Orgulho, Preconceito e Zumbis: o Humano Massificado no cenário da Covid-19

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“É uma verdade universalmente aceita que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita de mais cérebros.”

Jane Austen (1775-1817) é, até os tempos atuais, um dos maiores nomes da literatura romancista, seus livros inspiraram gerações, além de grandes obras cinematográficas que foram sucessos de bilheterias.

Aqueles que se interessam pelo tema, com certeza já ouviram falar de uma de suas obras literárias de maior sucesso, Orgulho e Preconceito que traz vida aos personagens icônicos: Sr. Darcy, Srtas. Bennet, Sr. Bingley e Sr. Wickham, que são envolvidos em um drama sobre o casamento da bela Jane Bennet e Sr. Bingley, além da relação intensa entre Sr. Darcy e Sra. Elizabeth Bennet.

Na releitura da obra, chamada de Orgulho, Preconceito e Zumbis, o autor Seth Grahame-Smith incluiu um elemento não peculiar no enredo principal. Nas pacatas terras de Meryton e em todas as extensões do globo, há uma crescente invasão de Zumbis que atormenta a vida de todos.

Com a inclusão dos zumbis, Seth acrescentou habilidades particulares nos personagens, diluindo, de certa forma, a essência criada por Jane Austen, mas que se harmonizaram com a proposta do autor.

Fonte: Divulgação Netflix

Assim como na leitura original, a trama principal está diretamente relacionada com a família Bennet, onde o Sr. Bennet e a Sra. Bennet estão preocupados com o futuro matrimonial de suas 05 (cinco) filhas – Jane, Elizabeth, Mary, Kitty e Lydia – sendo que as esperanças da Sra. Bennet com sua filha Elizabeth são diminutas ante suas atitudes imponentes e autoritárias.

Já no início da obra percebemos uma química entre os personagens de Elizabeth e Sr. Darcy, assim como Jane e Sr. Bingley, porém, a vigorosidade dos ideais orgulhosos e preconceituosos do Sr. Darcy impedem, inicialmente, aquilo que poderia ser uma bela história de amor.

Apesar de ser uma história romântica, a obra apresenta embates psicológicos interessantes para um estudo de caso. 

O Sr. Wickham, um soldado e antigo ‘amigo’ de Sr. Darcy, mostra-se um homem de ideais convictos e antagônicos aos de Darcy o que atrai, momentaneamente, a atenção de Elizabeth e Jane.

Fonte: Divulgação Netflix

Mas Sr. Wickham é um tipo ‘superior’ de zumbi, que possui consciência, autocontrole e boa feição, que não se alimenta de cérebros humanos, somente de porcos e outros animais, na tentativa de manter a sanidade. Wickham é líder de uma seita de zumbis ‘evangélicos’ que nutrem uma visão zumbificada do cristianismo.

Ponto interessante desta história que pode ser destacado, dentro da abordagem junguiana é o comparativo entre a epidemia zumbi com a do humano massificado apresentado por Jung (1991). Nas palavras de Contrera e Torres (2018), as semelhanças são identificáveis pelas seguintes características:

O andar constante do zumbi e sua eterna busca pela devoração dos cérebros [em busca de consciência] não deixa de ser uma metáfora perfeita para esse modo de vida pautado pelo consumo nas sociedades capitalistas: ansiedade e compulsão, criadas para mover os lucros advindos do consumo, para em seguida serem tratadas com medicamentos que as controlam, promovendo assim mais consumo. No momento em que esse ciclo perde qualquer referência de seus limites, o consumo transforma-se no autoconsumo. (CONTRERA e TORRES, 2018, p. 13).

Ainda sobre o humano massificado, Jung nos presenteia com a seguinte conclusão:

Quando a consciência subjetiva prefere as ideias e opiniões da consciência coletiva e se identifica com elas, os conteúdos do inconsciente coletivo são reprimidos. A repressão tem consequências típicas: a carga energética dos conteúdos se adiciona, até certo ponto, à carga do fator repressivo cuja importância efetiva aumenta em consequência disto. 

Quanto mais o nível da carga energética se eleva, tanto mais a atitude repressiva assume um caráter fanático e, por conseguinte, tanto mais se aproxima da conversão em seu oposto, isto é, da chamada enantiodromia. 

Quanto maior for a carga da consciência coletiva, tanto mais o Eu perde sua consciência prática. É, por assim dizer, sugado pelas opiniões e tendências da consciência coletiva, e o resultado disto é o humano massificado, a eterna vítima de qualquer “ismo”. 

O Eu só conserva sua independência se não se identificar com um dos opostos, mas conseguir manter o meio-termo entre eles. Isto só se torna possível, se ele permanece consciente dos dois lados ao mesmo tempo. [g.n]

Tanto na obra literária quanto cinematográfica, percebe-se uma ausência do Self por parte dos zumbis após determinado período da infecção. Outro ponto que se destaca é o próprio Wickham, posto que ele se utiliza deste pensamento coletivo massificado para manipular as hordas de zumbis.

Delimitando o tema para questões nacionais, principalmente diante do cenário pandêmico, podemos observar semelhanças com a atual conjuntura brasileira. Baixa escolaridade somada ao amplo acesso às redes sociais, acrescida de uma pitada sutil de Fake News, criam-se os zumbis brasileiros, com vários Wickham utilizando-os como massa de manobra de ideais e política.

Fonte: Divulgação Netflix

Sobre o tema, Vedovati e Torres (2020), já fizeram um paralelo com o tema zumbi e Jung, observando a grande disseminação de notícias falsas que possuem o condão de manipular a consciência coletiva, trazendo à baila uma reflexão também sobre o passado, posto que manipular os zumbis, não é uma prática contemporânea:

O nível de manipulação das massas parece se dar atualmente em um grau jamais visto. Não somente Jung (2012) previu tal fenômeno como Harari (2016) discorre que o futuro será marcado por uma massa inútil comandada pelos algoritmos. Este fenômeno não é novo, se lançarmos o olhar ao passado, de acordo com Mackay (2002), encontraremos tendências de manipulação das massas pelo clero e pelos aristocratas que conseguiam convencer e prescrever, em certa medida, algumas percepções para as cidades e até países. O autor exemplifica com a caçada às bruxas na Idade Média. Porém, não há na história nenhum outro momento em que houve tanta informação apreendida pelos algoritmos, abrindo oportunidades ímpares de manipulação da massa em escala global; e também, nunca houve uma tecnologia que disseminasse conteúdos com tanta amplitude e rapidez como a internet.

Isto posto, apesar das belas cartas escritas pelo nobre Sr. Darcy para a bela Elizabeth, além do grandioso final com batalhas sangrentas e beijos voluptuosos, Orgulho Preconceito e Zumbi nos traz uma lição pouco observada sobre o ponto crucial e modificativo da obra: os zumbis.

Vez que, em um mundo real podem ser consideradas pessoas que negam o senso crítico e aceita uma verdade confortável que lhe é oferecida, sem grandes debates cognitivos, criando assim, o zumbi, digo, humano massificado pela consciência coletiva!

REFERÊNCIAS

BYINGTON, Carlos Amadeu B.. O arquétipo da vida e da morte. Um estudo da Psicologia Simbólica. Junguiana [online]. 2019, vol.37, n.1, pp. 175-200. ISSN 0103-0825. Disponível em < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252019000100008> acesso em out 2021.

CONTRERA, M. S.; TORRES, L. O zumbi no imaginário mediático: Zumbi e Pulsão de Morte na Sociedade Mediática. E-Compós, v. 22, n. 1, 21 dez. 2018.

JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, Edit. Vozes, 3º ed, 1991.

VEDOVATI, Alethéia Skowronski; TORRES, Leonardo. NECROPOLÍTICA, ZUMBIS, COVID-19 E JUNG. Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa. 2020. Disponível em <https://www.ijep.com.br/artigos/show/necropolitica-zumbis-covid-19-e-jung> acesso em out 2021.

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Sobre participação popular: uma questão de perspectiva

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VALLA, Victor Vincent. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(Sup. 2): 7-18, 1998.

Victor Vincent Valla nasceu nos Estados Unidos, em 1937 e veio para o Brasil em 1964, após o Golpe Militar de governo. Veio praticar a missão da Igreja Católica e envolveu-se em movimentos sociais o que modificou a sua concepção de participação popular. Passou a conceber a educação, inclusive a religiosa, como reprodutora de uma prática bancária, como definida por Paulo Freire, e buscou romper com tal concepção.

Valla trata da participação popular no Brasil a partir do surgimento das políticas públicas nos anos 30 e 40, ou seja, a partir do momento em que a verba pública passa a ser questão nacional, no momento em que o Estado se torna provedor da nação. Os impostos geram a verba pública que se destina para dois tipos de gastos: os de consumo coletivo e os de infra-estrutura industrial.

A discussão gerada em torno do destino dessa verba pública é perpassada pelo modo de produção da nação, no caso o capitalista, o qual define prioridades para uma minoria portadora da maior parte do capital e dos bens de produção do país.

Valla discorre acerca dos movimentos em busca de um processo democrático para o destino da verba pública. Nesses movimentos é que se encontra a discussão que o autor faz sobre participação popular.

A discussão acerca da participação popular, no Brasil, para o autor, de forma geral apresenta um tom vago tendo em vista a tentativa de normatização dessa participação em procedimentos burocráticos.

Para compreender melhor a expressão “participação popular” e o que nela há de riscos de captura ideológica, Valla aponta três sentidos de participação popular: a modernização, a integração dos grupos “marginalizados” e o mutirão além do seguinte significado: “as múltiplas ações que diferentes forças sociais desenvolvem para influenciar a formulação, execução, fiscalização e avaliação das políticas públicas e/ou serviços básicos na área social (saúde, educação, habitação, transporte, saneamento básico etc.)”. (p.9).

A modernização abarca um sentido de superação de atrasos tecnológicos e culturais de uma sociedade que, na realidade brasileira, não quer dizer uma maior participação popular em números e nem a melhoria de qualidade de vida da maioria da população. Na prática a modernização, permite aos cidadãos participarem mais do mercado pelo consumo, mas a pobreza e as dificuldades sócio-econômicas permanecem compondo o cotidiano da maioria.

A noção de integração de grupos marginais reflete uma ideologia excludente e paternalista de um grupo de pessoas que quer, por missão solidariosa, levar a sociedade para aqueles que supostamente estão fora dela por serem incapazes de entrarem; essa noção está na base de muitas políticas públicas como programas paliativos que não garantem de fato a igual participação de todos na administração e gozo da verba pública.

O mutirão trata-se de um convite à população para fazer o que as políticas públicas não o conseguem com a boa ou má administração da verba pública. Sendo assim, o mutirão é uma forma de fazer a população participar de questões comunitárias, com um discurso, todavia, de culpabilização dessa população.

Comparando a definição de participação popular e seus sentidos, Valla aponta a diferença entre a participação popular de fato e seus sentidos, pois a primeira trata de um posicionamento político de entidades frente aos órgãos de Estado responsáveis pelas políticas públicas e os sentidos acima apontados refletem práticas de alienação e de controle social no sentido definido por Foucault.

No caso da saúde, a participação popular assumiu papel importante a partir da 8º Conferência Nacional de Saúde e de todo arcabouço legislativo criado a partir de então. Apesar desses avanços, Valla aponta que o setor de saúde pública está em crise.

Um dos reflexos do mau funcionamento dos serviços de saúde está no que o autor chama de culpabilização das vítimas, processo pelo qual o saber e práticas populares são desconsiderados na administração e criação das políticas públicas.

Nesse contexto, Valla aponta a necessidade de se reinvindicar pelo bom uso da verba pública questionando, porém, a eficácia dessa pressão quando não aliada a outros tipos de ações populares.

Nesses contextos de pressões e lutas em prol de um posicionamento governamental de preocupação com o coletivo de sua nação, o autor discute o papel dos mediadores existentes na discussão das camadas mais pobres e os propositores das políticas públicas.

Valla aponta que há uma crise de interpretação dos mediadores frente às classes populares. Questiona se a

função do mediador seria facilitar a mensagem de decodificação das políticas públicas para as camadas mais pobres ou então seria de potencializar a construção de outro conhecimento que leve em consideração os diferentes conhecimentos existentes na relação Estado e sociedade.

Caso o mediador, na análise que faz das ações e falas das camadas populares, use da categoria “carência” para tal análise, ele desconsiderará o conhecimento popular e tentará decodificar as políticas verticais de Estado para os membros da comunidade.

Muitos profissionais da saúde possuem a idéia de que a população não tem iniciativa para organização social e a classificam como apática ou alienada. Todavia, esquece-se de que os projetos apresentados para a discussão em conselhos ou conferências ou debates com a população são construídos anteriormente a esse debate. Além disso, é possível que a população pense que o profissional seja submisso aos propósitos da política e assim não dê crédito a esse profissional, decorrendo daí uma impressão de falta de interesse.

Essas são apenas algumas das facetas apresentadas por Valla para demonstrar a complexidade que há na relação entre profissional público, de saúde no caso, e a população. Nessa complexidade, os profissionais tendem a tomarem uma postura de tutores nas relações com as camadas populares da sociedade.

Por fim, o autor contextualiza que na atual situação brasileira o mutirão de apoio mútuo e os movimentos populares como o Movimento dos Sem Terras (MST) representam as principais formas de expressão de participação popular ou de ações que dão sentido a essa participação, ficando claro que não há apatia nas classes populares. A questão que fica no final do artigo é: qual o teor político das ações de participação popular que andamos a engendrar; quais as estratégias que usamos para agenciar coletivos?

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