A adaptação esquizofrênica numa sociedade pós-moderna em “Greener Grass”

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Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma

Freud acreditava que a civilização cobrava um preço ao indivíduo: o mal-estar, a neurose. Ele e toda a sociologia clássica temiam a “anomia”, o momento em que o mal-estar explodiria contra a civilização. Mas a sátira do filme “Greener Grass” (2019), da dupla de humor de improvisação stand up, Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, mostra que no mundo pós-moderno paradoxalmente o mal-estar e alienação se tornam ferramentas de adaptação. Em um típico condomínio suburbano de classe média (algo como o sonho americano dos anos 1950 que caiu no Instagram do século XXI) temos uma visão maluca e surreal do tédio da vida suburbana kitsch e brega, vivendo um estilo de vida esquizoide: sentimentos confusos que tentam conciliar interações sociais competitivas com uma polidez politicamente correta neurótica. O resultado é uma sociedade à beira da depressão e, por isso, mais adaptada pela incapacidade de ousar.

Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma, cotidianamente, não importando a subjetividade ou necessidades ou carências psíquicas individuais. Por isso, viveríamos no cotidiano verdadeiros “dramas de adaptação” – a tensão entre o script abstrato das colagens de expectativas que entendemos que os outros têm de nós, e a nossa “espontaneidade”: o conjunto de impulsos e demandas íntimas.

Por exemplo, para o sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1902-1979), esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas. Mas estamos no século XXI, e esse viés funcionalista da sociedade tornou-se mais complexo com diferentes matizes. Isto é, esse script abstrato que nos informa o que a sociedade espera de nós parece que se tornou tudo, menos “funcional” – ele pode ter se tornado fonte de profunda disfuncionalidade psíquica: esquizofrenia, psicose, indiferença, amoralidade etc.

Por esse motivo, Greener Grass (2019) é uma sátira maravilhosamente estranha na qual através de uma perfeita farsa suburbana e perversa expõe essa disfuncionalidade – uma visão absurda e surreal do sonho americano, na sua versão século XXI.

Dirigida, escrita, produzida e estrelada pela dupla de cineastas independentes Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, o filme é uma versão estendida do curta-metragem de 2015 do mesmo nome. Nesse longa elas conseguem expandir a visão maluca do tédio da classe média suburbana (aquela que vive em uma vida asséptica de condomínios fechados) e as dolorosas consequências em se adaptar ao status quo. É como se o velho mundo em tons pastéis do sonho americanos da década de 1950 de repente caísse no Instagram.

Como o título nos informa, o argumento parte daquele velho provérbio de que a grama do vizinho sempre parece mais verde. Toda as interações dos personagens de Greener Grass são competitivas, carregadas de inveja e ansiedade. Porém, o paradoxo é que há uma expectativa latente e generalizada de que todos sejam amigáveis, sorridentes, polidos e simpáticos uns com os outros. Resultando numa estranha polidez que chega às raias da neurose, porque tentam conciliar a agonia da superação com uma cortesia neurótica politicamente correta.

A sociedade de Greener Grass acrescenta um requinte perverso aos dramas de adaptação descritos pela sociologia clássica – há uma espécie de armadilha esquizoide na qual os personagens caem quando tentam conciliar o inconciliável: competição e empatia; ansiedade de superação entrando em choque com uma sociedade que prega a igualdade e atitudes eticamente corretas. Um mundo de fluência, lazer, onde todos se locomovem em carrinhos de golfe entre suas casas que mais parecem cenografias de Show de Truman, o campinho de futebol para torcer histericamente pelos filhos e o boliche do shopping.

O Filme

Greener Grass começa com uma estranha sequência: Lisa (Luebbe) e Jill (DeBoer) sentam-se com um grupo de pais em um dia ensolarado (como todos), assistindo seus filhos jogarem futebol. Ambas as mulheres estão imaculadamente vestidas e maquiadas, com aparelhos nos dentes – todos usam aparelhos nos dentes! Jill segura um bebê recém-nascido e Lisa elogia o bebê: “fofo!”, diz.

Jill imediatamente entrega o bebê para Lisa: “Fique com ele… já tenho um menino”. Ninguém parece achar estranho, nem mesmo o marido Jill (Beck Bennett). Afinal, Lisa queria o bebê e seria egoísta não dar para ela… para sempre. Mais tarde, uma vizinha (Mary Holland) expressa ressentimento (na verdade inveja) por Jill não ter dado o bebê para ela. Jill então passa a ter sentimentos confusos sobre o que fez… No entanto, “sentimentos confusos” não são permitidos no mundo de Greener Grass.

O filho remanescente de Jill (Julian Hilliard) é um menino observador e perceptivo, que ao invés de tocar ao piano numa audição escolar uma música patriota executa uma composição própria de vanguarda atonal – um total freak para os pais, um inadaptável que sofrerá uma transfiguração surreal para poder se adaptar às expectativas do papai: ser um jogador profissional de beisebol.

Há uma cena em Greener Grass que é a síntese do paradoxo esquizoide dessa sociedade: quatro famílias em carrinhos de golfe ficam parados em um cruzamento de quatro vias. Todos gesticulam uns para os outros: “Você pode ir!”, “Não, pode ser você, eu insisto!”… E todos ficam sentados no cruzamento para sempre, com sorrisos congelados em seus rostos, em um estranho impasse de cortesia neurótica.

Síndrome de adaptação

Por isso, em Greener Grass ninguém ousa, produzindo uma estranha síndrome de adaptação – diálogos e ações são atravessados pela competição, inveja e ansiedade por superação. Mas ao mesmo tempo todos devem estar sorridentes, positivos, prá cima, alto astral. Que deve ser representado por uma espécie de polidez que se torna neurótica e paralisante. Ser altruísta pode ser também uma competição, especialmente quando os personagens fazem de forma performativa, para chamar a atenção para merecer aprovação dos outros.

Portanto, nesse mundo nivelador de Greener Grass, destacar-se é aterrorizante. Hipocritamente escondem-se num altruísmo neurótico criando uma surpreendente forma de adaptação jamais imaginada pelo funcionalismo de Talcott Parsons: uma adaptação através da disfuncionalidade psíquica. Mas esse mal-estar cobra um preço: um psicopata assassino ronda a vizinhança – alguém que resolveu ao seu jeito essa contradição entre competição/polidez: decidiu matar seus concorrentes sem piedade. A figura do assassino serial que irrompe no meio de um mundo colorido e alegre apenas confirma a espécie de redoma de vidro   sufocante que asfixia todos – por contraste, o assassino apenas reforça o estilo de vida asséptico e hipócrita.

Mesmo quando Jill se deteriora física e psiquicamente, comprova que não há saídas daquele mundo que parece tudo é apenas intercambiável – casas, filhos casais etc. Lisa pega uma bola de futebol, coloca debaixo do vestido e diz que está grávida, para todos participarem do seu “chá de bebê”; casais sem querer trocam seus parceiros e sem perceberem beijam o parceiro do outro; as casas parecem casas de boneca com decoração intercambiável, como se todos estivessem brincando de casinha.

Em suma, a narrativa de Greener Grass é um ótimo estudo de caso de como o mal-estar produzido pela socialização e adaptação pós-moderna (baseada em sentimentos contraditórios que anulam uns aos outros) produz uma estranha disfuncionalidade, não mais explosiva ou anômica. Mas agora, uma disfuncionalidade que anestesia, bloqueia a ousadia sob sintomas de cortesia neurótica, sorrisos nervosos e comportamentos estereotipados.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe
Elenco: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe, Beck Benett, Neil Casey, Mary Holland;
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia

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Neurose, Psicose e Perversão: um olhar psicanalítico

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Teoria freudiana tem enorme contribuição para o entendimento acerca da personalidade humana

Segundo a Psicanálise há três possibilidades de constituir-se enquanto sujeito. O sujeito começa a se moldar ao nascer, através das experiências afetivas e depois no entorno de sua vida e através destas relações. Desta forma, o sujeito é neurótico, perverso ou psicótico. Ou seja, de acordo com a Psicanálise existem três modos de o sujeito se constituir e se relacionar com o mundo (Outro).

A perversão acabou sendo atribuída a sexualidade ou ao campo da moral, caracterizada por uma série de desvios em relação àquilo que é esperado e considerado aceitável. Logo é importante diferenciar perversão de perversidade. O termo “perversidade” é compreendido como “caráter de crueldade e malignidade” (ZIMERMAN, 2004, p. 267). Já a ´´perversão“ está diretamente ligada a estrutura psíquica de alguém que se organiza, se defendendo de angústias persecutórias, depressivas e de desamparo. Uma pessoa pode ser perversa, mas necessariamente não ter atitudes de perversidade. Ou seja, a estrutura perversa, não aponta uma conduta e/ou um desvio de caráter, pois trata-se de um modo de estabelecimento de laço com o Outro.

No perverso, o sintoma não causa sofrimento, mas sim satisfação. O sintoma funciona como uma defesa, mas quando o sentimento de ameaça é grande, efeitos indesejados podem surgir. Outro ponto a destacar são os mecanismos de defesa do perverso: a idealização e a recusa. Zimerman (2004) declara que o sujeito perverso apresenta uma ´´compulsão a idealizar“ e impõe aos outros estas ilusões. Já a recusa significa que parte do Eu reconhece a realidade e a outra parte faz de conta que não existe.

Fonte: encurtador.com.br/iAWY1

A perversão pode ser classificada como social ou sexual. Na social se enquadra a psicopatia, toxicomania e o alcoolismo. Na sexual se enquadram o exibicionismo, voyeurismo, sadismo, masoquismo, sadomasoquismo, fetichismo e pedofilia. Em relação as características, é comum se apresentarem como o melhor em tudo que fizer, assim como práticas de manipulação, sedução, mentira, chantagem e transgressão de normas e regras. Além de não apresentarem sentimento de culpa e se auto agredirem através do uso e abuso de substâncias.

Psicose – De acordo com Zimerman (2004), o termo ´´psicose“ não tem uma definição clara. Portanto, com base clínica, se divide em três categorias: psicoses (propriamente ditas); estados psicóticos; e condições psicóticas. A psicose é um processo de degradação do ego, causando sérios prejuízos de contato com a realidade. Um exemplo disso são as esquizofrenias. Já o estado psicótico se refere a preservações de áreas do ego que atendam duas condições. Como exemplo têm-se os borderlines, que apesar de apresentarem psicoses, têm maior adaptação ao mundo exterior, comparados aos esquizofrênicos. Por fim, as condições psicóticas se referem a sujeitos bem adaptados ao mundo exterior, porém, são portadores de condições psíquicas que os caracterizam como psicóticos.

De acordo com Freud (1924), na estrutura da psicose o núcleo estrutural central tem como prevalência o princípio do prazer, ao invés do princípio da realidade. Ou seja, há um distanciamento do ego e uma aproximação do id. Desta forma, há um distanciamento do ego/realidade, e em seguida, com uma tentativa de reparar o dano provocado pelo distanciamento, o sujeito entra em contato com a realidade, mas por meio do id. O que explica os principais sintomas, como: delírios, alucinações, discurso desorganizado, comportamento desorganizado, podendo passar períodos muito agitados ou muito lentos; mudanças bruscas de humor ficando muito feliz num momento e depressivo logo a seguir, confusão mental; etc. (SOARES e MIRÂNDOLA, 1998).

Fonte: encurtador.com.br/rvQZ6

Neurose – É na neurose em que a maior parte da população se enquadra. Dessa forma, os neuróticos são sujeitos que apresentam algum grau de sofrimento ou adaptação, porém conservam uma razoável integração do self, apresenta, boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade, “não obstante que, em algum grau, sempre existe em todo neurótico uma parte psicótica da personalidade” (ZIRMERMAN, 2004, apud BION, 1957).

A neurose apresenta várias classificações, como por exemplo, a ´´neurose de angústia“, ´´neurose atual“, ´´fobia“, ´´obsessivo-compulsiva“, ´´histerias“, e ´´depressivas“. De acordo com Zimerman (2004), é difícil encontrar um neurótico puro, ou seja, alguém que os sintomas sejam apenas de uma neurose. Já que é comum a predominância de neuroses mistas.

O neurótico é considerado a parte ´´normal“ da sociedade. No entanto, dependendo do grau de angústia, obsessão, fobia etc., o sujeito pode não conseguir se ajustar ao meio, romper com a realidade, e estar tão adoecido quanto o sujeito portador de psicose e/ou psicopatia. Sendo assim, diante do que foi apresentado, existe alguém “normal”? Fica a reflexão.

Referências
Freud, S. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 189-199). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924)

MARTINHO, M. H. Perversão: um fazer gozar. Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

Zimerman, D. (2004), Manual de Técnica Psicanalítica, Editora Artmed, Porto Alegre.

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BORG – A humanidade de uma máquina de jogar tênis

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Se você conseguir encare o triunfo e o desastre e trate esses dois impostores da mesma maneira. A sentença é do poeta britânico, do século XIX, Joseph Kipling, cujo título do poema é “Se…”. Está inscrita em uma das passagens mais marcantes e simbólicas do filme Borg Versus McEnroe, um drama psicológico, que trata da relação de dois dos maiores tenistas da história do esporte: o sueco Bjorn Rune Borg e o norte-americano John MacEnroe. A película (2017) do diretor dinamarquês Janus Metz recebe pinceladas ficcionais para dar um tom emocional à narrativa. Apresenta ao espectador toda a produção do desejo, o desejo de ser o melhor, o número um, a necessidade de ser amado, mostrando como o medo do desamparo nos constitui.

Ao contrário de uma vida dionisíaca fantasiada para as celebridades, Borg pagou com o sofrimento da doença psíquica, a privação, a dor sentida no corpo pelo excesso de treinamento, e a severidade superegóica, que não almeja nada menos que vitória, causando profundos sentimentos de angústia diante da possibilidade de derrota.

Borg era um homem complexo, traços obsessivos marcantes, sinais de inibição, fobias, conflitos existenciais, com sintomas para além de uma neurose, que eclodiram após a aposentadoria, como tentativas de suicídio, uso de drogas, relações com prostitutas, casamentos desfeitos e perda de dinheiro. A infância e juventude foram marcadas por incontáveis momentos de agressividade, impulsividade e de melancolia diante dos fracassos durante a formação como atleta. Pode-se pensar em uma estrutura limítrofe, com o uso de mecanismos de defesas primários, que garantiram, de alguma forma, o mais alto grau de rendimento profissional. Para Bergeret:

Todo o problema econômico da organização limítrofe se desenrolaria nas relações entre esses dois sistemas, ao mesmo tempo adaptativos e defensivos, permitindo ao ego uma certa mobilidade e segurança, porém jamais constituindo uma verdadeira solidez; o sujeito permaneceria demasiado massivamente dependente da realidade exterior e das posições dos objetos, bem como da distâncias deste em relação e ele. (BERGERET, 1988, p. 133).

O trabalho foi organizado a partir de cenas que escolhi, por conta da emergência de aspectos marcantes da personalidade do personagem. Por meio da descrição dos diálogos e dos sintomas, produzi tentativas de interpretação do Borg fictício apresentado na película, tentando identificar os desejos e as defesas no jogo dinâmico do seu psiquismo. Poucos detalhes das relações vinculares com os pais são apresentados, permitindo apenas inferi-los a partir de pequenas cenas, no início do filme.

Fonte: encurtador.com.br/oqxV6

Primeiras sacadas: a descrição do conflito

A primeira cena do filme nos introduz no sofrimento de Borg. O tenista aparece em seu apartamento em Mônaco, de frente para mar, pendurado no parapeito da sacada. o corpo em 90 graus. Um rosto constituído de dor e medo. Era véspera da sua quinta participação no torneio de Wimbledon, já vencido por quatro vezes. Em uma segunda cena, ele surge solitário em uma quadra de tênis, devolvendo com golpes precisos centenas de bolas, que lhe eram jogadas por uma máquina. Após o treinamento, perde a chave do carro e corre para o vestiário. Diante desse infortúnio, resta-lhe ir andando para casa. Coloca um boné, em uma tentativa de disfarce para escapar do assédio das jovens francesas.

Borg era um homem bonito, de cabelos compridos, o que contrastava com sua personalidade inibida, avessa a multidões. Entra em um restaurante e tem um encontro com um gerente do estabelecimento, simpático, que não o reconhece. Pede um café, mas não tem dinheiro para pagar, pois deixará a carteira no carro. O gerente não nega o pedido, mas condiciona ao carregamento de algumas caixas até a dispensa. Leva-as até o local e encontra jornais do dia, que estampavam comentários sobre a sua difícil tarefa para superar o norte-americano John McEnroe, em Wimbledon. As manchetes sugerem a sua decadência técnica. Borg tira o boné e aperta o rosto diante das críticas. Retorna ao balcão. O gerente pergunta o seu nome e o que faz:

– Meu nome é Rune. Eu sou eletricista. 

O gerente ri. Se você é eletricista, eu sou o príncipe Albert. Você gosta de ser eletricista?

 – Sim, é uma profissão normal, responde Borg, sorrindo discretamente.

Nessa primeira cena, somos levados ao conflito de Borg. Percebe-se a angústia do atleta em ser o que é. A cena da sacada, da tentativa de suicídio, revela uma busca pela aniquilação do sofrimento. A segunda cena, durante o diálogo com o gerente do restaurante, há uma saída defensiva de negação da realidade. O ego diante de um superego severo, primitivo, que exige a alta performance, não admite a frustração da derrota e encontra nessa defesa uma saída possível para diminuir a angústia. Maldavsky, Roitman e Stanley (2008, p.31-68)) citam Freud, em O Homem dos Lobos, para explicar a ação patógena das correntes psíquicas, em um caso complexo de neurose infantil:

Ao final, subsistiam nele, lado a lado, duas correntes opostas, uma das quais abominava a castração, enquanto a outra está pronta a aceitá-la e consolar-se com a feminilidade como substituto. A terceira corrente, mais antiga e profunda, que simplesmente havia repudiado a castração, a qual não estava em juízo acerca de sua realidade objetiva, seguia sendo, sem dúvida, passível de ativação.

Fonte: encurtador.com.br/dioJU

O jovem Rune, de Sodertaljie: Potência e agressividade

A narrativa toda ocorre em Flash backs. O diretor nos conduz à adolescência de Borg, do então jovem Rune. Ele surge batendo a bola em uma porta de garagem de seu condomínio. O seu pai grava o momento e lhe pergunta:

– Está jogando a Davis ou Wimbledon, Rune? 

– Wimbledon, responde. 

Já venceu?, pergunta-lhe o pai. 

Sim, diz Borg, sem aparentar – maior emoção.

Assim manifesta-se a projeção também de um Eu Ideal, que aparece na conversa de Borg com o pai, no desejo deste que o filma prazerosamente e, em certa medida, lhe oferece-lhe todo o amor, caso consiga chegar ao estrelato. Bergeret, aqui, é preciso:

Os pais dos sujeitos limítrofes encorajam as fixações em relação estreitamente anaclítica. O plano aparente é tranquilizador. “Se permaneceres em minha órbita, nada de ruim te acontecerá”, mas o plano latente e bastante inquietante: “Não me deixes, senão correrás grande perigos”. Os pais deste tipo, em geral, mostram-se insaciáveis no plano narcísico. (BERGERET, 1988, p. 138) 

A história do jovem com cerca de 15 anos é de ataques raivosos, agressões verbais contra os juízes, durante as partidas. A cada erro seu, ou mesmo uma marcação do juiz que o frustra, gritos são ouvidos e raquetes são quebradas. Manifestação de pulsões orais primitivas, destrutivas. Kusnetzoff (1982, p.30 ), a partir de Abraham, descreve dois períodos libidinais distintos na fase oral. O primeiro caracterizado pela satisfação e o segundo pela agressão, em uma relação ambivalente com os objetos, diante da frustração, o que também caracteriza as patologias limítrofes e narcísicas.

Por este comportamento, o jovem Rune é suspenso do clube que representava. Ouve a reprimenda do pai, que lhe retira a raquete e o chama de cabeça fraca. Um pai severo, frustrado, diante das impossibilidades do filho. A mãe aparece poucas vezes, mas sempre ao lado dele tanto na cena da punição no clube como diante do pai. Infere-se que a relação do garoto com a mãe é muito mais próxima, fazendo pensar sobre a possibilidade de uma relação diádica potente com a mãe e passiva diante do pai, uma relação de objeto anaclítica. Bergeret explica que o “termo grego ‘anaklitos’ trata-se de achar-se virado para trás, deitado sobre o dorso, de forma essencialmente passiva”. (BERGERET, 1988). Nas duas cenas, Rune comportou-se passivamente, sem nunca exprimir nenhum ato de rebeldia, de protesto. Apenas buscou, em seu quarto, o refúgio e chorou, controladamente, em completo e absoluto silêncio.

Fonte: encurtador.com.br/bkoSY

Por sorte, Rune é visto pelo treinador da seleção da Suécia, Lennart Bergellin, extenista, que fracassou por três vezes, em quartas de final de Wimbledon, nos anos 40. Encantado pelo potencial do garoto, convida-o para participar da seleção.

– O que você quer do tênis, Rune?, pergunta o velho treinador. 

Ser o melhor! , responde Rune. 

O melhor da Suécia? 

O melhor do mundo!, diz Rune.

É a reatualização do diálogo que teve com o pai primevo. O desejo de ambos está em articulação. Rune parte para Estocolmo, onde passa por um treinamento rigoroso, revelando todos os seus rituais obsessivos e agressivos a cada erro, a cada frustração, provocada pelo experiente treinador. Em uma das oportunidades, Rune o ataca visceralmente. O treinador corre atrás do garoto e bate nele. Rune sai do ginásio e se perde em uma floresta, despedaçando a raquete em uma árvore. Na mesma noite, ocorre, na minha percepção, o diálogo que produz uma cisão completa do jovem Rune e funda Bjorn Borg, o Ice Man ou Ice Borg:

Vou deixar você jogar a Copa Davis. Mas se você gritar, quebrar a raquete, xingar o juiz, você voltará para a casa. A partir de agora, toda a tua agressividade será colocada em cada bola. Você será uma panela de pressão. Tudo ficará aí dentro. Nada deve sair pra fora. A tua força estará no tênis. Uma bola por vez – ordena o treinador Bergellin. (Borg Versus MacEnroe, 2017)

Percebe-se uma transferência massiva paterna para o treinador, durante todo o processo de treinamento. Dessa vez com manifestações de agressividade ao longo do período. Parece que essa ameaça o atingiu fortemente, por conta, penso, pela possibilidade de lhe abrir uma ferida narcísica insustentável, com riscos de deixar de jogar e voltar à casa do pai temido, que tenta castrá-lo, além de ficar ameaçado de perder o amor dos dois objetos, tanto do pai primevo quanto do pai atualizado, na figura do treinador.

As organizações limítrofes resistem mal às frustrações atuais, que despertam antigas frustrações infantis significativas; estes sujeitos, comumente percebidos como esfolados vivos, facilmente utilizam traços de caráter paranóicos na tentativa de assustar a quem poderia frustrá-los. Seu narcisismo está mal estabelecido e permanece frágil. Existe uma evidente e excessiva necessidade de compreensão, respeito, afeição e apoio. (BERGERET, 1989, p.132).

Fonte: encurtador.com.br/hjvNX

No caso de Borg, esse acontecimento traumático, produziu em seu ego um rearranjo de suas defesas, inaugurando vários sintomas obsessivos, que colaboraram na construção de um dos maiores ídolos da história da Suécia. Bergeret, a partir de Freud, explica esse fenômeno:

O Ego se deforma para não ter justamente, que desdobrar-se. Ele funcionará distinguindo dois setores do mundo exterior: Um setor adaptativo, onde o ego sempre atua livremente no plano relacional, e um setor anaclítico, onde limita-se as relações organizadas segundo a dialética dependência-domínio. (BERGERET, 1989, 140).

O último game: os lances obsessivos

O torneio de Wimbledon, de 1980, foi difícil para o tenista. Imerso em uma angústia fóbica, as partidas se tornaram um desafio para o jogador. A narrativa descreve todos os sintomas obsessivos de Borg. Nas competições viajava com duas pessoas, o treinador e sua noiva, uma ex-tenista romena, que conheceu durante o torneio de Roland Garros, em Paris. O primeiro encontro de ambos teve a companhia de Lennart, que serviu como um ego auxiliar. A preparação para as partidas era cheia de rituais. Alugava o mesmo carro, todo ano, revestido do mesmo estofamento. O treinador, nas vésperas dos jogos, junto com Borg, encordoava, com máxima tensão, cada uma das 50 raquetes, todas alinhadas milimetricamente. O trabalho durava mais de três horas. A temperatura do quarto de hotel -era mantida em 18 graus, pois Borg “precisava controlar o batimento cardíaco”. A mochila para os jogos era cuidadosamente organizada pela noiva, que colocava sempre as mesmas duas toalhas que usava nas partidas. Nunca pisava na linha de fundo da quadra de tênis, porque daria azar, demonstrando um poder mágico do pensamento.

Tanto o treinador como a noiva submetiam-se e participavam de cada um dos rituais. Quando jogava mal, a culpa era de um dos dois porque não realizaram uma das tarefas planejadas. Em um dos jogos, não teve bom desempenho. Culpou o treinador por não ter tensionado as raquetes de maneira adequada. Houve uma discussão entre ambos e, em uma explosão de raiva, Borg demitiu o treinador, lançando mão de defesa projetiva, características dos sujeitos em estados limítrofes. Assim que chegou ao hotel, colocou a noiva para fora do quarto. Disse para a ex-tenista, que ela iria abandoná-lo como o treinador.

Durante as partidas não demonstrava emoção. Nem quando lhe faltava precisão, nem quando encontrava um espaço inimaginável para vencer o adversário. Era absolutamente cordato com os rivais, revelando o asseio moral e ético superegóico. Não tinha quase nenhum amigo no circuito. Borg estava sempre em isolamento, incomodado, com as entrevistas coletivas, que deveria dar por exigência do torneio. Aqui temos outra defesa de evitação, características dos estados fóbicos, fugindo do encontro com as representações perigosas. Uma cena do filme, indica o estado de sua sexualidade, quando entra em um famoso clube de Nova Iorque, no início de sua carreira. Neste lugar havia striptease, casais homossexuais, nudez total, orgias. O jovem Borg mostra grande satisfação e olha, voyeristicamente, ao seu redor, dando conta de uma atuação perversa. Interessante que esse mesmo olhar é a sua grande ferramenta como jogador de tênis.

Para encerrar, nas cenas finais, há uma saída para a saúde, penso, uma defesa sublimatória. No corredor para a final contra MacEnroe, reencontra o ex-treinador, que diz que enfrentarão “essa última partida” juntos. Borg sofre, mostra medo. O treinador tenta usar das velhas táticas desafiadoras. Borg pede silêncio e diz: “Pare, eu sei porque estou aqui. Tudo o que fiz me trouxe até aqui”. Assim, aceita ser quem ele se tornou, em um processo de elaboração. Vai para quadra. E, em uma partida de mais de quatro horas, vence o seu grande rival. Emociona-se e chora. Um grande filme, sobre uma máquina demasiadamente humana de jogar tênis.

Fonte: encurtador.com.br/pBEGR

A DIMENSÃO DO ICE MAN: 

Brevíssimo currículo Bjorn Rune Borg nasceu na pequena cidade sueca Sodertaljie, em seis de junho de 1956. Começou jogar tênis aos 9 anos, quando ganhou a primeira raquete do pai. Aos 11 anos venceu o torneio de sua cidade e, aos 15, participou da Copa Davis, evento mundial que reunia e reúne as seleções da elite do tênis mundial. Ele foi envolvido em uma jogada política da federação de tênis da Suécia, que deseja mostrar o poderio do país na formação de atletas no esporte. Nessa competição, ao vencer um top 20 do tênis, surgiu o mais novo fenômeno do tênis mundial. Borg é detentor na carreira de números que o coloca como um dos maiores de todo os tempos. Conquistou em sua carreira 11 torneios de Grand Slam, sendo cinco títulos consecutivos nas quadras de grama de Wimbledon (1976 a 1980) e outros seis nas quadras de saibro, em Paris, no torneio de Roland Garros. Na carreira teve 62 títulos conquistados. Dos quatro maiores torneios que fazem parte do circuito mundial, incluindo Wimbledon e Roland Garros, nunca venceu o Aberto dos Estados Unidos, o US OPEN, perdendo duas finais, e o aberto da Austrália. Abandonou o tênis aos 26 anos de idade, em 1983. 

REFERÊNCIAS

Bergeret, J (1988). Personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas.

Maldavsky, Roitman e Stanley (2008). Correntes psíquicas e defesas: pesquisa sistemática de conceitos psicanalíticos e da prádica clínica com o algoritmo David Liberman (ADL). Sociedade Brasileira de Psicanálise. p. 31-68. Recuperado em http://sbpdepa.org.br/site/wpcontent/uploads/2017/03/Correntes-ps%C3%ADquicas-e-defesas-pesquisasistem%C3%A1tica-de-conceitos-psicanaliticos-e-da-pr%C3%A1tica-cl%C3%ADnica-com-oalgoritimo-David-Liberman.pdf.

Kernberg, O, F, Selzer, A.M, Koenigsberg, W, Carr, C.A & Appelbau, A.H (1991). Psicoterapia Psicodinâmica de Pacientes Borderline. Porto Alegre: Artes Médicas.

Kusntezoff, J.C (1982). Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 

FICHA TÉCNICA DO FILME:

BORG VS MCENROE

Diretor: Janus Metz Pederse
Elenco: Shia LaBeouf, Sverrir Gudnason, Stellan Skarsgård
Gênero: Biografia, Drama
País:Dinamarca, Suécia, Finlândia
Ano: 2017

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Teresa Amorim: as pessoas devem ser estimuladas a superar seus medos e responsabilizar-se pela vida

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Uma das Gestalt-terapeutas mais conhecidas do Brasil fala ao (En)Cena sobre o panorama da abordagem na atualidade

A Gestalt-terapia é, atualmente, uma das terapêuticas mais usadas com base humanista e fenomenológica. Ainda assim, possui uma gênese centrada na psicanálise e nas filosofias orientais, no entanto, avança sobre estes sistemas de interpretação do mundo e foca nas potencialidades humanas, a partir do reconhecimento de que todo ser humano já dispõe de condições para gerir e curar-se a si próprio. Neste sentido, este conjunto de técnicas e teorias aponta para uma forma de estar no mundo, onde a dimensão do presente é valorizada e o passado só é requisitado na exata medida em que se busca conhecer um ponto de partida. Assim, os gestalt-terapeutas desestimulam veementemente que os clientes ‘façam morada no passado’.

Historicamente, os baluartes da Gestalt-terapia foram o psiquiatra Fritzs Perls, a psicóloga Laura Perls e o sociólogo Paul Goodman. Mais á frente, a abordagem passa a ser estruturada a partir de duas correntes, uma teórica/epistemológica – conduzida por Laura – e outra mais focada no desenvolvimento pessoal prático – a partir das contribuições de Fritzs Perls.

Atualmente a abordagem é uma referência mundial, com vários institutos presentes em cidades globais, além de ser alvo de um crescente interesse do meio acadêmico. No Brasil, um dos mais profícuos institutos de Gestalt-terapia fica no Rio de Janeiro – o Instituto Carioca de Gestalt-terapia – e é conduzido pela psicóloga Teresa Amorim, que tem mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ (2011) e especialização em Filosofia Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2007).

Teresa Amorin, numa entrevista exclusiva para o EnCena, destaca o panorama da Gestalt-terapia no Brasil, além de abordar temas como o ‘self-falso’, o narcisismo, a Teoria Organísmica e a neurose, dentre outros temas. Confira, abaixo, a entrevista na íntegra.

(En)Cena – Hoje provavelmente a senhora é uma das psicólogas mais ativas na Gestalt-terapia, em todo o Brasil. Pelo seu olhar, a que se deve a crescente procura por esta abordagem?

Teresa Amorin – Possivelmente pelo fato de ser uma abordagem com uma linguagem simples, direta, onde a postura do terapeuta precisa ser ativa e acolhedora. Outra grande razão pode ser o fato de a Gestalt-Terapia estar a cada dia mais presente nas universidades e consequentemente com mais visibilidade.

(En)Cena – A Gestalt-terapia tem como uma de suas bases teóricas a Fenomenologia Existencial, com forte ênfase no fenômeno que se apresenta no momento presente. É possível associar as técnicas da Gestalt com o Mindifulness, por exemplo? De que forma?

Teresa Amorin – A Gestalt-Terapia tem como pressupostos filosóficos a Fenomenologia e o Existencialismo, além disso trabalha com o Método Fenomenológico, ou seja, está atenta aos fenômenos que se revelam na sessão terapêutica. Penso que a Gestalt-terapia possui uma variedade de experimentos que tem como objetivo colocar o cliente em contato com a sua questão existencial, que muitas vezes é evitada no processo de “falar sobre”. Nosso convite é para o cliente sair da evitação de contato e “falar com” sua gestalt aberta, por exemplo. A abordagem gestáltica trabalha sempre voltada para o aqui e agora e a conscientização do processo. Gostaria de registrar que não conheço bem a Mindifulness, mas acredito que a Gestalt-terapia não precisa dessa técnica pelo fato de já desenvolver a conscientização e concentração em todo o processo terapêutico.

(En)Cena – A sociedade atual, de acordo com muitos sociólogos, apresenta-se com fortes traços de narcisismo. De que forma esta demanda se manifesta na clínica, sob o prisma dos distúrbios de fronteira?

Teresa Amorin – A partir desse evento, podemos aqui sinalizar a questão do self-falso em nossa sociedade que eventualmente surge em nossos consultórios. Muitos desses sujeitos não gostam de frequentar o espaço terapêutico, provavelmente pelo receio de revelar a sua existência frágil. O processo psicoterapêutico desses clientes inclui um mergulho em si mesmo, e por certo, a deflação interna – um grande vazio infértil, em contraste com a inflação – a grandiosidade narcísica que tenta apresentar diante do mundo.

(En)Cena – A senhora faz um profícuo trabalho de divulgação da Psicologia tanto pela televisão quanto pelas redes sociais. Que conselho daria para estudantes e psicólogos que ainda têm resistência em utilizar a internet como aliada profissional?

Teresa Amorin – A internet, redes sociais, novas mídias são dispositivos tecnológicos disponíveis em nossa sociedade contemporânea e inegavelmente fazem parte de uma nova realidade de contato e comunicação. O atendimento online, a saber, faz parte dessa nova forma de contato e prestação de serviço. Precisamos ultrapassar e utilizar essas novas ferramentas.

(En)Cena – Qual a contribuição da Teoria Organísmica dentro da Gestalt-terapia?

Teresa Amorin – Pode-se dizer que a questão central da Teoria Organísmica é pensar que o sintoma do nosso cliente precisa ser visto como um todo, ou seja, o que afeta uma parte afeta todo o organismo do sujeito. Em outras palavras, o gestalt-terapeuta observa o cliente como um todo em seu processo terapêutico. O conceito de ‘autorregulação organísmica’ nos ajuda a compreender os mecanismos do nosso cliente para lidar com a sua vida e as dores emocionais.

(En)Cena – A patologia tem um sentido diferente dentro da Gestalt-terapia. Poderia falar mais sobre o tema?

Teresa Amorin – Dentro desta perspectiva, podemos afirmar que a Gestalt-terapia entende a patologia como um processo, nosso diagnóstico é processual, uma vez que entendemos que o sintoma patológico é uma autorregulação organísmica/ neurótica para lidar com o meio, muitas vezes ameaçador.

(En)Cena – É um erro considerar que a Gestalt-terapia não leva em conta o passado do sujeito. Mas, afinal, em que medida este passado é trabalhado no setting terapêutico? Há um limite para abordar o passado?

Teresa Amorin – Sim, é um erro. Talvez seja conveniente ressaltar que a Gestalt-terapia é uma abordagem que trabalha o passado do cliente no aqui e agora, entendemos que muitas vezes nosso cliente narra alguma ‘gestalt aberta’, e neste momento, ele está falando de alguma situação inacabada, um passado que se faz presente no aqui e agora. Podemos trabalhar de diversas formas, inclusive com experimentos que tem como objetivo auxiliar o cliente a entrar em contato com o ‘negócio inacabado’ e fechar a gestalt.

(En)Cena – Qual o impacto da neurose no âmbito da Gestalt-terapia?

Teresa Amorin – Mais especificamente podemos pensar que a neurose é uma evitação de contato, muitas vezes acompanhada de um comportamento fóbico, o sujeito evita o contato com a dor emocional. O que podemos observar é uma estagnação no desenvolvimento, e o sujeito aprende a manipular o ambiente para conseguir sobreviver. Um aspecto interessante da neurose é que basicamente ela se apresenta como um conflito entre a autorregulação organísmica (necessidades internas) versus a regulação externa (exigências da sociedade). Assim, para melhor entendê-la podemos afirmar que o neurótico não consegue perceber as suas necessidades, cria expectativas em relação aos outros, tem medo de arriscar e assumir responsabilidade pela sua existência.

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O surgimento da clínica psicanalítica

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É sabido que clínica remete a características médicas e por isto as raízes do modelo biomédico são bem marcantes, mas esta dinâmica muda a partir da Psicanálise

A palavra Clínica é de origem grega –kline– que significa leito, ou seja, é a prática médica a beira do leito, um conceito totalmente biomédico. No entanto, outros autores conceituaram a atividade clínica visando o biopsicossocial. Canguilhem (1995, p. 16) afirma que a atividade clínica “[…] é uma técnica ou uma arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita”.

É sabido que clínica remete a características médicas e por isto as raízes do modelo biomédico são bem marcantes. Procedimentos como escutar, observar, hipotetizar e diagnosticar provam tais raízes. Tanto que a clínica psicanalítica foi construída e dissipada por um médico, Sigmund Freud, que teve interesse em estudar diversos fenômenos que influenciavam no adoecimento do sujeito.

Freud iniciou sua carreira profissional na neurologia, realizando pesquisas em Viena, no laboratório de Ernst Brücke. Em seguida, no ano de 1882, foi trabalhar no setor de psiquiatria do Hospital Geral de Viena, adquirindo grande experiência técnica e prática com a psicopatologias. Sigmund passou um período em Paris, trabalhando com o neurologista Jean Martin Charcot, no Hospital Salpêtrière. Pouco tempo depois retornou a Viena, abriu um consultório particular e passou a atender doenças nervosas. Desta forma, mulheres histéricas chegaram até ele, sendo um marco importantíssimo e que abriria porta para uma nova ciência, a Psicologia. (Zimerman, 1999).

Fonte: encurtador.com.br/eBGJZ

Freud passou a ter interesse por doenças vistas como intratáveis por alguns médicos da época, o que lhe possibilitou a iniciar pesquisas sobre a histeria, estendendo-se a outras patologias e questões culturais. Sigmund conceituou o inconsciente, e hipotetizou que algumas patologias poderiam ter cura através da tomada de consciência. Logo, passou a estudar manifestações através de experiências traumática dos sujeitos, estas que eram recalcadas, de forma inconsciente. Com o objetivo de romper o recalcamento trazendo a consciência, e para isto passou a fazer uso do hipnotismo, técnica que aprendeu durante a experiência que teve com Charcot (Freud, 1913).

Em 1880 Freud conheceu Josef Breuer e teve a oportunidade de adquirir experiência sobre hipnose, que era aplicada em doentes nervosos, no laboratório de Bücke. A histeria deixou de ser classificada orgânica – “doença do útero” –  e passou a ser classificada como doença psíquica – “doença nervosa sem lesão anatômica apreciável” (Ferreira e Motta, 2014).  Freud intensificou sua investigação na histeria, afim de descobrir suas possíveis causas etiológicas, chegando a neurose, que chamou de “modificação patológica funcional”, tendo a vida sexual do sujeito como a etiologia do problema (Freud, 1896a).

No decorrer de seus estudos, Freud começou a desacreditar da hipnose, já que esta técnica não trazia resultados permanentes e nem sempre era bem-sucedida, sendo importante um bom vínculo entre médico e paciente (Freud, 1924).  A partir de então, Sigmund passou a fazer uso da escuta terapêutica, que é uma técnica muito importante para que se tenha um atendimento clínico eficaz.

Freud: além da alma. Fonte: encurtador.com.br/lyzSW

Os pacientes eram convidados a se acomodarem em um divã, e Freud ficava atrás do paciente, desta forma o paciente poderia falar o que viesse a mente, sem vê-lo, ou preso a algum tipo de campo visual e sem julgamento moral (Freud, 1904). Este método chama-se “associação-livre”, e partir dele tornou-se necessário a elaboração de uma técnica de interpretação das falas dos pacientes, de conteúdos latentes, isto por que a resistência impedia que o conteúdo viesse a consciência (Freud, 1913).

Assim, a partir da associação livre, os pacientes falavam de modo espontâneo, de forma a abster-se de reflexões conscientes. Em seguida Freud interpretava alguns conteúdos, isto porque muitas coisas ditas faziam parte do que era esquecido, em forma de alusões. (Freud, 1924). Baseado em estudos, Freud hipotetizou que o material recalcado está relacionado a conteúdos de satisfação proibida. Logo, os sintomas são substitutos de tais desejos de satisfação, que normalmente vai contra a moral social e religiosa do sujeito (Freud, 1924).

É importante ressaltar que ao avançar em suas pesquisas, Freud afirmou que determinados aspectos e fenômenos, de um indivíduo, se respaldam em vivências desde a tenra infância e de como tal sujeito simboliza e significa no momento atual em que vive. Dessa forma Freud (1940/2014) conceituou a constituição da nossa psique humana, e denominou três instâncias: Id, Ego e Superego.

Fonte: encurtador.com.br/kqTUV

Segundo Freud o id é constituído por um conjunto de conteúdos de natureza pulsional e de ordem inconsciente, funcionando como uma reserva inconsciente dos desejos e impulsos de origem genética, com o intuito de preservar e propagar a vida. Parte dos conteúdos do id são hereditário e inato, assim como podem ser adquiridos e recalcados. Do ponto de vista “econômico”, o id é que opera o ego e o superego, pois é a fonte e o reservatório de toda a energia psíquica do indivíduo. Do ponto de vista “dinâmico”, o id interage tanto com a realidade exterior (ego), como com a introjetada (superego).  Do ponto de vista “funcional”, o id é procura resposta imediata pelo prazer, logo é regido por ele e tem a função de descarregar as funções biológicas.

O ego é o resultado da capacidade de diferenciação do real e do imaginário. Sendo parte consciente e parte pré-consciente.  Como sua capacidade de diferenciação incube diferenciação, seu objetivo é ajusta-se ao ambiente. De modo a solucionar conflitos entre o organismo e a realidade. Assim, o ego tem o papel de mediar o id e o mundo exterior, assim como lidar com o superego e suas memórias e necessidades físicas corporais. É como viver em um duelo, em que por um lado é pressionado pelos desejos insaciáveis do id e por outro pela repressão severa do superego, assim como as ameaças de ordem social do mundo exterior.

Fonte: encurtador.com.br/ceB24

O superego é o órgão psíquico da repressão, e se desenvolve a partir do ego, em um período situado entre a infância e o início da adolescência, em que Freud conceitua como período de latência. Isto por que de acordo com o psicanalista, é neste período que a personalidade moral e social é formada. Logo, o superego atua como uma espécie de juiz, que julga o certo e o errado. Desta forma é estabelecida uma censura de impulsos que a sociedade, a cultura e a religião proíbem ao id. O que impede o sujeito de satisfazer plenamente seus desejos e instintos.

Diante do exposto é possível ver que Freud saiu da postura de ´´dono do saber“, passando a escutar seus pacientes, e descobriu que apesar de o sujeito sofrer por algo que não sabe, o saber está contido em seus discursos de associações livres. Logo, é importante destacar que a construção da clínica psicanalítica foi dissipada por Freud, decorrente de sua experiência clínica, ao dar importância a etiologias psicológicas, e para isto formulou métodos clínicos como o de a associação livre, escuta flutuante, transferência e interpretações.

Fonte: encurtador.com.br/mnF14

Dessa forma, na visão psicanalítica, o ser humano é visto como “sujeito”, pois detém consciência de seu processo histórico, capaz de fazer reflexões sobre o espaço-tempo vivido, assim como se reconhecer e ser o protagonista de sua própria narrativa.

Referências

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FREUD, Sigmund. O ego e o id. Londres, Inglaterra, Imago, 1927.

FREUD, Sigmund. Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. Tradução de Pedro Heliodoro Tavares.

FREUD, S. (1940 [1938]). Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados: edição bilíngue. Obras Incompletas de Sigmund Freud. V. 3. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

ZIMERMAN, David. E. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre, Artmed, 1999.

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São Paulo sediará curso sobre o ato analítico em psicanálise

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No dia 19 de maio de 2018, ocorrerá em São Paulo- SP, o curso “O Ato Analítico na Neurose, na Psicose e na Perversão” ministrado pelo psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira. Promovido pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, o evento será sediado na Rua Almirante Pereira Guimarães, 378/ Pacaembu, São Paulo-SP.

O curso tem por objetivo discutir as especificidades do ato analítico, a partir da perspectiva da direção do tratamento e do final da análise, nas diferentes configurações clínicas. Seu eixo condutor serão as proposições de Freud e de Lacan sobre o dispositivo analítico, o desejo do analista e suas formas de intervenção.

Mario Eduardo Costa Pereira é psicanalista, psiquiatra, professor titular de Psicopatologia Clínica pela Aix-Marseille Université (França), professor livre-docente em Psicopatologia do Departamento de Psiquiatria pela UNICAMP, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia: Sujeito e Singularidade (LaPSuS).

Mais informações podem ser obtidas pelo link.

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Tomada de Consciência e Ajustamento Criativo na perspectiva fenomenológica existencial

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 A origem psicanalítica da neurose

Ao estabelecer uma definição para neurose, Mijolla (2005) define o fenômeno como um transtorno psíquico sem substrato anatômico detectável. De acordo com o autor, a sintomatologia neurótica está intrinsicamente relacionada à expressão simbólica de um conflito intrapsíquico entre ideias fantasmáticas inconscientes, associadas ao complexo edípico, e as defesas que elas provocam, que possuem raízes na história infantil do sujeito.

De acordo com Doron e Parot (2001), atualmente a neurose abrange os distúrbios mentais caracterizados por comportamentos que só afetam um setor limitado da atividade, sem relação, pelo menos aparente, com as motivações instintivas e sociais habituais. Neste sentido, o sujeito não vê sua finalidade, mas reconhece seu caráter anormal, podendo, porém, livrar-se dela voluntariamente. Teixeira (1999) afirma que a neurose está diretamente ligada ao recalque do inconsciente, ou seja, este é o resultado de repressão do ego sobre o material confinado no id (material recalcado).

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Sob a perspectiva psicanalítica, Zimerman (2008) ressalta que a estrutura neurótica está relacionada ao fato do sujeito apresentar algum grau de sofrimento e de adaptação em alguma ou mais áreas importantes de sua vida, tais como: a familiar, a social, a sexual ou a profissional. Fica evidente, também, o seu permanente e predominante estado mental de bem ou mal-estar consigo próprio, de maior ou menor autoestima.

No entanto, para Bion (1957, apud ZIMMERMAN, 2008), o sofrimento e o prejuízo, em alguns casos, podem alcançar níveis de gravidade. Os indivíduos neuróticos sempre conservam uma razoável integração do self, além de uma boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade, não obstante o fato de que, em algum grau, sempre existe em todo neurótico uma “parte psicótica da personalidade”.

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De acordo com a ótica de Lacan (1995-1956/1985 apud CASTRO, 2015), na psicose a angústia é vivida como uma invasão, a partir de fora, com uma experiência de excesso de presença – excesso da presença do gozo do Outro –, enquanto que na neurose, essa angústia é invadida a partir de dentro, como uma experiência de excesso de falta. Partindo das ideias de Calligari e Contardo (1989), qualquer tipo de estruturação do sujeito, seja neurótica ou psicótica, é uma estruturação de defesa.

 A neurose para a Gestalt-terapia

Conforme Ribeiro (1985), Perls (1893-1970) fala sobre a inspiração fenomenológica-existencial como uma das bases para a Gestalt-Terapia. Utiliza-se o método fenomenológico ancorado em filósofos como Husserl, Nietzsche, Buber e, posteriormente, Heidegger, com sua analítica existencial. Estas influências são indiscutíveis, acoplando, ainda, outras correntes de pensamento, como a Psicologia da Gestalt, a Teoria Organísmica e todas as influências intelectuais que formam a Gestalt-Terapia.

Para os Gestalt-terapeutas, a percepção que cada indivíduo tem sobre si próprio sempre está afetando suas outras maneiras de agir, controlando, assim, sua forma de enxergar e contatar a realidade. Dessa forma, quando um homem busca soluções para poder satisfazer suas necessidades, ou, ao invés disso, ele deixa de lado o que não é seu ou que não considera como sendo beneficente à sua vida, pode-se afirmar que ele tem um funcionamento sadio, já que está realizando o melhor que pode de acordo com o que lhe é oferecido. A isso chamamos de ajustamento criativo.

O conceito de “ajustamento criativo” foi usado por Frederick Perls para descrever a natureza do contato que o indivíduo se mantém na fronteira do campo organismo/ambiente, visando à sua auto regulação sob condições diversas. O qualificativo de “criativo” refere-se ao ajustamento resultante do sistema de contatos intencionais que o indivíduo mantém com seu ambiente, diferenciando-o do sistema de ajustamentos conservativos desenvolvidos dentro do organismo, o qual constitui a maioria das funções reguladoras da homeostase fisiológica (D’ACRI; LIMA; ORGLER 2007, p. 20 apud PHG, 1997).

Pode-se ainda, afirmar que o ajustamento criativo é o método pelo qual a pessoa sobrevive e cresce, atuando de forma a se manter ativa e responsável, providenciando seu próprio desenvolvimento, suas necessidades físicas e psicossociais (D’ACRI; LIMA; ORGLER, 2007). O psicoterapeuta precisa encontrar o valor criativo frente resistências que podem surgir, pois, pode-se entender os conflitos internos, como conflitos da própria “existência” do organismo com o social (GALLI, 2009).

 

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As relações que mantemos com as pessoas, são de extrema importância para o desenvolvimento de quem somos, do que almejamos, no que acreditamos. Nisto, quando se inicia um conflito nessas relações, atitudes incompatíveis, constituem a natureza da neurose, que indicam perturbações humanas (GALLI, 2009).

Como produto de uma cultura diferenciada dos tempos passados, o indivíduo hoje vive para o trabalho, para a corrida encontrada na concorrência, para o cansaço e para o estresse. Com isto, o indivíduo se vê sempre frágil, deprimido, estéril para o pensamento. “As pessoas não se interrogam mais sobre sua própria existência” (GALLI, 2009, p.64) nisto, a neurose é uma resposta do indivíduo para os acontecimentos, desenvolvida em um contexto. “Tudo o que acontece no corpo de um ser vivo é a expressão do padrão correspondente de informação, ou seja, é a condensação da imagem correspondente” (GALLI,2009, p.67).

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Romero (1997), afirma que o indivíduo ao internalizar a figura do outro, caracteriza a essência da existência humana, originando aí a problemática relacionada à patologia.

O sujeito neurótico internalizou a figura do outro como uma presença dominante, perante a qual o próprio sujeito se posiciona como ente secundário. Isso significa que para o neurótico o outro tem demasiada presença. O neurótico está tão habitado pelo outro que quase sempre precisa tomar providências, tendo que apelar para truques no sentido de conquistar um espaço suficiente para ele mesmo nesse mundo (ROMERO, 1997, p.165).

A neurose é um processo de repetição constante de mecanismos neuróticos e não um processo espontâneo de auto regulação. Para manter um ajustamento saudável, é necessário criar, estar em contato, gerar novidades. Esta possibilidade de ajustamento vai perdendo-se no indivíduo que apresenta comportamentos neuróticos. O contato da pessoa consigo própria e com os elementos do meio (ambiente físico e social), fica prejudicado de forma que: desiste, muitas vezes de buscar a satisfação; passa a não discriminar o que realmente é importante para si; perde seu auto- suporte e se orienta pelas referências externas; não percebe o óbvio; não consegue mais entrar em contato com seus sentimentos e emoções; perde a espontaneidade no modo de ser e agir, passando a não ser mais criativo (LIMA, 2009 apud PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997).

Intervenções à luz da fenomenologia existencial

O desenvolvimento e o funcionamento saudável do self depende, desde os primeiros anos de vida, de um contato com o outro com qualidade, já que o self e a personalidade se organizam no contorno entre organismo e meio. Perls (1973/1981) acreditava que a neurose, em suma, é a falta de visualizar e/ou nutrir um equilíbrio do indivíduo com o seu entorno. Eles sentem a necessidade de distanciar-se do mundo, evitando qualquer esmagamento proveniente do externo. Em outras palavras, “os limites do meio se estendem demais sobre si mesmo” (TENÓRIO, 2012, p. 225).

Percebe-se, diante do exposto, que se a interação estiver comprometida, logo a tendência é agravar esse distúrbio. Em seu livro, “Gestalt Terapia Explicada”, Perls (1977) descreve a respeito da importância da relação organismo-natureza:

Este é o motivo pelo qual chamamos a nossa abordagem de existencial: nós existimos como um organismo, como um molusco, como um animal, e assim por diante, e nos relacionamos com o mundo exterior como qualquer outro organismo da natureza. […] Não se pode separar organismo do ambiente. […] Assim, temos que sempre considerar o segmento do mundo em que vivemos como parte de nós mesmos (p. 20 e 21).

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Se a relação entre organismo-meio for interrompida, não há ajustamento criativo, mas, sim, ajustamento conservativo, que não satisfaz as necessidades do organismo e não transforma o meio. Se não há ajustamento criativo, o neurótico luta, basicamente, pela sobrevivência, abre mão de seus verdadeiros objetivos. O processo de ajustamento criativo é essencial para o desenvolvimento da função do self, pois autorregula e tem por objetivo atender as demandas/necessidades do indivíduo, potencialidades transformadas na relação plena entre organismo e meio. Dito em outros termos, “o self é um ‘eu’ relacional, processual e consciente” (TENÓRIO, 2012, p. 225).

Sobre isso, e de acordo com Ginger (1995), a teoria de Perls dá muita importância às necessidades fisiológicas orais e cutâneas (fome e necessidade de contato), fundamentais à sobrevivência individual e anteriores à pulsão sexual propriamente dita.

A neurose é consecutiva à soma das ‘‘Gestalts inacabadas’’, ou seja, às necessidades interrompidas ou insatisfeitas, mais do que aos desejos proibidos pela sociedade ou recalcados pela censura do superego ou do ego. A neurose nasceria então, essencialmente, de um conflito entre o urxunismo e seu meio (a mãe, o pai, os outros) e, por isso, revela-se principalmente na fronteira de contato entre o indivíduo e o meio em que vive (p. 65).

Ribeiro (2006), traz em sua obra que o gestalt-terapeuta é alguém que acredita na potencialidade do indivíduo, que, através do contato, este auxilia o paciente a voltar-se cada vez mais para si, percebendo-se no mundo como um ser de possibilidades. Portanto, “o terapeuta deve estar atento e perceber o cliente em sua inteireza” (p. 94), promovendo um contato de qualidade que reverta tal distorção psíquica. De forma mais clara, a técnica utilizada pela Gestalt-Terapia deve levar o cliente a um contato positivo e criativo com o mundo externo e consigo mesmo, levando-o na direção de suas necessidades e a movimentar-se no sentido de satisfazê-las (RIBEIRO, 2012).

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Contudo, o paciente deve empenhar-se na terapia, pois, assim, conseguirá preencher os buracos da personalidade, tornando-se inteiro e completo. O trabalho psicoterapêutico é demorado, contudo promove o potencial humano e seu desenvolvimento (PERLS, 1977). A partir dos trabalhos de Reich e Perls, ao buscarem ampliar soluções para a neurose, Ribeiro (2012) destaca a importância de trabalhar a frustração em pacientes neuróticos.  O autor salienta que:

Perls afirmava que o crescimento acontece através da frustração e que o psicoterapeuta deve ser uma mistura de simpatia e frustração. Ele deve dar suporte e frustrar ao mesmo tempo. Ele deve frustrar o cliente, fazendo-o ver suas formas de manipulação, seus modelos neuróticos de comportamento, sua percepção de seu autoconceito, de modo que ele se sinta incomodado nas suas verdades solidificadas.  Ele deve chamar o cliente para uma visão realista de sua realidade podendo, às vezes, ser cruel para ser, de fato, bom (p. 175).

Ribeiro (2012) aponta que a frustração se apresenta na linguagem, no corpo, nas atitudes, e, seguindo estes mesmos caminhos que ela se instalou no indivíduo – desfrustrar o corpo e a linguagem –, consegue-se levar a pessoa à formação de novas gestalts, à autorregulação, possibilitando, assim, que o comportamento desse sujeito se torne saudável.

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Há uma forma que os neuróticos encontraram para “resolver” seu problema: Ajustamento Neurótico. Granzotto (2007) explica que esses ajustamentos são soluções criativas no sistema self para dar conta dos excitamentos e da ansiedade (co-presença de uma inibição reprimida). Trata-se de uma “ampliação” dos recursos de ajustamentos criadores”. Granzotto (2007) apresenta o que os fundadores da Gestalt-Terapia propõem como forma de intervenção nos ajustamentos neuróticos:

  1. Em um dado momento, provoca-se “emergência segura” de condições ansiogênicas, para que ele responda, por meio ajustamentos neuróticos, até que uma reação desvista a inibição reprimida e o excitamento inibido.
  2. Noutro momento, estabelece fundos de experiência, permitindo que o ego crie formas de ajustamento mais além do que é imaginário e/ou reprimido.

Galli (2009) finaliza dizendo que a atuação em pela perspectiva fenomenológica existencial acredita na cura como a implementação daquilo que está faltando, baseado na premissa de expansão da consciência. Não é propriamente solucionar o problema em si, mas entrar em contato com o consciente, para que, com isso, o indivíduo decida.

Na neurose, ocorre um distúrbio da fronteira e das funções do self, processos estes que são oriundos de distorções primárias e secundárias, influenciando percepções negativas e positivas do indivíduo consigo e com o outro. Se essas fronteiras e funções do self estiverem em falência ou em estado de vulnerabilidade, essa psicopatologia culminará em transtornos psicóticos (TENÓRIO, 2012). O neurótico, ao ter a percepção distorcida de si e do outro, se mostra frágil e confuso, pois sente o sofrimento. Este indivíduo, por não conseguir encontrar saídas para a resolução do problema, vivência uma realidade vez mais insuportável.

Por fim, faz-se necessário mais estudos dentro da perspectiva fenomenológica existencial, fazendo com esses estudos nessa perspectiva somem, auxiliem e melhor intervenham no trabalho aos pacientes neuróticos, evitando seu agravo dentro das psicopatologias como distúrbios da função do self.

REFERÊNCIAS:

CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

CASTRO, Júlio Eduardo de: A presença do objeto a na neurose e na psicose e o desejo do psicanalista. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, 2015

D’ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia; ORGLER, Sheila. Dicionário de Gestalt-terapia: “Gestaltês”. São Paulo: Summus Editorial, 2007.

DORON, Roland; PAROT, Françoise. Dicionário de psicologia. São Paulo: Ática, 2001.

GALLI, Loeci Maria Pagano. Um olhar fenomenológico sobre a questão da saúde e da doença: a cura do ponto de vista da Gestalt terapia. Estudos e Pesquisas em Psicologia. UERJ, RJ, Ano 9, N.1, P. 59-71, 1° semestre de 2009. Disponível em: <http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a06.pdf>. Acesso em: 28/04/2016

GINGER, Serge e Anne ginger. Gestalt, Uma Terapia do contato. 4ª ed. São Paulo: Summus Editorial Ltda, 1995.

LIMA, Patrícia Albuquerque. Criatividade na Gestalt–terapia. Estudos e Pesquisas em Psicologia. UERJ, RJ, Ano 9, N.1, P. 85-95, 2009. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812009000100008> Acesso em: 29/04/2016.

MIJOLLA, Allain. Dicionário Internacional de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005. v.1 e v.2.

MÜLLER-GRANZOTTO, Marcos José; MÜLLER-GRANZOTTO, Rosane Lorena. Fenomenologia e Gestalt-terapia. Ed. Summus. São Paulo, 2007.

PERLS, F. S. Gestalt-terapia explicada. [compilação e edição da obra original de John O. Stevens; tradução de George Schlesinger]. – São Paulo: Summus, 1977.

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt Terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. Ed. Summus. São Paulo, 2012.

RIBEIRO, Jorge Ponciano. Vade-mécum de Gestalt-Terapia Conceitos Básicos.  Ed. Summus. São Paulo, 2006.

ROMERO, E. O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia. São Paulo. Lemos Editora,1997.

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ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed, 2008.

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Histeria – A ausência de afeto como causa patológica

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Um dos filmes mais interessantes lançados recentemente é “Histeria” (Vários países – 2012), que trata do surgimento do popular (e ainda alvo de preconceito) vibrador, ou consolo. A comédia dramática se passa no intenso final do século XIX, época base da constituição psicanalítica, marcada por uma verdadeira “epidemia” de histeria, patologia até então atribuída exclusivamente ao sexo feminino, já que a medicina vigente utilizava-se do sentido estritamente etimológico para o termo, onde hysterikos se referia a uma suposta condição médica causada por perturbações no útero, hystera, em grego. Mais tarde, obviamente, se percebe que o problema não é peculiar à mulher, e que também acomete homens, embora em menor grau.

O filme usa uma linguagem leve para demonstrar que, na tentativa de encontrar um alívio para aquelas senhoras e senhoritas de diferentes idades, um jovem médico acaba por inventar um equipamento que substitui as mãos nas massagens/estímulos vaginais, já que ele desenvolveu um trauma em suas mãos, pela quantidade de intervenções que fazia diariamente; até então a massagem era única alternativa para aplacar as crises que acometiam as nobres pacientes. Lembremos que não se tinha claro que a histeria poderia ser decorrente de conflitos internos (pulsões reprimidas) que se manifestavam em sintomas físicos. Dentre outras coisas, pensava-se que era uma doença decorrente da ausência de “ventilação sanguínea” adequada na região uterina. O filme não se preocupa em mostrar esta faceta da doença, e sim exclusivamente o surgimento do vibrador.

No entanto, a invenção em si do apetrecho já descamba, numa análise mais ampla, para a questão do afeto (sua ausência, neste caso) como desencadeador de processos patológicos, outro viés que se pode abordar a partir do filme. E neste contexto é interessante observar como a medicina (bem retratada no filme pelos personagens dos doutores Mortimer Granville e Robert Dalrymple), a psicanálise, a filosofia da mente, a filosofia da psicanálise, e bem mais recentemente a psicologia, avançaram neste aspecto.

Para além da ficção, nos últimos 80 anos – e com mais vigor de 20 anos para cá – são inúmeros os trabalhos de pesquisa e as abordagens clínicas que seguem o rastro da dupla médica de “Histeria” e procuram demonstrar a relação entre produção (ou ausência) de afetos e as patologias relacionadas à psique. O mais famoso caso, provavelmente deve ser do médico americano Dean Ornish.

Se à época em que se passa o filme em questão a histeria era atribuída a distúrbios químico-orgânicos, com o passar do tempo esta e outras patologias foram estudadas sob novas perspectivas e, deste esforço, um dos mais incríveis resultados é a pesquisa de Dr. Dean, publicada no livro “Amor & Sobrevivência”, e que de alguma maneira, pelas “mãos” de um médico, é mais uma forma de tentar dirimir o sofrimento das pessoas que não conseguem lidar com suas questões internas.

Impossível ver o longa “Histeria” e não associá-lo ao trabalho do americano, que aborda a base científica para “o poder curativo da intimidade”. E por intimidade, neste caso, não se restringe as relações sexuais propriamente ditas mas, antes, toda relação em que o afeto dá o tom da interação.

Embora o simples, porém impactante pressuposto de Dr. Dean Ornish de que “nossa sobrevivência depende do poder curador do amor, da intimidade e de nossos relacionamentos como indivíduos, comunidades” não tenha sido abordado claramente no filme (apesar da relação amorosa do Dr. Mortimer Granville e da filha de seu sócio, Charlotte Dalrymple), as duas obras mantém pontos de contato, pontos estreitos e que tem como foco a “construção interna” como mecanismo que desencadeia tanto equilíbrios quanto desequilíbrios no corpo. Dr. Dean Ornish demonstra que “mudanças significativas no estilo de vida de cada um podem reverter doenças”.

Apesar de um enfoque maior nos pacientes com problemas no coração, o livro do Dr. Dean também dedica parte do espaço para aquelas pessoas, a exemplo das retratadas no filme “Histeria”, que têm dificuldade de tocar o próprio corpo (algo que é estimulado em algumas práticas orientais, como o Yoga e o Tai Chi Chuan, só para citar algumas) e o corpo das outras pessoas (como a aversão em abraçar ou beijar alguém). Estas pessoas estariam mais propensas a desenvolverem doenças. No filme, era notória a melhora das mulheres quando submetidas “ao toque” do médico. Apesar de aqui não haver o afeto em seu sentido estrito, no entanto o simples fato de se tocar o corpo da paciente já suscitava melhoras surpreendentes.

Em súmula, o que tanto o filme “Histeria” quanto o livro “Amor & Sobrevivência” abordam, em linhas gerais (porque há muitas outras “chaves” para se aprofundar, mas este artigo ficaria muito extenso) é que a observância do próprio corpo (e de suas necessidades mais básicas, como o ato de se tocar e/ou tocar outras pessoas), as relações afetivas e as construções sociais sadias são alguns (mas não exclusivamente, para que não se caia num dogmatismo) dos fatores predominantes para se evitar patologias de toda ordem, que variam desde alterações de humor e sentimentos reprimidos que resultam em problemas mais agudos, como em alguns casos a histeria, até patologias mais graves, como doenças cardíacas.

A dica do Dr. Ornish para que se evite no futuro novas ondas de patologias mentais (como ocorre em “Histeria”), dica esta que também foi defendida pelo filósofo e psiquiatra húgaro/americano Dr. Thomas Szasz, é que a noção de doença, em especial a mental, tem que ser conduzida como uma questão de relacionamento, seja interno, externo ou ambos.

O vibrador foi e continua sendo uma alternativa adequada para (a mulher em particular) “lidar” com o próprio corpo. No entanto, assim como para enfrentar um problema maior, mais sutil, não basta prescrever doses diárias de Prozac (que podem maquiar as causas de tal problema), as questões que se escondem nos recônditos do ser devem ser enfrentadas com (boa) vontade e tempo, tanto do paciente quanto do terapeuta. Dois ingredientes aparentemente em extinção na contemporaneidade, mas que devem ser perseguidos para que haja sucesso nos fins.

 

FICHA TÉCNICA

HISTERIA

Título Original: Hysteria
Países: Reino Unido/França/Alemanha/Luxemburgo
Gênero: Comédia / Drama
Direção: Tanya Wexler
Roteiro: Stephen Dyer, Jonah Lisa Dyer, Howard Gensler
Elenco: Hugh Dancy, Maggie Gyllenhaal, Felicity Jones, Jonathan Pryce, Rupert Everett, Ashley Jensen, Sheridan Smith
Ano: 2012
Duração: 100 minutos

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O Eu dividido – Três ou quatro apontamentos sobre a existência psicótica

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“A experiência e comportamento que recebem rótulo de Esquizofrenia é uma estratégia
especial que uma pessoa inventa para viver uma situação insuportável”

R.D. Laing

Nesse resumo sucinto discorro algumas das idéias do psiquiatra escocês Ronald D. Laing contidas no livro O Eu dividido (The Divided Self – 1960), a respeito da existência psicótica.

Ronald D. Laing foi, no decorrer da sua vida, bastante criticado por algumas correntes psiquiátricas, principalmente as mais clássicas. De fato, seus estudos diversificados, misturando misticismo, psicanálise e psicopatologia ganharam entoadas diferentes e, por vezes, contraditórias, mas por nenhum momento as críticas puderam retirar-lhe o mérito de ter abordado a psicose de maneira tão afinca e profunda. O existencialismo sartreano muito influenciou as concepções do psiquiatra. Nesse sentido, Laing dizia da psicose como uma tentativa do sujeito em significar a sua própria existência. Ou seja, a psicose em si seria um significado existencial.

Ferrenhamente contrário à linguagem psiquiátrica, Ronald D. Laing objetava tudo o que tinha a função de circunscrever o sujeito, embora ele mesmo tenha criado conceitos para explicar a sua maneira de enxergar a psicose (e o sofrimento, a solidão e o desespero embutidos nela).

Um dos primeiros conceitos apresentados por Laing (e talvez o fundamento de todos os outros) no inicio de seus estudos sobre a psicose é o conceito da Insegurança Ontológica. De acordo com Gabriel e Carvalho Teixeira (2007), a Insegurança Ontológica para Laing seria uma experiência irreal ou uma sensação de não estar vivo, o que conduziria o sujeito a uma preocupação central em sua auto-preservação (ao invés de uma preocupação com a auto-gratificação). Foi a partir desse conceito que o autor introduziu o termo “o eu-dividido”, se referindo à percepção fragmentada que o sujeito psicótico tem de si. Nessa percepção, o sujeito se questiona quanto à sua existência, à sua essência e à sua identidade.

Analisando alguns sinais e sintomas nosológicos da psicose junto aos conceitos introduzidos por Laing, é possível dizer da Insegurança Ontológica como crença mantenedora ou alimentadora do embotamento afetivo e da postura esquiva frente aos relacionamentos interpessoais, já que o psicótico vai se “trancando” dentro de si mesmo, deixando de ser “um para o outro” para ser “um para si”. A noção de ser desintegrado ou dividido, aproxima-se da noção de divórcio entre um eu falso, ou self falso, e um eu verdadeiro, que não se manifesta; fica guardado somente para o sujeito. Nesse eu (que é dividido), há um que é uma casca e pode ser deteriorado, enquanto há o outro intocável, impenetrável, inatingível e inacessível. A partir dessa conceituação Laing defendeu que não há propriedade para se falar de um psicótico quando não se é um. Para o psiquiatra a psicose enquanto agravamento ou doença seria nada mais do que a retirada da casca do falso self, o que comumente chamamos de surto, ou crise.

Na Insegurança Ontológica há três tipos de ansiedade vividas pelas pessoas ditas psicóticas. O primeiro tipo é o Engulfment ou absorção, que seria uma sensação constante de perda de identidade, onde a estratégia de preservação usada é o isolamento; o segundo tipo é aimplosão, que seria uma constante sensação de vazio, onde esse vazio é o próprio sujeito e a realidade é tida como algo perigoso capaz de tomar o lugar do vazio e, por fim, destruí-lo; e apetrificação ou despersonalização como terceiro tipo de ansiedade, seria o medo constante da perda da subjetividade. Frente a essas ansiedades, muitos dos sintomas psicóticos são, na verdade, estratégias protetoras contra a Insegurança Ontológica. Algumas estratégias parecem contraditórias, mas no fundo prezam por uma existência que é, a todo instante, ameaçada.

Em suma, Ronald D. Laing defendeu a psicose como uma maneira diferente do sujeito existir no mundo, propondo uma análise fenomenológica-existencial dos sintomas ditos irracionais ao invés de uma análise neurofisiológica do quadro psicótico. Nas obras posteriores ao “O Eu dividido”, estudou e discorreu a respeito dos fatores sistêmicos relativos à existência psicótica, como vínculos familiares e aspectos culturais (e por vezes místicos) entrelaçados à temática da loucura.

 

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