica. 2012. Disponível em:<http://leiturasinterdisciplinares.blogspot.com.br/2011/12/analise-do-filme-um-sonho-de-liberdade.html>. Aceso em: 28 de abril de 2016.

PEREIRA, I. S. A vontade de sentido na obra de Viktor Frankl. Psicologia, USP, Brasil, v. 18, n. 1, p. 125-136, 2007. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/pusp/v18n1/v18n1a07.pdf>. Acesso em: 8 de abril de 2016.

RODRIGUES, L. A. ; BARROS, L. A. Sobre o fundador da logoterapia Viktor Emil Frankl e sua contribuição à psicologia.  Revista Estudo, v. 36, n. 1/2, p. 11-31s, , Goiânia, 2009. Disponível em: <http://espiritualidadesentido.yolasite.com/resources/sobre%20o%20fundador%20da%20logoterapia.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2016.

PAIVA, C. M. S. C. Cinema e Filosofia: Uma Interlocução Possível – A ética, a cultura organizacional e a estética da violência nos filmes Clube da Luta e Tropa de Elite.  São Paulo, 2009. Disponível em: <http://portal.anhembi.br/wpcontent/uploads/dissertacoes/comunicacao/2009/dissertacao_celinamariasilvacastropaiva.pdf>. Acesso em: 05 de maio de 2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

UM SONHO DE LIBERDADE

Diretor: Frank Darabont
Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton, Clancy Brown;
País: EUA
Ano: 1995
Classificação: 16

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A teoria de Kierkegaard sobre o Existencialismo

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Fonte: http://i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/02553/kirk_2553405c.jpg

O existencialismo consiste em um conjunto de teorias que são caracterizadas em centrar sua análise na existência, entendida esta não como fato de ser, mas como realidade individual (BARSA, 2005, vol. 6, p. 165). Kierkegaard (imagem acima) foi um autor influente no pensamento do século XX e é difícil enquadra-lo em uma corrente teórica ou religiosa por ser um pensador de múltiplas faces, é um pensador agostiniano que tem muito a contribuir para a compreensão contemporânea da fé e da relação que existe entre a fé e a razão. Foi conhecido como percursor do existencialismo, nos leva a refletir sobre as problemáticas levantadas sobre fé e razão (BARSA, 2005, vol. 8, p. 404).

O EXISTENCIALISMO DE KIERKEGAARD

Sören Aabye Kierkegaard (1813 -1855) foi o primeiro autor a escrever sobre o existencialismo, que foca, principalmente, sobre o aparente sentido da vida (ou a falta dele), sobre a busca de sair do tédio existencial e sobre as escolhas livres. Já que o homem precisa da liberdade para definir sua própria natureza. A infância de Kierkegaard é marcada pela figura paterna e sua influência sobre ele para se conhecer a bíblia, a língua grega e o latin, o que o fez-se decidir pela carreira teológica como forma, também de devoção e celebração divinas. Na Universidade de Copenhague, conheceu a filosofia do alemão Hegel e seu racionalismo na busca do absoluto. Porém, após um estudo profundo sobre as obras do autor, começa a discordar da abordagem que este faz das questões ligadas à fé e o cotidiano, pois a verdade conceitual proposta por Hegel não o convencia por completo já que a pessoa e suas vivências imediatas e intransferíveis estavam afastadas em prol da racionalidade, como exposto por Cobra (2001)

Fonte: http://osamigosdasabedoria.blogspot.com.br/

Segundo Pinheiro (2016), a ascensão do existencialismo dá-se por fatores que, primeiro, afetaram o positivismo de Comte como forma de pensar, neste positivismo apenas o conhecimento científico é válido, ignorando qualquer verdade provinda de algo sobrenatural ou divino. Comte dividia a sociologia em duas áreas, a estática social e a dinâmica social. (VASCONCELOS apud LAGAR et al., 2013, p. 18).

No entender de Comte, a sociedade apresenta duas leis fundamentais: a estática social e a dinâmica social. De acordo com a lei da estática social, o desenvolvimento só pode ocorrer se a sociedade se organizar de modo a evitar o caos, a confusão. Uma vez organizada, porém ela pode dar saltos qualitativos, e nisso consiste a dinâmica social. Essas duas leis são resumidas no lema ‘ordem e progresso’”.

Essa ordem de Comte foi questionada com o início da primeira guerra mundial no começo do século 20, que “mostrou a vacuidade de todos os sistemas filosóficos para dar conta de uma compreensão sobre a complexidade da problemática humana” (PINHEIRO, 2016). A queda do positivismo, com o fracasso das grandes ideias humanitárias; e o ambiente de insegurança e pessimismo ideológico gerado pela técnica e pela ciência dão origem a uma angústia vital.

“Esta filosofia apresentou aos vivos e sobreviventes as interrogações que lhes eram pertinentes e próprias: qual é o sentido da existência? Da morte? Da dor? Da liberdade? Do desespero? Da angústia?” (PINHEIRO, 2016).

A Existência vem antes da essência, ou seja, não existe uma essência humana que determine o homem, mas ele constitui a sua essência na sua existência. Com essa essência provinda das experiências, o homem é capaz de realizar novas escolhas, tornando-se assim um homem livre.

Kierkgaard cria que se a condição de existência humana era essa, então o ser humano vive em uma constante angústia, tendo que escolher o próximo caminho a todo o momento e, consequentemente, refletindo sobre si, sobre seus feitos e sobre as próximas ações o tempo todo, como representa uma de suas frases, ilustrada abaixo.

Fonte: http://2.bp.blogspot.com/-pbCOl4-zys0/VQxGM9JmAGI/AAAAAAAAO68/4taErJ-oSrw/s1600/00000000.jpg

Segundo Celeti (2016), outra característica é o desespero, aquilo que nos torna quem somos pode ser perdido e nos deixar em desespero. Toda a existência humana está assim, visto que o homem precisa de coisas externa (as quais não controla) para se sentir quem ele é.

Somos livres para escolher, mas isso nos traz angústia e, eventualmente, o desespero do medo de perder tudo. Estamos desamparados, não temos muletas, desculpas ou quem ficar culpando por nossas escolhas.

“O existencialismo é o conjunto de ideias que coloca no ser humano a responsabilidade por se construir e por seus atos. Não há desculpas ou justificativas para nossas ações, o que somos ou o que fazemos não é produto da nossa história, da nossa criação, do destino ou da divindade. Estamos sozinhos lançados no mundo, para nos inventar, pois não há nada anterior à nossa existência para definir o que somos” (CELETI, 2016).

Fonte: https://resenhasdefilosofia.files.wordpress.com/2013/03/kierkegaard.jpg?w=660

No livro “O Conceito de Angústia”, Kierkegaard aborda uma questão ética polêmica, ao indagar se um julgamento moral pode ser suspenso em virtude de um poder maior. Ele exemplifica com o episódio em que Abraão recebe de Deus a ordem de matar Isaac. Assim ele vê o sacrifício de Abraão e Isaac: obediência a um dever, no caso a obediência a uma ordem de Deus que é a essência de tudo que é ético, mas que exigia dele um ato não ético. Kierkegaard buscava justificar-se por haver rompido seu noivado, o que ele considerava um ato não ético, porém o fez por um motivo que considerava eticamente superior, sua dedicação a Deus. Dos três modos de vida que ele considerava possíveis, o modo de vida estético, o modo de vida ético e o modo de vida religioso, este último era superior aos demais. “Esses estágios são ‘determinantes existenciais’ do caráter humano, uma instância que se oferece ao indivíduo, ao longo de sua existência, para o encontro de sua verdade mais própria” (SECCO, 2004. p. 928).

Modos: No caminho da vida há várias direções, embora se coloquem em três categorias de escolha. Assim é que distingue três tipos de vida a escolher, três escolhas fundamentais do homem: a estética, a ética e a religiosa que não são três concepções teóricas do mundo, mas sim, três maneiras de viver. Inicialmente Kierkegaard apresenta apenas dois modos de vida, ou estágios, se tomados como etapas transientes. Segundo Reale (1945, p. 180 apud BORGES, 2016) “Kierkegaard procurou estabelecer os três estágios, desde a vida estética que é a do puro gozo, a vida ética, que é a subordinação ao dever e do triunfo da vontade até a vida religiosa, que é a autêntica, a dolorosa experiência do divino que se põe perante nós oculto e longínquo”.

Borges (2016) afirmava que quem está sob o modo de vida estético vive no instante e não conhece outro fim da vida senão aproveitar o instante que passa. Infiel, quer sempre provar novidades, foge permanentemente ao tédio, recusa engajar-se, são os Don Juans ou o intelectual cético e diletante.

No modo de vida ético o homem encarna as regras universais do dever. Trabalhador consciente, marido e pai devotado, leva tudo a sério, é pouco flexível, prisioneiro de ideias acabadas, e se crê cidadão exemplar.

No modo de vida religioso o homem não está submetido a regras gerais, mas é um indivíduo diante de Deus. Sua relação com Deus não se traduz em conceitos e regras gerais, mas em inspiração fora do universo da razão. Abraão está pronto para sacrificar seu filho Isaac porque Deus o ordena, mas esta ordem não é justificada por nenhuma finalidade ética.

Um existencialista é um sujeito que coloca o foco em sua existência pessoal, preza acima de todas as coisas o livre arbítrio e a autonomia do indivíduo.

Kierkegaard nos ensina a ousar, a não ter medo de ir contra a corrente. A verdade segundo ele está sempre junto com a minoria, com ele também aprendemos o valor de tomar riscos na vida.

REFERÊNCIAS

PINHEIRO, Rita Josélia de Capela. O Homem, a Angústia e sua Existência. Disponível em http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/rita.htm. Acesso em 15 de mar de 2016.

FERRARI, Marcio. Augusto Comte, o homem que quis dar ordem ao mundo. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/historia/pratica-pedagogica/auguste-comte-423321.shtml?page=3#. Acessado em: 15 de mar de 2016.

COBRA, Rubem Queiroz. Época, vida e pensamentos de Søren Aabye Kierkegaard. 2001. Disponível em: <http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-kierkegaard.html>. Acesso em: 25 abr. 2016.

Grande Enciclopédia Barsa. 3. ed. São Paulo: Barsa Planeta Internacional, 2005. 18 p. 18 v.

SECCO, Frederico Schwerin. O conhecimento essencial segundo Kierkegaard. v, 14 n. 5. Goiânia: Fragmentos de Cultura. maio 2004. pp. 925-941.

CELETI, Felipe Rangel. Existencialismo e a Condição de Existência Humana. Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/filosofia/existencialismo.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

BORGES, Renato. Estético, ético e religioso, segundo Kierkegaard. Disponível em: <http://www.professorrenato.com/index.php/filosofia/textos/113-ilson-oliveira-e-andre-roberto-cremonezi>. Acesso em: 25 abr. 2016.

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O Existencialismo de Kierkegaard: uma interpretação contemporânea

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Soren Kierkegaard é antes de tudo, escritor e um dos fundadores da filosofia existencialista. De fato, não há um consenso quanto ao ideal deste grande pensador ser considerado um filósofo, afinal há muitas opiniões contrárias, incluindo a do próprio Kierkegaard. É autor de grandes obras como O conceito de Angústia, A Repetição, Temor e Tremor e O Desespero Humano.

Nascido em uma época onde os ideais difundidos e adotados eram os de Hegel, ele passa a discordar dessas ideias e a promover ataques contra o filósofo e a religião vigente. Suas obras existenciais não eram abordadas sob o ponto de vista universal, mas eram escritos acerca de suas experiências como ser existente, são frutos de suas próprias angústias. E, é válido ressaltar que o conteúdo contido nesses escritos deu a base para a fundação da filosofia existencialista, influenciando também algumas escolas da Psicologia.

O presente artigo apresenta os três estágios da existência humana segundo Kierkegaard, e como a liberdade pode gerar angústia ao ser humano, e como a condição emocional da existência, exposta por Kierkegaard, serve como apoio às ciências psicológicas de base existencialista.

O Existencialismo de Kierkegaard

O Existencialismo pode ser considerado como uma corrente teórica que se ancora no conceito de Autopoiese, onde o ser humano tem a capacidade de produzir a si próprio. Isto é, “o Existencialismo é, então, uma reação contra as construções sistemáticas que anulavam o homem no meio das abstrações, despersonalizando-o” (SILVA, 2011).

No que diz respeito à existência humana, Kierkegaard subdivide-a em três categorias, sendo elas a estética, ética e religiosa.

A estética esta relacionada a uma busca desenfreada pelo prazer, sendo este um prazer momentâneo, que acaba se dissipando, deixando assim, o ser humano vazio de si. Atualmente é possível observar que tal pensamento tem prevalecido, já estamos em uma sociedade capitalista, que visa o lucro, onde o ser humano se torna um consumidor em busca de uma performance que se adapte a esse sistema.

Já no estágio ético o homem subordina-se às leis, sua existência é marcada pelos deveres que assumem, regras e uma legislação que os regem. E, a maioria das pessoas que compõe esse estágio é identificada como tradicional. A partir de tal, salientamos que o estágio estético é o inverso do ético, enquanto o primeiro usufrui do prazer, o segundo é submetido ao dever.

O padrão social ético choca com as questões sociais emergentes atuais. Como por exemplo, temos a disforia de gênero, no qual o indivíduo acredita que seu gênero é oposto ao com que nasceu.

Por fim, temos o estágio religioso, no qual deixa-se a ética buscando aproximação com a religião, o homem não é mais sujeito das leis universais, mas sim sujeita-se a sua crença. Um clássico exemplo é o de Abraão e Isaac, apresentado na obra Coleção Os Pensadores, onde Kierkegaard discorre que a atitude de Abraão em se dispor a sacrificar seu filho, em nome de Deus, infringe as leis, de forma que passa do estado ético para o religioso, onde sua crença permite tal ato.

Angústia

De acordo com o Dicionário Michaells (2009), a angústia pode ser definida como um estado de exagerada aflição, ansiedade e sofrimento. Oposto a esse conceito, Kierkegaard (1968 apud Silva, 2011) diz que tais sensações são apenas categorias que o ser humano vivencia, e a angústia deve ser entendida como sendo uma vertigem da liberdade, na qual existe uma ambiguidade gerada no fato do indivíduo sentir atração e repulsa por esta liberdade. A mesma não é momentânea, não possui um objeto específico, e é tida como fundamental para que o homem adquira sua autonomia.

É perceptível a influência da religião sobre Kierkegaard, pois este apresenta a angústia como algo sempre presente na existência humana, sendo assim fruto do pecado original de Adão e Eva. Doravante a situação de desobediência a Deus (um ser transcendente), iniciou-se o livre arbítrio, a angústia surge pela liberdade absoluta.

Enquanto o homem ainda está em estado de inocência (ignorância), a angústia permanece latente, pois ele realiza atos espontaneamente e sem refletir sobre suas ações. Mas, a partir do momento em que se depara numa situação que precisa exercer seu poder de escolha, a angústia vem à tona. Este tem a possibilidade na escolha, entre o poder e o não poder, de modo que é auto responsável pelas consequências das suas escolhas.

Ainda nesse contexto, existem dois tipos de angústia: a objetiva e a subjetiva. A primeira, angústia objetiva, é entendida pela forma de como o pecado entrou no mundo. Enquanto que, a segunda, implica na inocência do ser, sendo semelhante ao caso de Adão.

O desespero é instaurado como o conflito entre o ser finito e a vontade da infinitude, por isso apresenta-se concomitantemente à angústia.

Nessa perspectiva, as pessoas sabem que a única certeza inevitável é a morte, porém fazem de tudo para evitar o envelhecimento (que é o nível de desenvolvimento mais próximo esta). De acordo com uma reportagem do National Geographic, “Tabu: Cirurgias Plásticas”, observa-se que o corpo, nesse contexto, é a única representação do sujeito e é a partir dele que se abrem as portas para a vida social. Em virtude disso, o número de cirurgias plásticas tem tomado uma proporção exorbitante. Inúmeros são os casos de homens e mulheres que se frustram e se tornam obsessivos na procura da perfeição do corpo, acreditando ser um tabu a existência de um corpo fora do padrão, ou seja, um corpo considerado esteticamente ideal e funcional. Tal procedimento é facilitado pelo uso de novas tecnologias aliadas às práticas médicas e estéticas, por isso, nessa conjuntura imagética, só é “feio” quem não se dispõe a esses tipos de mudanças.

É válido ressaltar que “A decepção mais comum é não podermos ser nós próprios, mas a forma mais profunda de decepção é escolhermos ser outro antes de nós próprios.” (KIERKEGAARD, 1968 apud RUANO, 2015). Diante de tal afirmação, depreendemos que o homem possui certo medo de enfrentar suas próprias angústias, e como consequência, prefere deixar sua individualidade de lado, se integrando às massas sociais, adaptando suas características a elas, como meio de se sentir aceito pela própria sociedade somática e imagética. Dessa forma, então, o ser deixa o seu poder de criticidade para se submeter a esse estilo de vida padronizado.

Ao modo que, quando se refere a uma sociedade imagética, temos como principal característica a supervalorização da imagem, onde o ser humano tem se afastado de si, da sua subjetividade, e tem encaminhando-se para uma busca da perfeição do seu corpo, gerando ansiedade, frustração, promovendo adoecimento psíquico, a chamada somatização.

Com isso, podemos ver que a sociedade tem se tornado a coletividade da medicalização. Nesse aspecto, pode-se citar a visão de Roudinesco (2000), “[…], quanto mais se promete o ‘fim’ do sofrimento psíquico através da ingestão de pílulas, que nunca fazem mais do que suspender sintomas ou transformar uma personalidade, mais o sujeito, decepcionado, volta-se em seguida para tratamentos corporais.”

Nesse ínterim, a angústia compreendida no homem atual tem sua origem na própria idéia conceituada por Kierkegaard, nos remetendo ao fato de que tal autor se apresentou como avançado para sua época, demonstrando problemas que podem ser vistos hoje, de forma que o ser humano não deve superar a angústia, mas sim aprender a viver com ela.

Kierkegaard e a Psicologia

Muitos estudiosos que vieram após Kierkegaard não o consideravam um filósofo, assim como o próprio Kierkegaard, através de seus inúmeros pseudônimos, não se considerava um. Janzen e Holanda (2012) se utilizam das próprias palavras de Johannes de Silentio, um dos pseudônimos de Kierkegaard, para enfatizar a afirmação acima, afinal como poderia Kierkegaard que não fez parte ou entendeu a qualquer sistema de filosofia ser um filósofo?

Minicomio

Kierkegaard não escreveu, em seus muitos livros, acerca do mundo, mas sim sobre si mesmo, sobre suas verdades, suas experiências, sejam elas de angústia ou desespero. É essa existência de Kierkegaard, que dá relevância ao emocional, segundo Janzen e Holanda (2012), que faz com que ele seja associado a escolas de Psicologia que possuem bases Existencialistas.

Protasio (2014) mostra como em alguns dos escritos de Kierkegaard, ele demonstrava uma ideia de Psicologia. E é esse ideal psicológico encontrado nas obras de Kierkegaard que influenciou de fato, a Psicologia.

Portanto, embora haja diversas opiniões contrárias sobre Kierkegaard ser ou não um filósofo, e mesmo ele não se considerando como tal, suas obras iniciaram a criação do existencialismo para a filosofia. Para definir o que é a existência humana, Kierkegaard subdividiu este pensamento em três categorias que se é muito observado nos dias atuais, assim como é predominante. O mundo capitalista preocupado com a vaidade e a beleza externa, uma existência subordinada a leis e regras e as crenças religiosas vistas como superiores as leis universais. Toda essa trajetória da vida existencial humana gera por si uma angústia, que para este pensador é uma perda do equilíbrio da liberdade. Kierkegaard, adiante do seu tempo, percebeu problemas que podemos ver hoje.

Referências:

BURNHAM, Douglas; BUCKINGHAM, Will. O livro da filosofia. São Paulo: Globo Editora, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Coleção Os Pensadores: Kierkegaard. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de et al . Kierkegaard, a Escola da Angústia e a Psicoterapia. Psicol. cienc. prof.,  Brasília,  v. 35, n. 2, p. 572-583,  Abr./Jun.  2015.

JANZEN, Marcos Ricardo; HOLANDA, Adriano. Elementos para uma psicologia no pensamento de Soren Kierkegaard. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 572-596, 2012.

MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. ______: Editora Melhoramentos, 2009.

PROTASIO, Myriam Moreira. A psicologia indicada por Kierkegaard em algumas de suas obras. Rev. abordagem gestalt, Goiânia, v. 20, n. 2, p. 213-220, Jul./Dez. 2014.

ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Zahas, 2000.

RUANO, Eduardo. Soren Kierkegaard e o existencialismo. Disponível em: <http://www.laparola.com.br/soren-kierkegaard-e-o-existencialismo>. Acesso em: 24 mar. 2016.

SALVIATI, Nívea Regina Simono. Angústia Existencial. Disponível em: <http://www.psicoexistencial.com.br/angustia-existencial/>. Acesso em: 24 mar. 2016.

SILVA, Andressa S. Existencialismo. Disponível em: <http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_54071/artigo_sobre_existencialismo>. Acesso em: 24 mar. 2016.

Tabu Brasil: Cirurgias Plásticas. Direção: Eduardo Rajabally. Coordenação de Produção: Luana Binta. National Geographic, 2013. 47’35. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7N9wVtONEMY>. Acesso em: 24 mar. 2016.

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Kierkegaard – A severidade do Deus que promete e cumpre

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Kierkegaard é um autor que suscita muitas interpretações. Uns dizem que seus escritos2 não são reflexo da sua vida, e outros acreditam o contrário, que sua historicidade está ali colocada mesmo que com uso de pseudônimos. O uso desses nomes fictícios aumenta a dificuldade, ora em saber se fala de sua própria vida, ora com relação ao que é mesmo dito. Há ainda uma dúvida com relação à pronúncia de seu nome, em sua maioria se lê Kierkegaard, mas o professor e conferencista Emmanuel Carneiro Leão3 levanta um questionamento sobre isso, afirmando ser Kierkegoord, e não como a maioria costuma pronunciar. Há também algumas leituras e confusões com respeito a palavra ‘estádio,’ que para alguns deveria ser estágio, e vice-versa. Este problema é o mesmo do nome, uma barreira linguística.

A filosofia costuma “desbanalizar” conceitos que perduram, embora me pareça convincente seu argumento, me prenderei à maioria, não por covardia, mas por falta de conhecimento a respeito, haja vista que aprender dinamarquês em pouco tempo é inviável para mim, assim como quando aparecer a palavra ‘estádio’ me refiro à versão que li, embora alguns comentadores prefiram usar a palavra ‘estágio’. A barreira linguística denuncia mais do que uma dificuldade do autor, o que é intrigante, pois o mesmo Kierkegaard destaca este mesmo problema sobre quem procura entender, e diz que a falta do conhecimento do idioma original o impossibilita de entender mais, a recíproca é verdadeira. Traduzir obras é sempre difícil, pois fazê-lo no literal pode não representar a ideia real do autor, e por outro lado, saber qual é realmente a ideia pode ser mais complexo do que simplesmente traduzir.

A ideia principal aqui concatenada é levantar questionamentos e hipóteses seguindo o mesmo estilo que o interpretado. Talvez a própria palavra ‘estádio’ seja um desses problemas, onde a tradução é essa, mas talvez o sentido pudesse ser outro. Segundo a professora Guiomar de Grammont o estágio pressupõe uma passagem de um ponto a outro, onde se dá o nome de ‘estágio,’ o que não acontece com ‘estádio’ onde um sujeito pode permanecer a vida inteira em um, sem passar para outro. O lugar onde ele menciona que há pessoas que não chegam, pode ser este, o estádio, mas não qualquer um, o religioso, que está no grau mais alto. que o cavaleiro da resignação infinita. Talvez seja isso, é o que me parece. Geralmente menciona-se três estádios, mas para mim todos os outros são importantes.

O valor da dúvida cartesiana e da fé são meios pelos quais o homem segue crescendo e vai longe, é nesse método investigativo que se segue o pensamento dele. Mas isso não significa que ele venha a duvidar, nem tampouco Descartes, coisa que ele mesmo diz. A certeza que se tem em relação a fé deles é interessante. Também penso que Descartes não tenha duvidado de nada, usou a dúvida para enfatizar suas crenças, e este caminho é perigoso. Todo aquele que acredita em algo “prova” a seu modo, e tudo lhe parece ser favorável. Aí o perigo da boa argumentação almejada por muitos, pois acaba-se por conseguir “provar” o que se quer, como acreditavam os sofistas, e como diz Pascal sobre a causa “justa” ao advogado que ganha bem e antecipadamente, ou do necessitado.

A leitura nos intriga na medida em que pensamos na realidade do escrevente, e em nossa própria existência, já que um dos temas, o ‘desespero’, está diretamente ligado com o estádio religioso, e envolve a todos.

Um homem com especial admiração por Abraão desejava ter participado da viagem de Abraão, e quem sabe assim poder entender o fato, coisa que quanto mais reflete menos consegue. Ele busca capturar a essência do fato e tudo que o envolve.  Este homem reconhece sua fraqueza intelectual e a impossibilidade de se conhecer a verdadeira história de Abraão. A via mais interessante de suas suposições é a de Abraão preferir ser visto como monstro do que sem fé.

Pensar a existência é pensar o desespero humano. Este ponto é importante porque logo que se pensa na falta de existência divina, está instalado o desespero no homem. Se nós estivéssemos sós no mundo, no universo, e nossa existência se resumisse ao acaso, isso seria desesperador.

A comparação entre o herói e o poeta tem relação direta com quem escreve e sobre quem escreve, sendo o escritor um poeta, e o herói aquele de quem se escreve. O herói é Abraão, mas pode fazer alusão à seu próprio pai também. Se o professor Emmanuel estiver certo o pai de Kierkegaard pode estar sendo mencionado junto, ou na figura de Abraão. Emmanuel não diz isso, ele fala que Kierkegaard se coloca como Isaac, daí faço uma ligação entre os personagens.

O maior herói para ele é aquele que amou a Deus, não importa exatamente quem seja, lembrando que cada qual que feito grande por seus feitos, o foi por meio daquilo no qual almejava. Quando a esperança está no impossível de ser alcançado então se faz a maior grandeza do homem. Abraão foi o maior de todos os heróis, pois depositou sua esperança em Deus, embora Este seja cheio de paradoxos. Segundo Kierkegaard a fé de Abraão o fez grande, pois acreditando no impossível de ter uma geração mesmo em idade avançada o torna um herói maior do que aqueles que conquistam terrenos vencendo grandes batalhas. Veja só, primeiro ele crê em um Deus que não se conhece, em uma sociedade onde haviam Especialistas, ele aparece e diz que há Um só para tudo. Isso é interessante, pois não se tem todo o fato descrito na bíblia, que é uma junção de livros históricos a respeito de um povo, sua cultura e principalmente, sua fé. O motivo pelo qual o herói não será esquecido jamais, é simplesmente o fato dele ter vencido todos os seus temores sem nunca duvidar de sua fé. Crer é melhor do que admirar o crente, e é por isso que o herói sempre é maior que o poeta, este último apenas pode admirar o feito heroico sem nada poder oferecer.

Para ele Abraão nunca envelheceu, pois o que mantém sua fé não envelhece, apenas os que esperam sempre o melhor, mas estes chegam a senilidade quando lhes ocorre a decepção, e os que partem da visão contrária se gastam mais rápido. Obviamente essa juventude não se refere aos anos que se passam, pois é humanamente impossível que os anos passem e o homem permaneça jovem biologicamente, pelo menos até os dias atuais. Embora essa juventude seja também objeto de dúvida, minha opinião é que isso não se encontre apenas no desejo de ser pai e mãe, mas no desejo sexual que se perde naturalmente com o tempo, bem como seu vigor físico para o ato. Abraão mesmo em avançada idade contra todas as expectativas consegue não somente lograr o ato, mas gerar um filho, e não é qualquer um, é o da promessa, e é aí onde a felicidade bate, não só pela chegada do filho, pois já tinha um com Hagar, e sim pela promessa cumprida por Deus, caso isso não acontecesse, esse Deus não seria 4coerente, e ele haveria crido em outro deus.  Kierkegaard diz que foi a fé que manteve neles o desejo e por sua vez a juventude, embora Sara tenha rido e oferecido Hagar a Abraão, eles ainda creram no impossível, tanto que realizaram o ato, mesmo que o organismo já não respondesse tão bem para isso. Agora fazendo uso de uma boa ironia, digo que ele faz o enorme esforço de se deitar com Hagar, que devia ser cheia de juventude em sentido temporal, ao contrário de Sara quando da geração de Isaac. Deixemos isso de lado.

A vida de Abraão não foi fácil, mas ele consegue o tão sonhado filho da promessa, e imagine só o desespero dele, esperar por décadas, lutar, conseguir o que se almejou, e pouco tempo depois ter que desfazer-se, e ainda mais matando aquele que ama. A desgraça de se matar seu próprio filho, o da promessa, é maior que o desejo que não se realiza. Até então não se havia negociado com Deus, ele simplesmente cumpria o que era mandado, talvez fosse o objeto de desejo de Deus a todo momento, mostrar ao homem que ele tinha como dialogar com Deus e não apenas obedecê-lo. Se fosse o caso ele seria um Deus autoritário e cruel, que manda e desmanda, sem se importar com os sentimentos do humano.

A princípio parece que Deus se diverte com Abraão, primeiro o faz ter um filho na velhice, para depois mandar matá-lo. Honrar4 suas próprias palavras é ser coerente consigo mesmo, se falamos uma coisa e fazemos outra, então não estamos sendo coerentes conosco. Se pensarmos precipitadamente conforme a razão, este é o Deus de Abraão. Paradoxalmente se trabalharmos a própria razão com mais detalhes podemos notar algo mais. Só o fato de Deus falar com ele já lhe impõe uma situação de fé quase que imponderável, pois até então nenhum outro o havia feito, mas não é só isso que acontece. Ele ainda cumpre as promessas que faz, mesmo que isso seja impossível. Se Ele faz o impossível, mandar matar o filho da promessa não está fora de cogitação. Talvez Abraão não tivesse dúvida de que isso não aconteceria, ou tenha ficado na dúvida sobre o que Deus faria, mas com certeza não descumpriria sua promessa, embora aqui a angústia estivesse presente. Se Ele faz um homem velho ficar novo, e vai mais além, fazendo com que uma mulher também idosa tenha um filho, então ele pode perfeitamente lograr qualquer impossibilidade, inclusive a de mandar matá-lo sem que isso aconteça. E é o que acontece, Abraão recebe a Isaac novamente como se fora a primeira vez, pois é como um novo nascimento.

Se  Abraão sabia que estava em prova constante, ele sabia que qualquer coisa poderia acontecer, mesmo que fosse impossível. Mas não é de se descartar a possibilidade dele ter se enfurecido ou se entristecido com a ordem, não somente por ele, mas por ser ícone em uma nova sociedade, que seria mais uma a tê-lo por louco, ou algo do tipo. Em uma sociedade politeísta, este seria facilmente o Deus da loucura e da insanidade, que quando promete, cumpre, mas quando cumpre, tira. E tirando a promessa descumpre, pois a promessa não era somente de ter o filho, mas de posteridade sanguínea. O Deus de Abraão poderia ser também o “Deus da Brincadeira” e de mau gosto.Mas isso não aconteceu, e Abraão não estava regido por pensamento politeísta.

Curiosamente o prazer se segue após a dor, parecendo até que para a existência de um, há a necessidade do outro, o que não seria absurdo se notarmos a dualidade da vida, esse é um pensamento que Sócrates expõe quando retira os grilhões que lhe machucavam momentos antes de tomar a cicuta. Imagine a alegria de Abraão quando o anjo aparece pondo fim à provação, isto inclusive poderia ser mais um dos títulos divinos, “O Deus da Prova”, o que o faz com severidade. Não se sabe os motivos divinos, mas provar parece uma burla com o ser humano que já sofre tanto, mas também pode ser uma forma de tirá-lo da zona de conforto, e reviver momentos de alegria no lugar de ficar na felicidade almejada. Isso faz sentido, já que tudo está em movimento, mas a prova então viria apenas para os que creem, pois os que não tem esta fé parecem conseguir seus objetivos sem elas, não que não tenham dificuldades, mas ser provado é diferente de passar dificuldades.

Na dificuldade sabe-se que se pode superar a qualquer momento, a prova não, só passa quando Quem prova determina, e esta diferença faz quem tem fé ter também temor, este Deus determina isso. Como toda lapidação, Este provador põe a dualidade humana a seus limites, talvez ‘limite’ seja uma palavra importante para este Deus, já que Ele gosta de sempre aparecer no último instante, isso em relação à prova, e não à dificuldade, mas somente para quem crê. Coloca seus crentes às mais extremas situações, isso é contraditório, mas essa parece ser a maneira que Ele tem de melhorar o ser humano em seu processo de lapidação, mas só passa pelo processo de lapidação divina, quem crê. Quem não crê pode também lapidar-se, porém por meios próprios, e aí Kierkegaard diria que este não chegaria muito longe, ou a lugar nenhum, pois para isso precisaria crer. O estádio religioso parece ser a máxima humana para Kierkegaard sobrepondo os outros, ou seja, o estádio ideal é o que se está em Deus. Para quem não crê pode ser mais difícil lapidar-se por conta do estádio desesperador da solidão existencial.

Uma coisa é saber que há alguém por perto, ou pelo menos que aparecerá, outra coisa é saber que está só em meio ao vazio do universo imenso, frio, e desconhecido. Aqui o cavaleiro da resignação pode se confundir com o da fé, mas um é carnal, e o outro tem fé, mas no Deus de Abraão, já que a crença em Deus exclui qualquer outro que se creia, dessa forma ele não fala de qualquer tipo de fé, mas aquele que ama a Deus, a Quem Abraão creu e amou. Excluir qualquer outro Deus ou forma de crença no divino não é difícil de deduzir, haja vista que Ele é único, e se o é, não pode existir outro.

Costuma-se ouvir que Deus nunca chega atrasado, mas para o quê? A resposta não é tão óbvia, já que o homem passa por muita dificuldade antes dele aparecer, a dificuldade aqui gerada pela prova. Ele não chega atrasado para o fim da prova, ou seja, Ele sempre chega na hora certa para dar fim à provação, e assim refrescar um pouco a alma, pelo menos até que venha a próxima, e chega na hora que quer, não adianta murmurar, se quem prova é Ele, é Ele quem dá fim à prova, e se Ele acaba a prova quando quer, quer dizer que aparece quando quer. Escolher ter fé nesse Deus, é ter a dúvida de quando sessará uma prova e começara a outra. O que não quer dizer que não se possa negociar com Ele, pois Abraão fez isso e salvou seu sobrinho e família.

Se Isaac era o filho da promessa, Cristo também. O sacrifício que Abraão quase realiza é além de uma prova extrema do limite humano, um ensaio para o de Cristo, como Quem diz: “Você acha isso absurdo, mas eu mesmo o farei, e por você.” E por que não? Quem disser que sabe o que Deus pensa é sem dúvida um ignorante maior do que esse que vos escreve. Se Deus submete seu único filho à morte de cruz, então prepare-se crente, pois este Deus é severo.

Seja no tempo dele ou no meu, qualquer pessoa que “ouve” a voz de Deus,é duvidoso, mas se ouve, sabe que não terá vida fácil, pois é crente, e se não era, passa a ser, pois ouvir Deus e não crer é loucura. E todo aquele que crê, será provado, pelo menos parece ser esse o meio que Deus encontra para lapidar o homem, ou para outros fins que fogem a meu entendimento.

O desespero humano apresenta-se como outro grande mistério do ser. O desespero vem da existência corporal acabar aqui mesmo e a qualquer momento. O desespero existencial desaparece quando há Deus, mas a investigação continua, e a falta de conhecimento dá lugar a conforto na continuidade da existência, mesmo que não humana, pois buscar o conhecimento também é desesperador, porque há o risco de se perder nesta senda.

Acreditando que Abraão sabe o motivo da prova diz que o mesmo sabe que nenhuma prova é dura demais quando Deus pede. Tenho certeza de que Kierkegaard se equivoca muito nisto, a severidade da prova não tem outra visão, senão a de um pai que mata o próprio filho e de vontade própria. Ele não é obrigado a isso, Deus pede, ou manda, não sei bem qual a relação que Abraão tinha com Deus, nem exatamente a diferença de um pedido divino e uma ordem. Nos dias de hoje não é muito difícil de se ver esse tipo de notícia, mas naqueles dias isso parecia ser um absurdo. Percebe-se claramente o uso do estádio religioso neste argumento, em apoio à crença, quando diz que nenhuma prova é dura demais quando Deus pede.

Sabia que o Todo-poderoso o punha à prova,
sabia que este era o sacrifício mais duro que se lhe podia exigir, mas
sabia também que nenhum sacrifício é demasiadamente pesado
quando Deus o pede — por isso puxou da faca.”

Não sabemos de fato se Abraão sabia que estava sendo provado, segundo diz a bíblia sabe-se que empunhou a faca, e que realmente ia matar a Isaac. Aqui quem fala é o poeta em um estádio religioso, pois é movido por concatenações emotivas enquanto não começa a fazer comparações sobre o ponto de vista ético, porém seu cunho filosófico aparece quando observa o homem religioso fazendo comparações com outro homem. Não tenho dúvida de que seria um assassino, e Abraão também seria, mesmo tendo sido a mando de Deus, se tivesse chegado a matar Isaac seria um assassino.

Na verdade se não era, acabou sendo, pois é muito difícil que ele tenha ido livrar a seu sobrinho, e não tenha matado ninguém, assassino agora é, se não era. Mas em situação de guerra esse termo não costuma ser empregado. Creio que tanto naquela época como nessa, ouvir a voz de Deus já era duvidoso, se cria por meio do estádio religioso. Mas se ele chega a matar seu filho, em qualquer época isso não seria visto com bons olhos, ainda que o próprio Deus tivesse mandado, só e somente só, se Ele o fizesse na frente de toda a humanidade, mas neste caso acho que Deus mesmo seria o não bem visto, e as pessoas buscariam outro, pois a dedução é rápida, “terei um filho e Deus pode a qualquer momento mandar matá-lo.”

A complexidade do autor não foi completamente abordada aqui, Kierkegaard trata também de outros assuntos em “Tremor e Tremor”, fiquei na esfera religiosa, abordando algumas coisas de outros temas, que são mais abrangentes.

Então os estádios não são etapas, parecem ser um lugar onde se pode permanecer, ou sair dele. Abraão é um herói porque amou a Deus sobre tudo, inclusive sobre quem mais amava, a Isaac. O poeta nada faz de grandioso, apenas admira o herói, que faz grandes feitos, e o maior deles, é amar a Deus dando seu melhor, esperando o impossível, e este herói o cavaleiro da fé. Qualquer um pode ser um cavaleiro  da fé. O Deus de Abraão é severo, pois submete o crente a duras penas, fazendo promessas, e cumprindo. O importante é a escolha subjetiva.

Bibliografia:

Kierkegaard, Søren Aabye, 1813-1855. ‘Temor e Tremor’, Coleção os Pensadores.

Notas:

1)  < http://www.librosmaravillosos.com/metodo/parte02.html>

2) Profa. Guiomar de Grammont em: “As figuras estéticas em Kierkegaard” Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=74iUvu-9wQc> Acesso em: 09/01/2014.

3) Emmanuel Carneiro Leão, conferencista em: “Existência e alternativas, um olhar sobre Kierkegaard” – 1° Ciclo de conferências. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=KbEQxPHjaas> Acesso em: 09/01/2014.

4) Sabiduría Tolteca. Disponível em:<http://nuestraedad.com.mx/sabiduriatolteca.htm> Acesso em: 02/01/2014.

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Leituras de Pascal: miséria e grandeza humanas

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Uma das obras mais lidas no Ocidente, “Os Pensamentos” do filósofo francês Blazer Pascal é uma dura crítica ao homem que, de forma aparentemente escravizante, vive à mercê da imaginação desmedida. Considerado um filósofo moralista e com tendência explicitamente cristã, Pascal apresenta o homem como um ser que é condenado a uma dualidade que lhe é bem peculiar: ao mesmo tempo em que vislumbra a grandeza (seja nos aspectos do belo platônico ou, mais recentemente na ideia de justiça kantiana), o faz sob bases frágeis, pois este mesmo homem com amplas possibilidades também é uma expressão do sublunar e, como as demais espécies, está à mercê da temporalidade e da transitoriedade.

Haveria, então, uma necessidade de reconhecer estas duas facetas da existência, para que se evite, por um lado, a arrogância provocada pelos lampejos de acesso aos atributos absolutos e, por outro lado, o “autoflagelo” típico de quem se coloca como a pior das criaturas. Um caminho de mediação, já apontado por Aristóteles, é a dica deixada por Pascal.

Mas para que haja um espaço interno para esta mediação e, portanto, para a possibilidade do antagônico, Pascal diz que o homem precisa desenvolver a humildade. E é este um dos aspectos em que o homem falha, segundo o filósofo/teólogo: “jamais a razão [sobrepuja] totalmente a imaginação, (mas o) contrário é o que costuma acontecer”. Sendo assim, o homem não pode atingir a verdade porque sua razão é constantemente enganada pela imaginação (imaginação que, neste caso, seria a representação de neuroses, pulsões, vícios).

Pascal diz que essas imaginações muitas vezes são fortalecidas pelos costumes, mas é preciso que se “corrija” tais incongruências, “recorrendo à vossa primeira natureza. Quem então enganou? Os sentidos ou a instrução?”. Vale destacar que o interesse em si próprio “é também um maravilhoso instrumento para nos furar os olhos de maneira agradável”. Há, aqui, uma semelhança com a antropologia de Montaigne, e sua conhecida crítica ao autocentrismo humano.

Neste sentido, a mediação pode ser sinônimo de reconciliação. Algo que poderia ocorrer, inclusive, entre a fé e a ciência, sendo a ciência a investigação “das coisas exteriores” e a fé, o mecanismo que “consolará [o homem] da ignorância moral no momento da aflição”.

Há de se destacar que tanto “é perigoso mostrar demais ao homem o quanto ele é igual aos animais sem lhe mostrar a sua grandeza, [quanto] é também perigoso mostrar-lhe demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É mais perigoso ainda deixá-lo ignorar uma e outra coisas, mas é vantajosíssimo representar-lhe uma e outra”. Essa “natureza dividida” do homem, de certa forma, representa sua condição de “decaído”, posição já bastante conhecida da teologia cristã. No entanto, pela graça (ou estado de criação), o homem “é elevado acima de toda a natureza, torna-se como que semelhante a Deus e participante da divindade”.

Por fim, a fé toma em Pascal o mesmo tom que o estágio espiritual em Kierkegaard; ela [a fé] evitaria que o homem caia na presunção e inicie uma espécie de culto ao egocentrismo. Tendência que, aliás, como pontua Pascal Bruckner, é o gatilho para muitas das atuais mazelas psíquicas. Em síntese, o desafio é deixar-se permitir a uma aproximação/mediação com o outro, seja pelo mecanismo da fé, seja pela humildação. E quando [a pessoa] estiver sendo tomada por um sentimento de grandeza, deve percebe-se como pequena. E quando estiver se sentido muito diminuta, deve procurar se reconhecer no absoluto. Essa é, portanto, uma das “chaves” da obra de Pascal.

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