Como mudar (ou não) sua vida, segundo Proust

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Embora as pessoas passem muito tempo de suas vidas preocupadas em debater sobre a felicidade e as diversas formas de alcançar essa felicidade plena e estável, o fato é que nossa real preocupação tem sido a infelicidade.

Fonte: goo.gl/LsZPBm

Há um prazer mórbido que pode ser observado em vários círculos de amizade, no qual as pessoas se vangloriam de suas desgraças e inclusive competem para ver quem sofre mais. Profecias sobre o fim da raça humana, que eventualmente será causado por eventos catastróficos, mobilizam milhões de pessoas, que acreditem ou não nessa “profecia”, acabam sendo influenciados por elas. Diante da possibilidade da destruição total, as pessoas respondem de diferentes maneiras. A maior parte delas parece concordar em viver tudo o que tinham se negado a fazer durante a vida. Isto é bom? Isto é ruim? (é uma pergunta retórica, eu não vou respondê-la. Nem Proust.)

Convenções sociais têm forçado os humanos a se comportarem “bem”, reprimindo desejos animalescos ou que simplesmente não combinem com o que a situação pede… Nós viveríamos esses desejos intensamente caso a morte fosse certa?

Proust, citado por Alain de Botton, em seu irônico e afiado livro “Como Proust pode mudar sua vida” (2013), afirma que diante da perspectiva iminente da morte, a vida nos pareceria infinitamente bela e importante. Quantas coisas deixamos de fazer, adiando para um futuro incerto, por que não nos parece que a morte pode estar à espreita, logo aí? A certeza crua e impositiva da morte, tiraria o “viver” do plano de fundo e o colocaria como figura central deste quadro interessante chamado Vida.

Muitos de nós já nos depararam com a Morte por aí. Alguns acidentalmente, e outros intencionalmente tentam entender como seria o silencio perpétuo… Outros a encontram e não têm tempo para delongas. Ela vêm, se impõe como um fardo, que a despeito de ser invisível, não é por isto menos pesado, e os que ficam são irremediavelmente afetados, obrigados a lidar, pensar e reorganizar suas perspectivas.

Botton (1997) afirma que abrindo mão da nossa certeza de imortalidade, aproveitaríamos melhor a vida e suas imensas possibilidades. Entretanto, essa tomada de consciência deve ser aliada às reflexões, para que não se tome decisões impulsivas diante do pânico que a finitude pode representar. Em “Como Proust pode mudar sua vida”, (apesar do título característico de leitura de auto ajuda) Botton não pretende ensinar como aproveitar a vida. O livro é um convite irônico à reflexão de como ajustar nossas prioridades e aproveitar a estadia antes que a nossa viagem seja interrompida.

De uma forma irônica Alain de Botton em “Como Proust pode mudar sua vida” misteriosamente parece até que vai ensinar uma receita para a vida, os capítulos assemelham aos livros de autoajuda e mesmo não sendo é através das narrativas de Proust que o livro é abordado. Proust era um homem fascinado pela literatura e tinha como objetivo ser tão importante para o universo social através da sua literatura quanto seu pai fora para a medicina da época, tais narrativas nesse livro estão relacionadas à sua primeira publicação “Em busca do tempo perdido” que foi aclamado como obra prima.

Dentre as narrativas é evidente que o autor tenta mostrar como enxergar o outro a partir de nós mesmos, por exemplo, quando lemos um livro vivemos aquela história contada como verdade absoluta e sentimos como se estivéssemos no lugar do autor. Essa relação autêntica colocada leva o sujeito a desenvolver aspectos positivos, pois a literatura independente do gênero e tem funções terapêuticas, como citada por Botton:

Em vez de culpá-lo pelo problema, talvez devêssemos nos perguntar se é possível esperar que algum romance tenha efetivamente qualidades terapêuticas, se esse gênero é capaz de oferecer mais alívio do que é possível obter com uma aspirina, um passeio pelo campo ou um dry martini. (BOTTON, 1997)

Fonte: https://goo.gl/AHm5go

Proust, a princípio, poderia até ser apenas um amador da literatura, mas ele conseguia transformar qualquer noticia de jornal seja ela boa ou ruim em uma bela história. Com ênfase, entusiasmo e emoção, até mesmo uma caixinha de sabonete pode mostrar um pouco sobre a magnificência da vida.

Ou seja, é o próprio sujeito que atua como protagonista e dá importância a algo, que desenvolve e dá sentido a uma história, pois todas as histórias que já se ouviu até hoje foram vistas com importância para que fossem repassadas.

Essa dinâmica de dar significado ao conteúdo e expressá-lo é mencionada de forma sucinta por Botton:

Isso mostra como boa parte da experiência humana está vulnerável à abreviação, como é fácil ser privado das referências mais óbvias que nos pautam quando atribuímos importância a algo. É possível imaginar que boa parte da literatura e do teatro não teria nos dito nada se tivéssemos nos deparado com seu tema sob a forma de uma notícia breve durante o café da manhã. (BOTTON, 1997)

Segundo Botton, ao citar Proust, para ter uma vida saudável de ideias é preciso ter uma mente que seja examinada cuidadosamente para que só assim seja confirmada uma grande sabedoria. Para ele, só existem dois meios de adquirir a sabedoria: através da dor que é uma variante superior e por um professor. Diante disso, todo criador deve ser o primeiro a usufruir de sua invenção ou construção.

É por isso que Proust desprezava a tese de Sainte-Beuve e argumentava veementemente que eram os livros, e não as vidas, que importavam. Assim, podíamos ter certeza de apreciar o que era importante. (BOTTON,1997, p. 44).

Proust fala da rejeição que teve e isso levou a fazer uma seleção de amigos para justificar dentro da história da filosofia que as pessoas que se destacaram eram as que tinham inteligência e moral. Botton nos conta as experiências e frustações de Proust. Ele diz que o sofrimento físico e psicológico faz parte da vida e faz com que a pessoa cresça tanto material como imaterialmente, tanto no amor quanto na ausência dele. “O amor é uma doença incurável.” “No amor, existe um sofrimento permanente.” “Aqueles que amam e os que são felizes não são os mesmos”.

O pessimismo romântico de Proust se baseava, pelo menos em parte, na combinação de uma intensa necessidade de amor e uma tragicômica falta de jeito para obtê-lo. “Meu único consolo quando estou realmente triste é amar e ser amado”, ele declarou, e definiu seu principal traço de caráter como “a necessidade de ser amado; mais exatamente, uma necessidade de ser afagado e mimado mais do que de ser admirado”. (BOTTON, 1997. p ,47)

De acordo com o autor, todo individuo é diferente um do outro, ninguém tem uma mesma combinação de ações e problemas, para uns aquilo que é uma doença crônica é para o outro apenas uma distorção do que está fora da normalidade. De fato, na visão de Proust, só aprendemos realmente alguma coisa quando há um problema, quando sofremos, quando algo não sai como o esperado.

Embora possamos, obviamente, usar nossa mente sem estar em sofrimento, Proust sugere que somente quando mergulhamos na dor é que de fato estamos pronto para confrontar com o problema e nos tornamos apropriadamente inquisitivos na aflição.

Sofremos, por que muitas vezes negligenciamos, portanto pensamos, e o fazemos porque o pensamento nos ajuda a contextualizar a dor, a entender sua origem, a medir suas dimensões e a nos reconciliar com sua presença. “Portanto, não podemos julgar a legitimidade da dor alheia somente com base no que teríamos sentido se tivéssemos sido expostos à mesma situação.” (BOTTON, 1997. p ,52).

Fonte: https://goo.gl/o3JeVX

Segundo o dicionário “Informal” a palavra amigo significa: aquele que quer bem, aquele com quem podemos contar a qualquer hora. Para cada pessoa pode haver um significado diferente, atribuições distintas, do que é ser um amigo, tornando-se uma questão subjetiva. Em Botton (1997) Proust declara o que é ser um bom amigo, apresentando sua opinião de como se apresentar amigável. Mesmo que parecesse ser contraditório, pois para alguns as suas opiniões sobre o assunto são duras e sinceras, ele chega a afirmar que é preferível escrever um livro a ser um amigo, pois com o livro pode haver mais sinceridade em detrimento a amizade.

Em Proust havia uma mistura entre sinceridade e tentar agradar as pessoas, pois mesmo tendo um grau elevado de sensibilidade ao ser sincero, o seu maior temor era não agradar. Esforçava-se em demasia para que as pessoas se sentissem bem em sua presença, o seu maior interesse era ser aprovado. Agradava tanto que conversava assuntos de interesse alheios sem se importar se seus seriam falados ou não, pois para ele era egoísmo falar somente assuntos próprios.

Karnal (2016) cita que a amizade pode ser um desafio, pois ser amigo é observar-se num espelho pouco generoso, os amigos nos conhecem, sem se importar no que os outros pensam. Eles nos amam, mas não sabemos se nos amam apesar de nos conhecer ou por nos conhecer. Karnal ainda afirma que a amizade é entregar-se a um trajeto de apoio e intimidade. Proust achava ser também desafiador, pois mesmo sendo sincero, no sentido de falar realmente o que pensa, e tendo pensamentos radicalmente verdadeiros sobre seus amigos, não os podia falar; sendo assim preferia apenas ser agradável e apoiar seus muitos amigos.

Abrir os olhos no sentido literal e físico é levantar as pálpebras e ver o que tem a sua frente. Ver as coisas para Proust em Botton (1997) é enxergar a perfeição e a riqueza das pequenas e muitas vezes insignificantes coisas da vida, aquelas que podem nos dar tédio e serem menosprezadas por nós.

. Proust prezava a importância do segundo olhar sobre as coisas, independentemente se era uma valiosíssima obra de arte, ou um detalhe de uma cozinha. Para o autor, a vida pode se tornar infeliz pela simples incapacidade de abrir os olhos e dar chance a uma segunda visão.

As circunstâncias que propiciam o estado de felicidade são transitórias. Ao se interligar o conceito de felicidade e relacionamentos amorosos percebe-se que há uma busca constante pelo eterno e duradouro nas relações, porém, o ser humano tem dificuldade em manter algo depois de conquistado. Botton (1997) diz “Se um longo relacionamento […] gera […] uma sensação de conhecer bem demais essa pessoa, o problema pode, ironicamente, ser que não a conhecemos suficientemente bem”.

Bauman (2004) retrata “a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, (…)”. Em uma sociedade permeada pelo imediatismo, os sujeitos nela inseridos acabam entrando nessa dinâmica, onde os laços humanos são afetados.

Uma característica marcante da contemporaneidade é a liquidez nas relações humanas. As pessoas almejam pela facilidade, pelo caminho mais rápido, porém, quando estas alcançam o objeto desejado não desfrutam com a mesma intensidade que usufruem quando há sacrifícios, luta, esforços.

O autor traz em sua essência o seguinte pensamento “(…) é impossível amar alguém fisicamente” (BOTTON, 1997). Relacionar-se com alguém vai além de contato físico, e talvez por este motivo, muitos relacionamentos tenham se tornado passageiros, pois se apegam somente à atração física.

Tendo em conta que os relacionamentos virtuais vêm ganhando espaço pela facilidade de construir e romper laços, Bauman (2004) ressalta “Diferentemente dos “relacionamentos reais” é fácil entrar e sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear”.

Desse modo, a busca por algo duradouro tem se tornado uma tarefa difícil, pois demanda tempo, disposição, manutenção do objeto conquistado e tudo isso requer trabalho. Para Alain de Botton (1997) o segredo que há em relacionamentos duradouros é “a infelicidade. Não o ato em si, mas sua ameaça. Para Proust, uma injeção de ciúme é a única coisa capaz de resgatar um relacionamento arruinado pelo hábito”.

Fonte: https://goo.gl/YZEwbg

Todo o livro é dividido em diversas partes que fazem alusão a áreas da vida nas quais uma pessoa pode intervir, mudar sua vida e “encontrar felicidade”. Porém, escrito pelo irônico Alain de Botton, não poderia deixar de ser controverso e instigante. Durante a leitura, nos deparamos com fatos (não tão) confiáveis sobre a vida de Proust e observações bem humoradas sobre desde como ler para si mesmo até como abandonar os livros.

Talvez Botton quisesse nos beliscar com um livro aparentemente tão despropositado. Ou talvez quisesse nos instigar a pensar em como o propósito das coisas está a definir para cada um. Não importa. Ou importa tanto que foi necessário colocar o nome Proust em um título tão caricato, para atiçar os que ainda caem no conto da autoajuda a perceberem pequenas alegrias em meio ao desafio de viver.

Sabemos, tão somente, que a perspectiva da perda da vida, ou de prazeres (aparentemente) tão banais quanto “abrir os olhos”, nos abre um leque de possibilidades. Possibilidades de explorar o conhecido, de re-revirar (essa palavra não existe, caro leitor) o já revisto e ir além, tocar o não sabido, sair da “zona de conforto” (que clichê, senhores) e mudar a vida. Talvez não seja uma mudança tão drástica, mas talvez seja a mudança que faça a diferença entre morrer e escolher viver diante de uma crise que pareça insuperável.

Que morramos de amor, de raiva, de desejo, de tédio. Que morramos mil vezes e renasçamos prontos para outras escolhas, outras pessoas, outros caminhos… Mas sem perder a capacidade de se refazer, de se reconstruir e reaprender. Por que a capacidade já contida em nós, de abandonar um livro chato (ou esse artigo até bem intencionado), pode ser potencializada para abandonarmos (pode ser lentamente, sem pressa, despacito) o que nos machuca e entender que haverão sim, outras oportunidades de ser feliz. Sobreviva.

Referências 

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

BOTTON, Alain. Como Proust pode mudar sua vida. Rio de Janeiro, 1997.

KARNAL, Leandro. Leandro carnal disseca a amizade, 2016. Disponível em: <http://ocontornodasombra.blogspot.com.br/2016/08/leandro-karnal-disseca-amizade.html>

http://www.dicionarioinformal.com.br/amigo/

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Outras cartas do mundo líquido moderno

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As seguintes cartas do mundo líquido moderno tratadas nesse texto começam abordando a questão monetária inerente à configuração do mundo contemporâneo. Não que a temática do dinheiro tenha virado moda. Na verdade, ela nunca saiu de moda, mas Bauman analisa em sua obra o crescimento paralelo entre a alienação e a futilidade: componentes marcantes das subjetividades atuais. Nessas cartas ele trata da inospitalidade do mundo frente à educação, trata da massificação dos corpos à um ideal estético (a começar pelas meninas-mulheres e pela adultização infantil), trata da moda e do consumismo desenfreado (como atravessadores das gerações e moldadores da sociedade atual), trata da desigualdade existencial, que limita a liberdade de ação de certas categorias sociais (humilhadas, desrespeitadas e inferiorizadas) e trata da cultura e da sua reconfiguração em meio à lógica mercadológica.

Cena do filme Little Miss Sunshine (2006)

Bauman sabiamente analisa que o padrão de gastos dos jovens começa a se manifestar mais precocemente do que antes (quando se começou a registrar estatisticamente tais padrões). Isso é criticamente discutido no documentário “Criança: a alma do negócio” (de Maria Farinha Produções e direção executiva de Marcos Nisti, de 2008) que diz que a precocidade infantil tem servido para alimentar o capitalismo com consumidores que, diferente dos adultos, ainda não conseguem racionalizar sobre o desejo.

Maria Farinha Produções (2008)

O sociólogo polonês analisa que, hoje, os objetos de desejos passaram a fazer parte da existência da maioria das pessoas como componentes indispensáveis para a sobrevivência. O mercado consumidor tem se utilizado do universo infantil para expandir seus negócios. Nesse sentido, a mídia fala com a criança e se foca nela. A publicidade conversa mais com os filhos do que os próprios pais. Trata-se de um movimento que é, ao mesmo tempo, individual e social, pois atinge massas e constrói processos de subjetivação.

O autor alerta que dessa forma o que se vê em disparate são falsos alvoreceres de liberdade fornecidos por um mercado que estereotipa e segrega e, ao segregar, impede encontros que fazem as pessoas pensarem. Em outras palavras, o consumismo rouba a capacidade crítica e a discernibilidade, enquanto impõe alienação e superficialidade como formas de lidar com as relações.

Utilizando das ideias de Bauman e da temática que aderna o documentário citado acima, é possível dizer, com clareza, que a mídia tem ensinado as pessoas a competirem. A publicidade, com seus meios midiáticos, promete mais do que a alegria da posse, promete a alegria da inscrição na sociedade, o que pode vir a significar a existência de uma pessoa nessa mesma sociedade. O que a maioria das pessoas não aprende é teorizar a respeito de sua existência social, sendo esse mais um dos motivos pelos quais a mídia escolhe o mundo infantil como ponto de partida, porque o conteúdo comunicacional da criança não é racional, mas sim emotivo, e é através disso que esses conteúdos vão afetando e compondo o sujeito em questão.

 


“We don’t need no thought control” –Another brick in the wallPink Floyd (1979)

A condição de pertencimento numa sociedade vem sendo determinada pela possibilidade que a pessoa tem de ostentar o consumismo. De acordo com o documentário “Criança: a alma do negócio”, os pais tem se transformado (ou foram transformados) em negadores dos desejos da criança. A mídia hoje é tida como o primeiro fator na construção e criação de valores numa sociedade, enquanto a família, a igreja e a escola ficam de escanteio. Nesse processo de construção, a imaginação infantil diminui na medida em que as coisas lhe chegam prontas, impedindo-as de criarem sobre suas próprias vidas. Antes, as meninas eram as mães das suas bonecas e adornavam tal brincadeira com histórias ricas e fantasiosas, hoje as bonecas são projeções das meninas que, embora também tenham que possuir roteiros de vida, se adornam de penduricalhos e acessórios, enquanto escolhem, no finito leque de roteiros que tem ideais éticos e estéticos padronizados, o roteiro mais concernente ao instante da escolha.

Série fotográfica que retrata meninas e suas bonecas quase gêmeas – Fonte: Hypeness

Bauman (2011) diz que é como se os desejos fossem implantados nas pessoas, alimentando circuitos de consumo e buscas incessantes por objetos que não trazem o que neles é buscado, o afeto. De qualquer forma, são esses mesmos objetos que desempenham papéis diferenciadores entre as pessoas, marcando (e, por vezes, determinando)os relacionamentos. Nesse sentido, o desejo de comprar passa a ser a coisa em si e o que vai ser comprado torna-se apenas um veículo para a consumação ilusória do desejo.

Suely Rolnik, em Esquizoanálise e Antropofagia (2000), diz que para Deleuze e Guattari:

[…] o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de vista dele mesmo que ao se ver desestabilizado pelos movimentos do desejo, o interpretará como sinal de uma carência de completude. Aquilo que para o sujeito é falta revela-se como excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. (ROLNIK, 2000, p.458)

É em cima dessa carência de completude que a publicidade e a propaganda trabalham, criando dispositivos cada vez mais atrativos e irresistíveis; criando consumistas ao invés de consumidores. Para Bauman, o consumo é uma necessidade, enquanto o consumismo é um produto social onde há uma enorme tendência em situar a preocupação com o consumo no centro de todos os demais focos de interesse na vida das pessoas. O consumismo tem regras a serem seguidas. Trata-se de um fenômeno multifuncional ou um dispositivo universal que anda de mãos dadas com outro fenômeno (num processo de alimentação mutua), que é a moda. Segundo Bauman, não é possível dizer o que é moda, pois ela está fazendo a si própria a todo o momento. Tentar defini-la é tão difícil quanto acertar o maior prêmio naqueles jogos de tiros. O que se pode dizer dela é que trata-se de um processo inesgotável e irrefreável, que tem válvulas de escape para si mesma, quando já estão chegando novas enxurradas de si mesma. Para o autor, a moda é um fenômeno social instigante que, independente das vias que utiliza para fluir, afeta e compõe os aspectos culturais da a sociedade. José Saramago em A Bagagem do Viajante dimensiona o que vem a ser a moda, dizendo:

“Certos usos e costumes (certas vendas, certas compras) não surgem por acaso, e para o assunto que hoje me ocupa nem sequer o apelativo de moda designa seja o que for, uma vez que a moda não é mais do que a difusão promovente de um uso primeiramente limitado” (SARAMAGO, 2010, Saudades da Caverna – A Bagagem do Viajante, p. 45).

Consumo vs. Consumismo. Fonte: Google Imagens

E sendo indispensável – em meio à análises genéricas, porém consistentes, sobre o funcionamento da sociedade atual, ou do mundo líquido moderno – se falar de aspectos culturais, é nesse segmento que seguem as cartas de Bauman: falando sobre cultura.

Nesse sentido, ecoa a pergunta: o que é cultura? Segundo o autor, consumismo, moda e cultura já são indissociáveis, não tendo como se referir sobre um sem se adentrar no outro. Hoje parece não mais haver estratificações culturais, pois “não há nada ‘cultural’ que eu rejeite previamente sem fruí-lo, embora também não haja nada ‘cultural’ com que eu me identifique de modo inabalável e definitivo a ponto de excluir outros prazeres”. Assim, a cultura vem se formando como um produto passível de consumismo indiscriminado. Bauman não aponta “a cultura de hoje” como uma cultura melhor ou pior do que a cultura de ‘antigamente’, ele apenas aponta para efemeridade do que é moda, cultura, produto e consumismo, como se toda a sociedade visse no consumismo o antídoto maníaco contra a polaridade deprimente e deprimida de suas vidas. Dessa forma, o autor define cultura como algo constituído de ofertas e não de normas, pois ela se forma mediante a possibilidade de escolhas. A cultura vive de sedução e não de regulação. Ela tem se tornado um armazém de produtos para o consumismo (e, é claro, sempre tem a moda por perto, engendrando todo o processo). E nisso da cultura virar armazém, dispara a invenção (ou construção) de demandas para os produtos que o mercado lança. Isso abrange todos os campos, desde o material até o espiritual. O que se vê hoje não são medicações adequadas para diminuírem sinais e sintomas de um quadro, mas sim invenções de síndromes para que a venda de medicações já lançadas aumente.

E por fim, para encerrarmos as últimas cartas do compêndio, falaremos da inospitalidade do mundo frente à educação. Bauman afirma que “a história da educação sempre esteve repleta de períodos cruciais nos quais se tornou evidente que pressupostos e estratégias experimentadas e em aparência confiáveis estavam perdendo contato com a realidade e precisavam ser revistos ou reformados”, mas que, no entanto, a crise atual da educação parece consideravelmente diferente das crises anteriores (BAUMAN, 2011, p. 112).

Alienação. Fonte: Google Imagens

Que o mundo anda rodando rápido demais, todo mundo já sabe. Que as relações estão sendo efêmeras e pautadas por outros significados, todo mundo também já sabe. Quanto à educação, também já sabemos que algumas ideias pedagógicas, com suas características constitutivas e pressupostos nunca antes criticados também já não colam mais, mas o que vem a ser discutido agora é o valor do conhecimento, antes aparentemente muito prezado e garantidor de algum futuro. Hoje, de acordo com Bauman, o conhecimento só é atraente quando apto ao uso instantâneo (o que – não esqueçamos – influenciará em nossa própria forma de associar e memorizar conteúdos).

Nisso, Bauman adentra numa temática que já vem sendo discutida por outros autores, que é sobre a transformação da educação em um produto. Segundo o autor, o conhecimento sempre foi valorizado porque tratava-se de uma fiel representação do mundo, mas hoje, em meio à transformações rápidas e abruptas, a pergunta é: “(…) e se o mundo se transformar de maneira tal que desafie continuamente a verdade do conhecimento existente até então e pegue de surpresa mesmo as pessoas ‘mais bem informadas’?” (BAUMAN, 2011, p.114). Como estudar e aprender em um mundo que nos ensina a esquecer? Para o autor,

“Todos os recursos ortodoxos de organização utilizáveis – classificação por relevância temática, atribuição de importância, necessidades que determinam a utilidade e autoridades que determinam o valor – sucumbiram, foram tragados e diluídos no acúmulo de informações, como se atraídos por misterioso buraco negro cósmico. A massa torna todos os conteúdos uniformes e igualmente entediantes” (BAUMAN, 2011, p.124).

Se o conhecimento virou um produto passível de compra (que nos dá um título utilizável e praticável às demandas criadas) e se a educação já não consegue atender ao que propunha ou oferecer o exercício do discernimento, Bauman (2011) sugere (ou eu interpreto dessa forma) o caminho da arte quando diz que:

“A educação assumiu formas no passado e se demonstrou capaz de adaptar-se à mudança das circunstâncias, de definir novos objetivos e elaborar novas estratégias. Mas permitam-me repetir: a mudança atual não é igual às que se verificaram no passado. Em nenhum momento crucial da história da humanidade os educadores enfrentaram desafio comparável ao divisor de águas que hoje nos é apresentado. A verdade é que nós nunca estivemos antes nessa situação. Ainda é preciso aprender a arte de viver num mundo saturado de informações. E também a arte mais difícil e fascinante de preparar seres humanos para essa vida” (BAUMAN, 2011, p.125).

Desse texto fica a sensação de acúmulo e superficialidade não só do conteúdo que foi tentado trazer, mas também da forma como foi trazido. As decorrências de tudo o que Bauman fala é notória até mesmo em um texto que será publicado um dia e depois esquecido por vários outros. Parece que ao invés de panos limpos, a opção de colocar o lixo debaixo do tapete é mais confortável. No entanto, no embate com a angústia de ver o tempo passar rápido demais e nos engolir na efemeridade com que passa, opto pela sugestiva alusão de Dori (do filme Procurando Nemo): “continue a nadar”.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2011.

ROLNIK, Suely. “Esquizoanálise e antropofagia”. In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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Algumas cartas para o mundo líquido moderno

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O livro “44 Cartas do mundo líquido moderno” (44 Letters from the Liquid Modern World) do sociólogo polonês , é, na verdade, um compêndio de textos que o autor escreveu no decorrer de dois anos para uma revista italiana chamada La Repubblica delle Donne. Cada texto era considerado uma carta que abrangia temas culturais, políticos e cotidianos daquilo que Bauman chama de mundo líquido, atual e moderno. As cartas eram enviadas quinzenalmente e reverberaram quanto aos comentários e respostas ao autor. Tanto que a partir disso surgiu a necessidade de compilar tais cartas no que viria a ser o presente livro.

44 Cartas do mundo líquido moderno foi traduzido e publicado no Brasil a partir de 2011, mas já era febre em outros lugares, a começar pela Itália. A revista La Repubblica delle Done é uma revista semanal voltada para o público feminino. As cartas foram escritas entre 2008 e 2009 e foram minimamente editadas para a publicação do livro.

Capa do livro publicado pela editora Zahar (2011), no Brasil.

Um primeiro ponto interessante sobre a origem desse livro está ligado aos temas que a referente revista aponta e para quem aponta. É costumeiro que as vitrines ou expositores de lojas e bancas estejam enfestadas de revistas para o público feminino onde a capa figura imagens corpóreas sensuais e luxuosas. O recado da maioria das revistas dirigidas a esse público centra-se em dietas milagrosas (com uma receita hiper calórica no fundo da mesma revista), exercícios físicos, dicas de moda e estética, resenhas de novela, “truques” de comportamento e conquista, e por aí vai.

La Repubblica delle Donenão é diferente. Quer dizer, ela também abrange todos esses temas ditos acima, inclusive suas capas são de modelos muito bonitas e bem vestidas, mas acontece que ao mesmo tempo ela aborda assuntos subjetivos que não tem receita pronta, tampouco testes de rotulação. É um jogo bacana: de um lado lhe são mostradas as tendências que o mundo vai seguir no próximo inverno, de outro lado é ponderadaa questão de você (querer) seguir ou não a uma tendência. Afinal, o mundo moderno é fluentemente líquido e mutável e ninguém engessa ninguém sequer por uma estação, pois o que se pode observar hoje em dia é uma multiplicação infinita de tudo aquilo que se opera sobre a subjetividade, onde alguns aspectos vão se pulverizando (quando não fazem mais sentido), mas outros são construídos por outras lógicas, principalmente mercadológicas.

Uma das capas da revista La Repubblique delle Done

Bauman, polêmico e autêntico que é, não poderia deixar de apimentar suas cartas às leitoras (preciso considerar que não só mulheres leem essa revista), incitando-as a pensar sobre as enxurradas de informações que chegam a todo instante, dificultando a digestão dessas informações.

O intuito desse texto – já que trata-se de um “Em Cartaz” – não é o de analisar os diversos processos subjetivos embutidos e transmutáveis nos temas de uma revista feminina. Além dessa ser uma pretensão imensurável, os assuntos das 44 cartas não são dirigidos só para as mulheres mas sim para o mundo (talvez esse seja o maior motivo das cartas terem virado um livro). O objetivo desse texto é prático: apresentar o resumo de uma parte obra, onde terá mais citações do Bauman do que inferências minhas e serão apresentadas – a princípio – temas de algumas das 44 cartas, enquanto outras cartas serão discutidas em outro texto dessa seção e serão publicadas conseguintemente.

Dessa forma, nessas primeiras cartas, o autor analisa a indústria e os dispositivos de informação (não só pelo fato de se recorrer à eles para se falar deles). Ele chama isso de “autoestradas de informação”. Humberto Gessinger[i] chama de “highway da superinformação”[ii], mas é tudo a mesma coisa.

A pergunta inicial do livro é mais ou menos nesse sentido: De que forma estamos sendo afetados pelos dispositivos que nos conectam imediatamente a todo e qualquer canto remoto do planeta e tudo isso através de pequenos aparelhos que podemos carregar e utilizar quando quisermos e (de)onde quisermos? Em proporções e abrangências estupendas, o que isso vem a significar na configuração das relações e das comunicações? Bauman analisa que:

“(…) o pesadelo da informação insuficiente que fez nossos pais sofrerem foi substituído pelo pesadelo ainda mais terrível da enxurrada de informações que ameaça nos afogar, nos impede de nadar ou mergulhar (coisas diferentes de flutuar ou surfar). Como filtrar as notícias que importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia de opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos falta uma máquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de mentiras, ilusões, refugo e lixo” (BAUMAN, 2011, p. 8 e 9).

O mesmo autor, que tem a característica de jogar a isca e esperar que o leitor a mordisque para em seguida puxar a corda do anzol, instiga-nos a pensar em respostas quando ele mesmo apresenta as suas em páginas seguintes. Em sua maneira peculiar de escrever, Bauman recorta retalhos para depois costurá-los juntamente com os leitores. Com isso, ele aponta que a enxurrada de informações e a dificuldade em discerni-las decai no que Marcelo Camelo chamou de “Bloco do Eu sozinho” (segundo álbum da banda Los Hermanos), o que significa dizer que as pessoas estão cada vez mais sozinhas em meio à multidão e que tudo o que fazem ao se relacionarem através dos aparelhos de comunicação e sites de relacionamentos é tentar fugir da solidão de estar só, ou melhor, de estar consigo mesmo.

Bauman é claro ao dizer que as pessoas estão “desaprendendo” a estarem sozinhas. Ele diz:

“A essa altura, ela (a pessoa) deve ter se esquecido de como uma pessoa vive, pensa, faz coisas, ri ou chora na companhia de si mesma, sem a presença de outros. Melhor dizendo, ela nunca teve a oportunidade de aprender essa arte. O fato é que somente em sua incapacidade de praticar essa arte é que ela não está sozinha” (BAUMAN, 2011, p.13).

No livro, a influência dos meios de interação (se bem que “interação” possa não ser a palavra certa a se usar nesse caso) é comparada ao estado de prazer (ou suspensão de desprazer) que uma substância psicoativa pode proporcionar. Bauman chama os aparelhos de comunicação de drogas poderosas que viciam as pessoas em enviar e receber recados em intervalos mínimos. O rápido manuseio e domínio dos aparelhos têm virado uma necessidade quase vital. A impossibilidade de acessar os aparelhos que conectam as pessoas com o mundo tem trazido aos viciados um estado de abstinência predominado pela angústia, pela sensação de isolamento e solidão ou, em outras palavras, pelo esvaziamento do ego.

Bauman diz que

“(…) os aparelhos eletrônicos respondem a uma necessidade que não criaram; o máximo que fizeram foi torna-la mais aguda e evidente, por colocarem ao alcance de todos, e de modo sedutor, os meios de satisfazê-la sem exigir qualquer esforço maior que apertar algumas teclas” (BAUMAN, 2011, p. 14).

A análise do livro debruça parcialmente sobre os dois principais sites atuais de relacionamento: os populares Facebook e Twitter. Além disso, discute também sobre a eminência desenfreada do sexo virtual. Questionar sobre as reverberações dos dois sites na vida dos usuários é um trabalho complexo e infindo. Quando se fala sobre como o Facebook revolucionou o mundo, estamos falando, de certo, de apenas uma parte dessa revolução (pois deixamos de lado nesse texto a discussão sobre outros mecanismos e outros sites revolucionários como o Google e o Wikipédia, por exemplo). Provavelmente falamos da parte que nos faz mais sentido ou a que nos salta aos olhos (isso quando ainda não estamos impetuosamente apaixonados pelo Facebook ou peloTwitter).

Zygmunt Bauman – sociólogo polonês

Bauman em sua carta sobre “Como fazem os pássaros” esclarece-nos sobre o significado de “Twitter”, que do Inglês para o Português significa “gorjear”. Segundo o autor, o gorjeio serve para duas coisas: manter contato e evitar que outros pássaros invadam seu espaço ou território. Transportado para o intuito do Twitter, o site serve basicamente para que você manifeste o que está fazendo de forma rápida, sucinta e fácil de digerir (o que pode ser perigoso!). Você manifesta seu recado em apenas 140 caracteres e aprende uma forma pragmática de – as vezes – dizer coisas que não podem passar pelo pragmatismo, como num simples filtro simplificador.

Da mesma forma, os ícones passíveis de compartilhamento no Facebook tem servido para que uma pessoa diga algo do tipo: “isso me representa” e “isso compõe quem sou”, mesmo que as afirmativas sejam abruptamente controversas; não importa. Não me aprofundarei na questão da necessidade de pertencimento que é muitas vezes sanada ilusoriamente ao dizermos que gostamos de algo ou pertencemos a tal grupo. Parece que o que importa é “saber contar aos demais o que estamos fazendo – neste momento ou em qualquer outro; o que importa é ser visto”. E nessa história entra, sim, pelas palavras de Bauman, a substituição do contato face a face pelo contato tela a tela, a perda de intimidade, da profundidade e da durabilidade da relação e dos laços humanos. O autor é declaradamente partidário e vê de forma pessimista a nossa impossibilidade em segurar a onda que carrega tudo vorazmente (e sem dó).

Para Bauman uma das máximas dos nossos tempos está em “Sou visto, logo existo”, pois em se tratando de objetivos, como quando falamos do intuito doTwitter há poucas linhas atrás, há o grande objetivo de “ser seguido”. E assim as pessoas vão se comportando e se mostrando de forma que faça com que aumente mais e mais o número de seguidores até que elas se tornem, por fim, famosas. E a fama se dá por ela mesma, ou seja, é a fama pela fama e nada mais.

Isso penetra em dois campos discutidos pelo sociólogo: o da privacidade e o da publicidade. O primeiro refere-se à capacidade de uma pessoa ou de um grupo em controlar a exposição e a disponibilidade de informações ao seu respeito, enquanto que a publicidade refere-se justamente ao contrário: a tornar público o que era privado e a expor o que estava de alguma forma escondido. Nisso, a máxima do “o quê ou quem eu sou?” é respondida pelos juízes que decidem e impõe respostas, fazendo com que o sujeito seja aquilo que os outros dizem que ele é. Essa é, para Bauman, outra consequência das relações virtuais que, no entanto, não se configura como perda de identidade e sim como uma transmutação inconsistente do que se é por si mesmo, sem o outro.

Para Bauman, os sites de relacionamento, especialmente o Twitter, representam os “substitutos da igualdade para os destituídos”. As pessoas ganham uma “fama virtual” e vivem de forma a aumentá-la e sustentá-la pelo maior tempo que conseguirem.

Em se tratando de sexo virtual, o autor usa as palavras de uma escritora – Emily Dubberley – para definí-lo:

“(…) obter sexo hoje é como encomendar uma pizza… Agora você pode conectar-se à internet e encomendar genitália. Não há mais necessidade de flertar ou fazer corte, não é preciso empenhar todas as energias para obter a aprovação do parceiro, nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro (…) (BAUMAN apud DUBBERLEY[iii], 2011, p.31).

Para Bauman, em detrimento da conveniência, da velocidade e da garantia contra as consequências, alguma coisa – muito importante – se perdeu. Como Humberto Gessinger diz em sua música “Terceira do Plural”, há uma satisfação garantida, mas uma obsolescência programada para tudo, pois as coisas (e pessoas) podem ser rapidamente substituídas! Bauman afirma que o que se ganhou em quantidade perdeu-se em qualidade devido à superficialidade com levamos as relações. Hoje, a medida do valor das coisas é o sacrifício necessário para obtê-las.

Outro questionamento referente ao rumo que as relações humanas vem tomando aborda a afirmativa de que estar ausente não mais significa estar fora de alcance. Bauman discute sobre os significados escondidos nos atos, pois é como se o fato d’alguém deixar de responder a um e-mail ou atender a um telefonema significasse, irredutivelmente, negligência, indiferença condenável e ofensiva, afronta, dentre outras falhas subjetivas que expressam descaso e má vontade. Assim, da mesma forma que há meios instantâneos de promover a conexão entre as pessoas, há – pelos mesmos meios – como promover a desconexão. Tudo isso pautado pela noção de conveniência e proteção. Os contratos humanos são, portanto, reconfigurados (e os valores também).

A cada dia, muros simbólicos vêm sendo criados e os afetos vão se transformando, isso quando ainda não se é discutida a temáticado vínculo virtual. Talvez algumas noções e alguns conceitos (bem como as formas como estamos nos relacionando) não podem ainda ser respondidas na efervescência dessas reconfigurações. Pode ser que quando estivermos nos relacionando de uma forma predominantemente diferente da que estamos hoje, possamos inferir algum sentido sobre isso. Para tanto, supomos alguns caminhos. E se de hoje pudermos fazer algumas perguntas, elas podem estar voltadas para a maneira como se pode produzir saúde em meio à um mundo fluido e mutável(se é que não é disso que a saúde precisa para firmar-se).

Compreensivelmente, as colocações de Bauman  podem já parecer remotas (a depender de quando alguém as lerá), mas se de tudo elas conseguirem fazer com que alguém tome parte do seu tempo para refleti-las, o tempo que o autor despendeu para fundamentá-las já foi muito bem aproveitado. Aliás, acho essa uma boa maneira de se utilizar a virtualidade: para disseminar ideias e promover debates sobre a nossa forma de ser e estar no mundo. Encerro esse primeiro texto com as palavras do Saramago, usadas pelo autor:

“O que de tudo não compreende (…) é que, ao se desenvolverem as tecnologias de comunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com suas avenidas ilusórias, tão dissimulada no que expressa quanto no que dissimula.” (BAUMAN apud SARAMAGO[iv], 2011, p. 47).

 

Notas:

[i]Cantor da banda Engenheiros do Hawaii (já extinta)

[ii]Referido na música A Promessa.

[iii]Livro: Brief Encounters: The Women’s Guide to Casual Sex.

[iv]Livro: O homem duplicado.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2011.

Para acessar o livro em PDF, clique aqui: (http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos//t1388.pdf)

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Vida Líquida: consumo, velocidade e lixo na era da incerteza

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A vida líquida, assim como outras obras de Bauman, traz uma reflexão apoiada na revisão de alguns conceitos (como cultura, progresso, amor, medo, consumo) presentes e em constante mutação na sociedade atual. São vários livros permeados pela mesma premissa: o mundo líquido-moderno. Há fôlego para tantos desdobramentos de uma mesma temática? Sinceramente, não sei. No momento, estou preocupada com “a parte que me cabe deste latifúndio”, vamos, então, à Vida Líquida.

The Deluge by Gustave Doré

E aconteceu que passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio.
Gênesis 7:10
E expirou toda a carne que se movia sobre a terra […]. Tudo o que tinha fôlego de espírito de vida em suas narinas, tudo o que havia em terra seca, morreu.
Gênesis 7:21-22

A palavra ‘vida’, segundo uma das definições apresentadas no dicionário Oxford, pode ser compreendida como o período entre o nascimento e a morte. Então, refletir sobre a vida líquida é compreender como se dá o movimento das variáveis, os elementos em trânsito entre as entradas e saídas dentro de um período de tempo que marca uma determinada existência.

Para Bauman, “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (p.8). Mas, parece-me que a vida sempre foi assim, uma série finita de incertezas permeada por artifícios capazes de produzir um sentimento relativo e breve de estabilidade.  Mas, por que essa fluidez parece agora tão mais evidente?

Talvez seja porque as inovações tecnológicas, os governos, a mídia e o mercado produziram um ambiente em que é cada vez mais fácil “apagar, desistir, substituir”. E a velocidade com que isso ocorre é que dá à vida esse caráter inconstante. É como se cada pessoa estivesse eternamente à procura de algo que possa ser seu novo objetivo ideal (uma espécie de Santo Graal), mesmo sem compreender porque havia buscado o já ultrapassado objetivo que ainda tem em mãos. Assim, a rapidez com que as variáveis mudam é condição necessária e, quem sabe, suficiente para a sobrevivência no mundo líquido-moderno.

A velocidade com que o indivíduo transita entre o amor e o desapego, entre a relevância e o descaso, entre o moderno e o ultrapassado, entre o essencial e o desnecessário provoca um aumento exponencial do lixo. Cada pessoa carrega consigo seu lixo particular, que precisa ser despejado em algum lugar. E isso acontece através da ajuda dos mais diversos meios, desde terapias e pílulas mágicas até religião e sistemas educacionais.

Crédito: http://www.mymodernmet.com/photo/trash-flower

O lixo é o principal e comprovadamente o mais abundante produto da sociedade líquido-moderna de consumo. […] Isso faz da remoção do lixo um dos dois principais desafios que a vida líquida precisa enfrentar e resolver. O outro é a ameaça de ser jogado no lixo. […] A vida talvez seja sempre um ‘viver-para-a-morte’, mas, para os que vivem na líquida sociedade moderna, a perspectiva de ‘viver-para-depósito-de-lixo’ pode ser a preocupação mais imediata e consumidora de energia e trabalho. (BAUMAN, p. 17, 18)

Essa preocupação com esse estado fluido que constitui a vida em sociedade não é uma novidade. No século XIX, por exemplo, Karl Marx já mostrava em suas reflexões, especialmente em sua principal obra – “O Capital” -, uma inquietude em relação ao caráter instável e extremamente dinâmico do capitalismo. Mostrou que através das inovações tecnológicas (e a tecnologia, para ele, era considerada um elemento endógeno das relações produtivas) era possível criar monopólios temporários, que seriam responsáveis por mudanças substanciais na dinâmica do sistema.

Na primeira metade do século XX, o economista Joseph Schumpeter adicionou à questão da inovação tecnológica, a figura do empreendedor. O empreendedor, nesse contexto, é um dos principais responsáveis por dinamizar os processos econômicos através de inovações.  A partir disso, Schumpeter cunhou a expressão “destruição criadora”, que descreve o modo como o processo de inovação pode destruir empresas, produtos e modelos de negócio. Assim, segundo Tigre (2006), se para os economistas teóricos o problema visualizado era como o capitalista administra as estruturas existentes, para Schumpeter a questão crucial era em como ele as cria e destrói.

Sleep Elevations by Maia Flore

‘Destruição Criativa’ é a forma como caminha a vida líquida, mas o que esse termo atenua e, silenciosamente, ignora é que aquilo que essa criação destrói são outros modos de vida e, portanto, de forma indireta, os seres humanos que os praticam. […] Veem ‘as novidades como inovações, a precariedade como um valor, a instabilidade como imperativo, o hibridismo como riqueza’. (BAUMAN, p.10)

O imperativo da velocidade parece ser a tônica do século XXI. E para ser veloz tem que ser leve. Logo, faz-se necessário abrir mão de muitas coisas, e até (ou principalmente) de muitas pessoas. Em contrapartida, parece que nunca estivemos tão conectados, temos uma lista infindável de contatos em vários tipos de redes sociais virtuais. Podemos vivenciar a experiência de umablogueira na ilha de Cuba, o resgate de um cachorro em uma rodovia no México ou os últimos dias de um doente terminal.  A velha expressão “carrego o mundo nas costas” parece fazer cada vez mais sentido. A questão é: que mundo é esse? Que é pesado e insustentável, mas, paradoxalmente, leve e fora do alcance.

O Ser e o Tudo


Numbers Man by Tariq Yousef

O “tudo” que é exposto nas prateleiras virtuais infinitas talvez seja o gatilho para uma série de patologias no mundo líquido-moderno. “Numa feira global em que receitas de individualidade são vendidas no atacado” (BAUMAN, p. 29), já não basta mais ter um tênis da marca X, ou um carro do último ano, tem-se que ter a ilusão de que o tênis e o carro foram criados adequadamente ao seu perfil.

No século XX havia um limite para as prateleiras. Esse limite era o espaço físico dos departamentos. No virtual, tal limite perdeu o sentido. O mercado se mobiliza cada vez mais em produzir objetos que se adequem aos mais diferenciados perfis. Então, se você for um solitário colecionador de miniaturas em cristal de galinhas de angola, poderá encontrar na rede um ambiente para troca e compra desses artefatos, bem como aqueles que consomem um tipo de literatura bem específica também poderão fazer parte do final da cauda da curva de demanda, ou seja, mesmo poucos terão importância. Desta forma, sua individualidade será mantida, pois o mercado de nichos, conforme pode ser observado no Livro “A cauda longa”, de Anderson (2006), é tão, ou mais importante, que o mercado das massas.

Clone Man by Peter James

… quando a individualidade é um ‘imperativo universal’ e a condição de todos, o único ato que o faria diferente e portanto genuinamente individual seria tentar – de modo desconcertante e surpreendente – não ser um indivíduo. (BAUMAN, p. 26)

Essa constatação de Bauman é uma ironia provocativa à condição humana atual em relação a um de seus pontos mais frágeis e mais “preciosos”: sua individualidade. Vimos constantemente nas manifestações sociais, nas promessas de produtos das grandes empresas, nas diversas mídias de entretenimento, que somos importantes e únicos, e que o objeto X foi feito especialmente para nós, assim como o objeto Y já não é mais digno de nosso perfil cool. Em um ambiente como esse, quem ousa ser um igual, realmente, pode se tornar um contraventor. Talvez o “igual” do século XXI seja o equivalente ao sertanejo do Euclides da Cunha, ou seja, “antes de tudo, um forte”.

Querer é poder. E quando existe demanda, a oferta não demora a aparecer. Em nossa sociedade de indivíduos que buscam desesperadamente sua individualidade, não há escassez de auxílios, consagrados ou autoproclamados, que (pelo preço certo, é claro) se mostrarão totalmente dispostos a nos guiar pelos calabouços sombrios de nossas almas, onde os nossos autênticos ‘eus’ permanecem supostamente aprisionados, lutando para escapar em busca da luz. (BAUMAN, p. 28) 

Livros de autoajuda, Física Quântica para explicar a alma, seitas, religiões, empresas, Estado, mídia, partidos políticos e indústrias farmacêuticas buscam, em algum nível, ser uma espécie de guia para esse desejo tão humano da individualidade. Assim, através da fé ou da química, de discursos ou de um produto espetacular, essas entidades procuram sustentar que há relevância na existência de cada um. A questão é que esses elementos em demasia podem potencializar a existência de novas doenças, propiciando o surgimento de novas categorias de transtornos e movimentando, ainda mais, a indústria farmacêutica e outras vertentes do mercado.

Agora a questão não é somente curar-se de um mal, mas curar-se de um mal vendido e promovido como um bem.

O ser diante do tudo deseja, por uma questão de sobrevivência, salvaguardar sua identidade. Para tanto, segundo Bauman, oscila entre “as extremidades da individualidade descompromissada e da pertença total” (p. 44).  É como se tivesse que lidar com o desejo da liberdade, ainda que “assombrada pelo medo da solidão” e a necessidade da segurança, permeada constantemente pelo “pavor da incapacidade”.

Vida de Consumo

Para Bauman, “a vida líquida é uma vida de consumo” (p. 16). Assim, objetos e pessoas para manterem-se em foco precisam estar em constante movimento, o primeiro a partir de inovações incrementais, a segunda na agregação de novas competências e habilidades.

O termo “educação continuada”, tão discutido, promovido e, até mesmo, vendido por vários atores do sistema educacional ou do Governo, tem em sua base reflexões profundas que vão desde a ampliação da autonomia do indivíduo até o aviso insistente da necessidade de adequação a um mercado em movimento que envia o ultrapassado para a margem. O que é paradoxal, nesse contexto, é que algumas das maiores inovações que tivemos nos últimos tempos (relacionadas à informática, por exemplo) vieram da margem.

The Surreal Landscapes by Vladimir Kush

Precisamos da educação ao longo da vida para termos escolha. Mas precisamos dela ainda mais para preservar as condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao nosso alcance. (BAUMAN,p. 166)

Viver deslizando por águas muitas vezes desconhecidas, já que a água é corrente e dá a impressão de que nunca estamos imersos no mesmo contexto, apesar de que tudo pareça sempre igual (Reductio ad absurdum), é viver no limite. E isso significa, em alguns aspectos, manter-se em constante autoexame e autocensura, pois o mais complexo na vida liquida é criar meios que permitam estar satisfeito consigo mesmo. Assim, na reflexão de Bauman, “a sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. […] O que começa como necessidade deve terminar como compulsão ou vício” (p. 106).

A “síndrome consumista” é promovida ainda na infância, pois em um mundo em que a presença dos pais parece existir em fragmentos cada vez menores, por que os brinquedos e o afeto seriam permanentes?

Shopping Cart by Dran

É justamente por causa desse tempo de dedicação tão diminuto que alguns pais da modernidade líquida tendem a buscar novas formas de compensação, alimentando ainda mais o consumo e a ansiedade, o excesso e a redundância que acompanham a produção do lixo nosso de cada dia.

E não é desejo da sociedade de consumo reduzir essa ansiedade, muito pelo contrário, a ideia é intensificá-la. Assim, a renovação do desejo eterno pelo ‘novo’ continua sendo a mola propulsora do mercado e do ideal de “destruição criadora”. Para ansiedade, há medicamento. Logo, cria-se a verdade ilusória (?) de que “ficaremos bem”.

 De mártir a herói e de herói a celebridade

Martírio significa solidariedade com um grupo menor e mais fraco, discriminado e humilhado, ridicularizado, odiado e perseguido pela maioria – mas é essencialmente um sacrifício solitário. (BAUMAN, p. 58) 

Ainda há lugar para mártires no mundo líquido-moderno? Talvez. No entanto, ou eles vivem nas sombras, ou já estão devidamente medicados.

Um mártir, em um mercado que anseia por celebridades instantâneas ou vertentes híbridas de heróis com ganhos e perdas devidamente calculados, é apenas mais uma patologia ambulante, um conjunto de transtornos devidamente categorizado em um manual técnico da área de saúde mental.

Mas há uma outra vertente de indivíduos que borbulha nas poças contínuas da sociedade líquido moderna, construído a partir da ideia de que “qualquer pessoa que sofra é (ao menos potencialmente) uma vítima” (BAUMAN, p. 66). Essa ideia contida nesse contexto de “vitimização” desenfreada produz uma relação de mercado movida pela compensação financeira. Esse excesso é que pode gerar erro na interpretação do sofrimento psíquico ou pode ser útil para o desenvolvimento de um potencial desejo de vingança. Mas, no mundo líquido, o interessante é que a vingança seja interrompida antes do “banho de sangue”, e isso pode ser feito a partir de acordos bem elaborados.

Prepara…

“No futuro todos terão os seus 15 minutos de fama.” Andy Warhol

A celebridade parece ser um dos atores mais representativos da sociedade líquido-moderna. Tem relação com algumas variáveis: quantidade de imagens, frequência que são mencionadas, aparição em programas de TV, número de compartilhamento e curtidas em redes sociais, quantidade de visualizações de vídeos na net. É efêmera, abundante e esquecível, ou seja, a metáfora ideal do mundo líquido.

Construir arcas?

Departure of The Winged Ship by Vladimir Kush

Para sobreviver no mundo líquido-moderno, talvez novas arcas devam ser construídas. Várias são as questões que surgem para sustentar esse fato, uma delas pode ser assim formulada: render-se à coletividade da individualidade exposta em frascos ou correr o risco de ser parte do lixo descartado a cada inovação no mercado e nas relações humanas?

Segundo Adorno citado por Bauman (p. 175), “pessoas fracas e amedrontadas sentem-se fortes quando correm de mãos dadas”, e acrescenta ainda que “o mundo quer ser enganado”. Talvez essa constatação sombria de Adorno não seja refutável tão facilmente, tendo como base vários acontecimentos recentes.  No entanto, ainda é mais reconfortante refletir sobre a constatação de Bauman ao final de Vida Líquida:

 “Tão inevitavelmente quanto o encontro do oxigênio com o hidrogênio produz água, a esperança é concebida sempre que a imaginação se encontra com o senso moral.” ( p. 194)

Mas, o círculo vicioso matematicamente construído através dos medos e amores que definem a vida nessa modernidade líquida parece ser mais firme que nossas esperanças. Talvez Baudolino (ECO, 2001) tivesse razão: o que é a vida senão a sombra de um sonho que foge? 

 

Referências:

ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho; tradução Afonso Celso da Cunha Serra. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

BAUMAN, Zigmunt. Vida Líquida; tradução Carlos Alberto Medeiros. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BIBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional. Paulus: São Paulo, 1990.

Dicionário Oxford. Disponível em: http://oxforddictionaries.com/

ECO, Umberto. Baudolino; tradução Marco Lucchesi.  Rio de Janeiro: Record, 2001.

TIGRE, Paulo Bastos. Gestão da inovação: a economia da tecnologia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2006.

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O Medo Líquido em Bauman: leituras possíveis

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“Esses medos são ainda mais aterradores por serem tão difíceis de compreender; porém mais aterradores ainda pelo sentimento de impotência que provocam […] Os perigos que tememos transcendem nossa capacidade de agir…”
(BAUMAN, 2008, p.31)

Guernica, de Pablo Picasso, representa o horror da Guerra Civil Espanhola em 1937. É uma obra trágica e clássica que nasceu das impressões causadas no artista quando do bombardeio, comandado pelos nazistas, sofrido pela cidade de Guernica, antiga capital basca.

Guernica de Pablo Picasso

É um símbolo doloroso do medo e do terror que uma guerra pode produzir: desespero e impotência diante do medo, do perigo. Guernica se tornou uma obra universal que eterniza o horror das guerras.

Medo é o sentimento da incerteza. É mais ameaçador quando difuso, disperso, nebuloso, desvinculado, desancorado, flutuante, líquido. É imprevisível e sem contornos, quando nos aterroriza sem que haja uma explicação plausível. É o visível sem resposta.

O medo é o nome que damos as nossas incertezas. No período da passagem para a Era Moderna: onde havia escuridão, havia incerteza, portanto, perigo iminente. A modernidade seria um salto enorme para o homem, ao invés do medo, a luz e o brilho da ciência. Era o tempo do fim das surpresas, calamidades, catástrofes, ilusões, lutas. O tempo que se acende é o tempo livre dos medos. Lamentavelmente, o caminho planejado sofreu um grande e tortuoso desvio. Após séculos, continuamos a viver na rota dos temores.

O medo é parte de nossa natureza. Os homens compartilham com os animais desse sentimento: no enfrentamento oscilam entre alternativas de fuga e agressão. Mas aos homens, em particular, quando suscetíveis ao perigo, a sensação de insegurança e vulnerabilidade são constantes, diferenciando-os dos animais propriamente ditos.

São três os tipos de medo de que fala Bauman: ameaças ao corpo e à propriedade; ameaças à ordem social e à confiabilidade (da qual depende a sobrevivência, o emprego, renda, seguridade social); e, por fim, os perigos que ameaçam o lugar das pessoas no mundo (hierarquia social, identidade – raça, gênero, étnica e religiosa).

Quando retomamos a suscetibilidade do homem diante do perigo, percebemos que na consciência dos sofredores a insegurança e a vulnerabilidade são facilmente desacoplados dos perigos que causam. As pessoas que o sentem podem interpretá-lo em qualquer um dos três tipos de medo. Mas o que mais amedronta o indivíduo é a ubiquidade dos medos: eles podem aparecer de qualquer fresta, vazarem de qualquer canto, seja dos nossos lares seja do planeta. Edvard Munch, expressionista, revelou na sua obra-prima O Grito, a angústia e o desespero diante da dor e decepções do pintor.

O Grito de Edvard Munch (1893)

Somos conscientes de que dos nossos quartos, das ruas escuras, dos noticiários, de nossos locais de trabalho, das pessoas com quem nos relacionamos virtualmente ou não, e até do que ingerimos, o medo está sempre à espreita, por perto, nos rodeando. Esse medo parece estar sempre a caminho, sorrateiro, disposto a nos causar angústia, insegurança.

Mas há também um medo que vive e sobrevive numa zona cinzenta: camuflado, mais aterrorizante do que podemos imaginar. Sem nome, sem endereço certo, ameaça destruir nossos lares, nossas vidas, nossos empregos, nosso planeta. Cada vez mais encorpados, surgem, de dentro de garrafas, de aprendizes de feiticeiros super ambiciosos. A zona cinzenta se vale de redes em que bolsas de valores caem todas ao mesmo tempo; companhias sólidas desaparecem ou se fundem para o desespero dos trabalhadores e do mercado; barris de petróleo secam, dados virtuais são roubados, extraviados ou clonados. É a era da espionagem, ninguém está seguro. O que Victor Hugo ruminou, séculos atrás, de modo melancólico e motivado pela ciência, quando disse que a Era Moderna poderia estar livre dos medos, desprende do que vemos e assistimos constantemente no cotidiano: uma zona cinzenta que se avoluma de novos perigos, novos medos.

Carpe diem! Aproveite agora, pague depois.

No ambiente líquido-moderno, o combate ao medo se tornou tarefa árdua e para uma vida inteira. Hoje chocolate pode ser o vilão, amanhã pode ser o ovo, depois virão outros e mais outros. Mas de vilões podem se tornar mocinhos, sinônimos de saúde, de uma hora para outra. Para provocar mais: quem foi danificado com o bug do milênio? Quantos já morreram ou sofreram doenças por causa de alimentos geneticamente danificados? Embora possam ser aterrorizantes, os pânicos vêm e vão: rápidos como foguetes ou dispersos como as nuvens. A vida líquida desliza ou se arrasta de um desafio para o outro, o hábito comum de todo episódio é uma certa tendência de vida curta. Retomando a história do bug do milênio, vale observar que a indústria do consumo gosta de se alimentar do medo, depende da produção de consumidores. Bauman fala que o “os consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a enfrentar o medo são temerosos e amedrontados, esperançosos de que perigos que temem sejam forçados a recuar graças a eles mesmos (com ajuda remunerada, obviamente)”.  A indústria fonográfica e farmacêutica são bons exemplos de uma economia de consumo que depende da produção de consumidores e de seus medos.

E o futuro é nebuloso? Vivemos a crédito. Compramos a prestação. Por que assombrar-se com os medos que ainda virão? Não vale a pena se preocupar e gastar, a crédito, a vida que tens com preocupações futuras. Talvez os seus medos nunca se concretizem.

Carpe diem! Aproveite agora, pague depois. Quando pensamos nos medos, nossa sobrevivência depende da forma como lidamos com eles. Nunca uma população foi tão endividada quanto à da nossa geração. A propaganda do Mastercard revela bem isto: “Para Mastercard não tem preço”. É desejo de satisfazer o agora. E o cartão de crédito é o maior amigo, magicamente, traz o futuro até nós. É o prazer imediato. Se a poupança prevê um movimento de pensar no futuro longínquo, de certezas; para um futuro incerto, vale o cartão de crédito. O que fazemos agora determina a forma do futuro.

O pavor da morte

O Livro de Jó nos mostrar que a punição é a norma; e a recompensa, uma exceção. Ou seja, os ganhadores são aqueles que escapam à sentença universal da eliminação, como acontece nos reality shows. Os vínculos entre virtude e pecado e a recompensa e a punição são tênues e eventuais.

Imagem recriada de Jó

Os contos morais, exemplificados a partir dos realities shows da atualidade, nos dizem que os desastres acontecem de forma aleatória, às vezes, sem explicação ou motivo aparente. O que existe é apenas um fio, uma linha tênue, se é que existe, entre aquilo que homens e mulheres fazem e aquilo que lhes acontece. Desse modo, pouco se pode fazer para evitar o sofrimento. Bauman diz que “ ‘os contos morais’ de nossa época falam da ameaça maligna e da iminência da eliminação, da quase impotência dos seres humanos em escapar de seu destino”. Esses contos espalham o terror, os medos que disseminam são incuráveis, inextirpáveis, chegaram para ficar, podem até ser suspensos por um momento, perdidos, mas não exorcizados. Esses medos não possuem antídoto. E o pior: os contos morais tentam nos vacinar contra esse medo proclamando a banalização da morte.

A morte é o fim… Irrecuperável… Irrevogável… É o único evento na vida sem retorno. O Inferno, primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri, reporta logo na entrada do Portal do Inferno um aviso: uma vez dentro, deve-se abandonar toda a esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar. Só se tem livre-arbítrio enquanto se encontra vivo. Quando morre, perde-se a capacidade de pensar e tomar decisões. É por essa razão que a morte passa a ser incompreensível para os que estão vivos.

Cabe ao homem também a negação da morte, desconstrução e a banalização. Não é à toa que tentamos a todo custo mostrar uma tendência inequívoca a colocar a morte de lado, a suprimi-la da vida. Freud citado por Bauman explica que “temos o hábito de enfatizar a causalidade fortuita da morte – acidente, doença, infecção, idade avançada; dessa maneira, revelamos o esforço de reduzir a morte de necessidade à oportunidade. Para Freud, tal redução ou desconstrução está afinada com o discurso da modernidade. O que se vê é que quando se aplica a ideia de desconstrução, exclui-se se o fato de a morte ser biologicamente determinada entre os seres humanos.

De par com a desconstrução, a banalização caminha sorrateiramente ao lado da morte, sua companheira imprescindível e infalível. No confronto, transforma a morte num evento comum, corriqueiro. A banalidade conduz a experiência única da morte para o domínio da rotina diária dos mortais, promovendo em suas vidas encenações da morte, aguardando o sentimento de familiaridade do fim. A partir daí, aliviar o horror que transpira da alteridade absoluta: “a total e absoluta incognoscibilidade da morte”.

Derrida, filósofo francês citado por Bauman, revelou que cada morte é um fim de um mundo, de um mundo único, que não tem volta. Para ele, cada morte é a perda de um mundo – “uma perda definitiva, irreversível e irreparável. A ausência desse mundo é que jamais acabará – sendo, a partir de agora, eterna”.

Criança morta de Cândido Portinari (1944)

O medo e a banalização do mal

Segundo Bauman, o medo e o mal são irmãos siameses: onde um estiver, o outro estará. Um aponta para fora; outro para dentro, para você mesmo: experiência conjunta e única. Mas o que é o mal? O que tememos? Tememos o ininteligível, inexprimível e inexplicável. Sabemos o que é um crime porque temos um código jurídico que atesta o ato criminoso. Sabemos também o que é um pecado porque temos os dez mandamentos. Mas e o mal? “mal é aquilo que desafia e explode essa inteligibilidade que torna o mundo suportável.” Apelamos à ideia do mal quando não podemos apontar que regra ou norma foi negligenciada, quebrada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado.

Vários filósofos tentaram explicar a presença do mal, mas não tiveram sucesso. Relegam o mal a uma zona obscura, não apenas desconhecida, mas incognoscível: o mal tende a ser chamado quando fixamosna ideia de explicar o inexplicável. Apegamos a ele como último recurso em nossa busca desesperada por uma explicação. Transpor a posição de explicar o objeto, o acontecido, exige avançar para além da natureza humana.

Na súplica de Jó (6: 24) “Ensinai-me, e eu me calarei; e fazei-me entender em que errei.” “Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado?” (Jó, 7:20) “Na verdade sei que assim é; porque, como se justificaria o homem para com Deus?”(Jó, 9: 2).O Livro de Jó condensou a inefável experiência do “mal injusto” (e indiretamente, da graça não merecida). Apresentou, ainda, os argumentos que iriam ser esboçados por teólogos por vários séculos a fim de tentar salvar os ensinamentos das raízes imorais, do mal, e da natureza moral, e apenas moral, dos meios de afastar o mal ou evitar sua ocorrência.

Hannah Arendt (1999) revela o choque e a confusão que nós sentimos ao ouvir falar de Auschwitz (uma rede de campos de concentração, localizado na Polônia, símbolo do Holocausto) pela primeira vez, e o gesto de desesperança com que reagimos à notícia de que é um pressuposto dos sistemas jurídicos modernos de que a intenção de agir errado é necessária para que se cometa um crime.

Segundo Arendt, em Jerusalém, no banco dos réus, assessorado por cultos advogados, estava Eichmann1, que tentou, a todo custo, convencer o tribunal de que era inocente face às acusações de que era alvo, pois seu único motivo era o trabalho bem-feito, e isto ele tinha feito de forma espetacular: cumpriu as ordens de seus superiores. Portanto, para um burocrata plenamente habilitado, como se descendesse de um tipo ideal de Max Weber, a intenção de agir errado estava ausente. Errado seria não ter cumprido as ordens. Ele foi um dos responsáveis pela logística de extermínio de milhões de pessoas durante o Holocausto. Se Eichmann-pessoa tinha ódio ou raiva dos judeus, isto, para ele, era irrelevante: “no que concerne à morte dos judeus, eu não tive nada a ver com isso. Eu nunca matei um judeu, ou um não-judeu, eu nunca matei nenhum ser humano. Eu nunca dei ordens para matarem judeus ou não-judeus; eu pura e simplesmente não o fiz” (CARVALHO, 2012, p.2). Arendt relata a linha de argumentação do julgamento: Eichmann é considerado um homem banal, trata-se de atos banais, trata-se da banalidade do mal,ele foi cumpridor de ordens do Estado.

Cenas do Holocausto de Auschwitz

“Pessoa normal” foram os relatos de diagnósticos de diversos psiquiatras. Um deles, inclusive, teria dito que ele “é mais normal, em qualquer escala, do que eu após o tê-lo examinado”. Foi atestado também que sua atitude face àsua família, à sua mãe e pai, irmãos e amigos “era não apenas normal, mas bastante adequada”. Com base nesses atestados, Eichmann não pode alegar insanidade mental ou legal, até mesmo, porque não exalava ódio particular aos judeus. Por isso, a justiça encontrou-se em um enorme dilema: “Eichmann, como todas as “pessoas normais”, deveria ter consciência da natureza criminosa dos seus atos. Este julgamento transcende o acusado, remete-nos para a história moderna, para a natureza do homem e dos seus atos, sem esquecer que “sob condições de terror a maioria das pessoas obedece, mas algumas não”, assimescreve Hannah.” (CARVALHO, 2012, p.4)

Os sentimentos são muitos e falam línguas distintas, às vezes desarmônicas; a razão é uma só e fala apenas uma língua. “O que distingue o mal burocraticamente administrado e realizado não é tanto a banalidade, mas a sua racionalidade”. (BAUMAN, 2008, p.85). Os males produzidos e causados por seres humanos parecem cada vez mais inesperados quanto seus precursores, que podem ser companheiros e até herdeiros. Eles se tornam conhecidos e apreendidos quando somente se olha para trás, e vemos as coisas a partir de uma retrospectiva.

Nota:

1 Em 1961 o The New Yorker enviou Hannah a Israel para cobrir o julgamento de Eichmann, que viveu incógnito, sob outra identidade, na Argentina até 1960, quando os serviços secretos israelitas o levaram para Israel para ser julgado por crimes contra a Humanidade, contra o povo judeu e crimes de guerra durante o período da II Guerra Mundial. Eichmann foi condenado à morte e enforcado em 1962, naquela que foi considerada uma exceção à lei israelita que não prevê a pena de morte.

Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Hannah – Hannah Arendt. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BAUMAN, Zigmunt. O medo líquido. Jorge Zahar, 2008.

BIBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional. Paulus: São Paulo, 1990.

CARVALHO, Xênia de. Da Banalidade do Mal: Hannah Arendt e o julgamento de Eichmann em Jerusálem. 2012. Disponível no sítio http://www.academia.edu/1305819/Da_Banalidade_do_Mal_-_Hannah_Arendt_e_o_julgamento_de_Eichmann_em_Jerusalem. Acesso em: julho de 2013.

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Amor Líquido: a problemática das relações amorosas e dos vínculos familiares na literatura contemporânea

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“A humanidade é uma grande esperança perdida. Cada homem está trancado dentro de si mesmo e sua alma é semelhante a um poço onde só o sofrimento vive e se agita”.(Tennessee Williams)

Como são afetadas as relações amorosas e os vínculos familiares na era do amor líquido?

Em Amor Líquido, Bauman (2005) afirma que o “amor líquido” representa a fragilidade dos laços humanos e a série de artimanhas que os seres humanos engendram para substituí-lo. Ao tentar definir a temática dessa obra, afirma que “(…) o principal herói deste livro é o relacionamento humano.” (BAUMAN, 2004, p. 08)

Para o autor o amor líquido é resultado da modernidade líquida ou pós-moderna. Esse período se traduz num mundo cada vez mais fragmentado e de um sujeito cada vez mais confuso consigo mesmo, com o espaço que ocupa e com o tempo que o rodeia.

Numa entrevista, a Revista Cult1, Bauman afirma que

(…) A modernidade líquida é um momento em que a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputas e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento a longo prazo; e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. (OLIVEIRA, 2009)

Essa crise provocada pela modernidade líquida assola o indivíduo com o individualismo e o narcisismo exacerbado. Vive-se hoje num mundo fragmentado, sem referências e à deriva. Essa nova realidade tem afetado diretamente o cotidiano das pessoas, trazendo interferências negativas, em especial nos relacionamentos.

O pensador reflete sobre esse retrato do mundo contemporâneo “o amor líquido”, tanto nos relacionamentos pessoais como no convívio social cotidiano, numa sociedade mediada por tecnologia. Ele diz:

(…) talvez seja por isso que, em vez de relatar suas experiências e expectativas utilizando termos como “relacionar-se” e “relacionamentos”, as pessoas falem cada vez mais (auxiliadas e conduzidas pelos doutos especialistas) em “conexões”, ou “conectar-se” e “ser conectado”. Em vez de parceiros, preferem falar em “redes”.(BAUMAN, 2005, p.12)

Desta forma, a internet assumiu a função de conectar pessoas, formar redes de relacionamentos, cada vez mais flexíveis.

Bauman busca investigar as fragilidades desses novos laços humanos, bem como a insegurança que esses desejos conflitantes geram nos relacionamentos, tanto de estreitá-los como de mantê-los frouxos. Sobre isso, ele afirma que

(…) a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar e aprender. (BAUMAN, 2005, p. 8)

Segundo Bauman, a modernidade líquida criou uma nova era nos relacionamentos, que estão cada vez mais fragilizados e desumanizados.

Como corpus ficcional de análise, escolheu-se abordar duas obras literárias, um romance experimental brasileiro Mamma, son tanto felice, de Luiz Ruffato2 e uma peça teatral estadunidenseUm bonde chamado desejo3, de Tennessee Williams.

Assim, propõe-se análise dessas duas obras literárias que tematizam a existência humana e refletem sobre o comportamento humano, por meio de suas personagens diante do amor/desamor e dos vínculos familiares.

O amor líquido na literatura

Ao se considerar que as relações amorosas e os vínculos familiares estão cada vez mais flexíveis, permite-nos vivenciar o amor líquido e com ele a fragilidade e a inconstância dos laços humanos. Portanto, neste artigo, parte-se do pressuposto que a construção das personagens e que a presença de traços do chamado “amor líquido”, permeiam as relações sociais nas obras literárias analisadas.

A obra Mamma, son tanto felice (2005), de Luiz Ruffato, apresenta uma forma de construção literária experimental tanto pela fragmentação textual como por sua não linearidade narrativa e estrutural. A linguagem utilizada, no texto, é coloquial, com um intenso refinamento linguístico, incluindo invencionices verbais, uso de neologismos e regionalismos.

A obra tematiza a existência humana. Dividem-se em seis histórias/fragmentos, todas com títulos. As narrativas são, respectivamente, Uma fábula retrata uma pequena comunidade italiana chamada Rodeiro, no interior de Minas Gerais. Um pai (Michelotto velho) vingativo e violento mata cruelmente a filha, depois acompanha o desmoronamento familiar e a morte da esposa; Sulfato de morfina aborda a doença de Dona Paula e rememora sua relação com o marido, já falecido e os filhos adultos; Aquário apresenta um encontro entre mãe e filho (Carlinhos) em que ajustam situações aflitivas e conflituosas do passado familiar; A expiação conta a história de um homem padece pela culpa por ter provocado um acidente fatal; O alemão e a puria narra a trajetória de um casal incomum, um homem enorme casado com uma mulher baixinha. Um alemão recém-casado com uma puria. Um dia, o alemão desaparece, sem deixar vestígios; O segredo revela que um homem guarda um segredo e vive conflitos existenciais.

Como recorte, neste artigo, propõe-se somente a análise da última história/fragmento. O segredopossui 25 fragmentos numerados em algarismos romanos e apresenta um personagem chamado “o professor”, que ouve durante toda a narrativa os compositores Bach e Beethoven, questionando-se qual das óperas ele deveria escolher. Ao longo da leitura, descobre-se que ele escolhe a trilha sonora de sua morte, ficando entre a cegueira de Bach ou a surdez de Beethoven.

Um ponto importante de análise dessa história é a relação com a memória. A personagem rememora o passado por meio de flashbacks e alguns fluxos de consciência, ficando no limiar entre a memória e o delírio, em várias passagens do texto.

Durante a leitura, há uma construção da personalidade de Francisco, um menino que fora na infância pobre e feliz, ao lado da mãe e dos irmãos. Sua identidade e a felicidade vão sendo perdidas ao longo do texto. Aos poucos, a criança feliz vai se transformando num adulto solitário, desconfiado e sem alteridade. Esse é o caminho que o personagem vai trilhando, primeiro como professor, depois como escritor, para finalmente ir desumanizando-se, até se transformar em “terno-gravata”.

O professor é o menino Chico, descendente de italianos e que na infância morava num lugarejo chamado Rodeiro. “E o Meritíssimo Senhor Juiz prosseguiu: – Senhor Francisco Pretti: o senhor se declara culpado ou inocente?” (RUFFATO, 2005, p. 154). Sabe-se, somente, na metade da narrativa que o nome do professor é Francisco Pretti. Este nome foi mencionado pelo juiz, durante um delírio de grandeza do professor, em que ele se imagina julgado, condenado e morto, pela sociedade.

O menino e depois o adolescente Chico, perde aos poucos o contato com os pais e com os irmãos, que por não terem estudado e por estarem em condições financeiras precárias são desprezados pelo irmão, agora estudado, com verniz intelectual e quase padre.

Esse fato fica bem nítido, na ocasião da morte da mãe “(…) alguns anos depois, morreu. Derrame… Revi meu pai. Revi meus irmãos. Tive vontade de ficar por ali com eles, mas… Já não pertencia àquele universo”. (RUFFATO, 2005, p. 25)

Percebe-se, pela leitura desse fragmento, um homem em conflito, consigo mesmo, numa crescente crise existencial que vai se incorporando a sua existência.

Abordando os relacionamentos, Bauman, frisa que “(…) no líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência.” (BAUMAN, 2005, p.8)

Ainda, de acordo com Bauman

(…) talvez a própria ideia de ”relacionamento” contribua para essa confusão. Apesar da firmeza que caracteriza as tentativas dos infelizes caçadores de relacionamentos e seus especialistas, essa noção resiste a ser plena e verdadeiramente purgada de suas conotações perturbadoras e preocupantes.(BAUMAN, 2005, p.11-12)

Observa-se na construção do personagem Francisco alguns elementos como o apego a rotina imutável e o egocentrismo, com isso reproduzindo nas relações afetivas tanto com o pai, à mãe e os irmãos, como nas relações sociais, já que ele possuía somente dois amigos, o editor chefe do jornal e o farmacêutico. Na esfera doméstica, temos um convívio do professor com Dona Conceição e um ensaio de mal sucedido romance com Silvana.

Esses relacionamentos revelam bem a falta de humanidade do professor e a tentativa de substituição de sua empregada Conceição por outra, neste caso, a filha Silvana. Não se sabe nada a respeito do caráter de Silvana e de seu comportamento, já que todas as informações são dadas por um narrador em 1ª pessoa, portanto não confiável, que se revela ser o próprio Francisco. Ele compara Silvana a uma cobra que se instalou na sua cama e na sua vida. Francisco retorna, por meio da memória, a uma história da mãe, na infância, que encontrou um ninho de cobras debaixo da cama e que o avô fez uma tocaia para exterminá-la.

O professor conta um segredo para Silvana, e que aparentemente ela o espalha. O professor, então, decide contratar um assassino para matá-la. Porém, diante da recusa do matador em eliminar uma mulher, ele oferta outra solução, matar o homem que mora com Silvana, ou seja, ele próprio. Conforme Bauman afirma “(…) o amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quanto a morte.” (BAUMAN, 2005, p. 23)

Assim, pode-se pensar na tentativa de Francisco em construir e destruir, o laço amoroso com Silvana. Diante da impossibilidade de viver este amor e do temor diante do desconhecido, ele prefere a morte.

A obra Um bonde chamado desejo (1947), de Tennessee Williams, estreou em 1947, emBarrymore Theather em Nova Iorque.

Ganhou o prêmio Pullitzer Prize e foi adaptada para o cinema em 1951. Essa peça foi sucesso de público e de crítica. Foi encenada em muitos países e traduzida para vários idiomas.

Os primeiros textos de Tennessee Williams foram aclamados pela crítica especializada. As peças do dramaturgo abordam temas4 como a morte, a violência, a paixão, o adultério e o falso moralismo. Suas personagens são urbanas e representativas da vida cotidiana norte-americana. No prefácio da peça, tem-se uma visão da apresentação e da representação dessas personagens.

(…) são criaturas tristes e solitárias: bêbados, poetas vagabundos, operários humilhados, mulheres reprimidas, homossexuais atordoados pela perseguição, atores sem papel, damas decadentes, virgens loucas, prostitutas feridas. Sem exceção, um mesmo estigma os tortura: estão sós.(WILLIAMS, 1984, p. 12)

Um bonde chamado desejo apresenta a vida do casal Kowalski (Stanley e Stella) e como esses tiveram sua rotina mudada com a chegada de Blanche Dubois, irmã de Stella. A peça tem como cenário a cidade de Nova Orleans e retrata o período histórico do pós Segunda Guerra Mundial. Eles residem num apartamento, numa área pobre da cidade e Stella está grávida. Blanche conhece Stanley, seu cunhado, e se sente desconfortável na sua presença. Blanche, após ser questionada por Stanley sobre seu passado, conta que se casou muito jovem e que o marido morreu. Stanley desconfia dessa história, em vários outros momentos, mostra-se hostil à cunhada.

O relacionamento e as intrigas são uma via de mão dupla na peça: Blanche irrita o cunhado pelas constantes reclamações que ela verbaliza e Stanley é mal visto por ela por sua rudeza e grossura. Durante uma visita de amigos para um jogo de pôquer, Stanley bebe demais e espanca Stella. Ela e a irmã fogem para o apartamento de um vizinho. No entanto, Stella volta para casa, se reconcilia com o marido numa noite de sexo selvagem. Blanche fica chocada diante da reconciliação, mas sua atenção ganha outro foco, ao conhecer Mitch, um amigo de Stanley.

Nos dias seguintes, Stanley ouve Blanche falar mal dele e desse dia em diante, torna-se seu inimigo, e disposto a destruí-la.

Na sequência da leitura, descobre-se que Blanche tem um passado promíscuo, em Laurel, cidade onde residia. Ela se sentia solitária na pequena cidade, por isso se relacionou com vários homens, destruíndo sua reputação e levando-a perder o emprego de professora.

Blanche e Stanley se tornam inimigos, agora declarados. Blanche passa a abusar do alcool e Stanley passa a investigar o passado dela, descobrindo seu segredo e o revelando para Mitch. Diante da descoberta do passado negro, Mitch abandona Blanche.

Como golpe final, Stanley compra passagens de ônibus para Blanche voltar à cidade natal, a qual havia sido quase expulsa. Diante do fato, Stella discute com o marido e no meio da briga ela pede que a leve para hospital, pois a criança irá nascer.

Blanche começa a fazer as malas e se excede na bebida. É assim que Mitch a encontra, bêbada. Mitch quer saber sobre o passado dela e ela acaba confessando a vida devassa. Depois de ouvir a confissão, ele tenta abusar dela. Ela o recusa e o expulsa do apartamento.

Na obra Amor Líquido Bauman falando sobre Eros e pensando na fronteira tênue entre a carícia e a agressão, afirma que

(…) e não há senão uma tênue fronteira, a qual facilmente se fecham os olhos, entre a carícia suave e a garra que aperta implacável. Eros não pode ser fiel a si mesmo sem praticar a primeira, mas não pode praticá-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão que se estende na direção do outro – mas mãos que acariciam também podem prender e esmagar. (BAUMAN, 2005, p. 22-23)

Em seguida, Stanley retorna para casa, deixando Stella em trabalho de parto no hospital. Stanley novamente fala sobre o passado impuro de Blanche, e depois a estupra.

(Ele salta na direção dela, virando a mesa. Ela dá um grito e o golpeia com o gargalo da garrafa, mas ele a agarra pelo pulso.) Largue, vamos! Largue a garrafa, sua gata-do-mato! A gente tinha esse encontro desde o começo! (Ela geme). O gargalo da garrafa cai. Ela cai de joelhos. Ele apanha a figura inerte de Blanche e a carrega para a cama. O trompete e a bateria dos Quatro Naipes soam alto. (WILLIAMS, 1984, p. 209)

A cena de estupro pode ser lida à luz da teoria de Bauman, quando aborda os produtos de consumo e os refugos. Ele diz que o desejo é um impulso de destruição. Também dialoga ao dizer que “(…) em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro.” (BAUMAN, 2005, p. 8)

Para Blanche, a relação familiar, torna-se um pesadelo em que é vítima de um crime. Algumas semanas mais tarde, um novo encontro é marcado para jogar pôquer, Blanche sofre uma crise e conta a Stella sobre o estupro, porém a irmã não acredita nela. Um médico é chamado e encaminha Blanche para um hospício.

Nota-se, na peça, a relação de Stella com a irmã e marca a falta de sensibilidade e de amor de Stella para com a irmã, quando a interna no sanatório.

STELLA

Que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha? Oh, meu Deus, que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha?

EUNICE

A única coisa que você podia fazer. Ela não pode ficar aqui, e não havia outro lugar para ela ir. (WILLIAMS, 1984, p. 219)

A peça termina com Stalley confortando a esposa e com os outros homens jogando, indiferentes ao drama familiar.

STANLEY (um pouco hesitante) Stella?

(Ela soluça com triste desolação. Há algo de voluptuoso em sua completa rendição ao choro, agora que sua irmã se foi)

STANLEY (sensualmente, acalmando-a) Ora, meu bem. Ora, amor. Ora, ora, amor. (Ajoelha-se ao lado dela e seus dedos encontram a abertura da blusa dela) Ora, ora, amor. Ora, amor… (O voluptuoso soluço e o murmúrio sensual desaparecem sob a crescente música do piano blue e do trompete em surdina). (WILLIAMS, 1984, p. 229)

A peça pode ser lida como um retrato ácido da desintegração humana e suas conturbadas relações sociais. Observa-se, claramente que Tennessee Williams, se identifica com a temática existencial e, em alguns momentos percebe-se elementos autobiográficos “(…) filho do sofrimento e do preconceito (…), sua vida está sempre presente em sua obra literária. Em cada personagem que cria há um pouco dos fantasmas que povoam sua memória”.(WILLIAMS, 1984, p. 12)

O relacionamento conturbado com a família fez do dramaturgo um grande escritor e pensador das relações humanas, como diz Bauman

(…) Não admira que os “relacionamentos” estejam entre os principais motores do atual “boom do aconselhamento”. A complexidade é densa, persistente e difícil demais para ser desfeita ou destrinchada sem auxílio. (BAUMAN, 2005, p.9)

Assim, conforme a biografia de Williams, a literatura o salvou da tristeza profunda e da morte. Segundo, Williams “(…) os recalques apresentados no palco purgam os espectadores de seus próprios recalques: nas neuróticas criaturas, cada um projeta a sua própria neurose”. (WILLIAMS, 1984, p. 11)

Considerações

Pensa-se na era do amor líquido em algumas questões: Como viver junto? Como conviver com o outro? Como amar? Essas questões lembram o filósofo francês Barthes que diz “(…) Paradoxo erótico: os corpos estão agarrados, entretanto não fazem amor, quanto mais fechada a idioritmia mais o eros estava sendo banido (…) em direção a uma erotização da distância”. (BARTHES, 2003, p.11-12)

Bauman assevera sobre a obra Amor Líquido “(…) este livro é dedicado aos riscos e ansiedades de se viver junto, e separado, em nosso líquido mundo moderno.” (BAUMAN, 2005, p.13)

Desta forma, objetivou-se, neste artigo, refletir sobre os relacionamentos humanos observando-se como as análises e interpretações evidenciam a presença de traços do amor líquido e da modernidade líquida de Bauman, tanto na temática quanto na construção das personagens nas obras literárias.

Finaliza-se, esta discussão sem esgotar a inquietação diante do tema. Os textos dramáticos e não dramáticos contemporâneos pensam a vida e o comportamento humano, ante a barbárie e o mal-estar da modernidade líquida.

Notas:

1Entrevista de Zygmunt Bauman à Revista CULT, na Edição 138. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevis-zygmunt-bauman/>.

2RUFFATO, Luiz. Inferno provisório – Volume I: Mamma, son tanto felice. São Paulo: Editora Record, 2005.

3WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Trad. Brutus Pedreira. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

4No Brasil, Nelson Rodrigues, aborda esses temas, com semelhante acidez e crítica social.

 

Referências:

BARTHES, Roland. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAUMAN, Zigmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

____. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

OLIVEIRA, Denis de. A utopia possível na sociedade líquida. Entrevista com Zygmunt Bauman. São Paulo: Revista Cult. nº 138, Ano 12, ago/2009.

RUFFATO, Luiz. Inferno provisório – Volume I: Mamma, son tanto felice. São Paulo: Editora Record, 2005.

WILLIAMS, Tennessee. A streetcar named desire. London: Methuen Student Edition, 1984.

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Modernidade Líquida: andando sobre uma fina camada de gelo

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“Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer… e morrem como se nunca tivessem vivido”.
 DALAI LAMA

Imagine a cena em que alguém tem que atravessar um lago gelado, cuja superfície está coberta por uma fina camada de gelo. Neste caso, ou a pessoa atravessa correndo, sem olhar para trás, ou enfrenta o risco de afundar nas águas “cortantes”. Pois bem, nobre leitor, de acordo com a alegoria do filósofo Luís Felipe Pondé, é assim que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman enxerga a pós-modernidade.

Trata-se de um território lamacento e movediço, onde a instantaneidade dita as regras de tudo, sobretudo das relações pessoais. É por esse prisma que Bauman pauta o livro “Modernidade Líquida” (Zahar Editor), a agradável surpresa do mercado editorial nos últimos 10 anos.

Para o polonês, o grande problema do “viver na modernidade”, é que as projeções (e perspectivas futuras) têm que ser colocadas em prática a qualquer custo, sob o risco de a vida não obter significado e importância. Isso tudo, claro, dentro de um escopo de transitoriedade e relativismo. Em outras palavras, as pessoas são instadas constantemente a desenvolver a “autodeterminação compulsiva e obrigatória”, em detrimento de vida derivativa das ações heterônomas e/ou contemplativas.

A questão central é que, no processo de individuação extrema a que parece estar chegando à contemporaneidade, o “indivíduo torna-se o pior inimigo do cidadão”, pois todas as suas demandas estão alinhadas a prerrogativas de direitos mais pontuais, e menos em relação às causas mais comuns. Por outro lado, e como agravante, se a cada pessoa lhe é dada a possibilidade de ter tudo (pelo menos em tese, e como perspectiva de “mundo como projeção interna”), o conflito impera durante o longo e ardoroso processo onde se percebe que nem sempre as coisas saem como o planejado, e muitas vezes é um maiúsculo NÃO que vem em substituição ao esperado sim.

Bauman não vislumbra um futuro sem que a individualização esteja totalmente fora do cenário. Antes disso, há outro componente que reforça esta realidade: a “volatilidade” da perspectiva pessoal e profissional, onde aspectos como “territorialidade” e “tradição” são definitivamente suplantados. Assim, desde cedo, a pessoa é “treinada” para abolir o local e abraçar o global, numa falsa dicotomia e indesejável crença de que a vida de lá, com certeza, é muito melhor do que a de cá.

Um mundo onde as relações são “líquidas” parece, num primeiro momento, algo atraente. Mas por trás desta sedutora receita contemporânea pode haver uma construção subjetiva sem “marcações”, sem “totens luminosos” de referência social (e observe que, aqui, não necessariamente precisa-se entrar no tema da parentalidade, e sim no próprio sentido de viver em sociedade, com objetivos comuns, mais abrangentes). Isso tende a tornar a pessoa uma “forasteira” dentro da própria casa, com infindáveis processos de comparação e rebuscadas metas a ser atingidas. E quando atingidas, outras têm que estar a postos, afinal o sentido de realização/felicidade está no objeto desejado (que tem que ser constantemente renovado) e não no percurso consciente, compartilhado.

Essa busca, que é qualificada como uma permanente “busca de aptidão”, no sentido de que há no imaginário um “obrigatório objetivo de excelência” a ser atingido, gera uma “auto-recriminação e auto-depreciação permanentes” e faz lembrar as atuais maratonas por corpos perfeitos, ou mesmo as longas jornadas para passar num concurso público para cargos de salários elevados, mesmo o candidato já trabalhando com estabilidade numa divisão menos cobiçada. Mas “quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolhas parece ser insuportável para todos”. Ou seja, na vida do outro (fora da perspectiva altruísta) há o cerne de toda a “estabilidade”. Há, neste modo de ver as experiências externas, uma negligência em relação ao reconhecimento e aprimoramento dos próprios processos de estruturação interna (construção de subjetividade).

A “romantização” da vida do outro, sobretudo quando o outro é rico e, logo, atarefado (pelo menos se presume isso) é uma constante desta época. Para ilustrar esse recorte, Bauman lembra o filósofo francês Yves Michaud, que diz que “com o excesso de oportunidades, crescem as ameaças de desestruturação, fragmentação e desarticulação”. Ou seja, se não bastasse a “eterna luta” para se atingir o pódio, depois de estar lá, há uma luta ainda maior para manter-se no topo (e, de novo, existe aqui uma contradição, pois se se busca o efêmero e transitório durante a jornada, na verdade há um medo terrível de se atingir e logo em seguida perder a estabilidade). Por tudo isso, não adianta alcançar determinadas metas se não puder mantê-las por muito tempo. Há aí uma fonte de angústia e sensação de impotência. O ápice desse processo pôde ser visto no atual embate entre um príncipe saudita e a revista Forbes. O fidalgo se sentiu “ofendido” porque sua fortuna teria sido subestimada. Logo, processa a publicação americana por “difamação”.

Além de todas as questões que foram levantadas, há o aspecto político que, certamente, é um dos mais atingidos pela “modernidade líquida”. Para Bauman, uma das características desta época é o esvaziamento dos espaços públicos. Sendo assim, a possibilidade de aproximação social e de expressão como componente revelador do ser, vai perdendo força. Passo a passo outros panoramas decorrentes deste “primeiro encontro” também são afetados. Um exemplo é o “desencorajamento” da organização social e jurídica dos nichos. E sem essa organização, não há enfrentamento. Assim, cada um tende a lutar pelos “seus” direitos, em detrimento de uma vida pública comum.

Esse “desencorajamento” se dá, inclusive, pela própria estética das cidades modernas, com suas amplas e longas avenidas, e com as superpraças e monumentos. No entanto, não há bancos para se sentar. Sem poder sentar para contemplar não há como se aproximar do outro. E as ruas e praças podem até estar cheias em quantidade de pessoas, mas vazias de significados e de teias sociais que poderiam resultar em histórias genuínas.

Bauman cita o também sociólogo Richard Sennett para explicar que as relações sociais atuais tem um ar de falsidade. Isso porque, por se basearem em imagens de solidariedade que na verdade são forjadas, que não nasceram da convivência diária/comunitária, essas relações não passam de “mito de solidariedade”, tornando as pessoas covardes, que se escondem durante o processo de aproximação, entendimento ou enfrentamento do outro. Existe, portanto, uma “fabricação do sentimento de uma identidade comum”, mas isso se dá apenas como um “ritual de purificação”. Ou seja, funciona mais ou menos como aquele indivíduo que não utiliza boas práticas de sustentabilidade em sua casa, no entanto contribui mensalmente com uma ONG internacional que defende a preservação ambiental. Desta forma, ele (o indivíduo) se exime do envolvimento direto com a causa, mas ao mesmo tempo cria a ilusão de que está positivamente contribuindo com o processo.

Em relação à saúde, Bauman alerta que há uma verdadeira “esquizofrenia” bela busca da condição perfeita. A doença, neste modelo de percepção social, não só é vista como algo horrendo, como deve ser evitada nos círculos de conversas. Há um enorme esforço para tornar o organismo resistente a certas doenças. O problema é que, ao fazer isso, a pessoa também “o deixa vulnerável a outras doenças, pois diversas intervenções médicas são conhecidas pelas doenças iatrogênicas que provocam – doenças que resultam da própria intervenção, que não são menos (se não mais) perigosas que a doença que se pretendia curar”.

Essa ojeriza pela doença pode significar uma incapacidade crescente de se conviver com a limitação e com a diferença. Se não se gosta do atual estado de coisas porque não lhe é dado (ao estado de coisas) a possibilidade de compreensão e entendimento, provavelmente não tem como gostar da vida atual, corriqueira. A felicidade, então, estaria no eterno “vir a ser”.

O que se deduz disso tudo é um crescente estranhamento pelo diferente e uma exortação da homogeneidade. Assim, “quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera”.

Por fim, o sociólogo diz que atualmente o mundo é dominado por aquelas pessoas que se movem e agem com “maior rapidez”. Ou seja, o sucesso na “modernidade líquida” depende de quão próximo a pessoa está do próprio movimento das demandas. Na outra ponta – quem se movimenta pouco – estão justamente as pessoas que irão “obedecer às ordens”.

Esse panorama faz contrapor os modos de vida entre aqueles que estão “ligados” na aceleração, daqueles que por vezes preferem aderir à contemplação. Claramente, os aspectos contemplativos são totalmente negligenciados, e a imprevisibilidade é deixada de lado. Neste caso, a pessoa pode até se discutir o que irá comprar, mas jamais será discutida a possibilidade de não comprar. Essa hipótese é impensável. O resultado disso tudo, dessa falta de observação para as construções internas e externas (relacionais), gera uma sociedade profundamente frustrada e uma profusão de novas patologias, a maior parte delas relacionada a dissonâncias cognitivas ou derivadas de longos períodos de ansiedade. No final das contas, como certa fez falou o Dalai Lama, “os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem-se do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer… e morrem como se nunca tivessem vivido”.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

PONDÉ, Luis Felipe. Uma agenda para o Inverno – ambivalência, medo e coragem. Café Filosófico – CPFL CULTURA. Campinas: 2006. Disponível emhttp://www.cpflcultura.com.br/2008/12/24/o-diagnostico-de-zygmunt-bauman-para-a-pos-modernidade-uma-agenda-para-o-inverno-ambivalencia-medo-e-coragem/ . Acesso em 08/06/2013.

Revista Exame. Príncipe saudita processa Forbes por avaliar fortuna menor. Disponível em http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/principe-saudita-processa-forbes-por-avaliar-fortuna-menor . Acesso em 06/06/2013.

Pensador UOL. Frases do Dalai Lama. Disponível em http://pensador.uol.com.br/frase/MzgwOTI/ . Acesso em 10/06/2013.

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Diálogos contemporâneos impertinentes com/de Bauman

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Nos tempos atuais, ainda parece não ser pertinente refletir sobre a vida e seu entorno sociopolítico como ele é. Para alguns até parece impertinente, descabido, despropositado, inconveniente abordar o “Mal-estar da pós-modernidade”, o “Medo líquido”, a “Vida líquida”, o “Amor líquido” ou “A vida em fragmentos”.

A vida líquida tem muitas direções. “Trata-se de viver na indiferença, no desprendimento, e, por isso mesmo, tal existência se torna repleta de preocupações com relação a mudanças e términos, muitas vezes mais doloridos do que se pretendia”.

Nesse sentido, aquele que se propõe discutir o presente e as suas mais controvérsias polêmicas, aparentemente se torna um implicante com tudo e todos/as, um ranzinza, que se comporta de maneira descabida; um insolente.

Ocorre-me essa representação da (im)pertinência ao se tratar de cenas e episódios diários que surgem hoje e desaparecem amanhã, problemas que são criados e dissolvidos no mesmo instante sem deixar rastros e memória.

Estamos acostumados com a análise de tradição marxista que defende a tese que a evolução histórica, desde as sociedades mais remotas até à atual, se dá pelos confrontos entre diferentes classes sociais decorrentes da exploração do homem pelo homem.

Todavia, o que dizermos na presentividade, do culto a autonomia individual, ao corpo glorificado na mídia? “O sujeito pós-moderno é a glorificação do ego no instante, sem esperança alguma no futuro”?

Em O que é pós-moderno, Jair dos Santos, no contraponto da sociedade moderna, fala-nos do indivíduo burguês, que supunha uma identidade fixa e uma liberdade total, aferrado ao dinheiro como capital tanto quanto a princípios morais e a valores sociais, esse sujeito dançou, diz ele. Os modernos, na arte, começaram a caricaturar seu retrato, a expor sua falsidade. Os indivíduos pós-modernos, na prática, vêm tendendo ao máximo à sua dissolução.

Os pós-modernos querem rir levianamente de tudo? Isso nos leva a reflexão se o pós-modernismo “ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filosofia nos quais viceja uma ideia tida como arqui-sinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida”, questiona Elson de Mello no seu texto.

Em uma das entrevistas de Lipovetsky ele chega a dizer que “até Foucault, no fim de sua vida, interrogava-se sobre a questão da preocupação consigo, porque é um efeito do fracasso das grandes ideologias”. “Quando não se acredita mais que se pode mudar o mundo com a revolução, então as questões da vida privada, da felicidade, mas também da identidade, da aparência tornam-se muito mais importantes. E, de fato, as questões que levanto (Lipovetsky) sobre a lógica da moda é um efeito da vida pós-moderna”.

Para Elson de Mello, “a crítica que faz o pós-modernismo aos metarrelatos, no que têm principalmente de deterministas, é de destacar-se, ao relativizar as explicações dominantes, em que as teorias sociais pretenderiam dar da realidade uma visão acabada, bem articulada em todos os planos, tanto cultural, político, acadêmico e até científico. O enfoque pós-moderno pode proporcionar uma abertura de abordagem, numa multiplicidade de vozes sociais e teóricas, ainda que não saiba se realmente dê as respostas”.

A presentividade é uma época na qual as fronteiras culturais e epistemológicas estão se desfazendo e os gêneros disciplinares se tornando indistintos.

Do que estamos a falar? Daquilo que os franceses chamam de “precariedade”; os alemães de “instabilidade”; os italianos de “incertezas” e os ingleses de “insegurança”. Daquilo que Bauman nos diz, o fenômeno que todos esses conceitos tentam captar e articular é a experiência combinada da falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação a sua continuidade e estabilidade futura) e de inseguranças (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhanças, comunidade).

Esta série com Bauman, a partir de Bauman, com base nos seus conceitos e as veredas percorridas por seus estudos em constante ebulição, é um convite para pensarmos a nossa situação no mundo atual, a nossa vida cotidiana, refletirmos realmente a atualidade, conforme ele nos fala, por exemplo, sobre as questões assustadoras, como é o caso do crescimento incontrolável do chamado “lixo humano”, pessoas descartáveis ou “refugadas” e, portanto, que podem ser deletadas a qualquer tempo e horário de nossas redes sociais on e off-line.

À medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de transformação contínua e hibridizante. Isso nos leva a buscar relações transitórias e fugazes e faz com que soframos as angústias inerentes a essa situação.

Estamos no início de uma modernidade líquida em que outra relação social está emergindo, fruto do derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher e de agir.

A Desintegração da Persistência da Memória (1952). Arte: Salvador Dali

No mais estamos quebrando modelos, formatos, paradigmas. Às vezes tentando substituir, sem sucesso, por outros; porém as pessoas estão se libertando de suas velhas gaiolas, antigas prisões e pesadas sentenças. E essa tendência atinge a todos nós na família, na escola, no trabalho, na comunidade.

Algumas músicas já nos falaram desse movimento e talvez não prestamos atenção na época que eram tocadas. É só lembrar Marina Lima cantando: “Pra começar, quem vai colar, os tais caquinhos, do velho mundo. Pátrias, famílias, religião e preconceitos, quebrou não tem mais jeito”; ou Guilherme Arantes: “Pra que ficar juntando os pedacinhos do amor que se acabou, nada vai colar … nada vai trazer de volta a beleza cristalina do começo e os remendos pegam mal, logo vão quebrar ….”

Os jovens, especialmente eles, e suas “relações de bolso” de ficar em ficar, nos dizem que “uma relação bem sucedida, é doce e de curta duração”. Você não precisa nessa prática se desdobrar, sair de si para manter duradoura e intacta a relação. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade”. Nada de paixão fulminante, nada de frio na barriga, coração disparado e ficar sem fôlego. A conveniência é o que conta nesse momento fugaz. Mantenha o bolso livre e preparado, porque vai um/a, e vem outro/a, é o movimento e o tráfego intenso que sustenta o prazer.

Vivemos numa condição repleta de “sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, no risco e ansiedade de se “viver junto e separado”.

Nesse mundo seus moradores detestam tudo que é durável, pra sempre, tudo que não seja fest-food. Viver juntos é uma questão de não incomodar, e suas intenções para com o outro são despretensiosas, nada de “juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam, nem mãos atadas”.

Com muita frequência não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Viver juntos, diz Bauman, é por causa de, não a fim de. Todas as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados.

Esta série sem a pretensão de analisar a vasta obra de Bauman, que tem mais de dezesseis livros somente publicados no Brasil, dentre os quais Amor Líquido; Medo Líquido; Globalização: as consequências humanas; Vida Líquida; Identidade; Modernidade Líquida e Vidas Desperdiçadas, se propõe dialogar.

Bauman, o teórico da pós-modernidade, tornou-se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade e o holocausto, e o consumismo pós-moderno. Zygmunt Bauman, tem uma produção intensa, (nasceu em Poznan, 19 de novembro de 1925), sociólogo polonês, iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado da Universidade. Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da Universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Lá conheceu o filósofo islandês Ji Caze, que influenciou sua prodigiosa produção intelectual, pela qual recebeu os prêmios Amalfi (em 1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e Adorno (em 1998, pelo conjunto de sua obra). Atualmente é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.

Boa leitura e reflexão!

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