Ninfomaníaca I e a Terapia de Sentido

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Ninfomaníaca (2013), de Lars Von Trier, é sem dúvidas um filme perturbador. Uma característica marcante é a sexualidade explícita: nudez, masturbação, orgasmo, excitação, penetração, sexo oral, etc. O filme se inicia com Joe (Charlotte Gainsbourg) abandonada em um beco escuro, inconsciente, cheia de hematomas. Ao vê-la, um homem chamado Seligman (Stellan Skarsgard) a conduz para sua casa, onde presta assistência e, assim, começam a dialogar.

Joe então narra, repleta de culpa, a relação que desenvolveu com o sexo. Sua primeira experiência de descoberta com seu corpo foi aos 2 anos, quando conheceu sua vagina; depois, esfregou sua genitália no chão do banheiro; aos 15 anos, tinha um só objetivo: perder a virgindade. E o fez, com um mecânico, Jerônimo. Depois da experiência considerada por ela humilhante, jurou a si que nunca mais transaria com ninguém – o que durou pouco tempo. Numa viagem de metrô, competiu com sua amiga para ver quem faria sexo com o maior número de homens. O prêmio seria uma caixa de chocolate. Joe perdeu. Todavia, a partir dali, percebeu o poder de atração e/ou sedução que, como mulher, possuía.

Fonte: http://zip.net/bltCjL
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Não tinha habilidades nem experiência profissional (trabalhou, inadequadamente, como secretária), a relação com a mãe era conflitante e, aparentemente, seu pai era a sua fonte de vínculo afetivo com a família. Passou a fazer parte de um grupo feminino, regido por regras claras: “não transe com um cara por mais de uma vez”. O lema era a luta contra o amor, que para elas, não passava de nada além da luxúria. Só que um ideal como esse era difícil de ser seguido para sempre.

Algumas se apegaram aos parceiros sexuais, chegaram a dizer que “o ingrediente secreto para o sexo é o amor”. Todo esse contexto de desconfiança amorosa e de afastamento familiar favoreceu seu investimento libidinal na única origem de satisfação/prazer por ela conhecida: o sexo. E não somente. Passou a ser uma via de fuga, escape, novidade, desespero, exploração. O que pode ser corroborado no fato de Joe ter relações com vários homens num só dia, chegando a 10 (dez) ou 15 (quinze).

Diferentes termos têm sido usados para designar o impulso sexual aumentado, e os mais frequentes são: compulsão sexual, comportamento sexual compulsivo ou impulsivo, adição sexual, transtorno hipersexual e impulso sexual excessivo (SPIZZIRRI, 2015, p. 78).

Muitos estudiosos objetivam determinar os atributos que podem ser considerados para caracterizar o transtorno hipersexual e a maior parte dos teóricos testifica que há a possibilidade de a compulsão sexual ser detalhada pela complicação na regulagem dos pensamentos, ímpetos e ações sexuais que direcionam a uma dor individual relevante e, ainda, efeitos prejudiciais ao indivíduo e a outros (SPIZZIRRI, 2015).

Fonte: http://zip.net/bstC6P
Fonte: http://zip.net/bstC6P

Descrição que se encaixa com a realidade de Joe. Pois, apesar de ter desejado e ter sido desejada por diversas pessoas, sua vida continuava vazia e monótona, como testificado por ela. Ajudou a desfazer casamento, trouxe dor, mas permanecia indiferente. A busca por sensações ainda não experimentadas continuava. Por diversas vezes resumiu: “talvez meu único pecado tenha sido querer mais do pôr do sol”.

Sob a ótica da logoterapia, uma possível explicação para a experiência supracitada seria o fenômeno do vazio existencial que pode ser compreendido a partir da sensação de tédio (FRANKL, 1984) e pela “’neurose dominical’, aquela espécie de depressão que acomete pessoas que se dão conta da falta de conteúdo de suas vidas quando passa o corre-corre da semana atarefada e o vazio dentro delas se torna manifesto” (FRANKL, 1984, p. 132). Neste caso, o corre-corre pode ser substituído pelo fim da relação sexual.

Para Viktor Frankl, fundador da terapia de sentido, (p. 124, 1984): “a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida“, ou seja, “cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida (…) Nisso a pessoa não pode ser substituída, nem sua vida ser repetida. ” (1984, p.133). Quando essa vontade de sentido não é satisfeita, consequências passam a existir. Um exemplo é a relação direta entre a falta de sentido e a energia direcionada a atividades prazerosas, visando a equivalência.

Fonte: http://zip.net/bktCWr
Fonte: http://zip.net/bktCWr

Existem ainda diversas máscaras e disfarces sob os quais transparece o vazio existencial. Às vezes, a vontade de sentido frustrada é vicariamente compensada por uma vontade de poder, incluindo sua mais primitiva forma, que é a vontade de dinheiro. Em outros casos, o lugar da vontade de sentido frustrada é tomado pela vontade de prazer. É por isso que, muitas vezes, a frustração existencial acaba em compensação sexual. Podemos observar nesses casos que a libido sexual assume proporções descabidas no vazio existencial (FRANKL, p. 132, 1984).

Num de seus empregos, Joe trabalhou com Jerônimo (sim, o mesmo da primeira vez), alguém que quando reconheceu, desprezou-o. Porém, com o decorrer do tempo, passou a nutrir sentimentos por ele – ela considerava amor. Quando foi se declarar, descobriu que o mesmo havia ido embora. Ficou em estado de choque. Passou um tempo sem conseguir fazer sexo com mais ninguém. No final, ela o encontra no jardim que gostava de ir durante as tardes. Ali, eles se encontram e vão para a casa de Joe. Apesar do desejo satisfeito, no meio da transa, ela começa a chorar: “eu não sinto nada!”. O vazio continuou.

Fonte: http://zip.net/bbtCK7
Fonte: http://zip.net/bbtCK7

Cabe ressaltar que não ficou claro qual situação gerou nela tanto arrependimento. O anfitrião fica, na maior parte do tempo, tentando mostrar à ninfomaníaca que ela não é tão ruim assim, que não é uma pessoa má. A mulher se acusa. Não aceita o rumo que sua vida tomou. No entanto, apesar de Joe apresentar a Seligman um pedaço da sua história, sua expressão facial ainda assim transmite uma impenetrabilidade desconcertante. Trata-se, portanto, de um filme instigante e que vale cada minuto dispensado.

.REFERÊNCIAS:

FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. 37° ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

SPIZZIRRI, Giancarlo. Compulsão sexual: O impulso sexual aumentado pode acarretar como consequência comportamentos e/ou práticas sexuais excessivas, tanto em homens como mulheres. Psique Ciência e Vida, São Paulo, ed. 127, p. 78, 2015.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Ninfomaníaca-filme-

NINFOMANÍACA

Direção e Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Stellan Skarsgård, Uma Thurman
 Ano: 2013
Países: Dinamarca, Suécia, França, Alemanha e Reino Unido
Classificação: 18
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Ninfomaníaca II: afinal, a quem pertence o corpo?

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Lars von Trier parece não ver diferença entre os extremos do ascetismo e da licenciosidade.

Afinal, não seria a busca incessante do prazer pelo corpo uma forma de transcender o próprio corpo? De dar sentido à vida?

 

 

Apesar de algumas mentes desavisadas observarem “Ninfomaníaca” (em suas duas partes) apenas como uma versão cult de um filme proto-pornô escandinavo que retrata o vício de uma mulher pelo sexo, o diretor e roteirista Lars von Trier consegue trazer à tona pelo menos dois importantes temas que ultrapassam de longe a variante da suposta “perversão” da personagem Joe. Trata-se de assuntos que vêm custando caro ao Ocidente, ainda marcado por setores fortemente dominados pelos valores vitorianos¹ e pelo medo², alguns dos “pilares” que desenharam as subjetividades coletivas de transição do modernismo para a contemporaneidade, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, e que é abordado com maestria pelo dinamarquês.

O assunto não é novo, já havia recebido ampla atenção do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que sentenciou de morte toda moral vigente à sua época. Isso fez com que alguns críticos percebessem em “Ninfomaníaca” grandes traços filosóficos, onde o importante não é chegar a um ponto final, a um denominador comum, mas questionar mesmo os limites do moralmente inaceitável. A moral e o medo, então, são subvertidos. Mais que isso, são transmutados.

De forma geral, “Ninfomaníaca” mostra a trajetória de uma mulher que “guerreia” para obter a posse de seu próprio corpo. Joe tenta ser esposa e mãe, mas não consegue esconder o vazio que este “papel” lhe provoca, por se tratar de algo que, no fundo, lhe é imposto. E para entender parte deste processo, o filme traça o contexto histórico (que vai desde a diáspora entre as igrejas cristãs do Oriente e do Ocidente, até a escolha dos símbolos que irão representar estas facções) e denuncia a excessiva normatização do corpo e do sexo, quesito em que as mulheres são ainda mais cobradas.

 

 

Em “Ninfomaníaca”, pode-se ver o “campo de batalha” a que todos estão submetidos, onde constantemente se é inquirido a aderir às assertivas religiosas, de um lado, e/ou às assertivas científicas (e de mercado), de outro. Lars von Trier parece não ver diferença entre os extremos do ascetismo e da licenciosidade. Afinal, não seria a busca incessante do prazer pelo corpo uma forma de transcender o próprio corpo? De dar sentido à vida? Estas são as provocações do diretor dinamarquês, ao lembrar que a igreja do Ocidente escolheu diligentemente a crucificação de Cristo (um episódio de dor e violência, além de medo provocado pela culpa) como marco de sua exegese. Assim, o ascetismo pela contenção dos prazeres mundanos e, em alguns casos, pelo uso do autoflagelo como mecanismo de transcendência, também tem algo de muito parecido com as marcas deixadas pelo mundo, em quem “vive do mundo e para o mundo”. Os limites e/ou aprovação de um ou de outro dependeria apenas do “olhar moral” de quem julga.

Nesta contenda para saber quem se impõe como “o senhor do corpo e da mente”, a ciência (representação do mundo) não é muito diferente da religião. Como diria a dupla Fernando e Ana Maria Lefevre, que aborda parcialmente este tema em um de seus livros, os “atores” disputantes [religião e ciência] tentam se sobrepor um ao outro, buscando para si a autoridade do conhecimento. No fundo, ambos são calcados num conjunto de normas e regras rígidas, que apenas aparenta dar espaço para o dissonante.

 

 

Enquadrar os comportamentos

Especificamente sobre o discurso totalizador da ciência (que muitos diriam que está atrelado ao próprio contexto do mercado), a tendência de “normatizar” os comportamentos é cada vez mais explícita, a exemplo do que já ocorre na religião. A “Bíblia da psiquiatria”³ amplia constantemente a lista de transtornos. De quebra, os novos sacerdotes e mediadores do conhecimento também aumentam “as chances de alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes”, pois se reduz o número de “sintomas necessários para que um paciente se encaixe em determinado diagnóstico”4.

 

 

A “patologização” de variantes comportamentais, notadamente no campo sexual, enquadra tudo o que não é moralmente aceito, como ocorre com algumas “parafilias”5, nomeia tais expressões e, em seguida, abre o caminho para que se rotule (muitas vezes, pejorativamente) tais ações. Sobre este assunto, o padre/filósofo/historiador prof. Dr. Luiz Corrêa de Lima, da PUC-RIO, defende a necessidade de se abordar as pessoas como sendo detentoras de sexualidades distintas. Cada pessoa nasceria, então, com uma sexualidade peculiar, e o mundo deveria ser encarado como o ambiente de expressão de múltiplas sexualidades. Alvo de críticas de setores conservadores, provavelmente ao defender tal tese, Padre Luiz deve ter sofrido a influência do místico cristão Meister Eckhart, para quem “as palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana é capaz de entender, o que não é muita coisa”. Rotular, portanto, é uma forma de compreender. Mas o convite é para que se vá além desta etapa.

 

 

Pulsão e sublimação

Obviamente que a sociedade não se desenvolveu sob a égide da epokhé (a suspensão de julgamento do ceticismo pirrônico), ao contrário, foi calcada na construção e manutenção de juízos, sobretudo os de ordem moral. Lars von Trier vem justamente mostrar que todo esse processo não foi “dado ao homem” (como faz entender, ainda hoje, algumas vertentes religiosas), mas desenvolvido convenientemente ao longo dos séculos, num movimento mesmo de dominação e controle das identidades de gênero. Joe está sob a égide de um conjunto de preceitos que determinam a forma como ela deve agir. Atuar fora destes limites exige um alto preço a ser pago, mesmo que fique claro que a pulsão (personagem de Joe) e a sublimação (personagem de Seligman) são, no fundo, facetas da mesma moeda.

 

 

Em “Ninfomaníaca” a lógica histórico-moral é invertida, e von Trier aponta para o limiar entre o sagrado e o profano, já que ambos, apesar de diferentes nos meios, seriam iguais nos fins. Haveria sempre uma necessidade de transcendência. O “desprendimento” provocado pelo prazer sexual, então, seria semelhante à experimentação mística do sagrado, o contato “com a clara luz” de que falam os budistas tibetanos (tantrismo).

 

 

O dinamarquês traz à baila questões que parecem antiquadas, mas que continuam tão atuais como nunca, como as constantes tentativas de “regulação” dos desejos, as cada vez mais comuns terapias para “curar” certas tendências, e o que poderia ser caracterizado como excessiva medicalização para “inibir os distúrbios”. Além, claro, de abordar a responsabilidade por “tomar parte definitivamente do que é seu”, por tomar parte do próprio corpo e decidir o que fazer dele.

Enfim, o filme faz rever as assertivas comuns sobre liberdade, ao mostrar que esta [liberdade], no fundo e para as pessoas medianas, não passa de ação condicionada a uma série de pré-requisitos, logo, não-liberdade. É uma espécie de “liberdade assistida”, que é dada apenas se se respeitarem algumas regras. E ai daqueles que infringi-las!!!… em “Ninfomaníaca”, Joe “compra” esta briga.

 

Notas:

¹ – Valores vitorianos são marcados por moralismos e disciplina, com preconceitos rígidos e proibições severas. Os valores vitorianos podiam classificar-se como “puritanos”, e na época a poupança, a dedicação ao trabalho, a importância extrema da moral, os deveres da fé e o descanso dominical eram considerados valores de grande importância (aspectos que recebem a influência do Calvinismo). Os homens dominavam, tanto em espaços públicos, como em privado e as mulheres deviam ser submissas e dedicar-se em exclusivo à manutenção do lar e à educação dos filhos. Fonte: Wikipédia, com dados de De la moral victoriana al goce moderno: Freud, Lacan y Zizek en Revista de Observaciones Filosóficas. Disponível emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Era_vitoriana – acesso em 11/04/2014.

² – “Os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental” do final da Idade Média à consolidação do Iluminismo variavam desde questões como “o mar, os mortos, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seu agentes (o judeu, a mulher, o muçulmano, o sexo)”. -DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

³ –Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em tradução livre).

4– Nova ‘Bíblia da psiquiatria’ amplia lista de transtornos e gera polêmica – Disponível emhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/05/130515_manual_psiquiatria_ny_fl.shtml – publicado em 15 de maio de 2013. Acesso em 11/04/2014.

5– Do grego παρ?, para, “fora de”, e φιλ?α, philia, “amor”, é um padrão de comportamento sexual no qual, em geral, a fonte predominante de prazer não se encontra na cópula, mas em alguma outra atividade. Em determinadas situações, o comportamento sexual parafílico pode ser considerado perversão ou anormalidade, apesar de algumas vertentes da psicologia a abordarem como inofensivas e parte integral da psiquê normal (quando não afetar a saúde e a segurança do praticante ou de terceiros). Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Parafilia – Acessado em 12/04/2014.

REFERÊNCIAS:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

Ninfomaníaca 2 – Ficha técnica. Disponível em http://www.cineclick.com.br/ninfomaniaca – Acessado em 12/04/2014.

O homossexualismo segundo o Padre Luis Corrêa de Lima, SJ: “É preciso combater a homofobia” (sic). Disponível em http://fratresinunum.com/2011/09/16/o-homossexualismo-segundo-o-padre-luis-correa-de-lima-sj-e-preciso-combater-a-homofobia/ – Acessado em 12/04/2014.

FICHA TÉCNICA:

NINFOMANÍACA II

Gênero: Drama
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Christian Slater, Connie Nielsen, Jamie Bell, Jean-Marc Barr

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Ninfomaníaca I : quando o sexo vira uma obsessão

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Sexo, prazer e fetiches. Ainda que estejamos em uma nova era, das tecnologias avançadas e da livre expressão artística, estes temas ainda são tratados como tabu por muitas pessoas e, é claro, reprovados por olhos que condenam e deixam de lado qualquer que seja a naturalidade das coisas. Sim, porque não há nada mais natural do que o Sexo.

Um filme que apresenta o título “Ninfomaníaca” (Nynpohomanic) já demonstra que não há nada a esconder, portanto não existem razões para o espectador esperar por algo simples, suave e maleável, ainda mais quando se trata de um longa dirigido por Lars von Trier, responsável por filmes completamente perturbadores.

Lars von Trier não economiza nas emoções e provocações.  Suas obras cinematográficas são providas das mais inquietas emoções humanas, exploram fantasias dementes capazes de provocar uma inquietude sem tamanho a quem o assiste. Além de tudo, von Trier traz uma imagem distorcida da personalidade humana, trabalha a fundo como a imagem do ser humano pode ser mais obscura que se pode imaginar, adota um gênero de tortura psicológica e física, destrói conceitos simplistas, eleva a complexidade humana. Expõe inúmeros temas que a sociedade faz questão de manter oculto. Através de von Trier chegamos ao fanatismo religioso, a mutilação do corpo, a perversão nua e crua, a destruição do amor e a luxúria do corpo.

Trier é, acima de tudo, um ser sem filtro. Capaz de provocar os mais diversos sentimentos nas pessoas, porque seus filmes são, de fato, nada convencionais. Ninfomaníaca segue à risca as características que transformam os filmes de Trier em obras assustadoramente fascinantes, assim como Anticristo, produzido em 2009.

Ressalto aqui que, para demonstrar a grandiosidade desse autor, quando questionado sobre a violência exposta em Anticristo, Trier respondeu com total sinceridade e realismo “Simplesmente achei que seria errado não mostrar. Sou um cineasta que acredita que devemos colocar na tela tudo o que pensamos. Sei que é doloroso ver, mas esse filme tem muito a ver com essas dores.”Deixando claro, a quem quer que seja, que seus filmes passam longe do gênero imaginário e que sua principal função é expor as entranhas humanas que escondem sentimentos e emoções que merecem serem exploradas e trabalhadas.

Então encontramos uma mulher jogada ao chão, completamente desnorteada, maltratada, carregando um imenso fardo de culpa. A mulher é Joe (Charlotte Gainsburg) que, quando socorrida por Seligman (Stellan Skarsgärd), se apresenta como um ser humano indigno de pena, um ser egoísta e perverso, “sou uma pessoa ruim”. Deitada sobre uma cama, Joe discorre lentamente sobre sua vida, desde a tenra infância até, possivelmente, aquele momento em que foi encontrada em um beco, pelo judaíco, aparentemente apreensivo, mas ao longo da trama apresenta uma personalidade no mínimo contraditória.

É importante ressaltar que Ninfomaníaca é dividido em duas partes, logo, não se pode esperar um final ou algo que explique o porquê de Joe ter sido abandonada em um beco e porque essa mulher se encontra cheia de hematomas e remorso. Ainda assim, trata-se de uma história comovente e densa, tanto pelo tema abordado quanto como a forma que o tema foi abordado. De antemão, o filme traz inúmeras cenas de sexo e nudez explicita e que por vezes isso traz um tom apelativo ao filme. São cenas carregadas e ricas em detalhes – sexo oral, penetração, excitação, masturbação -, mas é justamente através delas que se pode chegar a uma ideia do que a protagonista esperava, sobre o que ela tanto buscava; a busca incansável de sentir algo, de sentir-se completa. Seja lá o que seria esse “algo” e esse “completo” que Joe esperava.

Joe conta para Seligman de como descobriu o prazer. De como, quando criança (10 anos), descobriu que poderia ter uma sensação sublime ao deitar no chão e esfregar-se contra ele. De como decidiu perder sua virgindade (16 anos) e o que aconteceu logo após descobrir o sexo. Conhecemos então a jovem e inocente Joe (Stacy Martin), com uma expressão impenetrável e indecifrável. Logo depois a imagem de um ser egoísta e cruel toma o lugar da imagem de moça inocente – a viagem de trem, sexo no banheiro, um pacote de chocolate como troféu – Dar-se, então, o início da longa, prazerosa e tortuosa jornada de Joe. Apesar das histórias insólitas, Seligman não demonstra nenhum julgamento e faz comparações entre o sexo e atividades comuns – pescaria.

Destaco aqui que a cena de Joe deitada na cama contando sua história e Seligman ouvindo – hora dando pontuações, hora fazendo intervenções – nos remete a ideia de um setting terapêutico, onde Joe está num divã e demanda sua queixa e Seligman é o terapeuta, que busca formas de compreender os problemas e inquietações da mulher.

Ao iniciar suas narrativas para Seligman, e para nós, Joe traz à tona os detalhes de suas intimidades, passa a deixar claramente que são informações pessoais, embora imundas e que a torna um ser repugnante – segundo a própria personagem -. Joel parece confessar um crime, ou um segredo. Não dá nomes, apenas iniciais, aos seus amantes ou cúmplices. As cenas são minuciosamente descritas, o que as tornam cada vez mais proibitivas, mais profundas.

Quando narra seus comportamentos, suas aventuras sexuais e seus dramas existenciais, Joe conta com sinceridade e devoção o que provocava seu prazer em cada um de seus atos. O que cada um, dos seus inúmeros parceiros, tinha ou fazia que a excitava. É então que obtemos dois pontos cruciais ao longo dessa narrativa:

Temos, primeiramente, a visão de Joe sobre a sua própria história. Cheia de podridão humana, de sexo sujo, depravado e desonesto. Trata-se de uma vida mundana, sexo pútrido e carregado de sentimentos egoístas. Ela se autodiagnosticou como “ninfomaníaca”, aquela que buscava prazer, que só se preocupava com a própria satisfação e que não se afetava com os danos causados por seu vício.

Por outro lado temos a visão de Seligman, que não a vê como detentora de um desejo fétido e mortal, mas como algo positivo. Uma característica singular que não a isenta da normalidade, que não a difere dos outros seres. Seligman, acima de tudo, busca maneiras de reverter a visão pessimista de Joe.

Agora o público tem duas visões diferentes e algumas questões: o que o sexo traz de ruim e o que ele traz de bom? Quando o sexo deixa de ser algo natural e passa a ser patológico? A busca desenfreada pelo prazer e satisfação pode ser considerada, como Joe encara, como algo doentio?

Segundo a literatura psiquiátrica, a Ninfomania é um transtorno sexual compulsivo, trata-se da disfunção onde a mulher sente uma vontade incontrolável de manter relação sexual. O transtorno compulsivo sexual atinge tanto homens quanto mulheres, no entanto, o termo “ninfomania” é atribuído somente ao público feminino, nos homens o transtorno é chamado de Satiríase. Tal transtorno também é chamado de transtorno do desejo sexual hiperativo, compulsão sexual, hipersexualidade ou apetite sexual hiperativo. Mas, apesar da variedade de nomes dado a esse fenômeno sexual, o que determina se a mulher é ou não uma ninfomaníaca não é apenas o excesso do desejo sexual mas sim a falta de controle sobre o desejo.

Mas Joe possui Transtorno Sexual Compulsivo? Como se trata da história parcial de Joe não se pode afirmar com clareza se ela é ou não portadora desse transtorno. No entanto, com observações diante de sua narrativa, chega-se à conclusão que ela é uma ninfomaníaca, de fato. Uma vez que ela usa o sexo diante de várias razões: fuga, culpa, castigo, autoconhecimento, satisfação, número excessivo de parceiros, entre outros.

Joel afirma que quando jovem o sexo era usado como uma arma aniquiladora, criada para exterminar o amor, reduzir esse sentimento a nada. Com o tempo ela trata o sexo como fuga, com o ato sexual ela esquece suas dores, suas tristezas, ao final dele ela desmonta em lágrimas, a dor está de volta. Mas, acima de tudo, o sexo é o complemento, é através dele que ela se sente preenchida e completa.

De acordo com a psiquiatria para que uma mulher seja diagnóstica como ninfomaníaca, um conjunto de comportamentos deve ser enquadrado ao ato sexual compulsivo, porém, ainda não existe um consenso sobre o tipo de transtorno e classificação correta sobre o que acarreta esse transtorno. Alguns estudiosos dizem que o transtorno obsessivo-compulsivo de caráter sexual está associado a outros transtornos de personalidade, como bordeline e/ou histrionismo, é considerado também como um tipo de vicio, assim como drogas, álcool e jogos.

Existem alguns comportamentos que descrevem um possível transtorno compulsivo sexual. Sendo eles;

  • Fantasias sexuais de forma recorrente e intensa;
  • As fantasias ou os impulsos sexuais ocorrem com frequência, sem controle;
  • As fantasias atrapalham na concentração; nas atividades; no trabalho; estudo; convívio social;
  • Há sofrimento causado nas relações interpessoais;
  • Masturbação Excessiva;
  • Relação sexual com um ou diversos parceiros;
  • Compulsão por diversos relacionamentos afetivos;
  • Uso abusivo de pornografia e sites eróticos.

Joe, em uma de suas histórias, conta como precisou manusear sua agenda de encontros, como cada parceiro tinha sua hora e até mesmo como decidiu escolher a forma de tratá-los. Sem coração, sem afeto, sem amor. Joe é também uma verdadeira atriz, comove seus parceiros, manipula um por um, de forma sádica. Os faz sentir-se bem, amados e idolatrados ou, ás vezes, odiados e rebaixados, mas sem, de fato, possuir tais sentimentos e opiniões. É apenas um jogo, só há um vencedor, ela.

Ao longo da história um sentimento de contradição nos acomete. Joe diz, algumas vezes, que não sentiu remorso por nenhum dos danos que provocou aos outros, não se sentiu mal, não sentiu nada. Ao passo de que, ao contar os fatos, suas expressões são de quem se castiga impiedosamente por cada ato cometido, alguém que carrega a culpa da destruição do mundo – o mundo de pessoas alheias à ela-. Alguém que diz inúmeras vezes “eu sou um ser humano ruim”.  Esse sentimento contraditório percorre até o final da primeira parte de Ninfomaníaca, o que torna a trama ainda mais perturbadora. “O que essa mulher quer passar, realmente?”.

Joel é um ser que simboliza o vazio existencial, alguém sem vísceras sentimentais, sua busca incansável por um complemento humano a leva para um mundo obscuro, sem regras e pudores. O corpo excitado quando criança, escolher o primeiro parceiro por causa de suas mãos fortes, aceitar participar de uma viagem promíscua que a faz construir o conceito de “homem-objeto”, a confissão de se sentir molhada diante de um fato familiar, torna Joe cada vez mais difícil de decifrar.

O amor também se encontra nas inquietações de Joe, embora tão pouco. A questão fundamental que von Trier traz ao filme, será que é possível que alguém tão carnal, desprovida de sentimentos, pode sentir o amor? Poucas vezes a protagonista parece se embebedar de amores. Com exceção da devoção ao pai, apenas uma única vez Joe demonstrou ter sentimentos românticos por outra pessoa. A mulher imunda de hematomas continua vazia.

As analogias, também, são um ponto forte do filme. Trier trabalhou perfeitamente nesse quesito. Não existem exageros. O sexo aqui foi comparado as coisas mais simples e poéticas que podemos conhecer.

  • O Sexo e a Pesca

Os homens são os peixes – vocês as iscas.

  • O Sexo e as Fórmulas Logarítmicas
  • O Sexo e a Música – música matemática de Bach

Johann Sebastian Bach foi um dos primeiros músicos a perceber que separando as notas musicais de determinadas maneiras era possível produzir sons mais ou menos agradáveis. Passou, então, a experimentar e aplicar acordes em suas composições de piano, órgão e cravo (CLIKEAPRENDA, 2012 s/p).

Todas as contradições exploradas no decorrer da trama também banham o final da primeira parte de Ninfomaníaca. Joe agora nos conta sobre seus três amantes preferidos, enquanto as cenas que se reproduzem na imaginação de Seligman são expostas. Uma cena se intercala na outra, várias cenas, do início do filme ao momento atual da história, também se misturam. É êxtase. A cena mais intima que o público poderia esperar e, portanto, a mais incompreensível. Demasiadamente perturbadora.

Diria eu que este é um filme para os amantes da psicanálise. Um retrato fiel das explicações de Freud sobre a personalidade e a sexualidade.

  • Joe e o Complexo de Édipo – “meu pai sempre foi o legal, minha mãe sempre a ruim”
  • Joe e a Fixação – sexo
  • Joe e Fetichismo – mãos fortes
  • Joe e as Regras – transgressões e cumprimento de suas leis
  • Joe e a Perversão
  • Joe e o Sentimento – amor, desejo, emoção, afeto

Ou, em uma outra visão, Lars von Trier quer falar sobre o Amor, em suas diferentes formas? Por que não? Em uma das cenas Joe diz que o amor é apenas uma luxúria com um acréscimo de ciúmes, nas seguintes, mostra como se distanciou definitivamente desse sentimento. Seria esse um filme que demonstra a destruição do amor? O sexo seria um rival desse sentimento?

Lars Von Trier, na minha opinião, usa o sexo como recurso estético para justificar a destruição do amor e do sentimentalismo. Aliás, esse filme fala sobre amor. De uma maneira bem singular, Lars Von Trier constrói cinco capítulos em que nós observamos a protagonista Joe (Charlotte Gainsbourg) vencer todo o tipo de amor: conjugal, carnal, paterno (FARIAS, W. 2014, s/p)

Das mil maneiras que o filme pode ser interpretado assim como as incontáveis sensações que ele nos desperta, é crucial a neutralidade de julgamentos e entender que trata-se de uma obra incompleta, o final impactante mas pouco compreensível não representa a conclusão da situação de Joe. Existe, na verdade, uma única constatação: Joe ainda está vazia.

SAIBA MAIS:

http://www.saudesublime.com/ninfomaniaca/

FARIAS Willian. Análise do filme Ninfomaníaca em: http://trailertododia.com/dissecamos-todos-os-capitulos-de-ninfomaniaca-e-descobrimos-que-o-filme-fala-de-amor/

FICHA TÉCNICA:

NINFOMANÍACA

Direção: Lars von Trier
Elenco Principal: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Satcy Martin, Shia La Beouf, Uma Thurman
Gênero: Erótico, Drama
Países: Dinamarca, Alemanha, Bélgica, França
Ano: 2014

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