Masculinidade: um debate iminente

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Recentemente o cantor Tiago Iorc lançou uma música intitulada “Masculinidade”. A letra traz confissões e desafios impostos a ele como homem na cultura e sociedade ocidental contemporânea. A letra levantou temas muito relevantes e pertinentes a discussões, como o consumo da pornografia, o machismo enraizado nas relações afetivas, assim como o patriarcado como estrutura de poder para marginalização de grupos já excluídos socialmente, como as mulheres, e a supremacia masculina.

Contudo, o público feminino destacou o agravo e “erros” contidos na música, pois o artista, segundo o público feminino, converte o abusador em potencial em uma suposta vítima, se esvaziando de toda e qualquer responsabilidade sobre seus atos. Dessa forma, é importante salientar que, para discorrer sobre masculinidade, é preciso discutir paralelamente sobre feminilidade e o movimento feminista.

Durante muitos séculos, a referência anatômica masculina serviu de parâmetro para referenciar as mulheres, que eram consideradas “homens invertidos”, pois no lugar do órgão genital peniano estava a vagina e os ovários seriam os testículos. Logo, a existência feminina não existia se não fosse a referência masculina. Isso foi denominado como monismo sexual, que é um só modelo de identidade e gênero sexual e vigorou até uns séculos atrás (SILVA, 2000).

Fonte: Rafael Trindade / Divulgação Tiago Iorc

A partir disso a referência da perfeição estava na anatomia masculina e em sua estrutura fálica, que era a principal característica que o diferenciava dos demais corpos. Inversamente a isso, a anatomia feminina era algo frágil e inferior, o que era considerado muitas vezes profano e funcionava como uma espécie de “bode expiatório” dos desvios de conduta dos homens. Com isso, qualquer outra forma de manifestação e relacional estava atrelada ao modelo masculino, como o orgasmo, as formas de reprodução e o sexo (SILVA, 2000).

Uma sensível mudança começou a acontecer a partir do século XIX, que apresentou outro modelo sexual, não sendo apenas o masculino como molde de referência. Ou seja, a mulher não era apenas um homem invertido, mas um corpo diferente do homem que carregava responsabilidades, deveres e papéis sociais a serem cumpridos com a solidificação da burguesia capitalista e europeia (BOTTON, 2007).

Contudo, ainda não se tinha igualdade e/ou equidade de direitos e deveres em ambos os gêneros, pois a mulher ainda estava restrita ao ambiente privado, que era o lar e seus cuidados. Toda a estrutura social delimitou rigorosamente esses papéis, que eram muito bem definidos e deveriam ser executados a todo custo (CITELI, 2001).

Fonte: Imagem por rawpixel.com no Freepik

A masculinidade herdada dos séculos anteriores funcionava mais como uma performance sobre como ser homem, que era basicamente não ser mulher e muito menos homossexual. A sua identidade social assim como seu gênero requerem deste mesmo homem uma postura de perfeição em sua conduta na sociedade. Isto é, em meio a problemas e obstáculos do cotidiano, este homem deveria mostrar o melhor de si na melhor das hipóteses, como bravura, agilidade, esperteza, entre outras características que o endeusavam (NADER; CAMINOTI, 2014).

Essa era a concepção construída e mantida pela sociedade burguesa da masculinidade e o papel do homem na sociedade. Por conseguinte, não demorou muito até a conta vir, pois com as adversidades que este homem enfrentava, foi possível concluir que não era tão alcançável assim executar esse papel, de um super-homem. Logo, se tinham dois extremos, a mulher sufocada em suas demandas domésticas e na vida privada, sendo considerada inferior e o homem calcado às responsabilidades públicas sendo visto como o superior de tudo e todos (SILVA 2006).

Contudo, percebeu-se que paralelo a luta feminista e suas reivindicações sociais assim como suas conquistas, havia gradualmente a mudança dessa concepção doentia e tóxica da burguesia sobre a visão do homem. Isto é, este novo homem contemporaneamente já aceitava suas limitações e fragilidades, bem como mudanças na postura e comportamentos, pois já não vigorava mais a conduta de um deus e sim de um ser humano corruptível (BOTTON, 2007).

Fonte: Freepik

Mesmo este novo homem admitindo ser um ser humano falho, frágil assim como a mulher e com limitações, ainda não se sabe ao certo como definir a masculinidade, uma vez que a cultura e condutas sociais se transformam ao decorrer do marco histórico. Logo, a identidade de uma masculinidade homogênea fica ainda vaga e ao mesmo tempo em aberto recebendo novos conceitos e mutações, mas sem chegar a um consenso definitivo (SILVA, 2000).

Entretanto, mesmo havendo esta mudança profunda, ainda prevalece a visão burguesa na maioria das condutas sociais masculinas, de um homem forte, intocável e superpoderoso, além de esperar da figura feminina uma postura de submissão e servidão. Isso dá margens a comportamentos de desvio de conduta, como o feminicídio, pois quando um homem não aceita certa decisão vinda de uma mulher, é capaz até mesmo de matá-la (SCHARAIBER, 2012).

Isso notadamente provém de uma cultura que cultua o falo, e não a subjetividade, e alicerçada pelo patriarcado e machismo, o produto nada mais seria que um homem com a certeza de que pode tudo, principalmente no corpo e atitudes da mulher. E muitas vezes esse homem é reforçado e amparado socialmente, desde às instituições sociais até aos seus pares comuns (SCHARAIBER, 2012).

O que fica de reflexão é: como esse homem na sociedade se vê e o que pode ser feito para enfim reafirmar sua identidade sem ser de forma doentia e/ou violenta? Sabe-se que espaços terapêuticos desempenham uma ótima função na escuta ativa e na melhora de problemas, mas até a busca por aderência do público masculino pode encontrar dificuldades, pois “falar demais” é considerado uma característica feminina e consequentemente, inferior.

Fonte: Divulgação campanha contra a violência do governo do estado.

REFERÊNCIAS

BOTTON, F. B. As masculinidades em questão: uma perspectiva de construção teórica. Revista Vernáculo, n. 19 e. 20, 2007.

CITELI, M. T. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Revista Estudos Feministas, v. 9, n.1, pp-1-15, 2001.

NADER, M. B.; CAMINOTI, J. M. Gênero e poder: a construção da masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera doméstica. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO: SABERES E PRÁTICAS CIENTÍFICAS. XVI, 2014, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: Apuh-Rio, 2014. Disponível em: http://www.encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/28/1400262820_ARQUIVO_Generoepoderaconstrucaodamasculinidadeeoexerciciodopodermasculinonaesferadomestica.pdf. Acesso em: 18 nov. 2021.

SCHRAIBER, L. B. et al. Homens, masculinidade e violência: estudo em serviços de atenção primária à saúde. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.15, n.4, pp-790-803, 2012.

SILVA, S. G. A crise da Masculinidade: Uma Crítica à Identidade de Gênero e à Literatura Masculinista. Psicologia: ciência e profissão, v.26, n.1, pp.118-131. 2006.

SILVA, S. G. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicologia: ciência e profissão, v.20, n.3, pp.8-15. 2001.

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‘Masculinidade’ por Tiago Iorc, ou será masculinidade tóxica?

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O que a música “Masculinidade” de Tiago Iorc nos diz sobre a própria visão dos homens em relação à masculinidade e a sua toxicidade?

Ninguém é estranho à masculinidade tóxica. Todos nós somos familiares, em diferentes extensões, formatos e intensidades, aos efeitos colaterais da masculinidade tóxica. Alguns de nós fomos vítimas, outros se tornaram algozes que usaram da masculinidade tóxica como uma arma para silenciar, sufocar e enforcar outras pessoas (principalmente mulheres e a comunidade LGBT+).

Mesmo não existindo uma fórmula exata do que se deve ter como figura masculina e feminina, já que tais aspectos além de sociais também são culturais, Kehl (2008) diz que existe uma série de atributos, quase que como um código de conduta que compõem esses aspectos. Apesar dos atenuantes culturais, a distinção entre figura feminina e figura masculina no que diz respeito aos papéis de cada um dos gêneros binários está presente em grande parte da sociedade.

É dessa forma que é desenvolvido o papel da figura masculina e de seus atributos. Atributos dos quais grande parte dos homens não costuma questionar. De acordo com Nigro e Baracat (2018), a superioridade masculina remonta aos tempos da Grécia Antiga. Nessa época a figura feminina era reduzida quase que ao mesmo nível de que um escravo, enquanto os homens se encontravam no outro extremo do espectro.

É no contexto dos dias atuais que entra Tiago Iorc, em Novembro de 2021. Sem aviso, o cantor retornou de um hiato que estava desde Junho de 2020 (quando lançou a música Você pra Sempre em Mim). Com a música Masculinidade, Tiago entra em uma tentativa de redimir seus atos machistas e nas palavras do próprio cantor, pedir um abraço.

Nos últimos tempos o cantor se envolveu em diversas polêmicas, uma delas sendo até mesma citada na música. Ou seja, o erro cometido é um mero efeito colateral da sua masculinidade tóxica da qual foi cultivada por ele mesmo. Por conta desses fatores, o cantor sumiu da mídia. No início da música, o cantor fala sobre isso.

Fonte: Imagem de Elias por Pixabay

Eu ‘tava numa de ficar sumido

Dinheiro, fama, tudo resolvido

Fingi que não, mas, na verdade, eu ligo

Eu me achava mó legal

Queria ser uma unanimidade

Eu quis provar a minha virilidade

Eu duvidei da minha validade

Na insanidade virtual

A partir desse ponto podemos ver algo que se torna recorrente no decorrer da música: a fuga. Seja ela a fuga de si mesmo, dos outros, e muito principalmente da culpa, o cantor debate diversos momentos em relação à fuga. Colocando-se a postos como um homem que quer ser aceito e validado, Tiago levanta a sua virilidade como um fator a ser provado.

De acordo com Vinuto et. al (2017) é impossível pensar a virilidade como uma característica espontânea dos homens, já que a mesma só existe a partir de práticas de performances que as concepções sociais alinham à virilidade, reafirmadas repetida e recorrentemente por aqueles que desejam se apresentar como “homens” em uma dada sociedade.

Uma dessas concepções sociais influencia a masculinidade desde a infância, em que os homens são incentivados a aprender e a reproduzir comportamentos agressivos, seja por meio de brincadeiras, esportes, lutas, brinquedos e jogos (BROUGÈRE, 2008).

Segundo Silva (2014) quando um garoto apanha de um “valentão” rapidamente vira motivo de piada dos colegas e amigos que presenciaram a cena. Desta forma, desde infância é influenciado, não só por adultos, mas também por outras crianças, que o homem não deve expor seus sentimentos.

Em certo trecho da música de Tiago Iorc, o cantor expressa a sua reflexão com os amigos, sobre a exposição de sentimentos, contudo na música, o cantor se diz privado dos seus sentimentos, no seguinte trecho.

Eu cuido pra não ser muito sensível

Homem não chora, homem não isso e aquilo

Aprendi a ser indestrutível

Eu não sou real

Conversando com os meus amigos

Eu entendi que não é só comigo

Calar fragilidade é castigo

Eu sou real

Fonte: Imagem de Free Photos at divvypixel.com por Pixabay

No trecho o cantor mostra uma reflexão como somos ensinados durante a infância, evitando ser frágeis, sensíveis, medrosos e a não chorar, além de perceber, que esta reflexão não acontece só com ele, que outros homens podem possuir essa reflexão.

Segundo Silva (2014), o ideal de masculinidade acaba impondo a repressão de sentimentos e emoções, podendo despertar comportamentos violentos nos homens, pois a repressão desses sentimentos e emoções e a expressão da agressão auto infligida, além que, os sentimentos e emoções fazem parte do indivíduo.

Também devemos destacar a amizade entre homens, em que a lealdade é comum, quanto às trocas de confidências pode ser vista de forma incomum ou menos frequente, devido à dinâmica construída pela sociedade e cultura anteriores. Por fim, Louro (2013) afirma que existem estudos acerca do tabu que os sentimentos representam para os homens.

A partir destes estudos, podemos quebrar este tabu e ressignificar o que esses sentimentos representam para os homens, e através desta mudança pode haver uma evolução na construção da masculinidade.

Em uma tentativa de conscientização o cantor traz o seguinte refrão:

Cuida, meu irmão

Do teu emocional

Cuida do que é real

E em alguns trechos traz […]

Cuidado com o excesso de orgulho

Cuidado com o complexo de superioridade, mas

Cuidado com desculpa pra tudo

Cuidado com viver na eterna infantilidade

Cuidado com padrões radicais

Cuidado com absurdos normais

Cuidado com olhar só pro céu

E fechar o olho pro inferno que a gente mesmo é capaz

De cara simpatizamos com o que está sendo cantando, cuidados são sim importantes, mas se pensarmos de forma reflexiva, nos deparamos com um discurso pronto e vazio, que tende a mascarar mais uma vez a questão central abordada na canção. A masculinidade tóxica, se transforma em um efeito narcísico, em que o grande outro é culpado (sociedade) o que de fato, não deixa de ter suas verdades, já que vivemos em uma sociedade estruturada pelo patriarcado. O grande problema na canção é que por trás da conscientização, não existe uma responsabilização, apenas justificativas, faz parecer que homens tem ‘’aval’’ para fazerem o que quiserem, por também serem vítimas.

É preciso entender a linha tênue entre “masculinidade dominante” e “masculinidade vitimada’’, segundo Maria Izilda Souza Matos (1996)

“Essa universalização impõe dificuldades de se trabalhar com a masculinidade, que varia de contexto para contexto, sendo, portanto, múltipla, apesar das permanências e hegemonias. Assim, sobrevêm a preocupação em desfazer noções abstratas de “homem” enquanto identidade única, a-histórica e essencialista, para pensar a masculinidade como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações, rastreando-a como múltipla, mutante e diferenciada no plano das configurações de práticas, prescrições, representações e subjetivações.’’

Quando se ignora a misoginia, a música perde o sentido, fugindo de contextos históricos e sociais, reforçando ao homem, o arquétipo de herói, fazendo dele uma figura viril “injustiçada” pelo mesmo sistema que fornece os seus privilégios. Ao olhar apenas para si, acabam esquecendo as situações vivenciadas pelas vítimas mais injustiçadas desse sistema, sendo que sequer foram citadas ou correlacionadas na música; mulheres. A música traz a ideia de figura masculina frágil e reprimida, quando na verdade sabemos os reais privilégios que os homens possuem, até mesmo na forma de se expressar, podendo agir livremente e sem julgamentos, sendo por muitas vezes seus crimes cometidos, revitalizados.

Percebemos então, quão problemático é a dimensão deste pensamento.

Eu tive medo do meu feminino

Eu me tornei um homem reprimido

Meio sem alma, meio adormecido

Um ato fálico, autodestrutivo

Trazer essa dimensão oposta de feminino e masculino, pode dar razão a um determinismo biológico, reforçando ainda mais a ideia do masculino ser o lado forte, enquanto o feminino é algo frágil. Quanto aos atos fálicos, eles podem ser tornar acertos se bem analisados, o importante e não transmitido na canção, é a responsabilidade que os homens possuem por essa “masculinidade opressora”. Para que a masculina tóxica não faça mais vítimas é necessária uma mudança, para além de apenas palavras, são necessárias ações, e uma conscientização, revisando-se atitudes, pensamentos e falas.

“O paradoxo curioso é que quando eu me aceito como eu sou, então posso mudar”.

Carl Roger, 1986

REFERÊNCIAS

BAGIOTTO, Fernando. AS MASCULINIDADES EM QUESTÃO: UMA PERSPECTIVA DE CONSTRUÇÃO TEÓRICA 2007.  Revista, vernáculo n 19,20. disponível em: file:///C:/Users/Diana/Downloads/20548-73715-1-PB.pdf acesso 25 de novembro de 2021.

BARACAT, Juliana; DOTA, F. P.; CRAVO, F.. Masculinidade: preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) – Faculdade de Ensino Superior e Formação Integral.

BROUGÈRE; Gilles. 2008. Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008

LOURO; Guacira Lopes. 2013.  Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

Os acertos e (muitos) erros de Tiago Iorc ao questionar a “Masculinidade”. Disponível em: <https://www.madsound.com.br/acertos-muitos-erros-tiago-iorc-masculinidade/>. Acesso em 25 de Nov. de 2021.

SILVA; José Remon Tavares da. 2014.  Masculinidade: Preciosa como diamante, frágil como cristal. 2017. Disponível em: <http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/nNirdcsu8KL0cs0_2019-3-8-17-21-47.pdf#page=7> .Acesso em 25 de Nov. de 2021.

Vinuto, J., Abreo, L. de O., & Gonçalves, H. S. (2017). No fio da navalha: efeitos da masculinidade e virilidade no trabalho de agentes socioeducativos. Plural, 24(1), 54-77. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2017.126635

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Cobra Kai – A omissão de uma vitória

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Em nosso mundo, o gênero e a honra masculina estão muito atrelados a competitividade em competições esportivas. Isto é muitas vezes indicativo de a versão contemporânea da Jornada do Herói, ajustada para tempos fleumáticos e sem territórios inexplorados para ir em descoberta. Em Karatê Kid, filme lançado em 1984, temos um exemplo característico desse fenômeno: Daniel, um jovem que tem dificuldade de adaptação que sofre com a violência dos pais, é salvo por um especialista em artes marciais e este o subordina a um árduo treinamento. Como desfecho, ele se fortalece fisicamente e mentalmente, ganhando o torneio local contra quem o agredia, e para valorizar suas vitórias pessoais, ganha o afeto da garota por quem se apaixonou. Contudo, de modo diferente dos mitos, competições e contos de fada, a vida tem que continuar requerendo atitudes menos heroicas dos homens, tais como pagar contas, procurar um emprego e constituir uma família.

Deste modo a série Cobra Kai presente na Netflix e Youtube, segue contando a história do filme 34 anos depois, porém com os mesmos autores, com base na história de vida de Johnny, o vilão da história é derrotado da competição. Este é o primeiro inconveniente da crônica, transparecer que o vilão não simplesmente desaparece com o fim da crônica. Ele de maneira simplória continua sendo a mesma pessoa. Tendo uma vida de adulto para levar. E essa, porventura, não é das mais agradáveis: subsistindo por meio de trabalhos informais, morando em uma casa desarrumada, tendo que enfrentar o alcoolismo, sem amizade e sem ninguém para pedir um abraço e um beijo, esse vilão não dá sinais de aprendizado com suas dificuldades, continuando sendo uma pessoa arrogante que te proporcionava popularidade na adolescência, porém agora de forma totalmente desajustada.

Fonte: encurtador.com.br/buFIT

A narrativa demonstra como os torneios esportivos tem muita autoridade sobre a masculinidade atual. Onde podemos observar como o resultado de uma competição desagregou duas vidas, aonde uma levou o troféu de vencedora e a outra levou o título de derrotada, deixando a vida adulta em segundo plano diante dos defeitos da adolescência. Isto nos mostra o mal-estar e uma vida sem sentido que muitos sendo ao longo de sua trajetória vital.

Todo o enredo da série se aplica ao reencontro entre os dois personagens, ocasionado por um acidente no qual a filha de um dos personagens estava envolvida. Metaforicamente, podemos sugestionar que a rivalidade era uma questão a ser solucionada em suas vidas, e por mais que tentassem esquecer essa rixa, alguma hora ela iria ser colocada à tona diante deles, por meio de muitas coincidências, submetendo-os a lidar com isso.

Fonte: encurtador.com.br/biGV2

Evidente que este conflito leva os personagens de volta ao caratê, o que acaba levando suas vidas de volta a realidade.  Se tradando de Johnny, ele passa a ter atitudes que quebram uma inércia de décadas, colocando força e ressignificação a uma vida que parecia perdida. Já pelo lado de Daniel, entendemos um vazio que sempre esteve consigo, embora ele seja orgulhoso. Ele tentava de maneira aflita colocar regras e doutrinas do caratê em sua vida de comerciante, o que era visto de modo excêntrico. Agora ele percebe uma oportunidade perfeita para colocá-los em prática.

Neste regresso às artes marciais, uma nova chance aparece aos personagens que é: qual os papeis eles devem desempenhar em seus estágios atuais de vida, já que não podem simplesmente competir em torneios como no passado. Para isso, o quesito fundamental é o relacionamento com as novas gerações, o que se confronta os valores enraizados e os leva a importante desenvolvimento interno.

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Retratos da masculinidade em ‘A máscara em que você vive’

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“Ele veste uma máscara, e seu rosto se molda a ela…” George Orwell

O documentário The mask you live in (A máscara em que você vive, em tradução livre), produzido em 2015 com direção de Jennifer Siebel Newsom, e apoio da The Representation Project, expõe, através de vivências em grupos de intervenção e depoimentos de especialistas estadunidenses, o padrão da hipermasculinidade e seus processos adoecedores individuais e sociais, inclusive no sustento do sexismo e da homofobia na sociedade. Logo, um compilado de fatores pregados pela cultura popular, muitas vezes desumanizados, que representam o que é ser homem.

Frases como “engole o choro”, “para de ser mulherzinha”, “você joga como uma garota”, são imputados em meninos com o propósito de doutrinar a uma conduta específica, desde a infância preza-se a autoridade e domínio em detrimento ao desenvolvimento de caráter. Dever que é adotado como forma de validar a si mesmo, ser aceito pelos grupinhos na escola e pela sociedade em geral, também como forma de buscar atenção e aprovação paterna. Essa maneira de conceituar comportamentos desviantes priva a própria criança de explorar novas maneiras de aprender, socializar, de buscar a autonomia e autorrealização, pois seu roteiro de vida já está escrito.

Fonte: encurtador.com.br/bimA6

O documentário aponta que os pilares da performance da hipermasculinidade são a exigência de habilidade atlética, sucesso econômico e conquistas sexuais. Os indivíduos que não se adequam totalmente a esse modelo são excluídos. Neste contexto, entre os adolescentes brasileiros, os meninos são os que mais sofrem e praticam bullying: ao todo, 17,5% deles relatam sofrer bullying na escola. Esse ideal é comumente exaltado pelos meios midiáticos: o badboy que é forte (fisicamente e/ou tem influência), austero, objetifica mulheres, faz uso desmedido de álcool e outras drogas. Quadro que pode ser visto fora das telas: 55% dos adolescentes do último ano do ensino fundamental experimentaram bebidas alcoólicas, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), divulgado pelo IBGE.

Além disso, também há a representação do bobalhão: apesar de ser homem adulto, ainda perpetua comportamentos da fase da adolescência, ele projeta sua hipermasculinidade de forma diferente dos outros papéis, sendo imprudente e degradando mulheres. Há o recorte de raça, onde homens de cor geralmente ficam com o papel do malfeitor, imagem limitada e violenta que reduz perspectivas de outros modos de viver entre essas crianças e adolescentes. A exposição a essas mídias, incluindo jogos que tem por objetivo dominar e destruir, pode deixar meninos (os maiores consumidores) menos sensíveis ao sofrimento alheio, mais temerosos e agressivos em relação a outros e a si.

Fonte: encurtador.com.br/cHO12

Um efeito da masculinidade tóxica é a pandemia da violência contra a mulher, advindo da rejeição de características relacionadas ao feminino, como a vulnerabilidade, gentileza, empatia, expressão emocional e verbal. Visto isso, homens criam uma máscara emocional, reprimindo sentimentos e desejos relacionais, são ensinados que pedir ajuda é um sinal de fraqueza, o que resulta na terceira causa de morte mais comum entre rapazes, o suicídio.

Com a associação do poder como inerente ao masculino, esse indivíduo mesmo sem tê-lo, encara como se tivesse o direito ao poder, normalizando a manipulação emocional e psicológica e a agressão física. Homens agressores também apresentam raiva, autoacusação destrutiva e autoagressão, apego ansioso, sintomas crônicos de trauma e de rejeição paterna, capacidade limitada de autorreflexão e incapacidade de criar relacionamentos interpessoais saudáveis (Caligor, Diamond, Yeomans e Kernberg, 2009).

“Meninos magoados se tornam homens magoados se não houver algum tipo de intervenção. ” Frase do documentário que está em concordância aos estudos de Carmen, Reiker e Mills (1984) e Walker (1984), onde relatam que a presença de comportamentos agressivos na fase adulta é originária na experiência de violência na infância, seja como vítima ou testemunha. The mask you live in propõe deixar visível esses processos invisíveis, transferir o foco do sintoma da situação para reparar mais nas relações, na transmissão transgeracional da violência, para assim, com a compreensão da sua origem e criação de apoio adequado, encerrar esse ciclo de violência.

Referencias

CRESCE o consumo de álcool entre adolescentes, segundo o IBGE. G1, Tapajós, 31 de ago, de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2016/08/cresce-o-consumo-de-alcool-entre-adolescente-segundo-o-ibge.html>. Acessos em  02  set.  2020.

NARDI, Suzana Catanio dos Santos; BENETTI, Silvia Pereira da Cruz. Violência conjugal: estudo das características das relações objetais em homens agressores. Bol. psicol,  São Paulo ,  v. 62, n. 136, p. 53-66, jun.  2012 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0006-59432012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em  02  set.  2020.

OSHIMA, Flávia Yuri. Meninos sofrem mais bullying físico, meninas moral. Época, 20 de abr, de 2017. Disponível em: <https://epoca.globo.com/educacao/noticia/2017/04/meninos-sofrem-mais-bullying-fisico-meninas-moral.html>. Acessos em  02  set.  2020.

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Racismo Estrutural no Brasil: (En)Cena entrevista o ativista Mauro Baracho

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O (En)Cena reproduziu a entrevista com o ativista e mestrando em Antropologia pela UFMG, Mauro Baracho, para o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, sobre o tema Racismo Estrutural no Brasil, que dentre outros aspectos abordou sobre as consequências do racismo e machismo na sociedade, suicídio entre grupos negros e seus estudos com homens negros.

(En)Cena – Poderia falar sobre a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil, da ideia que foi vendida, que foi feita dentro da estrutura estatal a partir de livros didáticos no passado, através de grandes esquemas ideológicos que tentam vender essa imagem  de que as coisas são iguais para todos, de que não há preconceitos, não há racismo, não há discriminação.

Mauro Baracho – Por conta das manifestações nos Estados Unidos, as pessoas se questionam por que os negros brasileiros não se revoltam como os negros americanos. Nessa questão, entra uma série de apagamentos de revoltas negras ao longo da história, mas também entra o processo histórico de pós abolição do Brasil e dos Estados Unidos. E no Brasil, optou-se em maquiar as diferenças sobre ideia de democracia racial.

Vem dessa ideia do exterior que o Brasil é essa mistura de povos, e de fato é, que o Brasil é uma mistura de africanos, de europeus, de indígenas. Mas que na prática, no dia a dia isso não significa muita coisa, porque a discriminação está na aparência, na cor de pele. E ninguém leva isso em conta na hora de contratar na vaga de emprego.

O Brasil optou em criar uma ideia de que é um país mestiço, como de fato era, ela vai ser reforçada principalmente por obras. Para que isso funcione precisa de intelectuais pensando, produzindo obras para criar esse aspecto positivo, principalmente na obra de Gilberto Freire em “Casa-grande e senzala”, que eram muito fortes as ideias do racismo científico onde os mestiços eram considerados como raça degenerada, era a pior raça. Os brancos, os amarelos, os negros e depois os mestiços. Então, essa obra vem para dar um aspecto positivo na identidade mestiça do Brasil. Vem consolidar essa ideia de democracia racial no país, dizer que a escravidão não foi tão cruel, que era branda porque os senhores de engenho e as escravas se relacionam e em que circunstâncias aconteciam essas relações. Na abertura do livro, descreve que nasce uma nova nação, que é a mistura do branco, negro e indígena. Que o racismo não é institucionalizado, no sentido de não ter lei de segregação, mas sabemos que a segregação se deu por costume; nos Estados Unidos se deu por lei e aqui no Brasil se deu por costume. Isso foi um artifício para não se discutir racismo no Brasil, para dizer tem gente misturada, existe branco,  negro e não precisa se falar em racismo.

A ditadura militar perseguiu vários blacks no Rio de Janeiro, por medo do pessoal se inspirar nos movimentos norte americanos, porque não queriam transparecer que existiam diferenças raciais no Brasil. O filme do Simonal mostra isso, quando ele é chamado pelos militares, e interpelam ele por uma letra, afirmando que não existe racismo no Brasil e pregar a ideia de que somos todos uma mistura.

(En)Cena – O antropólogo Munanga, fala em uma das suas obras que o racismo no Brasil, muito mais que qualquer parte no mundo, se dá numa lógica de crime perfeito. Porque dificilmente a gente conhece por vias institucionais, pela grande imprensa, quem são as vítimas, o rosto, a história de fato, e muito menos quem são os algozes. Porque isso cria a falsa sensação de que os crimes de racismo não ocorrem, porque eles também não são noticiados na mesma proporção.

Mauro Baracho – Eles até são noticiados, a gente vê muitos crimes de injúria. Mas é tudo pensado para não punir os agressores, principalmente na separação do que é injúria racial e racismo. Porque racismo é quando ofende um povo, e a injúria é uma questão individual […]. Ao pensarmos como povo, e se uma pessoa me ofende  me faz uma injúria racial, o que impede dela cometer o mesmo crime com outra pessoa negra? Não é comigo, porque eu não tenho uma característica da cor da pele que ela vai fazer isso, ela pode fazer isso com qualquer outra pessoa. É um crime perfeito porque nesse sentido de quem comete, além de sair impune, quem denuncia sai como chato, o extremista. E ao longo da história, percebemos que a galera vai criando mecanismos para abafar essas injúrias raciais. Eu lembro da minha mãe, que é preta, ao chegar e contar para ela sobre episódios de racismo, ela dizer que isso tudo era cisma.

O jornalista Carlos Medeiros fala dessa questão da cisma, que as pessoas falam que racismo é cisma, ele fala que é ‘complexo de cor’ que é a ideia de que os pretos já são cismados, veem racismo em tudo. Então, essa questão de crime perfeito, a pessoa que sofre o racismo é vista como chata, extremista e ‘mimizenta’, e a pessoa branca, como liberdade de expressão, ou são brincadeiras.

(En)Cena – Vejo muito nas universidade um movimento crescente de descolonização das subjetividades, como eles chamam, principalmente os filósofos, sociólogos, e alguns psicólogos  no sentido de fazer com que a gente repense a nossa linguagem. Que a nossa linguagem foi construída também em cima de uma lógica bastante excludente, de uma lógica de separação, de uma dualidade. Um exemplo, a casa onde mora o presidente dos Estados Unidos é a casa branca, nos contos de fadas vemos a Branca de Neve. Então, tudo que está relacionado a brancura, a branquitude coloca-se como aspectos positivos e tudo que está relacionado a negritude, normalmente eram associados a aspectos negativos.

Percebo que muitas pessoas se incomodam quando essas questões são levantadas, e o cuidado que deveríamos ter, eu imagino, é justamente nessa dimensão mais elementar que é na linguagem. Por isso, que talvez as piadas racistas, de fato, elas têm que ser confrontadas, mas tem um grupo crescente  de pessoas que atacam o politicamente correto, elas querem ter o direito de rirem das outras pelas suas particularidades, inclusive são pessoas que consideram que o mundo está mais chato porque elas não conseguem, por exemplo fazer uma piada com um negro, um homossexual, um judeu. Como você vê isso? Pois, o tempo inteiro eu como professor escuto isso, de vez em quando, “eu não posso mais me expressar agora”. É como se a liberdade de pensamento e de fala estivesse acima de qualquer coisa, inclusive da integridade do outro, parece que há uma distorção.

Mauro Baracho – Sim. Tem até um documentário chamado ‘O riso do outro’, que fala exatamente disso. As pessoas falam que não podem se expressar, e quando você aponta algumas piadas racistas, elas se sentem cerceadas, então ela quer ter o direito de ser racista, direito de ser homofóbica, direito de ser machista.

Os Trapalhões, cresci nos anos 90 vendo o Didi fazer piadas racistas com o Mussum, e eu ia para a escola e os meninos reproduziam as piadas em mim e em outros meninos negros, e era brincadeira, era piada. E eu não gostava daquilo, e  duvido que uma pessoa preta vai curtir esse tipo de piada. E se a gente reclamasse, seria o cara excluído, o cara chato; então, isso tem uma questão de socialização.

Quando a gente começa a falar que as coisas não são legais, as piadas racistas, homofóbicas, a galera começa a se sentir ofendida por não poder fazer mais.

Ouvi um comentário que estão acabando com a alegria do brasileiro, aí a gente vê que a alegria do brasileiro é diminuir mesmo, diminuir gente preta, diminuir pessoas gays, mulheres. Porque para eles, o humor é isso, é fazer piada com pessoas que já passam por um processo muito difícil por serem gays, por serem negras, por serem mulheres.

Tiveram pessoas defendendo as manifestações ‘charlotte’s view’ nos Estados Unidos em 2015, que defendia o ato como liberdade de expressão. Eles partem da ideia de que liberdade de expressão é falar o que quiser doa a quem doer, e o humor tem essa ideia deliberal também, que não pode ter tabu ou barreiras. E os meios que defendem isso são sempre os mesmos, Danilo Gentili, essa galera que nunca teve a menor graça mas só chegou onde chegou porque o Brasil é um país muito racista, muito homofóbico, muito machista e sádico. Que sente prazer em ver pessoas como Danilo Gentili, Léo Lins, Sílvio Santos humilhando pessoas. Sílvio Santos levava travestis no seu programa para fazer piadas da cara delas, em pleno domingo a noite no horário nobre. E essas pessoas só são permitidas a espaço na mídia se forem caricaturas, como Vera Verão, o Jorge Lafond. Porém, só era aceitável quando era pra fazer rir. Relação de poder é isso, você se afirma, diminuindo o outro.

(En)Cena – Sobre a questão da apropriação cultural. Acaba surgindo na imprensa alguns grupos que aderem a artigos que são da cultura negra, começam a ser colocados como moda, ou um estilo, tirando inclusive, as características iniciais que tem até uma conotação política … Fazem uma mistura geral para relativizar a ação. Achei interessante o seu post sobre o alisamento de cabelos.

Mauro Baracho – As pessoas usam isso quando a gente fala de apropriação cultural, primeiro que começam a achar que apropriação cultural é quem pode ou não pode usar turbante, quem pode ou não pude usar tranças. Porém, estamos discutindo processos históricos, de culturas que foram marginalizadas, dita como atrasadas, que tiveram seus processos culturais marginalizados no ocidente e hoje elas são legais desde que sejam em corpos brancos. Quando apareceram três atrizes brancas, Mariana Ximenes, na capa de uma revista usando turbantes. Então quando uma pessoa negra usa um turbante na rua é apedrejada, chamada de macumbeira, mas quando uma pessoa branca usa um turbante é a coisa mais descolada do mundo. As pessoas vem fazer essa falsa simetria de que se for por esse lado, pessoas pretas se apropriam da cultura branca quando alisam o cabelo, já partem para uma premissa totalmente errada, o cabelo é um traço genético.

E a questão das tranças é um elemento cultural no sentido que ela já foi usada para transmitir significados além do tempo, dizem que na época de escravidão as tranças eram usadas para desenhar rotas de fugas, e estamos falando de penteados e não de textura de cabelo. E as pessoas pretas não alisam os cabelos para apropriação da cultura branca, mas para serem aceitas, pois crescem tendo vários padrões de nariz fino, cabelo liso. Ninguém que alisa o cabelo toma o lugar de uma pessoa branca.

(En)Cena – Você que está dentro da universidade, eu percebo que dentro do cientificismo, que é aquela ciência mais dura, dentro daquelas ideias de pessoas que acreditam que a ciência é a única forma de explicar os fenômenos, há uma ciência patriarcal, de origem branca, muito influenciada pela língua inglesa, bastante liberal do ponto de vista econômico. Essa ciência tem uma tendência a se colocar como uma espécie de universalizante, no sentido de desconsiderar os outros saberes. A gente vê isso muito claramente no Brasil quando os saberes populares relacionados a medicina e a linguística, a dinâmica dos cuidados dos povos indígenas e povos negros foram totalmente excluídas dos debates públicos e também não foram considerados como ciência no sentido mais amplo. E isso eu ainda percebo no meio acadêmico, não sei se você também percebe isso no meio acadêmico, uma supervalorização do que seria o científico, mas sem entender de forma mais profunda de onde vem esse científico; se esse científico inclui esses saberes tradicionais ou se ele exclui os saberes tradicionais. Os estudos do francês Edgar Morin, apontam que não é mais possível explicar o ser humano a partir de um pressuposto, de um paradigma, por exemplo, o paradigma científico positivista; ou a gente se abre para outras formas de interpretar esse sujeito e entender esse sujeito ou a gente está fadado ao fracasso.

Mauro Baracho – Se tem uma falsa ideia de que a ciência é neutra, e a academia também não é. Ainda se tem essa resistência, principalmente pessoas pretas e indígenas quererem produzir outras narrativas. Eles gostam de pesquisar o negro, os indígenas, mas quando entra uma pesquisa de branquitude, as pessoas ficam receosas. A minha pesquisa é sobre masculinidade negra, pesquiso o primeiro grupo de masculinidade negra de Belo Horizonte, onde homens pretos se reúnem para discutir masculinidade negra, as questões que atravessam os homens pretos, porque até então a gente só via discussão de meninas pretas. E em Belo horizonte, já deve ter em torno de um ano e meio que eu pesquiso sobre o assunto, e fui muito guiado a pesquisar sobre isso por conta das minhas leituras de autoras negras. Quando eu entrei no mestrado, o grupo estava surgindo com dois homens pretos que foram em um encontro de masculinidade que só tinham homens brancos […]. O interessante foi que depois de um tempo, começaram a levar os pais, os filhos para debaterem.

(En)Cena – Você chama atenção para a construção de quilombos por parte da população negra. Quilombos que podem voltar a replicar estruturas hierárquicas. Do que você estava falando exatamente?

Mauro Baracho – Está na moda falar em construção de espaços, mas não se pode construir um espaço exclusivo para gente preta sem considerar uma série de coisas. Enquanto estiver replicando lá dentro estruturas hierárquicas, no sentido de por ter um título acadêmico, uma visibilidade maior, você tem mais prestígio que outras pessoas pretas. E isso é um cuidado que a gente deve ter nessas estruturas e várias áreas da nossa vida.

A gente tem que considerar uma série de coisas, por exemplo questões de autoestima, saúde mental. Eu criar um quilombo, um grupo de pessoas pretas para reunirem, ou criar uma roda de conversa para reproduzir hierarquias no sentido de que eu posso falar porque tenho um título acadêmico, como se eu tivesse mais prestígio, sem fazer violência psicológica, afinal a maior parte dos suicídios é em população negra.

(En)Cena –  Você falou de uma questão que ocorre no Brasil que é a quantidade de ideação suicida seguida de suicídio da população negra, principalmente os jovens, algumas pesquisas mostram que são de 2 a 3 vezes maior a ocorrência nessa população. Me fez lembrar também de alguns dados que são levantados, de vez em quando, sobre a solidão entre as mulheres negras, principalmente entre as mulheres a partir da meia idade. Esse é um fenômeno que aliado ao próprio fenômeno do racismo estrutural, acaba ceifando vidas, pelo menos do ponto de vista psicológico, afetando muito a saúde mental dessas mulheres. Você conhece algum projeto em Belo Horizonte, ou no Brasil, ou algum autor que trabalha essa questão da solidão entre a população negra em especial as mulheres ou a população em geral?

Mauro Baracho – Sim. Essa questão da solidão é pautada pelas mulheres pretas na década de 80, Laura Moutinho, Sueli Carneiro, Claudete Alves, Ana Cláudia Pacheco; são todas autoras que produziram sobre a solidão da mulher negra. Que não se dá somente na área afetiva ou sexual, a solidão no sentido também mais geral. A medida que tem aquela pirâmide que coloca a mulher preta como a base da pirâmide, e outra, não acredito que em quilombos não se discuta a solidão da mulher preta. De fato, existiu a solidão da população negra no ocidente como eles gostam de colocar, e a solidão da mulher preta implica em todo o estado da pirâmide. E é um assunto que todos nós deveríamos refletir, e não deve ficar só restrito nas meninas pretas debatendo as mulheres pretas. Então, quando eu comecei a falar sobre isso, a galera curtiu porque tinham poucos homens falando sobre isso, tocando nesse assunto. De fato, isso não é um assunto fácil de ser falado, é um constrangimento, isso toca em algumas coisas, vai nas feridas. No livro da Claudete Alves, vai discutir essa questão de os homens negros que ascendem porque casaram com mulheres brancas. Ela quem traz essa implicância com os homens negros. Então, a solidão da mulher negra é um mix de machismo e racismo.

(En)Cena –  Você fez um post que me chamou atenção falando sobre as pessoas que são vítimas de racismo, como elas paralisam diante do racismo. Como isso ocorre? Já que você relatou que já foi vítima de racismo.

Mauro Baracho – Eu fiz aquela reflexão baseada em um livro. A gente estuda o racismo mas não espera por ele. Essa paralisia se dá por conta do encontro que temos entre a ideia de nós mesmos com a percepção das pessoas em relação a nós, você se vê objetificado e isso nos paralisa.

(En)Cena – Qual sua opinião pessoal sobre o futuro do nosso país em relação a um debate como esse, quais são suas perspectivas? Você acha que a gente está trilhando um caminho onde a gente vai amplificar essas vozes, muitas pessoas ficaram decepcionadas com os rumos políticos que tomamos nos últimos quatro ou cinco anos com uma virada para a extrema direita. Onde conquistas sociais que foram alcançadas nos últimos 20 anos foram postas em xeque, foram desafiadas, e a gente vê muitas pessoas desanimadas, são militantes e outros que veem esse cenário todo como um combustível para continuarem mais militantes ainda.

Mauro Baracho – Eu também estou um pouco pessimista, mas também não é algo que me faz desistir. Porque essa ascensão da extrema direita é uma tendência mundial, também não tenho perspectivas boas no Brasil, de que as coisas vão melhorar. Acho que tendem a se manterem. Independente de quem seja, vai continuar difícil. Talvez a gente ache que um governo mais progressista  ajuda para que caminhem melhor. O genocídio da população negra se intensificou nos 13 anos de PT, enquanto não se colocar o debate racial como centro do racismo e da escravidão as coisas vão continuar, não vão mudar muito. Então, para gente vai continuar difícil.

(En)Cena –  Agradecemos por sua participação.

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O mito do Sexo segundo Márcia Tiburi

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Em uma participação no programa Café Filosófico, Márcia Tiburi [1] nos traz uma excelente reflexão sobre a condição de ser mulher e a construção de ser feminina, bem como esses fatores se relacionam com o sexo e o poder. O mito é uma narrativa explicativa criada para esclarecer algo que não é explicado pela lógica. O interessante é que mesmo havendo uma elucidação racional para os fatos, o mito não foi eliminado, ele continua tendo sua função na subjetividade humana.

cafefilosofico

O sexo, no sentido do feminino e do masculino, também é um mito, são papeis criados para definir aspectos do homem e da mulher que não necessariamente fazem parte daquilo que eles são naturalmente, mas que ajudam na definição da identidade do ser. Considerando que historicamente os homens implantaram seu território de domínio na esfera pública e a mulher, talvez por sua condição reprodutiva, não teve tanta possibilidade de ocupar com tanta veemência o mesmo espaço, o papel do masculino acabou se fixando fortemente como aquele que detém o poder fora da casa, enquanto que para elas foi bastante limitado o papel de cuidar das crias e garantir o equilíbrio do lar.

Esses papeis delimitados por uma sociedade onde quem faz as leis são os homens, obviamente favorece quem cria as regras e não pode deixar de conter traços patriarcais. A essa criação sobre o como deve ser ou comportar uma mulher e um homem, a filosofia coloca na condição de mito.

Márcia Tiburi comenta sobre a questão da força e do poder atribuídos à imagem masculina, dizendo que “o poder” (enquanto substantivo) jamais será feminino, visto que é forte e a força é masculina (obviamente uma referência à aspectos físicos biológicos e não a aspectos emocionais subjetivos). Ela também fala sobre como “a delicadeza” é atribuída à imagem feminina, tanto que se um homem é um pouco mais delicado atribuímos a ele certa feminilidade.

O discurso patriarcal sobre o feminino está em todos os lugares, nem há como fazer uma genealogia que nos leve a origem do patriarcado, toda a nossa história, linguagem e racionalidade é patriarcal, não há como escapar disso, mas esse patriarcado precisa ser reconstruído a partir de uma crítica consistente a essa construção. Muitos autores defendem que o feminino é uma essência, uma natureza que precede a construções sociais e históricas que precedem o patriarcado. Mas, o feminino é mais amplo que a natureza, é também uma construção opositora ao paradigma do que é masculino, e a construção dos gêneros foi feita tendo o masculino como referência.

Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg
Márcia Tiburi. Fonte: http://zip.net/bmtFDg

Entretanto, desde sempre as mulheres tiveram os mesmos desejos e potencialidades dos homens, mas a elas foi limitado o poder exercê-las e, apesar do mito do sexo e da construção paternalista das ideias de masculino e feminino, o homem e a mulher estão condicionados ao corpo em que nasceram, e no sentido biológico, o corpo nos é inexorável, somos aquilo a nossa condição, temos corpo de homem ou de mulher, hormônios de homem ou de mulher, a força física e a forma de homem ou de mulher e uma série de aspectos que também podem ser flexibilizados de acordo com a quantidade de hormônio que cada um tem, mas que não podem ser negados como características. Quando a anatomia não combina com o desejo iremos experimentar o conflito, mesmo que este possa ser superado. A pergunta a se fazer é como experimentamos o nosso corpo sendo este inexorável?

O sexo, portanto, não pode ser o sentido, mas sim a relação com o outro e isso está no sentido político como relação com o poder. A relação com o sexo pode ser construtiva ou destrutiva, produtiva ou não. Uma vida justa, boa e descente deve ser a busca, e o sexo apenas faz parte disso, mas não pode ser o foco do nosso sentido. O sentido está no todo, na complexidade e na totalidade do ser. Assim, fica lançada a reflexão: Qual a função do feminino para a própria mulher, não apenas para a sociedade?

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.youtube.com/watch?v=6JNnFRf87DI

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