O Alzheimer, uma avó e um neto

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Uma história de amor e gratidão que envolve os mais fortes sentimentos, um livro diferente e que protagoniza a história entre um neto e sua avó, tudo isso não seria novidade, exceto, quando envolve como causa principal o Alzheimer, uma doença em que, as causas e curas, são de pouco conhecimento pela classe médica científica. Toda essa história de amor incondicional, acabou sendo contada em um livro: Quem, eu? Uma avó. Um neto. Uma lição de vida, Editora Belas Letras, 240 páginas.

O (En)Cena entrevistou o autor, um dos protagonistas, o neto Fernando Aguzolli Peres, 22 anos, nascido e criado em Porto Alegre. Há seis anos, sua avó, que lhe dedicou boa parte da vida, foi diagnosticada com uma doença muito peculiar, o Alzheimer. Foi então que ele decidiu abandonar todos os projetos e dedicar tempo possibilitando a uma melhor qualidade de vida para a avó, Nilva Aguzzoli, apelidada carinhosamente de, “Nonna Nilva”.

A história, começa com o autor revelando a vida difícil enfrentada por sua avó, filha de imigrantes Italianos e que nasceu em fevereiro de 1934 em Caxias do Sul-RS. Diante de dificuldades financeiras, e com a separação dos pais, dona Nilva, teve que abandonar a escola e começar a trabalhar logo aos 13 anos de idade.

Quem pensa que o conteúdo é somente tristeza, vai se surpreender com histórias humorísticas vividas e contadas por “Nonna Nilva”. Como o principal sintoma do Alzheimer é o esquecimento, vovó Nilva se envolvia em situações divertidas que certamente podem arrancar risos dos leitores, uma estratégia do autor que, durante a fase doentia da avó, acreditou e usou de risos e gargalhadas como filosofia e terapia de estratégia para retardar o avanço do Alzheimer. “Tem duas formas, rir dos outros ou rir com os outros, eu escolhi rir com minha avó”, lembra o neto.

O livro tem a intenção de alertar e informar sobre o diagnóstico e os cuidados para com esses idosos que sofrem de Alzheimer. “Estamos vivendo mais, mas ao passo que envelhecemos voltamos a ser como crianças e precisamos de cuidados”, alerta o autor, lembrando ainda que depois do diagnóstico, os estudos e as orientações apontavam para o abandono do idoso doente. “Não abandonei a minha vida, apenas inseri minha avó nela”, diz.

Dona Nilva, faleceu no ano de 2013, e deixou como legado toda essa história emocionante de dedicação e solidariedade e que pode ser conferida ainda, com a entrevista exclusiva concedida pelo autor para o En(Cena).

En(Cena) – Você é jovem e demonstra preocupação com uma doença que atinge cada vez mais a população brasileira. Diferente da maioria dos jovens, acabou se dedicando ao bem estar de sua avó, por que? 

Fernando Aguzolli – Por gratidão! Não sei quanto aos outros jovens, e acho que cada um tem a sua história, mas eu tive uma avó maravilhosa, coruja e muito dedicada. Ela também deixou um momento importante de sua vida para se tornar vó, eu viria a retribuir esse gesto alguns anos depois, cuidando dela em um momento delicado, quando vivíamos o Alzheimer. Na nossa família a geração do meio – meus pais – sempre incentivaram essa aproximação entre neto e avó, proporcionando momentos maravilhosos, lembranças positivas e uma amizade incrível. Isso certamente contribuiu para a decisão que tomei na sua velhice, me tornar pai!

En(Cena) – De onde partiu a ideia de transferir toda essa história para um livro?

Fernando Aguzolli – Primeiro criei a fanpage facebook.com/vovonilva, onde compartilhava nosso dia a dia através de fotos, vídeos e postagens cômicas com nossos diálogos. Era uma forma que encontrei pra trazer um pouco de informação pra quem não conhecia o Alzheimer, e também mostrar uma perspectiva mais leve de convívio com a doença. Foram os próprios curtidores da página que sugeriram um livro, e dessa forma passei a escreve-lo ao lado da vovó, mas sem a pretensão de lançá-lo. Como ela veio a falecer durante esse processo, achei que seria uma linda homenagem finalizar o livro e publicá-lo. E foi o que fiz!

En(Cena) –  Você descreve histórias de humor vividas por sua avó. O que pretende transmitir para o leitor com tais relatos?

Fernando Aguzolli – Pretendo mostrar que a formalidade entre gerações as vezes atrapalha, e que quando desconstruímos essa formalidade podemos criar uma relação mais próxima, uma amizade onde com muito bom humor e amor, diversas situações complicadas podem ser atravessadas! Não é por utilizar o bom humor como fuga da doença que eu passo a encarar o Alzheimer com menos importância, muito pelo contrário, a família também encontra-se doente, e o bom humor é uma ótima alternativa pra que posssamos lutar contra a depressão e seguir oferecendo uma ótima qualidade de vida ao idoso doente.

En(Cena) – Sua avó abandonou tudo quando criança para estudar e trabalhar, depois de adulta teve que se dedicar para cuidar de você em sua infância. Que relação você faria desse ciclo completo com a sua decisão de abandonar e dedicar seu tempo a ela, um gesto de gratidão?

Fernando Aguzolli –  Não, o livro não diz nada disso. O livro diz que ela teve que sair do colégio aos 13 anos para trabalhar, ela sempre amou estudar mas não teve condições, e então entrou para uma fábrica onde ficaria por muito tempo. E não, ela não TEVE que dedicar a cuidar de mim, justamente o contrário, meus pais eram muito presentes, minha avó TOMOU essa decisão para de fato participar da minha criação, se tornar avó de corpo e alma. Foi uma decisão, que – aí sim – como disseste, vim a retribuir por gratidão quando deixei minhas obrigações atemporais de lado para lidar com um período que não voltaria mais tarde!

En(Cena) – Quando decidiu deixar a vida profissional para cuidar da sua avó, foi muito criticado por amigos ou parentes?

Fernando Aguzolli – Não, alguns me sugeriram reduzir cadeiras ou outras medidas que não cabiam ao momento, mas com o convívio comigo e minha avó foram percebendo que era inviável fazer de outra forma, e então meus amigos me deram apoio total, 100%, inclusive fazendo visitas a vovó, indo lá pra casa nos dias em que eu não podia sair e nos levando pra passear. Eles são fantásticos!

En(Cena) – A criação de uma página no facebook, hoje com quase 100 mil curtidas, você esperava tanta repercussão?

Fernando Aguzolli – Hoje a página está com quase 100 mil elos de uma ‘corrente do bem’, onde todos compartilham suas vidas e buscam ali a esperança de aprender a lidar com uma doença galopante, cada vez mais presente na vida do brasileiro. Nunca esperei a repercussão que a nossa história ganhou, conquistou, mas fico feliz em saber que o brasileiro está dando valor a uma boa história, assim talvez mudemos nossas prioridades e passamos a enxergar o idoso, a velhice e suas doenças com outros olhos.

En(Cena) – Quando sua avó não te reconhecia como neto, o que isso te causava?

Fernando Aguzolli – Ela sempre dizia: “eu não sei quem tu és, mas sei que te amo muito”, isso já me deixava feliz, o que importa é saber que ela me ama e tem noção desse sentimento, saber que esse sentimento pulsa mesmo que a lembrança lhe falhe. Então me sentia alegre em saber que ela estava lutando contra a doença automaticamente, enquanto o sentimento se mostrava ali! Mas claro, muitas vezes me entristeci, normal, mas é por não entendermos que na verdade não é culpa deles, nada é pessoal, eles estão passando por um processo do envelhecimento que traz obstáculos como esse, temos que aceitar uma hora, ou vamos enlouquecer!

En(Cena) –   Qual a historia ou momento de esquecimento causado por sua avó que você lembra e considera mais engraçado ou marcante?

Fernando Aguzolli – Ela vez que outra acordava procurando um cachorro que não tínhamos em lugares onde ele não caberia. Era muito engraçado pois ela levantava na madrugada meio cambaleante em busca do tal cachorro. Eu ficava louco pois sabia que aquilo devia ter vindo de um sonho bem provavelmente, mas não adiantava procurar, a solução era sair com ela em busca do totó até ela esquecer o que estava procurando e voltar pra cama! haha…

En(Cena) – Após a morte da sua avó, como foi a sua adaptação de voltar a um novo estilo de vida?

Fernando Aguzolli – Minha vida segue sendo nossa história, quer dizer, eu continuo vivendo nossa história. O livro esta aí fazendo um baita sucesso, mostrando que as pessoas tem carência por boas histórias e estão abertas a compartilhar boas experiências, estou dedicando meu tempo a isso e tem sido uma rotina muito gratificante.  Penso em voltar pra faculdade, mas agora pra psicologia, não mais filosofia, e também penso em arriscar outro livro, sobre outra temática! haha

En(Cena) – O que você pode reforçar para pessoas que estão ou que possam enfrentar a situação que você viveu?

Fernando Aguzolli – Mantenham a paciência, respeitem seus limites e sorriam muito, nunca sozinhos, sempre com aqueles que amamos. Compartilhar a dor, seja compartilhando nossas histórias ou nos aproximando do sofrimento alheio, não implica em sofrermos todos juntos, mas assim podemos livrar aquele que por uma dificuldade passa e sofre! Compartilhe sorrisos com avós, pai, mãe, netos, amigos, irmãos…essas lembranças serão muito importantes!

FICHA TÉCNICA

QUEM, EU? UMA AVÓ. UM NETO. UMA LIÇÃO DE VIDA

Editora Belas Letras

Autor: Fernando Aguzzoli
ISBN: 9788581741826
Formato: 15x22cm
Páginas: 240
Preço de Capa: R$ 34,90

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Quase Deuses: as intersubjetividades e os sentidos dos sujeitos

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A morte é uma coisa modesta pra se viver com ela dia após dia.
Vivien Thomas

Vemos a morte todos os dias e mesmo assim ela nos assusta sempre.
Dr. Alfred Blalock

O filme “Quase Deuses” é baseado em uma história real e traz reflexões importantes no campo das ciências humanas, pois esboça as contradições de uma sociedade, as relações de trabalho e capital, a questão racial, o espaço urbano, o antagonismo rico e pobre numa sociedade de classes, o poder do conhecimento (ciência).

“Quase Deuses” se passa em Nashville na década de 1930 e narra a história de amizade de Vivien Thomas (1910-1985), afro-americano e hábil marceneiro e do Dr. Alfred Blalock (1899 – 1964), norte-americano e habilidoso cirurgião.

Eles são duas pessoas diferentes em níveis de classes sociais e cor. Os caminhos deles se cruzam quando Thomas é demitido com a chegada da Grande Depressão. Ele foi demitido porque estavam dando preferência para quem tinha uma família para sustentar. Com a crise, os bancos faliram e isso o fez perder as economias de sete anos, que ele guardou com sacrifício para fazer a faculdade de seus sonhos, Medicina.

Na década de 1930, a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque (em 1929) gerou uma grande depressão econômica, o que contribuiu para aumentar a segregação (econômica e social), devido às altas taxas de desemprego e uma grande queda na produção industrial.

 

 A luta por condições iguais do trabalhador perpassa de forma explicita o enredo do filme, a exemplo dos professores negros que querem ganhar igual aos brancos, bem como, um dos protagonistas – Vivien Thomas – que recebe seu salário inferior à sua função técnica. No filme há evidências de que as afinidades entre as pessoas são determinadas pelas suas condições de vida, classe, etnia entre outros. Como expõe o irmão de Thomas, “só os pobres têm uns aos outros” fazendo alusão que mesmo perdendo todas as suas economias, o que lhe restava é a família a sua condição de pobre (classe).

Em todo enredo do filme a segregação racial é apresentada de forma bem determinante na sociedade americana.

Os negros sentavam-se na parte detrás dos ônibus; além disso, nos bares, lanchonetes, bairros, banheiros, espaço público entre outros, havia a marca da segregação. O conflito racial está presente e é muito forte no filme, ainda que essa temática não seja a sua premissa principal. Permite-nos inferir que, o conflito ou o preconceito racial, impediram muitos americanos de demonstrarem que poderiam fazer a diferença, caso tivessem tido uma chance como a do personagem Thomas.

O Dr. Blalock conhece Thomas no Hospital, lugar em que conseguiu emprego para ser zelador no Laboratório de Cirurgias Experimentais Vanderbilt. Esse laboratório utilizava de cães para experimentos médicos e a atividade de Thomas era manter o canil limpo e os cães bem tratados. Mas, ele não abandonou a sua paixão pela medicina e curioso, em busca de conhecimento, ele, entre um afazer e outro, devorava os muitos livros de medicina que se encontrava no laboratório.

Isso atraiu a atenção do Dr. Blalock que observava, atentamente, a vontade de Thomas em aprender. Com isso, o Médico pediu que Thomas pinçasse os tubos de ensaio. Primeiro com a mão direita e depois com a esquerda. Ele, com segurança, além de pinçar os tubos, conseguiu colocá-los em seus devidos lugares. Foi promovido. Thomas passou a ser assistente nas cirurgias experimentais do Dr. Blalock.

O Cirurgião percebe em Thomas mais que um simples homem negro, mas uma pessoa de grande talento e de fácil aprendizagem. Quando Blalock se tornou cirurgião-chefe do Johns Hopkins Hospital, levou consigo Vivien por causa de sua paixão por medicina e habilidade com os instrumentos cirúrgicos.A relação dos dois extrapola a profissional e começa uma forte amizade.

Onde você vê riscos, eu vejo oportunidades.
Dr. Alfred Blalock

Na América racista de sua época, Thomas, que era negro, causava reações de indignação nos médicos do Hospital ao circular de jaleco branco. Afinal ele não passava de um faxineiro. Ele, por ser negro e não diplomado, não podia nem mesmo entrar no centro cirúrgico. Usar branco era sinônimo de conhecimento, de poder. Tornavam esses médicos “quase deuses”.  Thomas, autodidata, por meio da observação, estudo e dedicação, aprendeu e contribuiu com técnicas inovadoras na medicina. A parceria de Thomas e o Dr. Blalock resultava em desenvolvimento e aperfeiçoamento de instrumentos para cirurgias cardíacas.

 Numa época cheia de preconceitos e dificuldades, o processo da pesquisa e da cirurgia cardíaca foi um marco na medicina moderna. Isso porque o coração, naquela época, era considerado intocável e inoperável. O Dr. Alfred assumiu a missão de pesquisar uma solução para uma doença conhecida como “Síndrome do Bebê Azul”. Essa síndrome também é conhecida como Tetralogia de Fallot, onde o coração da criança possui um defeito que acarreta grande dificuldade de oxigenação do sangue, com isso o bebê adquire uma cor arroxeada (cianose) e sofre de falta de ar. Thomas, movido por sua paixão, desafiou a ciência e o preconceito dos médicos e contribuiu com as suas ideias para a resolução do problema.

 

Ao lado do Dr. Blalock foram os primeiros a realizar cirurgias no coração de pessoas vivas no maior Hospital dos Estados Unidos, o conceituado Hospital Hopkins. O Dr. Blalock repetiria o procedimento em outros pacientes, mas com Thomas de pé num banquinho atrás do médico, vendo tudo por sobre seu ombro e dizendo-lhe o que fazer.

Mesmo assim, o reconhecimento de suas conquistas/descobertas no campo científico, que deveria ser irrestrita e acima de tudo não discriminada, ecoou com as marcas simbólicas no homem que era negro, de periferia, sem curso superior. O reconhecimento para sociedade, americana, burguesa, obviamente deveria ser branca e “civilizada”.

Como era de se esperar, os créditos pelo sucesso das intervenções cirúrgicas ficaram somente com o Dr. Blalock. A parceria de Thomas e o Médico perdurou por quase 40 anos e só muitos anos depois o trabalho de Thomas foi reconhecido. Após a morte do Dr. Blalock, em 1964, Thomas permaneceu Hospital por mais 15 anos trabalhando no Laboratório. Somente em 1976, Thomas foi condecorado com um título de Doutor Honorário, mas  devido a restrições, ele recebeu um título de Doutor em Direito e não em Medicina. Thomas também foi nomeado para o corpo docente da Johns Hopkins Medical School como Instrutor de Cirurgia.

Além de narrar a trajetória de Thomas e do Dr. Blalock, o filme toca num ponto que merece a nossa atenção: o modo como a  religião lida com o avanço da ciência. Esse é um conflito da época que perdura até hoje. Temos religiões que não permitem que a ação do homem interfira na vida (a exemplo de uma transfusão de sangue). Ainda, temos os grupos fundamentalistas, que a partir de uma “guerra santa” explodem a si e aos outros em nome de “Deus”. Além disso, temos o crescimento e expansão das “doutrinas” religiosas são cada vez maiores. Mas qual é a causa desse crescimento? Talvez, pudéssemos pensar se este crescimento é advindo da fé e religiosidade ou uma opção pela ausência de perspectivas na vida, pela falta de referência, entre outros motivos que podem ser oriundos de uma estrutura social desigual, excludente, racista, machista etc.

 

 De modo geral, o filme traz elementos significantes que vão além de uma grande lição de humanidade, pois é baseado na história real de duas pessoas que são bem distantes no tocante à formação cultural, política e econômica, mas que tem como princípio usar do conhecimento para salvar vidas.

”Quase Deuses” nos faz refletir sobre as nossas atitudes, nossas ações, nosso comportamento em relação aos “outros” e ainda em como ler a realidade a partir de um contexto específico, mas que não está deslocado do geral. Assim, observamos as relações políticas, econômicas, culturais, sociais, religiosas e principalmente no campo científico, sem perder de vista as dimensões do particular (individual) e do coletivo (sociedade). Ou seja, um esforço qualitativo para ver e ler os fenômenos sociais, as intersubjetividades e os sentidos dos sujeitos.

 

FICHA TÉCNICA:

QUASE DEUSES

Título original: Something the Lord Made
Gênero: Drama
Elenco: Alan Rickman, Mos Def, Mary Stuart Masterson, Kyra Sedgwick, Merritt Wever
Direção: Joseph Sargent
Duração: 01h50
Ano: 2004

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Servidor tocantinense fala dos êxitos e desafios junto ao “Programa Estadual de Controle da Tuberculose”

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Imagem IV Mostra

Foto: Sonielson Luciano de Sousa

Empossado há menos de 1 ano no Concurso do Quadro Geral do Tocantins, como assistente administrativo, o farmacêutico Vinícius Gonçalves, 23 anos, logo acabou por ser enquadrado num programa de apoio à saúde pública local. Em decorrência de uma demanda da Sesau – Secretaria Estadual da Saúde, Vinícius trabalha no Programa Estadual de Controle da Tuberculose. Ele faz parte de uma equipe que viajou de Palmas para Brasília para explanar, durante a IV Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica/Saúde da Família, as ações exitosas do programa no estado, e na oportunidade concedeu a entrevista abaixo ao (En)Cena.

(En)Cena – Como você foi parar no serviço de saúde pública do Tocantins?

Vinícius – Eu fui aprovado no último concurso do Quadro Geral, e como havia necessidade de equipe no Programa de Controle de Tuberculose, acabei sendo enviado para o setor. Na verdade, sempre tive interesse por esta área [da saúde] e considero um excelente desafio profissional participar da equipe.

(En)Cena – O que exatamente você faz no seu trabalho?

Vinícius – Eu ajudo a equipe a dar suporte a todos os municípios que atuam no combate e tratamento da Tuberculose. Além de oferecer capacitações, pois temos que ter sensibilidade e temperança para lidar com a pessoa doente, também viajo muito pelo interior para fazer o acompanhamento das equipes locais. Mas, em Palmas, há todo um trabalho constante de controle de medicamentos, geração e distribuição de formulários, confecção de relatórios…

(En)Cena – O que de mais interessante você notou ao entrar para a área de saúde pública?

Vinícius – Eu fiquei impressionado com a dimensão do Sistema Único de Saúde, e a forma gigantesca como municípios, estados e governo federal têm que atuarem para que a saúde seja de fato universal. Então esta complexidade do sistema, que ao mesmo tempo apresenta respostas para inúmeras demandas que vão surgindo constantemente, me deixou realmente impressionado com esta área.

(En)Cena – Como funcionário público, você já pensou em trocar de área de atuação?

Vinícius – Não, eu me identifiquei imensamente com o que faço. Claro que penso – e estou até estudando – para fazer outros concursos públicos, mas manterei o meu foco na área de saúde pública.

(En)Cena – E o que você e a equipe que você faz parte vieram contar na Mostra?

Vinícius – Viemos alertar para a necessidade de as pessoas procurarem os postos de saúde e, com frequência (sobretudo as pessoas com imunodepressão), fazerem o teste para Tuberculose. Nosso objetivo é mostrar que existe um padrão de falta de adesão dos pacientes ao tratamento, muitas vezes por total falta de conhecimento de como o processo funciona. Também viemos alertar para a questão do consumo do álcool, que deve ser evitado pelo paciente. Este trabalho de conscientização requer que o agente de saúde crie uma empatia, uma aproximação com o paciente, para a partir de uma relação de confiança poder atuar de forma significativa para o sucesso no tratamento. Assim, há uma abordagem que envolve, também, um cuidado com o outro, um acolhimento, já que o objetivo é que se abandone o tratamento e comprometa, inclusive, as outras pessoas da casa.

(En)Cena – O que é necessário para fazer o teste?

Vinícius – Basta se dirigir a uma das unidades básicas de saúde da cidade, e no caso das pessoas que são portadores de HIV, devem se encaminhar para o Henfil, na área Norte de Palmas. O teste é simples, e recomendado sobretudo para aquelas pessoas que estão há algumas semanas com tosse insistente. Não se deve perder tempo!

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Como enfrentar uma situação inesperada e manter a saúde mental

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“A vida é um sopro,
a gente não pode ser irresponsável,
mas também não pode perder a vida por medo”

Ohanna Patiele

Ohanna Patiele é acadêmica de Comunicação Social, tem 27 anos e mora em Palmas-TO há 3 anos e 8 meses. A jovem trabalha com marketing em mídias sociais, é escritora, adora dançar e é viciada em redes sociais. Em entrevista ao Portal (En)Cena ela conta como tem levado a vida após a descoberta de um câncer na tireoide.

Foto: Acervo pessoal Ohanna Patiele

(En)Cena – Quando você foi diagnosticada com câncer e em que estágio a doença estava?

Ohanna Patiele – Eu vi o nódulo pela primeira vez em agosto de 2013 porque tomei antibióticos e tive uma reação, fiquei cheia de ínguas nas axilas, na virilha e no pescoço, mas eles sumiram em mais ou menos uma semana. Em outubro, eu estava me maquiando e vi que aquele pontinho tinha quadruplicado de tamanho, aí me assustei muito. Fiquei com medo e só consegui criar coragem e ir ao médico depois de umas duas semanas, fui ao endocrinologista. Ela pediu exames para medir os hormônios produzidos pela tireoide e um ultrassom. Sai de lá tão ansiosa que fiz os exames imediatamente.

Na semana seguinte fui levar os resultados e ela explicou que minhas taxas de hormônio estavam normais, porém algumas características do nódulo a preocupavam. Pediu uma punção por agulha fina PAAF, um procedimento simples em que se aspira uma secreção do nódulo e vai pra biopsia. Ela saiu de férias antes de ver o resultado do exame e eu estava saindo de férias também. Como eu já estava muito preocupada marquei consulta com um endócrino em Goiânia e ele me encaminhou pro cirurgião. Como o nódulo era muito grande, só seria possível definir se ele era maligno na cirurgia. Dois meses e dois dias depois da primeira consulta, eu retirei toda a tireoide e a biopsia do nódulo revelou que era sim câncer. Um carcinoma papilar usual de tireoide, graças a deus, a forma mais branda da doença.

(En)Cena – Qual foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça? A ideia de que pudesse, mesmo que remotamente morrer te assustou?

Ohanna Patiele – O câncer da tireoide é relativamente tranquilo em relação aos outros, com altas taxas de cura, poucas chances de metástase e como eu já estava livre do nódulo, não tive medo de morrer. Mas tive uns dias muito ruins sim. Meu maior medo era o tratamento dos outros tipos de câncer que são tão agressivos né? Quimio e radioterapia fazem o paciente sofrer muito. Graças a Deus, o tratamento do câncer de tireoide é a cirurgia e um tratamento a base de iodo radioativo, a iodo terapia que estou fazendo hoje. Sobre os dias ruins: tive uma crise muito severa de choro quando vi a médica que tinha me dito uma semana antes que as chances de ser benigno superavam os 90% preocupada.

(En)Cena – Como foi o processo de aceitação e quais fatores contribuíram para que você tivesse força para seguir em frente?

Ohanna Patiele – Nesse dia, chorei ininterruptamente da hora que saí do consultório até dormir. Chorei muito. Primeiro porque eu sei que se houvesse se espalhado pra outro lugar, o negócio complicaria 100 vezes. Segundo porque tive que parar a vida pra ficar em Goiânia e tratar. Há dois meses não vou em casa, não vejo minha gata, não trabalho e tive que trancar a faculdade. Foi um baque!  A terceira e mais recente crise de choro foi um dia antes de internar pra fazer a iodo terapia, ia fazer o primeiro exame pra ver se houve metástase e entrei em pânico com um sonho que tive. É ridículo, mas tive medo do sonho como uma criança. Fiquei irracional. Tenho que confessar que demorei dois dias pra aceitar a notícia. Soube que era câncer na hora que sai da sala de cirurgia e não processei a informação. No dia seguinte o médico falou comigo e eu voltei a ignorar. Só no terceiro dia que minha mãe e namorado conversaram comigo e eu finalmente entendi: poxa, tive câncer!

(En)Cena – Como você fez para superar o susto do diagnóstico?

Ohanna Patiele – Eu não contei nada pra minha família nas primeiras consultas porque estava no Tocantins e tudo ainda era uma suspeita. Pensei: se falo isso, minha família surta, minha mãe vai enlouquecer e vir pra Palmas imediatamente… chega aqui e não é nada. Enquanto isso, João, meu namorado que mora em Brasília, foi quem me deu todo o apoio, conforto, mesmo a distância. Meus colegas de trabalho também foram muito bacanas comigo. Só contei para a família quando cheguei em Goiânia e a família surtou sim, mas o amor que a gente recebe, torna tudo mais fácil!

Ohanna rece apoio da família em todos os momentos. Foto: Acervo Pessoal

(En)Cena – Que processos você escolheu para não se deixar levar pela fragilidade emocional que os pacientes estão expostos?

Ohanna Patiele – Eu tenho um blog há muitos anos, nem sei quantos pra falar a verdade. No início, ele era um substituto dos antigos diários (sem os segredos, claro) que eu escrevo desde que tinha uns 12 anos. Escrevo o que dá na telha lá. Me faz bem escrever, parece que me dá uma noção melhor da realidade. Não ir sozinha numa consulta é um pequeno gesto, mas faz toda diferença. Minha família e João me fizeram sentir que podia acontecer o que fosse eu não estaria desamparada. Isso é fundamental! Acho que ainda não superei o susto. Quando lembro ainda penso: bicho, como assim?

(En)Cena – Você acredita que a doença tem algum aspecto positivo? 

Ohanna Patiele – Os pontos positivos são certamente internos. É clichê, mas quando a gente tem um susto desses, dá uma revisada boa na vida. No valor que a família e as pessoas próximas têm sabe?! Fico tanto tempo longe deles por causa da rotina, isso é um pecado. Também estava com muito medo de algumas oportunidades de mudança que surgiram e agora quero viver tudo de uma vez! A vida é um sopro, a gente não pode ser irresponsável, mas também não pode perder a vida por medo! Reforçou o conceito que eu aprendi com os médicos e vale pro corpo e pra mente: se conheçam! Autoconhecimento é que liberta e pode salvar sua vida!

Câncer em fase inicial tem muito mais chances de cura! Outra coisa que foi uma lição muito grande e merece ser contada é que pequenos gestos podem ajudar uma pessoa demais, às vezes, a gente não olha pro vizinho, mas podia está salvando o cara. Recebi muitos gestos de carinho, mas minha vizinha Edinalda, está sendo f, um anjo indo todos os dias na minha casa alimentar minha gata. Bicho é algo simples, mas que está me ajudando de uma forma que nem sei agradecer. Pra ela ficar num hotel ficaria caríssimo! Então, a gente tem que ser mais solícito com o outro. Olhar mesmo pra quem está ao nosso redor! É algo que eu quero praticar muito mais a partir de agora. Outra coisa que foi ótima com a doença foi à confirmação de que João é o cara certo sabe! Foi super companheiro, ajudou mais do que podia, fez de tudo pra que eu me sentisse amparada, amada! No dia antes de internar, quando contei que estava chorando por causa do sonho, ele saiu do trabalho em Brasília pra me dar colo em Goiânia. Sabe? Amor mesmo! Vou casar com esse cara!

(En)Cena – Como se vê daqui a 5 ou 10 anos?

Ohanna Patiele – Pergunta difícil essa dos cinco anos! Me vejo casada com João, meu namorado, comprar nossa casa, quero me aperfeiçoar em mídias sociais e continuar trabalhando com isso, viajar muito! Sei lá, acho que o objetivo maior mesmo é ser feliz!

 No blog Ohanna fala com todos os detalhes como recebeu o diagnostico. A entrevista demorou cerca de uma semana para ser finalizada, Ohanna estava no hospital fazendo mais uma parte do tratamento que possibilitará em pouco tempo que ela retorne suas atividades normais e continue se equilibrando mentalmente, fazendo o que tem paixão.

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Sentidos Teóricos da Humanização e seus desafios concretos no cotidiano

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Os múltiplos entendimentos trazidos pela palavra humanização apontam atributos de vários sentidos, tanto teóricos como práticos levando em consideração os desafios sociais, econômicos e políticos para sua efetivação no SUS. Existe imprecisão e até mesmo confusão, que se expressam em várias ações ditas humanizantes ou humanizadoras.

Inicia-se o assunto sobre humanização a partir do reconhecimento da desumanização, trazendo o questionamento humano sobre a viabilidade da primeira a partir da constatação da segunda. Conforme explicita Paulo Freire (2005, p. 32), “ambas, na raiz de sua inconclusão, os inscrevem (os homens enquanto seres humanos) num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão”. Para Freire, a humanização é uma vocação do ser humano, embora uma vocação negada e afirmada na própria vocação. É negada na existência da injustiça, da exploração, da opressão, da violência, da dominação dos que oprimem e dominam. É afirmada no exercício da liberdade, da justiça, da luta daqueles que sofrem a opressão e a dominação, ao recuperarem a “humanidade roubada” (FREIRE, 2005).

Por se tratar de uma realidade concreta e contraditória instaurada na necessidade da existência da humanização a partir do conceito de desumanização, Freire (2005) também aponta a superação desta contradição de maneira objetiva. Existe a exigência da superação, da transformação da situação concreta geradora da opressão, neste caso, da desumanização (repetido).

A transformação objetiva da situação desumanizadora é combatente da imobilidade subjetivista que espera pacientemente que um dia a opressão desapareça.

A desumanização (situação opressora) não se vê exclusivamente em quem tem a humanidade roubada, mas também nos que roubam, como uma imagem disforme da vocação original. É distorcida historicamente, mas não é histórica. Se a aceitássemos como sendo vocação histórica do ser humano, seria aceitar cinicamente ou desesperadamente essa realidade sem mais nada ter a fazer, além disso. A busca pela humanização, pela liberdade, pela desalienação, pela condição do ser humano como pessoa para si, seria sem sentido. Essa busca parte do reconhecimento da desumanização, embora seja concreta na história, não é um “destino dado”, mas resultado da ordem social injusta geradora da violência dos que oprimem e dominam. A humanização é o ser mais enquanto a desumanização é o ser menos no pensamento de Paulo Freire. A humanização se faz necessária num mundo onde o ser humanose encontra afastado de sua humanidade objetiva e subjetiva. Suas ações se encontram normatizadas de proibições e valorações, simbologias e mitos e ritos que ditam o que e como fazer (PAIM, 2009).

Com isso, não se está negando a subjetividade, mas o subjetivismo. Não se pode pensar em objetividade sem considerar a subjetividade. Uma está imbricada na outra e não existe uma sem a outra. Portanto, não há dicotomia. Há contradição, ou seja, uma e outra ocupam seu lugar na realidade.

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade (FREIRE, 2005, p. 41).

A compreensão confusa entre o conceito de subjetividade com subjetivismo, seria a negação da importância deste conceito, seria a decadência para um simplismo pautado na ingenuidade. O pensamento freireano, aponta para a necessidade de uma humanização por haver uma desumanização histórica. Neste sentido, o SUS, por meio da política de humanização reconhece esse processo amplo em que se constitui a desumanização na sociedade brasileira. No entanto há que se observar que

o SUS é apenas uma das respostas sociais aos problemas e necessidades de saúde da população brasileira. Ao lado dele, políticas econômicas, sociais, ambientais são fundamentais para a promoção da saúde e da redução dos riscos e agravos. Reformas Sociais como a Reforma Agrária, a Reforma Urbana, a Reforma Educacional, a Reforma Política e Tributária constituem, intervenções de amplo alcance, que ultrapassam as possibilidades do SUS (PAIM, 2009, p.75).

O significado de humanização para a o campo da saúde, uma área em que suas práticas se fazem essencialmente necessárias, sob vários olhares, pode ser compreendida como um princípio de conduta de base humanista e ética; um movimento contra a violência institucional na área da Saúde; uma política pública para a atenção e gestão no SUS; uma metodologia auxiliar para a gestão participativa; uma tecnologia do cuidado na assistência à saúde (RIOS, 2009). No entanto, “os esforços para a humanização da atenção com práticas de acolhimento nas unidades ainda não foram suficientes para a mudança do modelo de desatenção vigente” (PAIM, 2009, p.90). Pode-se verificar que o SUS incluindo a PNH, está em um terreno de tensões e de desafios, no sentido do enfrentamento do modelo privatista neoliberal na saúde, em contraponto à visão biopsicossocial, uma das possíveis respostas gestadas pela ala do modelo sanitarista da saúde.

Na sociedade capitalista o modelo médico-assistencial privatista é o mais (re) conhecido mesmo não contemplando o conjunto dos problemas de saúde em sua totalidade na sociedade brasileira. Voltado à concepção individual, em que o usuário da saúde é dividido em dois grupos: os que podem comprar a mercadoria saúde através dos planos e seguros de saúde e aqueles que não podem comprar, os pobres. “No Brasil, o modelo médico-assistencial privatista tem origens na assistência filantrópica e na medicina liberal, é fortalecido com a expansão da previdência social e consolida-se com a capitalização da medicina nas últimas décadas. Entretanto, esse modelo assistencial que caracteriza a assistência médica individual não é exclusivo do setor privado” (PAIM, In ROUQUAYROL & ALMEIDA FILHO, 2003, p. 569), mas também se vê nas OSS (Organizações Sociais de Saúde), que assumem (terceirizam) o serviço de saúde de norte a sul do Brasil.

Atualmente percebe-se a necessidade de um modelo que não somente altere o modelo pelo modelo, mas o modo de se produzir saúde, ou seja, num movimento contra-hegemônico de quebra de paradigma (COELHO, 2008). Assim, tanto objetivamente quanto subjetivamente, a humanização na saúde é mais que uma proposta de um modelo, mas um novo modo de fazer. Não numa receita perfeita, um caminho em construção no próprio ato de caminhar, enquanto se caminha (CAMPOS, 2007), ou seja, no processo de trabalho nos serviços de saúde.

O processo de trabalho é um espaço interseçor[1] atravessado por distintas lógicas que se apresentam em atos traduzidos na forma atual hegemônica da medicina neoliberal, na forma da atenção gerenciada, nos modelos que se propõem a seguir o eixo das necessidades dos usuários. Têm-se aqui dois lados bem definidos refletidos no interior e no exterior da saúde: o próprio capital articulado ao financeiro, que aparece como atenção gerenciada e o lado anti-hegemônico dos projetos que apontam a saúde como um bem público, patrimônio de toda a sociedade, propriedade coletiva (MERHY, 2002), englobando, gestores, trabalhadores e usuários da saúde como agentes transformadores da realidade através do empoderamento e da emancipação enquanto seres sociais.

Para o autor, o espaço interseçor dos atos de saúde liga o trabalhador (e a gestão) com o usuário de maneira complexa. Não como dois conjuntos separados, mas como dois conjuntos interligados. Ambos estão num espaço comum de interseção entre dois conjuntos num processo de trabalho. No caso do trabalho em saúde, do ato de cuidar depreendido do trabalhador em saúde para o usuário, resulta numa interseção partilhada.

No processo de trabalho em saúde há um encontro do agente produtor (trabalhador/gestão da saúde), com suas ferramentas e conhecimentos e o produto final, que resulta no cuidado em saúde. Para o usuário (agente consumidor), a saúde em si é um valor de uso, algo útil que lhe permite estar no mundo e vivê-lo. As necessidades, do trabalhador e do usuário, as quais fazem parte do mesmo campo de atuação, os colocam como, agentes e consumidores portadores de necessidades macro e micro politicamente constituídas (MERHY, 2002).  O trabalho em saúde é, portanto, um trabalho que reflete um ato vivo, numa relação interseçora entre o trabalhador e o usuário, tendo a gestão como interferência nesta relação.

A humanização, desdobrada no espaço interseçor existente na relação trabalhador, gestor, usuário, é fundamentada no respeito e na valorização da pessoa humana, constituindo um processo que pretende a transformação da cultura institucional, conduzida por uma construção coletiva de compromissos éticos e de métodos para as ações de atenção à Saúde e de gestão dos serviços (RIOS, 2009). Humanizar a atenção à saúde é valorizar o trabalhador e o usuário, considerando o mundo do trabalho como co-gestão e corresponsabilização (PAIM, 2009, p.90). Tanto o trabalhador como o usuário são co-gestores da saúde. São corresponsáveis pelo sistema de saúde e seus serviços. Não se separa a gestão do trabalhador e tampouco do usuário. São sujeitos transformadores da realidade e de seus resultados.

A humanização agrega esses sujeitos e aponta para um entendimento que configuram um núcleo conceitual de humanização, dando ênfase à ética relacional entre usuários e profissionais de saúde. Apresenta-se também a ligada aos direitos humanos, como o direito à privacidade, à confidencialidade à informação, ao consentimento do usuário nos procedimentos médicos e o atendimento respeitoso por parte dos profissionais[2].

A história, marcada por desrespeitos e maus tratos à saúde demonstra que a conquista por direitos sociais, embora iniciada com a Revolução Francesa de 1789, somente se consolida no Brasil no final do século XX, refletido na conquista do direito à saúde, de forma gratuita e universal inaugurada pelo SUS. As teorizações deram lugar às práticas de saúde que entendem o direito à saúde não somente como direito às ações e serviços de saúde, mas como direito ao estado vital saudável (estado de saúde) (PAIM, 2009, p.115). O conceito de saúde atual adotado pela OMS, Organização Mundial de Saúde, extrapola o sentido da ausência de doenças e traz o ideário do pleno bem-estar físico, mental e social, ou seja, não se pode pensar em saúde descontextualizada dos aspectos sociais e psíquicos.

Dessa forma, humanização na saúde implica uma mudança de atitude na gestão dos sistemas de saúde e nos serviços, significando alterar o modo como usuários e trabalhadores da área se integram entre si. Um de seus principais objetivos é fornecer um melhor atendimento aos usuários e melhores condições de trabalho aos trabalhadores.

Humanizar a saúde também significa mudanças nas mentalidades dos indivíduos, mudanças estas criadoras de novos profissionais mais capacitados, que melhoram o sistema de saúde e inauguram novos paradigmas. Pode-se dizer, portanto, que se trata de uma “estratégia de interferência no processo de produção de saúde, através do investimento em um novo tipo de interação entre sujeitos, qualificando vínculos interprofissionais e destes com os usuários do sistema e sustentando a construção de novos dispositivos institucionais nesta lógica” (DESLANDES, 2004, p. 11). Quanto ao fator interativo, transdiciplinar e complexo, busca-se trabalhar pela transdiciplinaridade, sendo a horizontalização das relações de poder entre os diversos saberes, sem descartar a clínica, na o que indica que em saúde se faz sempre necessário não separar, nem dissociar a questão clínica das normas de organização do trabalho e sua gestão (ONOCKO CAMPOS, 2005).

Entendendo que se trata de uma proposta inovadora, pode-se compreender também que, como proposta política que dá sustentação e retorno a tantas ações e sentidos, foi criada em 2003, pela Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, a Política Nacional Humanização (PNH), a qual implica em modos diferentes de operar no campo da saúde. A partir dessa compreensão, é relevante o estudo da humanização como produto da PNH, que orienta uma conduta humanizada por parte dos trabalhadores de saúde na relação trabalhador-trabalhador, trabalhador-trabalho, trabalhador-gestor e trabalhador-usuário.

Buscar conhecer o sentido da humanização numavisão defensora de que os indivíduos e a sociedade concebem e entendem a realidade como uma criação da interação social de indivíduos e grupos, é não apostar numa explicação pronta da realidade, pois “explicar” a realidade social seria menosprezar os processos pelos quais a realidade é construída.

Quanto à operacionalização da humanização enquanto política pública é necessário atentar para que o uso dos dispositivos não se torne impositivo e para que a PNH não se torne uma política de linha dura, implantada de cima para baixo, como determinações políticas dos gestores por meio da co-gestão e fomento de redes.

É importante manter à vista também o princípio da indissociabilidade entre a atenção e a gestão e buscar efetivar na prática esta indissociabilidade por meio da co-gestão e fomento de redes. A busca pela construção do empoderamento dos sujeitos é o maior desafio de qualquer política pública ou realidade social.

 

Notas:

[1] Preservada a grafia original da obra Saúde: a cartografia do trabalho vivo. (MERHY, 2002).

[2] Dicionário da Educação Profissional em Saúde, FIOCRUZ, disponível emhttp://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/hum.html, acessado em 16 de janeiro, às 9h e 58 min.

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O humano, a loucura, a cidade

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Pagamos um preço alto por nossa condição de humanos. Angustiamo-nos com as coisas mais cotidianas: com a conta que está por vencer, mesmo sabendo que temos dinheiro para pagá-la; com a possibilidade de sol ou de chuva, mesmo impotentes em relação ao clima; com os filhos, quando os temos; e também com a falta deles, quando eles não vêm. Sofremos por tudo aquilo de incerto que nos cerca e, como não temos muitas certezas, sofremos por quase tudo. Temos medo também do que nos é certo. A morte, a certeza mais definitiva, apavora-nos.

Foto: Cristiano Mascaro

Por isso, enlouquecemos. A loucura é um fenômeno exclusivamente humano. Bichos não ficam loucos, pois enlouquecer é algo tão complexo que exige de quem o faz características só encontradas no pensamento do homem. Portanto, enlouquecer – de uma certa forma – é mais uma das certezas que temos. Se não é uma certeza para cada um de nós, o é para a humanidade como espécie. Não se conhece época ou cultura sem loucos.

Caminhando pela moderna cidade de Palmas, arrisco-me na escuridão das ruas (pela falta de iluminação pública) e no meio dos carros (pela falta de calçadas). Depois de notar que me esqueci, mais uma vez, de colar em minha camiseta uma faixa reflexiva para não ser atropelado, sentindo-me um alienígena e quase que pedindo desculpas ao mundo por minha atitude imprudente de voltar caminhando do trabalho para casa, decido andar pelas ruas internas das quadras. Lá, a cada vinte passos, preciso voltar a arriscar-me pela rua, já que vários moradores têm o curioso costume de estacionar seus carros sobre o passeio. Sem lugar, completamente sem lugar…

Mesmo assim, a caminhada me faz pensar. Entre um e outro susto, carros passando colados a mim, pergunto-me que espécie de espaço se está construindo aqui. Que cidade é esta em que não há lugar para gente?  Um motorista me olha com cara de poucos amigos. O pensamento mais que os pés, acostumados ao caminho de casa, divaga. Um automóvel entra em meu caminho, ou melhor, eu no dele. Ouço um xingamento. Penso em outras situações e, com pesar, noto que o trânsito é só mais uma – entre muitas – em que as pessoas, aqui, sentem-se como intrusas. Uma freada e outro xingamento. Penso agora nos que enlouquecem. Eu, que me considero quase normal, sinto-me sem canto. O que dizer dos que enlouquecem? Uma buzina quase me faz perder o foco. Onde estariam, a estas horas, os loucos daqui? Trancados em casa? Amarrados a uma cama de hospital? Medicados, trancados por dentro? Outra buzina. Sem lugar, completamente sem lugar…

A loucura foi acorrentada e afastada do convívio da cidade há cerca de 300 anos. Há duzentos, decretou-se que ela era uma doença. A partir daí, presa aos grilhões dos esquemas diagnósticos, a loucura pôde ser desacorrentada, mas permaneceu apartada da cidade, enclausurada no hospital. Foi lentamente deixando o manicômio após o advento das medicações que, se mal usadas, podem representar um novo aprisionamento, ainda que com lustrosas e modernas correntes. Hoje, com o desenvolvimento das diversas especialidades que se debruçam sobre a loucura, o louco parece dar mais um passo em seu longo e demorado caminho de volta à cidade. Contudo, cabe perguntar: em direção a que espécie de cidade o louco se encaminha?

Foto: Cristiano Mascaro

A cidade contemporânea, pretendendo-se eficiente e ordenada, não consegue, ao que parece, comportar a desorganização que a diferença em geral provoca. É como se houvesse, na cidade, um texto rígido a se seguir, sem possibilidade de rasuras. Toda nova escrita só pode ser admitida se não comprometer a ordem e a finalidade do texto como um todo. Mas, neste ponto, é importante uma observação: o ser humano, em geral, não segue textos e se os segue rigidamente, perde muito de sua humanidade.

Não é a toa que resolvemos um dia afastar a loucura de nosso convívio. Ao lado de razões de ordem econômica, decidimos manter a loucura longe de nossos olhos porque ela nos faz recordar uma daquelas certezas que nos angustiam. Conviver com o louco nos faz lembrar, de pronto, nossa condição de humanos e, tão só por isso, passíveis de enlouquecer. Portanto, negamos também nossa própria humanidade quando nos privamos do convívio com aquele que enlouquece.

E aqui, na jovem e modernosa cidade de Palmas, onde o espaço urbano possui um texto mas não conta histórias – porque quase não as tem para contar – o humano, coitado… Sem lugar, completamente sem lugar.

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A História da Medicina no Tocantins

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“Salve Doutor! A Medicina do(no) Tocantins em livro reportagem”, é o resultado da pesquisa feita pela jornalista Jocyelma Santana de novembro do ano passado a outubro deste ano. O livro será lançado nesta quinta-feira, 7 de novembro, no auditório da OAB/TO.  O Portal (En)Cena, entrevistou a jornalista que conseguiu resgatar a história de disposição e solidariedade dos profissionais da classe médica, pioneiros que vieram para o antigo norte goiano, hoje Estado do Tocantins, implantar os serviços básicos de saúde em uma região considerada abandonada, assim como conta a história regional.

O livro será lançado durante o XVIII Congresso Brasileiro de História da Medicina, juntamente com o I Congresso Tocantinense, que acontece de 6 a 9 de novembro, no auditório da OAB, na cidade de Palmas-TO, e contará com palestra da jornalista, contando um pouco dos bastidores durante a busca pelas informações para produção da obra.

Foto: Arquivo Pessoal

A jornalista é também graduada em Direito pela Universidade Católica de Goiás e Mestre em Educação Brasileira. É professora do curso de Jornalismo no CEULP/ULBRA. Atuou como repórter da TV Anhanguera/Rede Globo e atualmente é editora e apresentadora do Jornal Anhanguera 2ª Edição.

(En)Cena – Como nasceu a ideia de contar em um livro a história da medicina no Tocantins?

Jocyelma Santana – Em novembro do ano passado fui procurada pelo proprietário do Instituto Presidente Antonio Carlos – ITPAC, que tem duas unidades no Tocantins – uma em Araguaína e outra em Porto Nacional: o médico Nicolau Esteves. Ele planejava trazer para Palmas o Congresso Brasileiro de História da Medicina e queria contar a história da medicina no Tocantins. O médico Nicolau Esteves solicitou, então, que eu escrevesse o livro.

(En)Cena – Qual a importância dessa obra literária para o estado?

Jocyelma Santana – Bom, trata-se de um livro-reportagem. Lá, eu mostro quem foram e quem são os personagens médicos que munidos de disposição e ousadia vieram para os rincões tocantinos, implantar serviços de saúde no abandonado norte de Goiás. O livro traz depoimentos pessoais de médicos e/ou familiares destes profissionais, mas também mescla com outros dados históricos, um deles o relatório dos médicos-pesquisadores Arthur Neiva e Belisário Penna, do início do século XX.

(En)Cena – Quais as dificuldades em buscar as informações catalogadas no livro?

Jocyelma Santana – Pesquisar sempre exige dedicação. Com a vida corrida que tenho, tinha que encontrar espaço para ouvir as fontes vivas, encontrar documentos históricos, fotos, registros da presença de médicos nesta região, desde o século XVIII até os dias atuais.

(En)Cena – O livro é iniciado em que período da história tocantinense, e que fatos importantes aconteciam na época?

Jocyelma Santana – Faço um apanhado geral de três séculos. Atendo-me mais à história contemporânea. Ou seja, as últimas décadas do século XX até 2013.

(En)Cena – Pode nos adiantar, contando um pouco e citando alguns personagens de grande relevância para produção do livro?

Jocyelma Santana – São vários. Pecaria se mencionasse só alguns. Entre os pioneiros estão: Francisco Ayres da Silva (fim do século XIX e décadas do século XX), Euvaldo Tomaz, Odir Rocha, Pedro Zanina, Frederico Henrique de Melo, para citar só alguns. Mas tem vários que vieram de Minas Gerais, São Paulo, Pará, Goiás..

(En)Cena – Depois de finalizar o livro, certamente você tem uma opinião sobre a situação da saúde pública no estado. Na atualidade, levando em conta a falta de médicos, acredita que no início da formação da classe médica no Tocantins, os profissionais tinham um espírito de mais solidariedade com a saúde pública?

Jocyelma Santana – Acho que é um contexto complexo para explicar a situação. Mais do que recursos, é preciso gestão, cuidado, transparência.

(En)Cena – Essa não é sua primeira obra, também foi autora do livro “Viver de Cara Limpa”, que conta a história do ex-recuperando da Fazenda da Esperança, Ricardo Ribeirinha. Qual a relação e diferenças entre os dois assuntos, já que os dois temas abordam questões relacionadas a saúde?

Jocyelma Santana – Além do estilo da escrita… livro-reportagem, os dois livros falam de doenças também. No primeiro, o tema foi a superação da dependência química, considerada uma das doenças que atingem milhões de pessoas e levam tantas outras aos hospitais da rede pública e privada do país. A história de Ricardo Ribeirinha, um jovem que foi adotado ainda bebê e na adolescência acabou se envolvendo com as drogas. Só conseguiu abandonar o vício porque encontrou pessoas dispostas a investir nele. A ajudar. Já no segundo livro, falo de pessoas que ajudaram outras a superarem suas doenças. Médicos e enfermeiras que, sem olhar para a estrutura deficiente, foram e ainda são imprescindíveis para a qualidade de vida do cidadão tocantinense.

(En)Cena – Depois de contar essa historia, a senhora se sentiu motivada a escrever sobre outros assuntos de grande relevância para o povo tocantinense?

Jocyelma Santana – É o que faço diariamente, na produção jornalística para televisão. Amo o que faço.

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O Homem Elefante

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“De fato, a minha aparência é algo medonha,
mas censurar-me é censurar a Deus.
Pudesse eu recriar-me novamente,
não te decepcionaria.”

Poema de Isaac Watts com que Joseph Merrick terminava as suas cartas.

Joseph Merrick fotografado em 1889

Na literatura, na música, nos negócios e na ciência constantemente é apontado que a aparência física agrega valor ao indivíduo, seja na empatia natural que a beleza provoca, ou na facilidade em ser notado (em um mundo que prima pelo espetáculo). Há diversos estudos na área da Psicologia, mais especificamente em um ramo denominado Psicologia Evolutiva, que buscam explicar como algumas características humanas foram moldadas desde a evolução. Essas características tanto podem advir de elementos mais diretos, como a visão ou a audição, quanto de situações mais complexas, como estratégias para escolha de parceiros, percepção espacial etc.

Psicologia Evolutiva tenta examinar a base de determinados comportamentos, por exemplo, o porque consideramos algo belo ou tenebroso, nojento ou agradável. Por que há rostos e corpos que são mais desejáveis? Por que em dadas épocas determinados tipos físicos exerceram mais poder no que tange à atração sexual?

Em meio a essas perguntas, deparo-me com a história real de Joseph Merrick, que viveu na Inglaterra vitoriana do século XIX. Nasceu em 1862 e, por volta dos dois anos, tumores imensos começaram a crescer em seu corpo, a ponto de deixar um de seus braços imóvel, de prejudicar sua respiração, impossibilitar que dormisse deitado ou que andasse normalmente.  Joseph causava horror em quem o via, algumas pessoas tinham ânsia de vômito ao se deparar com a sua figura, outras desmaiavam. Foi considerado um monstro, uma aberração, uma abominação da natureza.

Joseph Merrick fotografado em 1888

Somente na década de 70 do século XX que a medicina entendeu (em parte) a doença que o deformou: a Síndrome de Proteus, “uma doença congênita que causa crescimento exagerado e patológico da pele com tumores subcutâneos, desenvolvimento atípico com macrodactilia e hemi-hipertrofia”.  Por ser uma doença que ocorre raramente (foram descritos cerca de 100 casos no mundo), há poucos investimentos para estudos na área.

No século XIX, participar de espetáculos em “circo de horror” sendo uma aberração usada para aguçar a curiosidade do público era tudo que restava a pessoas que sofriam, por exemplo, da síndrome de hipertricose (excesso de pelos), que fossem siameses ou tivessem qualquer outro mal que deformava sua aparência e tirava-lhe do ciclo estabelecido aos humanos. Nesse contexto, ser humano implicava parecer humano. E parecer humano não tinha relação com caráter ou consciência, mas com a aparência física determinada a partir de um padrão. Esse tipo de circo foi proibido no final do século XIX na Inglaterra, mas, de certa forma, ainda existe, só que agora novos artifícios são usados para mascarar o lucro que advém da exposição da dor e do medo.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch

Mais do que sua aparência, o caso de Joseph causou repercussão na sociedade da época porque vinha acompanhado de uma sombria revelação: a “aberração” era sensível e inteligente. Sua vida assombrada pelo preconceito, pelo medo e pelo horror não obscureceu sua humanidade. Entender que por detrás daquele aspecto assustador podia haver um ser consciente era o que mais provocava o desconforto das pessoas.

O filme de David Lynch sobre a vida de Joseph Merrick (baseado em manuscritos do Dr. Frederick Treves – “O Homem-Elefante e outras reminiscências” e, em parte, no “Estudo da Dignidade Humana”, de Ashley Montagu) traz alguns questionamentos sobre os motivos que tornam muitos de nós tão avessos ao diferente, especialmente quando essa diferença tem relação a aspectos físicos.  É possível olhar para além das deformidades físicas? Ou Joseph Merrick estaria fadado a morar no circo de horror no qual passou parte de sua vida?

Há pesquisas como a de Schaller e Duncan (2007) que levantam hipóteses sobre um “sistema imunológico comportamental”, que tenta explicar porque as pessoas tendem a sentir desconforto perante “anormalidades” profundas. Outros acreditam que existem pessoas merecedoras da maldição divina, daí o castigo de ter uma aparência abominável. No entanto, o que é mais evidente na história de Merrick, especialmente na forma como foi contada no filme do Lynch, é que a sensibilidade independe da aparência. A inteligência e a consciência que nos tornam humanos vão além daquilo que o outro vê ou daquilo que o espelho nos mostra.



Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (John Hurt e Anne Bancroft)

“Não saio tanto quanto gostaria porque as pessoas naturalmente se perturbam com a minha aparência.
As pessoas ficam assustadas com o que elas não podem entender.” (Joseph Merrick)

Merrick começou a ter uma certa dignidade em vida quando conseguiu se livrar do agente circense que o escravizava e obteve ajuda do médico Frederick Treves, do Hospital de Londres. A princípio, aqueles que o conheciam imaginavam se tratar de uma criatura com extremas deformidades físicas e com uma óbvia deficiência mental. Somente quando ele falou pela primeira vez e mostrou sua capacidade de entendimento do mundo, das pessoas, da arte e dele mesmo é que, enfim, perceberam que estavam diante de um ser humano inteligente e sensível.

Imagem do filme O Homem Elefante de David Lynch (Anthony Hopkins e John Hurt)

O médico, ainda que tenha tido sentimentos nobres e uma genuína comoção perante o sofrimento de Joseph, também estava fascinado pelas descobertas que podia obter na área da medicina a partir do entendimento das causas de sua deformidade. Essa dualidade de sentimentos do médico é apresentada no filme: a angústia em entender se mesmo ele, que conhece Merrick tão bem e sabe da extensão de sua sensibilidade, é capaz de enxergá-lo além de sua aparência. Para o médico, era necessário descobrir o motivo da deformidade, pois entender a doença tira-lhe o aspecto de maldição, ainda que para a pessoa que está presa a ela, esse entendimento não muda a limitação que lhe é imposta. Joseph sonhava em um dia sair do hospital de Londres e morar em um hospital de cegos, onde pudesse encontrar uma mulher que viesse a gostar dele, apesar de sua aparência.

“Eu não sou um elefante. Eu não sou um animal. Eu sou um ser humano. Eu sou um homem.” (Joseph Merrick)

Joseph morreu aos 27 anos, em 1890. Em uma tentativa de dormir como uma pessoa normal causou um deslocamento acidental do pescoço, que não suportou o peso da cabeça durante o sono. Assim, a causa oficial da morte foi asfixia.

Em 2012, após 122 anos de sua morte, voltou a ser notícia em vários meios porque foi anunciada a realização de uma análise do DNA de seus ossos com o objetivo de encontrar o diagnóstico final das causas que resultaram em sua deformação. Isso será feito a partir da verificação da existência de alterações genéticas em alguma sequência do seu genoma. Seu esqueleto é mantido preservado no Royal London Hospital, em Whitechapel. Joseph foi estudado em vida, continua sendo estudado após a morte. Descansar em paz não é um direito de todos.

A sequência final do filme de David Lynch é um daqueles momentos que silencia não apenas a voz, mas a alma. Joseph Merrick, ao final, parecia querer ao menos adormecer como um ser humano, já que acordado tinha que suportar a dualidade de duas existências, aquela que existia em sua mente, e a outra, que ele via através da face de horror de quem se deparava com a sua imagem.

Boa noite, Joseph Merrick!

http://youtu.be/z75wcxf6ZVk

Nunca, nunca! Nada morrerá.
O rio corre, o vento sopra,
as nuvens movem-se,
o coração bate.
Nada morrerá.

(Alfred Lord Tennyson)

Referências:

Filme:
Ficha Técnica
Título: O Homem Elefante / The Elephant Man
Direção: David Lynch
Elenco: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Freddie Jones…
Roteiro: Christopher De Vore, Eric Bergren, David Lynch, Frederick Treves (história original)
Ano: 1980.

Artigo:
SCHALLER, Mark; DUNCAN, Lesley A. The Behavioral Immune System – Its Evolution and Social Psychological Implications. In J. P. Forgas, M. G. Haselton, & W. von Hippel (Eds.), Evolution and the social mind: Evolutionary psychology and social cognition (pp. 293-307). New York: Psychology Press, 2007.

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saudeTI

Relações midiáticas e produções de Saúde

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“A qualidade dos médicos no Brasil. A formação aqui é péssima. Não existe, em muitos cursos, nem treinamento prático adequado. E há ainda a invasão de (mal) formados em Cuba e na Bolívia “(Folha São Paulo, 2012).

“Treze mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais” (O Globo, 2012).

“O exame realizado Cremesp prova a péssima qualidade da formação médica no Brasil. Em 7 anos 46,7% dos 4.821 alunos que o realizaram foram reprovados”(saúde web,10/2012).

Nos últimos meses temos sido bombardeados por notícias referentes aos cursos de medicina e a falta de profissionais em saúde (a mídia nomeia profissionais de saúde como apenas a classe médica). As quais nos fazem ficar indignados com a precariedade do atendimento à saúde, a falta da dignidade humana, a preocupação com o futuro da saúde do mundo, e principalmente do país.

Um dia ouvindo e vendo estas notícias, comecei a me indagar sobre as outras formações referentes à saúde, como enfermagem, fisioterapia, biomedicina, odontologia, psicologia e tantas outras, como elas andavam. Se aquele dia que a televisão havia ido visitar o hospital, se tinham enfermeiros, fisioterapeutas… no atendimento, ou ainda, se tinha faltado o plantão, apenas o médico? Certamente, deveriam ter outros profissionais, no entanto, no senso comum, “sem médico, a saúde não vai para frente”. Desta maneira, é preciso ter as 196 Escolas de Medicinas no país a fim de promover melhorias na saúde. Será necessário, mesmo?

Não quero aqui, diminuir a formação médica ou até mesmo retirar a necessidade de reflexão e novas práticas na formação acadêmica desta graduação, assim como as intervenções referentes a esta profissão. Entretanto, o que não pode deixar de levar em consideração é que a assistência em saúde não diz respeito apenas ao médico, mas é composta por uma gama de outras especialidades que se unem para cuidar da integralidade do ser humano. Compreendendo inclusive, que a saúde não seja ausência de doença para que seja cuidada como algo especificamente biológico. Mas que seja um bem-estar físico, mental, levando em consideração a autonomia, justiça, beneficência (Araujo, Brito, Novaes, 2008). Entendo que a agenda midiática utiliza destes discursos para favorecer a postergação do modelo biomédico e o hospitalocêntrico.

O modelo biomédico surge no final do século XIX e início do XX, a partir das influências da Escola de Cnido, Modelo Cartesiano, Medicina dos Tecidos e do Positivismo. Este modelo se caracteriza a partir dos aspectos do: reducionismo biológico, exclusão do psíquico e uma visão fragmentada do ser e do adoecer (De Marco, 2003).  Já o modelo hospitalocêntrico é centrado na assistência hospitalar e atenção curativa. Estes dois modelos se retroagem.

O modelo biomédico é uma ideologia que sustenta e justifica uma maneira de produzir cuidados ao paciente através de práticas medicamentosas, especialistas. Onde, medicam mais, realizam mais cirurgias e escutam e olham menos para o ser que está na sua frente. E só para lembrar, existem outras maneiras de cuidar, por mais que estejamos esquecidos.

Manter esta agenda midiática por meio da compra destes discursos é uma forma de aprovar o não-olhar do médico para o paciente. As notícias veiculadas na mídia produzem subjetividades, tanto naqueles que estão nos postos de saúde, hospitais trabalhando e os que vão nestes locais buscar saúde. Então, se vamos questionar as práticas e a formação em medicina, por quê não questionar também as outras formações que abrangem a saúde, as formas de cuidado. A saúde não se restringe à Medicina! A sociedade não pode deixar que a saúde assim se configure.

Referências:

DE MARCO, Mário Alfredo. A Face Humana da Medicina: do Modelo Biomédico ao Modelo Psicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

ARAÚJO, Arakén Almeida; BRITO, Ana Maria de; NOVAES, Moacir de. Saúde e Autonomia: Novos Conceitos São Necessários? Revista Bioética, vol. 16, n° 1, 2008.

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