Grace and Frankie: uma ode à meia idade, à amizade e ao recomeço

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“Nós somos como vinho, ficamos melhores com o tempo.” – Frankie

A série Grace e Frankie é uma refrescante comédia que narra a jornada de duas mulheres que se reinventam e desafiam paradigmas aos 70 anos. Após quatro décadas de casamento, suas vidas são viradas do avesso quando descobrem que seus respectivos maridos mantinham um relacionamento amoroso há 20 anos e agora decidiram se casar. Devastadas e sem rumo, Grace e Frankie — personalidades opostas — veem seus caminhos se entrelaçam ao serem forçadas a dividir a casa de praia que pertence a ambas as famílias.

O que começa como uma convivência turbulenta se transforma em uma amizade poderosa. Entre risadas, desentendimentos e descobertas, Grace e Frankie constroem um vínculo que as fortalece, recusando-se a aceitar imposições e limitações sociais. Juntas, exploram novos prazeres, redescobrem seus corpos e unem suas mentes brilhantes e criativas, provando que as mulheres são capazes de tudo — em qualquer fase da vida.  

Grace, sofisticada e controladora, e Frankie, uma artista livre e espirituosa, têm personalidades opostas, o que torna a convivência um desafio repleto de impasses e divergências. No entanto, essa relação também é sua maior força: suas diferenças as complementam e as desafiam, despertando uma na outra, potencialidades até então desconhecidas. A série aborda questões fundamentais como aceitação do corpo, desejo sexual e a importância de viver plenamente e com autenticidade.  

Quebrando barreiras, Grace e Frankie escancararam a invisibilização do desejo feminino em mulheres maduras e questionaram a ideia de que a sexualidade tem prazo de validade. A trama explora temas como masturbação, sexo a dois e a necessidade de produtos específicos para o prazer feminino nessa fase da vida, como lubrificantes e vibradores. Com sensibilidade e humor, a série reforça que intimidade e prazer não são exclusividade da juventude.  

Fonte: https://shre.ink/e4Gb

A dinâmica familiar também ganha destaque, explorando os desafios das relações intergeracionais. O convívio com os filhos revela nuances sobre diferentes tipos de maternidade, expectativas e individualidade. Filhos que amam suas mães, mas precisam lidar com suas próprias inseguranças e medos; mães que desejam ser cuidadas, mas se recusam a renunciar à própria independência. Ao longo da série, acompanhamos a luta de Grace e Frankie para provar que são perfeitamente capazes de cuidar de si mesmas. Com bom humor, teimosia e uma dose de caos, elas desafiam os estereótipos da velhice, mostrando que essa fase da vida pode ser sinônimo de vitalidade, ousadia e autodescoberta.  

Outro ponto central da trama é a relação com os ex-maridos, Robert e Sol. Assumidamente gays, eles precisam lidar com a culpa e a dificuldade de reconstruir laços com as ex-esposas e os filhos. Para Grace e Frankie, o impacto da revelação é devastador, levando-as a questionar suas próprias identidades e os papéis que desempenharam ao longo de seus casamentos. No entanto, ao longo da série, vemos essa dor se transformar: da mágoa e do ressentimento surgem a amizade, o respeito mútuo e novos formatos de relações familiares.  

As histórias românticas também assumem um papel importante. Depois de décadas de casamento, Grace e Frankie se veem solteiras e livres para explorar novos amores. Seus relacionamentos são retratados de forma leve e divertida, com momentos cômicos e situações inusitadas, mas a série também aborda temas como insegurança, medo da rejeição e a necessidade de se sentir desejada e amada, independentemente da idade. A trama desafia os estereótipos sobre amor e sexualidade na terceira idade, mostrando que relacionamentos intensos e significativos podem acontecer após os 70 anos.  

Ainda assim, o grande coração da série é a amizade entre Grace e Frankie. Juntas, elas descobrem que são revolucionárias, aprendendo sobre liberdade, amor e o direito de existir sem que suas identidades sejam anuladas no processo. Grace e Frankie é uma série arrebatadora que nos convida a refletir sobre como a cultura apaga e invisibiliza corpos, tornando essencial que essas vozes sejam ouvidas. Mais do que nunca, a série reforça que idade não define o potencial de uma mulher — e que ter alguém ao lado para segurar sua mão torna essa jornada ainda mais poderosa.  

Ficha técnica
 Título original: Grace and Frankie

Estrelando: Jane Fonda, Lily Tomlin, Martin Sheen

Criação: Marta Kauffman, Howard J. Morris

Ano de Produção: 2015

Gênero: Comédia e drama

País de Origem: Estados Unidos

Lily Tomlin conquistou quatro indicações ao Emmy e uma ao Globo de Ouro por seu papel nesta série de comédia.

 

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The Midnight Gospel: uma reflexão sobre a morte e a busca pelo perdão

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The Midnight Gospel, uma série animada criada por Duncan Trussell e Pendleton Ward, destacou-se por seu formato inovador e temáticas profundas. Lançada na Netflix em 2020, a série combina uma estética psicodélica com diálogos filosóficos e espirituais que busca trazer ao espectador, reflexões sobre questões existenciais. A animação nos convida a uma jornada introspectiva pelos confins do multiverso. No episódio 4, “Ordenando um Corvo”, o protagonista Clancy, em mais uma de suas aventuras intergalácticas, encontra-se em um mundo medieval ao lado da Milady Trudy. Juntos, embarcam em uma jornada de vingança que, aos poucos, se transforma em uma profunda reflexão sobre o perdão. Milady Trudy, é uma figura complexa que encarna muitos dos temas centrais explorados na série. Ela é retratada como uma mulher medieval que vive isolada, contudo tendo alguns companheiros a qual busca quando necessário. Dominada por sentimentos de raiva, ressentimento e desejo de vingança, seu personagem serve como um símbolo da luta interna que muitas pessoas enfrentam ao lidar com emoções dolorosas e traumas do passado.

A temática do perdão, central neste episódio, é explorada de forma poética, psicológica e filosófica, utilizando analogias e metáforas que nos convidam a questionar nossas próprias crenças e valores. A Milady Trudy, com sua carga de ressentimento e desejo de vingança, personifica a dificuldade que muitos de nós enfrentamos em perdoar aqueles que nos feriram. A metáfora das “barras”, utilizadas por Clancy para representar as memórias dolorosas do passado, é particularmente reveladora. Ao carregarmos essas barras, carregamos também o peso emocional das experiências negativas, o que pode nos impedir de seguir em frente. Segundo Maraldi (2017), o perdão envolve um processo psicológico multifacetado, que inclui a tomada de decisão consciente de perdoar, a elaboração emocional das ofensas e o cultivo de sentimentos de compaixão e empatia. Ele enfatiza que o perdão é fundamental para a promoção do bem-estar psicológico e a recuperação de relacionamentos saudáveis”.

Fonte: Netflix – The Midnight Gospel

A jornada de Milady Trudy e Clancy nos mostra que o perdão é um processo gradual e complexo. A busca por vingança, muitas vezes, é uma forma de tentar recuperar o controle sobre uma situação que percebemos como injusta. No entanto, ao nos apegarmos à raiva e ao ressentimento, é nosso próprio bem-estar que colocamos em risco.

Além disso, o episódio aborda a importância do mindfulness e da aceitação, que são conceitos centrais na Psicologia contemporânea. A prática de mindfulness, que envolve estar presente no momento e aceitar a realidade como ela é, pode ser vista na maneira como o personagem aceita sua morte inevitável. Mindfulness ou Atenção Plena é o termo ocidental para denominar a prática de meditação praticada no Zen Budismo. Jon Kabat Zinn idealizou o programa “Redução de Estresse Baseado em Mindfulness (Mindfulness Based Stress Reduction – MBSR)”. O termo Mindfulness traduzido para o inglês é conhecido como “Atenção Plena” (GERMER, SIEGAL & FULTON, 2016). Contudo, a tradução não corresponde com a amplitude da prática Jon Kabat-Zin (2017, p.26), que inclui prestar atenção de maneira particular no propósito, no presente e o mais importante, sem haver julgamentos.

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) explora a aceitação incondicional como uma maneira de lidar com o sofrimento, e essa filosofia está fortemente presente nas interações entre Clancy e Trudy que ele entrevista. Estudos empíricos sugerem que a aceitação é uma estratégia eficaz para lidar com o luto e a ansiedade relacionada à morte, o que reforça a relevância das ideias apresentadas no episódio. Socialmente estamos cada vez mais conectados, em contrapartida tendemos a nos desconectar de nós mesmos e dos nossos momentos (Kabat-Zinn 2017, p. 91).

A solidão, outro tema recorrente no episódio, está intimamente ligada à dificuldade de perdoar. A Milady Trudy, isolada em seu castelo, busca consolo na vingança, na tentativa de preencher o vazio interior causado pela perda de seu amado. A série nos mostra que a conexão com os outros é fundamental para nossa saúde mental e que o perdão pode ser um caminho para superar a solidão e encontrar um novo sentido para a vida. Essa solidão pode ser vista como um reflexo de uma sociedade individualista, onde as conexões humanas autênticas se tornam cada vez mais raras. A busca pela vingança, nesse contexto, pode ser interpretada como uma tentativa desesperada de se conectar com algo maior do que si mesma, a ausência de uma comunidade solidária e acolhedora dificulta a superação do trauma e a busca pelo perdão.

A estética visual de “Ordenando um Corvo” é um elemento fundamental para a construção do significado e da atmosfera do episódio. A animação psicodélica, as cores vibrantes e as formas orgânicas criam um universo onírico e surreal que reflete a complexidade dos temas abordados. A animação pode ser vista como uma representação visual do interior da mente de Milady Trudy. As cores vibrantes e as formas distorcidas refletem a turbulência emocional que ela experimenta.

Muitas das imagens utilizadas no episódio possuem um significado simbólico. Por exemplo, o corvo pode ser interpretado como um símbolo da morte ou da má sorte. A natureza é representada de forma exuberante e selvagem, contrastando com a artificialidade do castelo de Milady Trudy. Essa oposição pode ser interpretada como uma metáfora da luta entre a natureza humana e a civilização.

“Ordenando um Corvo”, nos convida a uma profunda reflexão sobre a natureza do perdão, e a importância de cultivar relacionamentos saudáveis. Ao explorar os conceitos de perdão, solidão e busca por sentido, o episódio nos mostra que a jornada de autoconhecimento é um processo contínuo. A série como um todo, nos presenteia com uma obra que transcende a ficção científica, oferecendo ferramentas para lidarmos com as complexidades da vida e encontrar paz interior.

Referências 

GERMER, Christopher K; SIEGEL, Ronald D.; FULTON, Paulo R. Mindfulness e psicoterapia. Tradução: Maria Cristina Gularte Monteiro; rev. Melanie Ogliari Pereira. -2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.

KABAT-ZINN, J. Viver a catástrofe total: como utilizar a sabedoria do corpo e da mente para enfrentar o estresse, a dor e a doença; tradução de Márcia Epstein; prefácio de Thich Nhat Hann. – Ed. rev. e atual – São Paulo: Palas Athena, 2017.

MARALDI, Everton de Oliveira. Perdão e espiritualidade na psicologia: uma revisão de literatura e considerações para pesquisa no Brasil. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 22, p. 119-130, 2017.

WARD, Pendleton; TRUSSELL, Duncan. The Midnight Gospel. Los Angeles: Netflix, 2020. Disponível em: https://www.netflix.com. Acesso em: 16 ago. 2024.

 

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Casamento às Cegas Brasil: A exposição do Complexo Materno e o Mito Afrodite – Eros

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Como o relacionamento de Veronica e Will foi atravessado pelo complexo materno e como o mito de Afrodite e seu filho Eros pode elucidar o contexto.

 

Divulgação Netflix

Will e Veronica no altar.

Casamento as Cegas: Brasil é um reality show da Netflix baseado na versão americana Love is Blind. O programa, que é chamado de experimento pelos apresentadores (Camila Queiros e Kleber Toledo), segue com 16 participantes homens e 16 participantes mulheres com o intuito de encontrar o amor de sua vida, sem prévio contato físico. No primeiro momento os participantes não sabem como é (fisicamente) a pessoa que está conversando, apenas ouvindo as nuances da voz, as histórias, as promessas e suas percepções dentro das cabines por 10 dias seguidos. Após a fase das cabines os casais fazem o pedido de casamento, se encontram numa passarela pela primeira vez e após isso vão para a lua de mel em um lugar paradisíaco por uns dias, até serem levados para a fase do “dia a dia”, colocados em um apartamento para conviverem até a data do casamento. Todo o processo dura 30 dias.

As cabines são chamadas de capsulas e os participantes vão de capsula-em-capsula atras do seu “amor”. O que ao primeiro olhar o programa se remete ao amor líquido descrito por Bauman e repostado exacerbadamente as quintas de #TBT, mas surpreendentemente o reality te prende e te faz sentir a sensação de alguém realmente encontrar o amor nessa forma peculiar. Bem estilo americano de encapsular sentimentos e vender como show, como já sabemos. Mas na segunda temporada um casal chamou bastante atenção devido seu match desde o primeiro encontro, o caminho apaixonado e de companheirismo e o final inusitado. Atenção: partir deste momento teremos spoilers.

Divulgação Netflix

Veronica e Will foram o primeiro casal a se “apaixonar” e a fazer o pedido para seguir para a nova etapa. Numa cena emocionante, onde o Will se ajoelha em frente a tela para pedir a “maravilhosa” – como ele a chama – em casamento. Ambos dizem sim e se preparam para o encontro aonde irão se ver pela primeira vez. No encontro há brilho nos olhos, paixão no primeiro beijo e reforço do sentimento construído nos dias das cabines. Nasce um casal apaixonado! Seguem para a lua de mel em um resort na Amazonia Brasileira, o que reforça ainda mais a química do casal, sendo um dos matchs mais reforçados da temporada pelos próprios participantes. Verônica tem 31 anos de idade é modelo e empresária e Will tem 26 anos de idade trabalha como analista e ambos moram na casa dos pais.

O casal apaixonado é direcionado para a “vida comum” para vivenciarem a vida a dois no dia a dia em um apartamento, onde ambos podem conhecer suas rotinas, jeito de ser, as famílias e suas casas. Em todos os momentos o casal se mostrava cada dia mais apaixonado e conectado. É nessa etapa que o casal é apresentado à mãe de Will, personagem importante nessa narrativa, que já se mostra desconfortável com a situação. Nada menos do que o esperado até então, afinal, um casamento é coisa séria, como reforçam quase todos da família ao se apresentarem, e colocar a vida em um experimento a nível nacional não é comum quanto se relacionar tradicionalmente. Até esse ponto a mãe de Will é apenas uma mãe preocupada com o direcionamento do filho, muito comum nos aspectos positivos do complexo materno, que se trata daquele amor materno que pertence às recordações mais comoventes e inesquecíveis da idade adulta e representa raiz de todo-vir-a-ser e toda transformação segundo JUNG, 1961.

Após muitos episódios que não cabem aqui, eis que chega o grande dia do casamento, noiva de vestido de noiva, emocionada, noivo vestido de noivo também emocionado. E uma cena muito peculiar do Will com os amigos (que são padrinhos) sentados à mesa comemorando a chegada do grande dia, onde Will diz que “está perdidamente apaixonado por essa mulher e nada vai fazê-lo dizer não”, os amigos brindam felizes, e uma amiga de Will pergunta, se ele se casará mesmo se a mãe não aprovar, ele refuta e diz que as escolhas dele são dele e que a decisão do “sim” já está tomada desde sempre.

Corta para a cena da família de Will chegando à mesa, arrumados para o casamento e a mãe pergunta se é isso mesmo que ele quer fazer, afirmando que ele é jovem, tem muitas ciosas para viver, novas pessoas para conhecer além de ter tudo o que ele precisa na casa dela. Segundo JUNG, 1875, os efeitos do complexo materno no filho se diferem entre alguns pontos, mas principalmente atitudes de imaturidade e de dom-juanismo (o conquistador sem profundidade), afinal se aprofundar pra que se tem “tudo” na casa da mãe? De modo inconsciente o filho fica preso à figura da mãe e essa é procurada inconscientemente “em cada mulher”. O que pode trazer efeitos maléficos para esse “futuro-homem”. Will tem 26 anos de idade, já é um homem, mas um dos efeitos do complexo materno negativo no filho é justamente esse “menino” nunca crescer e ficar enraizado no lar materno, o castrando da potencialidade da própria vida.

Como fenômeno patológico esse tipo de mãe tira do filho as possibilidades de vida e a própria vida se resume em trazer conforto, segurança ou “favores” maternais. Como no mito de Afrodite e seu filho Eros o deus da paixão (mais conhecido em algumas histórias com o formato de cupido) cuja sua única função ao ser criado foi vingar Afrodite (deusa da beleza), que estava invejada por uma mortal chamada Psique, considerada tão linda quanto uma deusa. Afrodite enviou Eros para flechar psique (as flechas de Eros tinham o poder de fazer alguém amar ou odiar de imediato), e em consequência se apaixonasse por um monstro, e de nada adiantaria sua beleza, por pura inveja. Porém ao ver Psique, Eros errou a flecha e se apaixonou por ela.

Divulgação Netflix

Voltando para história de Will e Veronica, após a conversa com a mãe que dizia que se ele dissesse “não” na hora do casamento ela estaria lá para receber ele e apoiá-lo.  E que ela não o julgaria, pois ele tem muita vida pela frente. Clima tenso percebido pela produção do programa, e o próprio apresentador, Kleber Toledo, foi conversar com Will e a mãe, dando seu próprio exemplo, de que sua vida só melhorou e andou para frente após seu casamento, que ele então era outro homem! A cena segue para a entrada do noivo com a mãe na cerimônia, os convidados sentados à espera da noiva que chegara radiante com seu vestido branco, sorrindo até ao altar. A cerimonialista em seu discurso pergunta à Verônica se aceita Will em casamento, ela reponde um emocionado “SIM”, e segue a pergunta para Will, que em hesitação reponde “maravilhosa, hoje será um não”.

Todos os convidados amigos próximos de Will se assustam, pois é o oposto que afirmou há alguns minutos atras em roda de conversa na mesa, indo contra toda a trajetória do casal, enquanto Veronica sai apressada pela passarela da marcha nupcial. A cena que se segue é de Will conversando com a mãe, onde ela o acalenta, afirmando que ele fez o que seu coração mandou e ninguém tem nada a ver com a sua vida, que ela sempre estará lá por ele e que há muita vida pela frente. Neste contexto, o complexo materno está diretamente ligado ao eros exacerbado (não o deus citado acima, mas a parte libidinal humana), a mãe devoradora, castra o filho da vida. Fantasiada de proteção ou amor maternal da parte sombria materna, pode inconscientemente levar o filho ao caminho de comodismo, não desenvolvimento (puer aeternus) e uma existência insipida, que ela acredita ser o melhor, mas não necessariamente.

Como visto no mito Afrodite – Eros, o filho a desobedeceu, não acertando a flecha em vingança à Psique, e sim, se apaixonou pela própria, indo contra tudo o que a mãe o criou para fazer. Eros e Psique mais à frente do mito se casam e tem uma filha chamada Hedonê, a deusa do prazer. Há um momento em que os filhos naturalmente, deixam o papel principal de filho e se tornam novos papeis principais, faz parte da jornada individual de todas as pessoas esse processo. O mito nos traz caminhos para respostas diante do complexo materno exposto no texto. Eros além de desobedecer a mãe para seguir sua vida casou-se com Psique e o casal deu à luz a deusa do prazer, Hedonê. Importante notar que do grego, Psiquê significa alma. Podemos então parafrasear que a desobediência de um homem adulto à mãe e o encontro com sua alma (psique) dá frutos para o gozo (Hedonê) da vida completa.

Faz parte da vida adulta desligar-se dos desejos parentais para viver seus próprios desejos. Já ligou para sua mãe hoje?

Referências

 

JUNG, C.G., 1875-1961. Quatro Arquétipos: mãe: renascimento: espírito: trickster; Tradução Gentil Avelino Titton, Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

Noites Gregas, ep. 19, [Locução de]: Claudio Moreno. Porto Alegre. noitesgregas.com.br 21/10/2020.

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Uma Advogada Extraordinária e a socialização de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo

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A série sul-coreana “Uma Advogada Extraordinária”, lançada em julho pela Netflix, se tornou uma das mais vistas da plataforma no Brasil e no âmbito global e já está com sua segunda temporada confirmada pelo streaming, com lançamento previsto para 2024. Com uma memória fotográfica que impressiona o público, alto QI de 164 e um amor infinito por baleias que caracterizam uma função essencial no seu processo de pensamento, a trama apresenta ao telespectador o mundo das baleias de Woo Young Woo, uma advogada de 27 anos que foi diagnosticada com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) na infância.

Caracterizado como um transtorno neurológico associado ao desenvolvimento, o TEA causa prejuízos na comunicação, interação social e comportamental. Segundo SCHWARTZMAN, “o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por alterações qualitativas e quantitativas na comunicação, interação social e no comportamento, em diferentes graus de severidade (SCHWARTZMAN, 2003, 2011; SECRETARIA DA SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013; APA, 2013).

O K-drama conta a história de Woo Young Woo, que se formou em Direito com o destaque de melhor aluna na renomada Universidade Nacional de Seul e, após vivenciar obstáculos e preconceitos para conseguir um emprego, começa a trabalhar em um renomado escritório de advocacia da Coreia do Sul e passa a enfrentar as dificuldades características do TEA no processo de socialização. No escritório, começa a ser vista como estranha, solitária, fraca e incapaz, sendo alvo de discriminação e perseguição.

Fonte: Divulgação Netflix

Ainda que siga uma característica romantizada das produções coreanas, a série busca explanar de forma respeitosa, sensível e educativa as características do TEA, como a repetição, seletividade alimentar, aversão ao toque, comportamentos repetitivos e restritivos, dificuldade em interações sociais e aversão à exposição ao barulho. Woo Young Woo possui inteligência elevada na área do Direito, sabe todas as leis e seus artigos na ponta da língua e tem obsessão por baleias, sendo, por muitas vezes, o único assunto que lhe interessa conversar, características da Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista.

No desenrolar da série, a brilhante Woo Young Woo, à sua maneira com seu mundo de baleias e conhecimento esplêndido em assuntos que são suas especialidades, torna-se uma profissional essencial no escritório pela sua inteligência e seu olhar único para a resolução dos casos, geralmente percebendo detalhes que os outros advogados não constatam, o que a torna peça fundamental para a resolução dos casos, fazendo com que a empresa os ganhe nos tribunais.

A adaptação funcional da protagonista também está ligada à sua relação com o pai que a série retrata. Conforme ASSUMPCAO E SPROVIERI (2001), a forma como a família lida será influenciada pela aceitação, interpretação e pela maneira com a qual os indivíduos lidam com os desafios aos quais são submetidos. Um bom funcionamento psicossocial representa um bom quadro de equilíbrio na coesão e adaptabilidade. Ou seja, uma boa capacidade de adequação da família frente às situações potencialmente estressantes.

Temple Grandin / Fonte: encurtador.com.br/xFJN2

Baseada em fatos reais, a trama jurídica foi inspirada na cientista americana, zootecnista e psicóloga, Temple Grandin, que também foi diagnosticada com TEA na infância e ficou reconhecida mundialmente por revolucionar as práticas para o tratamento de animais em fazendas e abatedouros que sofrem com a agropecuária, lutando e contribuindo para maior bem-estar deles. Em uma entrevista, Temple Grandin disse: “eu penso em imagens, eu não penso em linguagem falada. A mente autista se prende aos detalhes” e defendeu que o mundo precisa de todos os tipos de mentes.

A adaptação pessoal e profissional da protagonista que a série explana conquista e envolve o público, causando um misto de emoções acerca das revelações e descobertas sobre a mãe, o amor e as relações. A mensagem que passa é que o maior objetivo é desconstruir preconceitos de forma empática, pedagógica e promover reflexão em relação a imprescindibilidade da inclusão.

Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” – Paulo Freire

Referências

SPROVIERI, M. ASSUMPÇAO JR, F.B. Dinâmica familiar de crianças autistas, Arquivos da Neuropsiquiatria, São Paulo, vol. 59(2-A): p. 230-237, 2001.

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As lições de vida de Anne Shirley

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“Grandes palavras são necessárias para expressar grandes ideias”

A série canadense Anne with an E é baseada no livro Anne of Green Gables de L.M. Montgomery e se tornou um grande sucesso por abordar temas atuais em um contexto onde pouco era discutido sobre empatia, direitos humanos, respeito às diferenças e empoderamento feminino. A série é ambientada no século XIX, na década de 1890 e é protagonizada por uma menina órfã chamada Anne Shirley que com sua história e personalidade conquistou o coração de leitores e telespectadores da respectiva série. Neste trabalho serão abordadas três lições de vida que podemos aprender com Anne: a empatia, a quebra de preconceitos e a resiliência.

A história conta que Anne após a morte de seus pais, vai para um orfanato e que já foi adotada por outras famílias, mas que depois é devolvida para o orfanato. Lá ela sofre com o bullying das colegas por ser apaixonada por histórias que envolvem a imaginação e a poesia. Até que um dia ela é adotada por engano por um casal de irmãos idosos chamados Matthew e Marilla Cuthbert. Eles pensavam que estavam adotando um menino.

À primeira vista, Mattew ao conhecer Anne decide levá-la para casa, mas Marilla não a aceita pois queria que fosse um menino, para ajudar na produtividade da fazenda. Anne sofre, pois não quer ser rejeitada novamente e faz de tudo para que seja adotada pelos irmãos.

Osório (1996) ressalta que a família tem um papel muito importante na vida do indivíduo, sendo um modelo de referência que uma pessoa pode ter, além de exercer influência cultural, social, e no desenvolvimento em diferentes aspectos. Ter uma família, além de representar os papéis de pai e mãe, para Anne era uma forma de se sentir amada e acolhida.

Após ser aceita pelos irmãos Cuthbert, ela começa a frequentar a escola e faz uma amiga: Diana Barry e juntas fazem um juramento de amizade eterna. Na escola, Anne sofre preconceitos por ser órfã, ruiva e com sardas. Ela acreditava que essas características a deixavam mais feia que as outras meninas.

A primeira lição que podemos citar é a resiliência. Pois diante do preconceito por ser órfã e da rejeição das colegas, Anne teve que ter forças para prosseguir com seu sonho de frequentar a escola. Com o tempo, Marilla e Anne se tornam muito mais próximas fazendo com que ela se sinta mais segura para voltar a escola e seguir com sua vida.

Segundo Yunes (2001), a resiliência se refere a voltar ao seu estado de saúde mental ou de espírito após doenças, deficiências ou problemas. Também chamada de flexibilidade, pois fala sobre até que ponto um material ou uma pessoa podem suportar impactos e não sofrerem deformações.

Fonte: Imagem Divulgação Netflix

A empatia esteve presente em toda a história de Anne, podemos ver que ela nunca enxergou as outras pessoas como menores que ela ou piores, todos mereciam respeito e para ela, todos poderiam ser ótimos amigos. Com o tempo ela descobriu que as diferenças de gostos e sonhos faziam com que aproximasse ou afastasse as pessoas. Disputas amorosas também aconteceram, pois Ruby, uma garota apaixonada por Gilbert, percebe que ele trata Anne diferente e faz com que inicialmente sejam inimigas. Anne não se deixa abalar por isso e não trata Ruby diferente, pelo contrário ela tenta ser amiga. Anne também pratica a empatia quando ajuda Josie a se livrar do assédio de Billy. Mas sofre, pois foi apontada como culpada por Josie se tornar mal falada na ilha.

Em algumas situações, Anne se deixa levar pela sua revolta pessoal e impulsividade, tomava atitudes que para ela, beneficiaria a todos. Por mais que sua intenção fosse boa, afetou principalmente Josie que se sentiu exposta por um problema que era motivo de vergonha para a reputação dela.

Outro exemplo de empatia é quando ela faz amizade com Cole, um garoto que é homossexual e que se vê sem liberdade pois as pessoas não o aceitavam como ele era. Anne o entende e não o rejeita, e se emociona por saber que Cole encontrou um lugar onde pode viver sendo ele mesmo, após desistir de ir à escola devido ao preconceito das pessoas.

A empatia segundo Koss (2006) apresenta um significado que é “sentir de dentro de si”. Ales Bello (2004,2006) e Manganaro (2002), relatam que empatizar é se colocar no lugar do outro, simpatizar é compreender a vivência do outro como sendo sua. E que do ponto de vista fenomenológico, são reações do ânimo, portanto é um processo psíquico.

A quebra de preconceitos e a luta pelos direitos de liberdade de expressão são mais algumas das lições aprendidas com Anne. Enquanto ela acolheu Cole que lutava para encontrar seu lugar de aceitação, a chegada da professora que queria trabalhar, usar calças e andar de bicicleta, eram motivos de estranhamento para a época. Pois para a maioria das pessoas da época, as mulheres precisavam cuidar da casa, da família e ter aulas de etiqueta. Anne não deixou de sonhar com sua família, mas também não queria ficar refém de uma cultura padrão que em nada ajudava as mulheres.

Anne with an E — dailyawae: We are not here to provoke! We are...
Fonte: Imagem Divulgação Netflix

Anne e a turma da escola também lutaram contra a opressão que sofreram, pois, a educação que estavam tendo na escola, segundo os maiorais da cidade não era adequada. E por isso, a escola foi queimada e a professora foi praticamente expulsa e proibida de dar aulas. A turma conseguiu fazer um protesto para que as aulas voltassem e apresentaram para todos da ilha o que haviam aprendido com a professora. Por fim, conseguiram ter aulas novamente, e voltarem às atividades. Estes exemplos são de lutas que por anos foram necessárias para que nos dias de hoje tenhamos o direito à educação e liberdade de expressão na nossa democracia atual.

As autoras França, Santos e Sousa (2019), apontam que situações de preconceito são corriqueiras na nossa sociedade e que estão presentes em diversas áreas como as mídias sociais, instituições de ensino, nas famílias e nos demais grupos sociais. Dessa forma, o preconceito configura-se como um grande problema da sociedade. Faz-se necessário, cada vez mais, a compreensão e combate deste problema.

O combate se dá pelas estratégias de enfrentamento, como nas escolas onde pode ser trabalhada a superação das situações vividas pelas classes que mais sofrem, como por exemplo, as pessoas pretas, LGBTQIA + e as mulheres. Como também a conscientização de todos, principalmente daqueles que praticam o preconceito. Estas estratégias podem ser ampliadas para os grupos familiares também, onde dentro de casa as pessoas podem discutir e ensinar que somos diferentes e que cada um merece ser compreendido da forma que é, sem precisar ter que explicar o porquê de ser diferente (FRANÇA; SANTOS; SOUSA, 2019).

Ressalto que, a série nos mostra muitos valores que hoje em dia ainda integram nossas lutas, o preconceito sempre existirá na sociedade, e diante da modernidade líquida, que é a fragilidade das relações sociais (Bauman, 1999), a empatia com o outro e a resiliência para enfrentar as dificuldades do dia-a-dia se fazem muito importantes. Anne teve que vencer muitos obstáculos para que conseguisse realizar cada um dos seus sonhos. Sabemos que não são todas as pessoas que têm os mesmos privilégios. Muitos não têm acesso à educação, saúde básica, alimentação, e por isso não conseguem uma chance de realizar o que sonha.

Esta história nos inspira a lutar pelo que acreditamos, tudo o que sentimos e pensamos é importante, não podemos deixar de acreditar que iremos conseguir e que somos capazes de fazer acontecer o que tanto almejamos.

“Não é o que o mundo reserva para você, mas o que você traz para o mundo”

FICHA TÉCNICA

Anne with an E - Série 2017 - AdoroCinema

Título: Anne With An E (Anne com E)

Intérprete: Amybeth McNulty

Ano: 2017-2020

País: Canadá

3 temporadas

Gênero: Romance, Drama, Aventura

Duração dos episódios: 89 min.

REFERÊNCIAS:

Ales  Bello,  A.  (2004). Fenomenologia  e  ciências  humanas:  psicologia,  história  e religião(M. Mahfoud  &  M.  Massimi,  Orgs.  e Trads.). Bauru,  SP:  EDUSC.(Original  publicado  em 2004).

Ales  Bello,  A. (2006). Introdução  à  fenomenologia(J.  T.  Garcia  & M. Mahfoud,  Trads.). Bauru, SP: EDUSC.(Original publicado em 2006).

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Brasil: Zahar.

Koss, J. (2006). On the limits of empathy. The Art Bulletin, 88(1), 139-157

OSÓRIO, L. C. Família hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

Yunes, M. A. M. (2001). A questão triplamente controvertida da resiliência em famílias de baixa renda. Tese de Doutorado Não-Publicada, Programa de Psicologia da Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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San Junipero: imanência e transcendência entre o Dasein e o Mitsein

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Em 21 de outubro de 2016 estreou na plataforma Netflix o episódio San Junipero, da série Black Mirror, que trata principalmente de temáticas sobre ficção científica e assuntos existenciais entremeados por questões tecnológicas já observadas no mundo contemporâneo. Ao longo de 61 minutos, sob a direção de Owen Harris, acompanhamos a história de Kelly e Yorkie, vividas pelas atrizes Gugulethu Sophia Mbatha e Mackenzie Davis. Em um mundo futurista é possível que as pessoas passem longos períodos em uma realidade virtual, de profunda imersão e possibilidade de experiências e vivências e, eventualmente, alcançando um estado de permanência espaço-temporal e memorial não corpórea do existir, de uma forma praticamente transcendental, por meio de recursos neurológicos e tecnológicos.

Em uma destas realidades possíveis o bar San Junipero torna-se o ponto de encontro destas consciências em imersão compartilhada, virtual e tecnologicamente conectadas naquele lugar específico. É a partir deste plot inicial que a história e trajetórias das protagonistas se cruzam, real, virtual e existencialmente, nos convidando a um mergulho em questões sensíveis do estar consigo e com o outro, do abrir-se ao diálogo, desejo e sentimentos, ora em momentos de plenitude ora de esvaziamento do e de ser, tal como o Dasein do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976).

O Dasein heideggeriano pode ser definido como o ente humano, que é e está na diferença ôntico-ontológica de todos os demais entes do mundo; o Dasein também pode ser compreendido como dádiva, dúvida e fardo, ao mesmo tempo, que nos acompanha como seres humanos, estando na posição do aí (Da) do ser (sein), em espacialidade, temporalidade e existencialidade únicas, como ser-no-mundo. Como existência, uma das traduções possíveis para o Dasein, estamos tanto condicionados como direcionados à liberdade, como um projeto de inacabamento do devir existencial.

Fonte: encurtador.com.br/dfNSZ

Finitude, infinitude, melancolia e alegria são elementos e estados da consciência, inteligência artificial, relação entre transcendência-imanência-corporeidade que são trabalhados em San Junipero, e que podem ser encontradas em filmes como Blade Runner (1982), Her (2013) e Ex Machina (2015) – com algumas referências ao longa Thelma e Louise, de 1991 -, herdeiros de obras literárias como Frankenstein ou o prometeu moderno, de Mary Shelley, autores e autoras como Isaac Asimov, Mary Rosenblum, Arthur C. Clarke, Mari Wolf, Hiromi Arakawa e Philip Dick.

A conexão entre inteligência artificial, mundo digital e informacional e as ideias heideggerianas sobre a analítica existencial possuem já um panorama de desenvolvimento acadêmico e artístico (PRESTON, 1993; TEIXEIRA, 2009; MASÍS, 2009). O que observamos no episódio de Black Mirror é um outro, especial e rico, exemplo de como trabalhar de forma sensível muitos dos dilemas e questões do existir e devir da existência. Mais que explorar situações existenciais e espirituais/metafísicas pelo humano e a I.A, San Junipero opera em condições de aplicação e demonstração de temas metafísicos, ontológicos e comuns a diferentes teorizações filosóficas, humanistas, sociais e psicológicas no limiar entre o Dasein e o Mitsein (ERICKSEN, 2017)..

Nas palavras do próprio Heidegger, o Dasein, como ser-aí e existência: “Chamamos existência ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira. Como a determinação essencial desse ente não pode ser efetuada mediante a indicação de um conteúdo quididativo, já que sua essência reside, ao contrário, em sempre ter de possuir o próprio seu como seu, escolheu-se o termo presença para designá-lo enquanto pura expressão do ser.” (HEIDEGGER, 2008, p. 48).

Fonte: encurtador.com.br/tyPV8

Os elementos ficcionais, oitentistas e estéticos em San Junipero servem como o plano de fundo para a união possível do eu com o outro, mediados pelo ser-aí heideggeriano. Se se cabe ao Dasein abrir-se para o sentido de si próprio e do mundo, então seja no plano imanente das paisagens do episódio ou transcendente, de uma realidade temporal fictícia imaginariamente compartilhada, o que irá imperar é a condição especial do ser-se humano, aberto ao (in)finito de seu próprio devir. Ao longo do episódio da série há elementos temáticos sobre existência, questões pós-morte, o propósito do existir, sentimentos, envelhecimento, temporalidade, alteridade, espacialidade e (i)racionalidade tornando-se perpassagens do devir como abertura ôntico-ontológica do saber-se e des-conhecer-se, como liberdade com e ao outro que nos in-completa (STEIN, 2001; ASTRADA, 1942).

Pela condição do daseinphaenomen, ou seja, o fenômeno existencial, temos o percurso de uma vida como uma miríade de escolhas, estados de consciência, emoção, sensação, percepção e, principalmente, experiências circunstanciais com e no mundo. Ao longo das paisagens, lugares, falas e interações das personagens de Gugulethu Sophia Mbatha e Mackenzie Davis acompanhamos esta condição humana do Dasein que é: “portanto, o existir em cada caso particular, no aí, no ‘estar sendo’ de cada um. Assim, o existir fático determina  um  modo de  compreensão da  existência  que  já  se  dá  no interior e  a  partir  de  si  mesma, de  tal forma que esta nunca pode ser contemplada ‘de fora’, como um objeto perante um sujeito. Somente o Dasein – efetivo e em cada caso – compreende sua existência (Existenz)”. (PÁDUA, 2005, p. 10).

E, mais que a conexão, proximidade e, eventualmente, questionamentos tanto sobre a finitude como infinitude da existência, há uma abertura transcendental e utópica em San Junipero ao que Heidegger chamou de Mitsein, que é uma das variações epistemológicas do Dasein, traduzido como ser-com-os-outros, ou apenas ser-com – como variação ao ser-em, também elaborado pelo filósofo alemão. Kelly e Yorkie se (des)encontram tanto no plano ôntico finito como ontológico infinito, permitido, de forma especial e intrigante, por meio da tecnologia e inteligência artificial de um mundo futuro que observamos apenas a silhueta.

O Mitsein como o Dasein que se encontra no des-velamento de si mesmo no outro é a abertura ao (in)finito à outrem, não mais um ente, como corpo-consciência, que assim como o eu, possui a abertura do questionar o ser e a essência de todas as coisas, do sentir o desejo, partilhar as perdas e conquistas e viver, cada momento, da forma mais intensa possível (LEVINAS, 2018). Diálogos, silêncios, sentimentos e partilhas formam a ponte do si ao si, pelo outro, na relação entre as protagonistas do singular episódio de Black Mirror.

Fonte: encurtador.com.br/gkmR6

Referências

ASTRADA, Carlos. El juego metafísico: para una filosofía de la finitud. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Editorial, 1942.

ERICKSEN, Lauro. Verdade, desvelamento e ser-com: o entendimento compartilhado do dasein. GRIOT, v. 15, p. 44-59, 2017.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito: Ensaio sobre a Exterioridade. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2018.

MASÍS, Jethro. Fenomenología hermenéutica e inteligencia artificial: Otra urbanización de la provincia heideggeriana. Buenos Aires, Argentina. Mayo de 2009.

PÁDUA, Ligia Teresa Saramago. A “Topologia do ser”: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. 2005. Tese (Doutorado em Filosofia) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Janeiro: PUC-Rio, 2005.

PRESTON, Beth. Heidegger and Artificial Intelligence. Philosophy and Phenomenological Research v. 53, n. 1, Mar, p. 43-69, 1993.

STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001.

TEIXEIRA, João de Fernandes. O fenomenólogo, o neurocientista e o engenheiro. Filosofia (São Paulo), São Paulo, p. 36 – 37, 15 jan. 2009.

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A ligação: um jogo de passado, presente e futuro

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A ligação (2020), estreia da Netflix deste ano, figura no Top 10 dos assistidos e por uma boa razão. Seo-yeon, uma das personagens principais, retorna para a casa que morou quando criança e recebe ligações estranhas de uma desconhecida pedindo por ajuda. Após descobrir o diário da mulher que lhe ligou numa espécie de porão da residência, acaba por descobrir que as duas estão na mesma casa, só que em tempos diferentes.

O jogo de passado e futuro influenciando um ao outro é uma das marcas do filme, que lançam as duas personagens, Seo-yeon e Oh Young-sook, em uma narrativa muito interessante sobre doença mental, luto e até onde as pessoas vão em nome dos próprios interesses. Seo-yeon e Oh Young-sook se tornam muito próximas através das ligações cotidianas, contando sobre suas famílias, como vivem e as diferenças existentes em cada época.

Foto: filme A ligação (2020)

Assim, ficamos cientes de que Seo-yeon mora sozinha, sua mãe está internada em um hospital em quadro aparentemente crítico e que seu pai morreu em um acidente doméstico quando ela era criança. Sobre Oh Young-sook, de que vive com sua madrasta que a tortura constantemente pois acredita que ela esteja possuída por demônios, além de enclausurá-la dentro de casa e manter sua rotina rigidamente.

Em dado momento, após Oh Young-sook encontrar no passado Seo-yeon ainda criança, procuram realizar a tentativa de evitar o acidente ocorrido com o pai de Seo-yeon e assim, consequentemente, evitar sua morte. A experiência tem sucesso e numa cena que lembra Matrix (1999) ou A Origem (2010), o presente de Seo-yeon é completamente alterado, mediante a mudança no passado.

Foto: filme A ligação (2020)

Nesse presente, seu pai está vivo e sua mãe não está doente, alterando também outras questões de ambiente, como a casa que vivem, como se comportam e outros. A relação das duas é equilibrada até o momento que Oh Young-sook percebe que a amiga está ignorando-a em nome de ter momentos com a família e sua madrasta descobrir que ela está falando com alguém ao telefone. Após mais uma sessão de tortura, Oh Young-sook retorna para a amiga, que lhe informa que ela será assassinada pela madrasta num ritual de exorcismo para “cura da doença mental”. Depois disso, fica claro que o futuro tem o benefício do conhecimento, pois tudo o que já passou foi documentado de alguma forma e pode ser utilizado pelas duas.

Foto: filme A ligação (2020)

Depois do assassinato e de finalmente se ver livre, Oh Young-sook sai às ruas, faz compras e experienta o que já desejava: um pouco de vida “normal”. A personagem não aparenta remorso em nenhum momento pelo o que fez, nem sequer no assassinato seguinte, quando mata um fazendeiro que a visita, por ter encontrado o corpo de sua madrasta na geladeira.

Quando observada a ausência repentina do fazendeiro que era amigo de sua família, Seo-yeon descobre através de relatórios policiais que Oh Young-sook foi acusada pelo homicídio das duas pessoas e condenada à prisão perpétua. A partir de então, a trama muda de direção e o que era amizade se torna hostilidade e ameaças, pois Oh Young-sook deseja saber qual prova a incriminou e assim evitar de ser presa, informação da qual apenas Seo-yeon pode lhe dar.

Na sequência, a história se dedica ao jogo de passado-futuro entre as duas personagens, com muitas reviravoltas, mortes e violência envolvida no processo. Até onde ir para evitar a morte de um familiar? Como processar o luto, quando ele ocorre mais de uma vez pela mesma pessoa? Quais os limites de comportamento em pessoas diagnosticadas com transtornos mentais? O filme é muito bem produzido e apesar da impossibilidade da trama, é interessante pensar o que faríamos se pudéssemos alterar nosso passado, presente e futuro. Ao final, resta a impressão de confusão, ao percebermos que as influências entre os tempos eram maiores do que inicialmente inferido.

Download Gunjan Saxena The Kargil Girl (2020) Hindi 480p [450MB] || 720p [1GB] || 1080p [3.7GB] – KatmovieHDonline

Título Original: Call
Ano de produção: 2020
Dirigido por: Lee Chung-hyun
Gênero: Suspense, Terror
Países de Origem: Coreia do Sul
Duração: 112 minutos

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O Dilema das Redes: o Dilema Capitalista

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Em 2018 defendi minha tese de doutorado, cuja questão central era compreender a interveniência do Google no modo corrente (senso comum) para conceituar, diagnosticar e tratar o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) – diagnóstico cada vez mais comum em crianças em idade escolar. Tratei o Google como um Oráculo, o Oráculo contemporâneo para o qual lançamos todas as nossas perguntas e questões, inclusive aquelas relacionadas a diagnósticos. Quem nunca tentou se autodiagnosticar ou diagnosticar alguém por meio dessa ferramenta digital, que atire a primeira pedra.

Uma das coisas que aprendi na minha pesquisa, estudando os mecanismos do maior buscador da WEB, é que ele é um Oráculo bastante peculiar. Além de suas respostas não virem na forma de enigmas a serem decifrados, como era o caso dos Oráculos antigos, seu algoritmo é capaz de interferir na pergunta que faremos a ele. Ou seja, o Google sabe a resposta para a sua pergunta, mas também sabe bastante sobre a pergunta que você fará. Outra peculiaridade deste Oráculo é que ele é capaz de monetizar toda informação que possui; sobre o que você procura, e sobre você. Seu sistema altamente inteligente é capaz de, a partir da sua pergunta e do modo como você navega, te oferecer uma mercadoria, mas também, te oferecer como mercadoria para outrem. Para o supercomputador que coordena e organiza o maior buscador da WEB (a preferência pelo Google chega a 91%), todo ponto de conexão é um ponto para lucrar.

Meu percurso de tese foi seguir as orientações do buscador como se eu quisesse me informar sobre como diagnosticar ou tratar alguém com os sintomas do TDAH. Logo de início percebi que teria que burlar o algoritmo, para que ele não soubesse que era eu fazendo a pesquisa, porque isso influenciaria o tipo de resposta que ele me daria. Afinal, a internet já sabia sobre mim e a minha tese. Eu nem precisava pesquisar por novas publicações sobre TDAH, por exemplo, a Amazon já me atualizava sempre que um novo livro sobre o tema era lançado.

Assim, simulando uma pesquisa leiga e despretensiosa sobre certos sintomas compatíveis com o TDAH, me interessava saber para onde os 10 primeiros links de busca me levariam. Vale destacar que cerca de 52% dos internautas só verificam a primeira página (os primeiros 10 links de uma busca) e apenas 10% olham os resultados depois da terceira página.

Convido vocês a adivinharem o primeiro local para o qual o Google me levou…

O primeiro resultado da busca se apresentava apenas como um local de informações técnico-científicas e orientações sobre TDAH, com indicação de testes rápidos para que você mesmo fizesse um diagnóstico inicial e encontrasse as formas de tratamento mais indicadas. Mas, olhando com mais cuidado, percebi que se tratava de um site ligado à NOVARTIS, laboratório fabricante da Ritalina: o medicamento mais vendido para o tratamento de TDAH. Ou seja, um usuário comum de internet, fazendo uma pesquisa simples, indicando apenas alguns sintomas, sem nem mesmo saber da existência do TDAH, será conduzido a obter informações no site do laboratório que produz o medicamento para tal transtorno. Então, se você me perguntar se eu acho que o mecanismo de busca do Google é capaz de aumentar o percentual de diagnósticos de TDAH e de uso de Ritalina, eu diria que sim.

O TDAH surgiu (ou foi inventado) há cerca de 20 anos, na época com raríssima incidência. Atualmente, pode acometer até 5% das crianças em idade escolar. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2016, o Brasil se tornou o segundo mercado mundial no consumo de metilfenidato (nome genérico da Ritalina), com um aumento de consumo de 775% nos últimos 10 anos.

O horror capitalista

Em 1997, Viviane Forrester publicou O Horror Econômico. A autora previa um novo holocausto provocado pelo capitalismo globalizado, que terminaria por excluir da sua dinâmica, uma imensa massa de trabalhadores. O capitalismo que ela anunciava, se sustentaria nas grandes rodas financeiras, prescindindo de nossa função como trabalhadores e produtores de riquezas. Para a autora, na fase final do capitalismo, consumir seria a nossa última utilidade. O que Viviane não previu é que, depois da função de consumidores, ainda restaria para nós o lugar de objetos a serem consumidos.

O documentário da Netflix, “Dilema das Redes” (parêntese para comentar que aquela novelinha tosca no meio do filme é totalmente desnecessária), trata exatamente disso que eu descrevi na minha pesquisa. “Se você não está pagando pelo produto, então você é o produto”, resume todo o dilema que aparece na minha tese, o mesmo que o documentário expõe. Mas o curioso é que o depoimento da elite dos especialistas, profissionais e criadores das grandes empresas da internet, mostra que eles não perceberam o verdadeiro dilema, mesmo com ele ali, escancarado diante dos seus olhos, o dilema estrutural que permite, propicia e até incentiva que Facebook, Google, Instagram, ou quaisquer outras redes similares adquiram o poder de manipulação que têm: o capitalismo.

Obviamente que essas empresas são responsáveis pela forma como manipulam seus usuários a fim de monetizá-los, mas é importante que se diga que elas só funcionam desse modo por estarem elas mesmas, assim como nós todos, regidas pela lógica do lucro e da mercadoria. Ou seja, acabamos com Facebook ou paramos de utilizar o Google e virá outra rede com a mesma lógica, talvez mais especializada, sutil e perversa. Também é ingênuo pensar que sair das redes ou criar mecanismos individuais para resistir aos seus algoritmos será suficiente. A Internet e suas redes – e é disso, a meu ver, que se trata o documentário da Netflix – apenas escancarou uma coisa que quem critica o modelo capitalista já sabe há muito tempo: quando é permitido que o capitalismo aja segundo sua própria natureza, ele tende a acumulação, a entropia e a autofagia. Nenhuma ética que privilegie o cuidado dos seres humanos, dos demais seres vivos e do nosso Planeta, pode sobreviver enquanto a acumulação de riqueza e o lucro forem os soberanos.

Resumindo: dilema a ser enfrentado não são as redes sociais, é a forma como permitimos que o capitalismo as organize, regule e sugue dela seus lucros.

No caso da minha pesquisa, por exemplo, seria ingênuo pensar que a solução seria apenas combater o TDAH, convencendo mães e pais, educadores ou profissionais de saúde a resistirem ao diagnóstico, sem intervir na lógica perversa que transforma o sintoma e o sofrimento das pessoas em mercadoria. Se não for o TDAH, será outro diagnóstico, outro transtorno a jogar nossas crianças e jovens na máquina de moer capitalista.

Não é por acaso que a todo momento, no documentário, a compulsão pelas redes seja comparada a outros tipo de compulsão, como a por drogas. O uso de drogas é tão comum quanto a própria existência do ser humano, mas é nas sociedades capitalistas modernas que elas assumiram o caráter de consumo e de compulsão. Ou seja, há implicações subjetivas e políticas quando se passa a consumir uma coisa ao invés de usá-la. Os povos andinos, por exemplo, utilizam a folha de coca das mais diversas formas há mais de 8 mil anos, sem grandes problemas ou riscos, outra coisa bem diferente é o que se tornou a cocaína, que é a coca transformada em mercadoria capitalista. Assim sendo, queimar plantações de coca é uma falsa solução para a questão da violência urbana, do tráfico ou da dependência por cocaína.

A Internet ou suas redes é um falso dilema, que apenas encobre o verdadeiro.

O verdadeiro dilema é como fazer para barrar, subverter e superar o capitalismo.

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“The Circle” e a vida em virtualidade

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The Circle Brasil é um reality show da Netflix que simula o ambiente virtual. Os competidores se comunicam utilizando somente seus perfis, e o objetivo do jogo é tornarem-se os maiores influenciadores, para assim ganharem o prêmio do programa. É claro que, diante desse o objetivo, vale tudo para se tornar influenciador, inclusive mentir sobre quem você é para ganhar o carinho e simpatia dos demais participantes.

O formato do programa é uma clara analogia a era da internet em que vivemos. As redes sociais são o nosso palco, e nós somos os protagonistas performando nele. Desta forma, construímos um espetáculo ao redor da vida cotidiana. E assim como os participantes do reality, nós também buscamos transmitir a “melhor versão” (lê-se a imagem mais agradável) de nós mesmos nas redes sociais, assim como exibir de forma online somente aquilo que nos é conveniente do nosso dia a dia. Carvalho, Magalhães e Samico (2018) ao propor um olhar psicanalítico sobre a exposição da autoimagem no mundo virtual, colocam que:

“No ciberespaço, pode-se ser quem quiser, obter a identidade que desejar. Causa, mesmo que de maneira inconsciente, uma vontade de se obter a mesma admiração e aprovação que quem está sempre postando uma vida fantástica obtém. Ao nos depararmos com uma “vida perfeita”, passamos a comparar a nossa própria vida com aquela exibida à nossa frente” (p. 48).

Fonte: encurtador.com.br/kvMY2

Assim, entende-se que essa de construir uma imagem polida e atraente de nós mesmos surge de uma necessidade que habita a grande maioria de nós: a ânsia pelo olhar do outro. Queremos que o outro nos observe e nos aprove. É claro que essa busca por validação vem de outras épocas da nossa vida, como por exemplo, na relação que tínhamos com nossos pais, as figuras que mais importantes da nossa vida, na infância; algo que desde então provoca tensões dentro de nós.

Diante da realidade na qual nos encontramos, repleta não só de aparatos disponíveis, mas também de novas figuras e modelos sociais representativos (por exemplo, o surgimento dos influencers digitais), o nosso desamparo encontra “acalento” no contexto virtual. E para conseguir esse olhar do outro, criamos personagens, parecidos conosco, mas que não são exatamente fiéis. Construímos esse personagem querendo ser o objeto de desejo do outro. E como recebemos essas aprovações? Através das múltiplas ações virtuais existentes como curtidas, comentários, visualizações, e tantas outras formas de sentir que o outro está nos validando com o seu click.

 Assim como para os participantes do reality The Circle Brasil, um like passa a ser muito mais que um like. É um alimento para o nosso ego. É algo que nos dá a sensação de que fizemos “algo certo” e vibramos, tal como os participantes quando percebem a aceitação dos demais. Essa situação cria em nós um ciclo vicioso de hábitos na nossa vida online, que visam sempre o outro. Carvalho, Magalhães e Samico (2018) constatam essa ideia ao dizer que:

“A maçante apresentação da autoimagem nesses veículos de mídia de certa forma tampona uma ferida narcísica instaurada no sujeito que muitas vezes olha o outro da forma que gostaria de ser. Por desejar mostrar-se ao outro, deseja ao mesmo tempo ser o objeto do desejo alheio a fim de suprir esse desamparo recorrente. Ainda que momentaneamente ele viva o prazer quando recebe o tão esperado “like” em sua foto, é algo efêmero. Algo que é rapidamente superado, criando assim a ânsia de se produzir mais situações onde esse ser possa realizar-se novamente.”

Fonte: encurtador.com.br/kmw27

E é por isso que a “rejeição online” torna-se tão dolorosa quanto a offline, pois ela representa a desaprovação, a rejeição, a falta. Diante disso, muitas vezes até abrimos mão da nossa singularidade em busca dessa validação. Sobre esse ciclo, Garzia-Roza faz uma indagação interessante em na obra Freud e o Inconsciente (1984):

“A grande questão que circunda esta forma de se expressar talvez seja: se esta aprovação da vida é completamente suficiente para que o sujeito obtenha a realização que anseia, por qual motivo ele não se sente em plenitude?” (p. 144).

Essa pergunta nos proporciona a uma série de reflexões sobre quem somos e para onde vamos, mas nos atendo aos fatos observados no reality show, percebe-se que ele nos ensina algo sobre isso tudo logo no início. Quando a votação para decidir quem seriam os influenciadores da vez era “limpa”, ou seja, não existiam estratégias e armadilhas que surgem mais adiante no jogo, e de fato se levava em consideração apenas o carisma dos participantes, as pessoas no “topo” eram de fato as mais autênticas e que não mentiam sobre quem eram. Em contrapartida, os “fakes” não tinham o desempenho que acreditavam que teriam. Isso serve como lição para nós. A melhor versão de nós é a versão verdadeira!

Referências:

GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1984

CARVALHO, JPST; de Magalhães, PMLS; Samico, FC. Instagram, narcisismo e desamparo: um olhar psicanalítico sobre a exposição da autoimagem no mundo virtual. Revista Mosaico – 2019 Jul/Dez.; 10 (2): 87-93

FICHA TÉCNICA

Nome do programa: The Circle Brasil

Temporada: 1
Episódios: 12
Gênero: Competição
País de origem: Brasil
Produção: Studio Lambert e Motion Content Group
Emissora original: Netflix
Apresentadora: Giovanna Ewbank

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