Selma: é preciso acreditar, agir e seguir em frente!

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Com duas indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Canção Original

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.
Martin Luther King

 

“Selma” (2014), dirigido pela cineasta norte-americana Ava DuVernay, teve a difícil missão de retratar, num curto espaço de tempo, o ápice da vida de um dos mais proeminentes atividades de direitos humanos do século passado, o pastor protestante e Prêmio Nobel da Paz Martin Luther King.

O longa mostra toda a movimentação em torno da marcha que ocorreu entre a cidade de Selma, no Alabama, até a capital do Estado, Montgomery, em março de 1965, como forma de protestar contra o tratamento que os negros recebiam na região. A pequena cidade acabaria por se tornar palco de um desfecho político que mudou os rumos das relações sociais nos Estados Unidos, à época ainda fortemente marcada pela segregação racial, onde os afro-americanos – notadamente nos estados do Sul – não podiam exercer todos os seus direitos, como o de votar, por exemplo.

Para além do mito que se tornou Luther King, DuVernay mostra um homem às voltas com questões triviais relativas ao seu relacionamento conjugal, alguém que, com frequência, recorre à fé para tentar superar obstáculos que, à primeira vista, parecem intransponíveis. Ao mesmo tempo, “Selma” mostra um Martin Luther King gigante quando instado a subir num púlpito ou num palco; retrata um personagem histórico que conseguiu mobilizar boa parte da nação em torno de um objetivo comum, que era a igualdade de direitos entre todos os norte-americanos.

 

 

O filme mostra como os negros conseguiram, com calma e perseverança, assegurar direitos que sempre lhe foram injustamente negados. É necessário apontar que este é um tema ainda em aberto, sobretudo com as recentes tensões entre populações negras e policiais brancos, em várias cidades dos EUA. Certamente, sem aqueles primeiros e importantes passos dos anos 60, a nação mais poderosa do mundo não teria protagonizado, no século atual, a eleição e reeleição do primeiro presidente negro do país.

 

Com diálogos profundos, que evocam a esperança, a política e as incoerências de uma sociedade mergulhada em grande efervescência (Lyndon Johnson acabara de vencer as eleições com amplo apoio popular, mas estava acuado diante da possibilidade de conduzir mudanças radicais na “América profunda”), os atores David Oyelowo (Luther King) e Carmen Ejogo (que interpretou Coretta Scott King, esposa do ativista) fazem toda a diferença. Eles encarnaram como ninguém as expressões de sofrimento, expectativas (frustradas e superadas), medos, sonhos e, sobretudo, muita bravura, num enlace que dificilmente deixará o expectador apático.

No mais, “Selma” representa um momento de “amadurecimento” da Modernidade, época marcada por totalitarismos, guerras sangrentas e os primeiros genocídios de que se tem notícia na história, com destaque para o ocorrido ao povo armênio na Primeira Guerra (recentemente reconhecido e lembrado pelo Papa Francisco) e o dos judeus na Segunda Guerra (no holocausto patrocinado pelos nazistas). O próprio Martin Luther King, fruto intelectual da abordagem pragmática nascente, se materializa como o auge de um modo de ver a vida em constante oposição ao conservadorismo insistente.

 

 

Influenciado pelo filósofo Willian du Bois e com uma fé inabalável nas Escrituras Sagradas, Luther King aspirava uma vida mais ampla e mais plena para os negros, depois de séculos de servidão e humilhação. Para isso, “era necessário acreditar na possibilidade do progresso” e rechaçar qualquer caminho que optasse pelo viés da violência. A “trincheira” teria que ser apenas através da oratória, do poder de mobilização social e do enfretamento ideológico, numa abordagem de constante diálogo. Como pregava o pragmatismo, se se perdesse essa crença [de que era possível aspirar uma vida melhor], o resultado era “uma espécie de morte, com uma existência sem desenvolvimento”. É neste sentido que Martin Luther King acreditava na vida, por mais que as intempéries se mostrassem invariavelmente mais sufocantes.

“Selma” aproxima os conceitos da pragmática com os da filosofia clássica de Aristóteles e sua abordagem sobre a eudaimonia, para quem “a felicidade é um fim ético”, cuja aspiração surge do âmago do ser humano. Sobre este tema e em referência a Aristóteles, a filósofa Marilena Chauí escreveu

A felicidade é a vida plenamente realizada em sua excelência máxima. Por isso não é alcançável imediata nem definitivamente, mas é um exercício cotidiano que a alma realiza durante toda a vida. A felicidade é, pois, a atualização das potências da alma humana de acordo com sua excelência mais completa, a racionalidade. (CHAUÍ, 2002)

É difícil não associar esta visão com o pragmatismo de Du Bois e a militância de Martin Luther King. Eles denunciaram a estreita ligação entre a criminalidade e a falta de incentivo à educação e à renda, bases para o desenvolvimento intelectual e financeiro. Estes eram bens que, decididamente, os negros americanos não usufruíam naqueles agitados anos 60. Desta forma, o movimento pela igualdade se baseou na premissa de que além de questionar “os nossos pensamentos e crenças, [era necessário alçar] as implicações práticas deles”.

 

 

Por fim, Luther King tinha a real dimensão da força política e histórica de sua luta. Mesmo num clima de insegurança, não se furtou a perseguir o maior de seus sonhos. Acabou por cunhar na própria vida duas das frases que melhor o definem: “Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito”, e “O homem que não está disposto a morrer por uma causa não é digno de viver”.

 

 

Ausência de rabino

“Selma” foi bastante elogiado pelo rigor histórico, pela direção e pela atuação do elenco. Mas sofreu críticas por não mostrar um dos principais apoiadores da causa liderada por Luther King, o rabino, teólogo, ativista social e místico Abraham Heschel. E parte da comunidade judaica americana não gostou desta ausência.

De acordo com a jornalista norte-americana Leida Snow, “os judeus se envolveram fortemente no movimento pelos direitos civis. O rabino Heschel, um dos principais líderes religiosos dos EUA no século 20, foi um dos apoiadores de King e caminhou na marcha ao lado dele, a menos de 1m de distância”. A filha de Heschel, Susannah, teria ficado chocada com a ausência da representação de seu pai no filme: “A foto em que ambos marcham juntos correu o mundo. O presidente Obama me disse: ‘Seu pai é um herói, todos conhecem essa foto’ […] A omissão é trágica e injustificável”, disse ela ao site Allgemeiner.

De acordo com Susannah, “a marcha não foi apenas um protesto político, teve também um caráter profundamente religioso, unindo padres, freiras, pastores, rabinos, negros e brancos de todo o país”.

“Selma”, no entanto, destacou apenas um arcebispo da Igreja Ortodoxa, um ministro da Igreja Batista e um ministro do Unitário-Universalismo. A diretora Ava DuVernay escolheu atores com características físicas semelhantes às dos personagens históricos. Não há em “Selma” ninguém remotamente parecido com Heschel. 50 anos depois, o rabino – e os judeus – não foram “convidados” a participar. No entanto, defende a comunidade judaica americana, “o apoio judaico a King foi muito além da presença de Heschel na Marcha no Alabama. Em 1963, Arnie Aronson, fundador da Leadership Conference on Civil Rights, foi o planejador da Marcha sobre Washington, na qual o rabino Uri Miller recitou a oração de abertura e o rabino Joachim Prinz falou, antes do histórico discurso de King, ‘Eu tenho um sonho’”. (Com informações da Conib).

 

RERERÊNCIAS:

CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. Vol. 1. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Filme “Selma” ignora apoio judaico e presença do rabino Heschel. Disponível em <http://www.ogirassol.com.br/viver/filme-selma-ignora-apoio-judaico-e-presenca-do-rabino-heschel-> – Acessado em 11/04/2015.

ASSISTA O TRAILER


FICHA TÉCNICA 

SELMA


Dirigido por Ava DuVernay
Duração: 128 minutos
Classificação:  Não recomendado para menores de 14 anos
Gênero: Drama – História
Países de Origem: Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Ano produção: 2014

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Dois Dias, Uma Noite: o inferno são os outros

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Atriz

 

Sandra, após um tempo afastada do emprego por motivos de saúde, descobre que perdeu sua vaga em uma votação onde seus colegas deveriam escolher entre seu retorno ou um bônus salarial. Ao conversar com o seu patrão para tentar reverter a situação, recebe uma nova chance: no início da semana ele fará uma nova votação, se nove dos dezesseis trabalhadores votarem a favor de mantê-la no emprego, ela será aceita de volta. Agora cabe a Sandra ir atrás de cada um deles e convencê-los a desistir de seus bônus salariais a favor de sua readmissão.

Ao longo dos noventa minutos de “Dois dias, uma noite”, assiste-se a odisseia de Sandra para tentar salvar um dos poucos elos que a mantêm ligada a sociedade após um diagnóstico de depressão. Para alguns, deve ser extenuante ver uma protagonista que na maioria das cenas está a choramingar e prestes a desistir da empreitada que, a julgar pelos esforços, pode definir sua vida. Quando muito pressionada, Sandra recorre aos remédios e ao recolhimento, dormir é sua fuga não só do mundo externo mas, principalmente, do que há no seu interior, do que julga não conseguir superar. Prefere se enfiar debaixo das cobertas a, em suas palavras, “mendigar” por seu emprego, pois inicialmente, lutar não é uma opção nobre, mas degradante.

 

Ao seu lado está Manu, firme e confiante, que a motiva a continuar sua busca. Seu marido, ao incitá-la a ação não está preocupado com as contas que deve pagar, ele sabe que além das demandas cotidianas, outras coisas estão em jogo. Seu papel de pai e marido está ligado ao resultado desse processo de Sandra em se perceber indivíduo antes de reassumir os papeis de mulher e mãe.

 

“O inferno são os outros”

E, dentro do drama de Sandra, temos outros orbitando á sua volta. A cada encontro uma surpresa, uma chama de esperança, uma palavra de apoio seguida de ações tempestivas de rejeição e violência. Do mesmo jeito que ela luta por seus direitos, cada um dos seus colegas tem motivações para aceitar o dinheiro em detrimento do bem-estar da colega. Quem estaria agindo com egoísmo e avareza, aqueles que optaram pelo bônus ou Sandra que “mendiga” que todos se sacrifiquem por ela?

 

A odisséia individual de Sandra é a espinha dorsal de “Dois dias, uma noite”; não é difícil torcer por ela e ficar contra aqueles que escolhem o dinheiro ao invés da sua permanência no emprego. Mas toda a consistência do filme é baseada não só em como nossas escolhas tem efeitos além do conforto das nossas residências, e sim em como colocamos em prática conceitos morais e suas influências na nossa ética.

Cada um dos trabalhadores faz parte de uma sociedade que optou por certas regras para manter a “política da boa vizinhança”. Não chega a ser um papel a ser interpretado, mas sim uma máscara a ser usada. Podemos ser contra a pena de morte, ao desmatamento e ao trabalho escravo. Posso deixar comentários em redes sociais, opinar veementemente na roda de amigos, mas, em termos de consistência, muito pouco sabemos dos resultados das nossas escolhas, principalmente quando não temos consciência da sua extensão.

A votação no filme é um momento em que o indivíduo é forçado a identificar seu papel. A máscara não serve mais, agora é necessário um posicionamento. Uma ação é solicitada, cabe ao indivíduo uma escolha que irá gerar uma reação, aí terá materializado nossa moral, que muitas vezes não condiz com a ética vigente. Sartre dialoga sobre a responsabilidade dos nossos atos. Para o filósofo francês, estamos “condenados a ser livres” porque nossas escolhas moldam o mundo que nos rodeia. Assim, o resultado que esperamos de um mundo “bom” ou “mau” estaria estrito a estas escolhas. Mas o que seria uma escolha correta?

 

“Digo-lhes que não deixem passar um dia sem falar da bondade…”

Para Sócrates, o virtuosismo está ligado à paz de espírito. Em linhas gerais, uma pessoa boa é sábia, diferente de alguém que age com maldade, classificada como uma pessoa ignorante. Assim, a virtude não é relativa, já que é inerente ao ser humano, porém é necessário um esforço de autoconhecimento para exercê-la e expressá-la na forma de bondade. Um exame árduo e contínuo é necessário para chegar a esse estágio, que seria definitivo; se ainda há dúvidas sobre o que é bom ou mal é porque o indivíduo ainda permanece ignorante sobre quem é. Os irmãos Dardenne compreendem o voto dos colegas de Sandra como uma escolha de sábios e ignorantes. Um argumento comum entre aqueles que decidem votar a favor do bônus é a necessidade do dinheiro, o que tornaria a jornada de Sandra egoísta, mas os problemas financeiros deles são pré-existentes, o bônus não.

 

O que fica subentendido é a capacidade que alguns têm de sacrificar o que for necessário em prol das suas demandas pessoais enquanto outros tendem a defender suas questões morais, independente dos meios. Àqueles que aceitam o bônus parece não passar pelas suas consciências que eles podem estar em uma situação parecida. Em uma abordagem pragmática, podemos citar o professor e escritor afro-americano William Du Bois, que afirma que “não importa os pensamentos e crenças, mas também as implicações práticas delas”.

 

As avaliações não se limitam a duas vertentes, ao positivo e ao negativo. A consciência das implicações é perceptível em vários dos votantes a favor do bônus ou que se arrependeram. Em contraste, no meio termo temos aqueles que reconhecem “a virtude” mas não são “virtuosos”. Essa virtude que Aristóteles prega, é a mesma que pais tentam impingir nos filhos, mas que por vezes não é experienciado. Bons exemplos são a mulher que pede para a filha atender e dizer que não está e o homem que, ao encontrar Sandra, pede para o seu pequeno filho sair antes de colocar seu ponto de vista. São os pais que definem parte dos nossos conceitos morais e éticos, e ao serem incapazes de demonstrar isso na prática, fica perceptível sua falta de bondade.

 

“Eu não sou nada, eu não existo”

A personagem central, Sandra, em um momento de desolação, se vira para o marido e diz, cabisbaixa: – “Eu não sou nada, eu não existo”. Essa declaração pode, aparentemente, expor uma vitimização da protagonista, que se nega a lutar pelos seus direitos. No entanto, o que observamos é o sintoma de uma das doenças mais mal compreendidas do nosso século: a depressão.

As informações sobre quem é a mulher Sandra são esparsas. Sabemos que é casada, mãe de dois filhos e que acabou de financiar uma casa. Sobre seu estado de saúde descobrimos aos poucos que foi diagnosticada com depressão e, provavelmente, com agorafobia, devido a alguns ataques que ela tem durante sua busca. Em outro momento, um dos seus colegas agradece por ela ter levado a culpa em seu lugar, situação que exemplifica o caráter da protagonista. Mas, o que a levou a esse estado? Não nos é informado. O estado depressivo não é como as outras doenças, com um diagnóstico e medicamentos definitivos. Assemelha-se mais como uma nuvem de tempestade, quando você olha para o céu, antes azul, de repente aparece aquela massa negra a cobrir tudo o que tem vida; só que essa nuvem é interna. O roteiro é claro ao associar o uso de remédios controlados ao desejo de fuga de Sandra; todas as vezes que ela fala em desistir ela está ingerindo Xanax.

 

A busca da protagonista por sua aceitação, metaforicamente, é uma luta interna por sua existência. Se expor a cada um dos dezesseis colegas é um exercício de firmação, não haveria possibilidade de uma luta externa se ela não travasse, concomitantemente, essa batalha interna. O emprego é o estopim do seu movimento, mas é essa jornada externa que colocará em perspectiva sua vida e suas escolhas. Quem é Sandra? Sentada do lado do marido ela observa um passarinho cantar e deseja ser como ele: cheio de contentamento, porque a natureza, independente do que ocorra ao redor, simplesmente é.

E ao final, Sandra prova sua virtude indo além do seu objetivo. Sua última escolha a liberta e define sua existência. Na última cena, ao fazer planos, sonhar novos rumos, com uma coragem adquirida de uma pessoa que sabe qual é sua verdadeira natureza, Sandra sabe de onde tirar suas forças. E a câmera, antes em uma conjunção quase epidérmica, a abandona, deixa-a caminhar sozinha rua abaixo. Ao fundo podemos escutar passarinhos cantando despreocupados.

 

Trailer:

FICHA TÉCNICA DO FILME

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DOIS DIAS, UMA NOITE

Título Original (França): Deux Jeurs, une nuit

Direção & Roteiro: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Elenco:Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée
Produção: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Fotografia: Alain Marcoen
Duração: 135 minutos
Ano: 2014

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“Whiplash” e a sofrida (e instigante) busca pela perfeição

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Com cinco indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante (J.K. Simons), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Mixagem de Som 

“O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, 
uma corda por cima do abismo” – Friedrich Nietzsche

“Whiplash: em Busca da Perfeição” é uma das mais agradáveis surpresas de 2014. Não por menos, acabou com uma indicação ao Oscar, para Melhor Ator Coadjuvante, em decorrência da atuação de J.K. Simmons, intérprete do durão professor de música Terence Fletcher, e estreante em grandes premiações. O longa já havia mostrado força no Festival de Sundance 2014, onde recebeu enorme destaque. Ele segue a lógica da busca obsessiva pela perfeição artístico/profissional, numa dinâmica em que o espectador se vê diante de ações compulsivas, ásperas e angustiantes, elementos que parecem comuns às “gestações” dos gênios da arte.

O filme conta a estória do jovem Andrew Neyman, que desde cedo sempre sonhou em brilhar como baterista. Ao entrar num conservatório como substituto, se depara com um professor controverso, que se utiliza de métodos nada aprazíveis para tentar explorar o máximo de seus alunos e, quem sabe, despertar-lhes para as disputadas – e escassas – originalidade e precisão artística. Neste processo, os alunos são levados a extremos, onde a coerção, a chantagem psicológica, a humilhação e até eventuais ameaças contra a integridade física são uma constante. A brilhante atuação de Simmons sintetiza uma faceta nada romântica dos bastidores de um profissional da arte, tema já explorado pelo filme “Cisne Negro”.

Whiplash joga luz sob alguns dos assuntos mais contemporâneos, sendo que dois deles saltam aos olhos: a tênue linha que separa, como diz Zygmunt Bauman, a “ambição” da obsessão (que pode desembocar para um transtorno psíquico), e a conturbada presença de personagens que lutam contra a predominância do niilismo, mesmo que isso ocorra de forma inconsciente.

Sob o primeiro aspecto, Freud já dizia que apesar de o homem ser feito de carne, vive “como se fosse de ferro”. As demandas enfrentadas pelas pessoas, seja porque assim elas procuraram, como no caso do filme, seja porque lhes são impostas e/ou inerentes, como as questões relacionadas à própria contingência da vida – a impotência diante do adoecimento e da morte, por exemplo -, são litígios que parecem insolúveis. De quebra, Andrew se apresenta como a síntese de uma geração que tem o enorme desafio de superar limites que se mostram quase que como intransponíveis. No entanto, eximir-se desta dinâmica – que à primeira vista pode parecer cruel, mas ela tem seu lado positivo – elimina qualquer possibilidade de originalidade. Entregar-se a ela sem um mínimo de amadurecimento, no entanto, pode resultar em sérios danos, como no caso do aluno, no filme, que por não suportar a pressão do professor, acaba por cometer suicídio.

De acordo com Wielenska, é possível diferenciar um objetivo de vida de uma compulsão e/ou obsessão. No caso do objetivo, há sempre a possibilidade de o personagem submeter-se a processos de correção e até de total mudança de rumo. Há uma flexibilidade maior em relação às demandas, algo que se traduz numa espécie de “reconhecimento” do tamanho da distância a se percorrer para atingir dado alvo/objeto. Já as compulsões se caracterizam pela excessiva busca de produzir “sensação subjetiva de paz, redução da ansiedade, da insegurança e do medo”, numa velocidade sempre desafiadora. Andrew parece se enquadrar no perfil de personagem ambicioso.

Em outro aspecto, há pessoas – como o professor Terence Fletcher – que lutam para sair da mesmice e obter o melhor de si, e dos outros, através de suas ações compulsivas, excêntricas e originais. Fletcher poderia ser considerado a personificação do adepto do “anti-niilismo” predominante, já que nega certas morais da tradição (ele não é nada politicamente correto), normas estas que desencadeiam a chamada “doença da vontade” e a “mesmice social”. Fletcher, assim, encarna alguém que abraça o pensamento dos extremos de Nietzsche, naquele sentido mesmo que

“pode contribuir para os seres humanos do século XXI a repensarem os valores pelos quais pautam sua existência. É preciso radicalizar experimentalmente a consequência do cultivo dos principais valores de nosso tempo (bem-estar, individualismo consumista), a saber, o vazio de sentido que mais cedo ou mais tarde se impõe para quem segue irrefletidamente nessa senda. Assim, seria possível reverter os resultados niilistas de certas práticas contemporâneas no extremo oposto de uma existência decidida para construir sua própria individualidade, a partir da base instintiva da natureza”. (ARALDI, Clademir – 2010)

A originalidade comum na genialidade, portanto, é algo que se expressa numa vida que se propõe a experimentar o novo e até o subversivo. No fundo, “é quase sempre o temor de ferir o espaço de jogo individual que move os atores a preocupar-se um pouco com os outros no palco contemporâneo de luta por destaque”. Há, por esta ótica, um niilismo que “se insinua através do individualismo ‘associal’”. Há de se destacar que Neyman não se satisfaz através do fugaz (e compulsivo, no sentido mais vulgar) apelo consumista. Antes, acaba por “mergulhar na radicalização do niilismo” para, ao fim, transcendê-lo. E “radicalizar o niilismo é a única possibilidade para superá-lo”, reforça Araldi, em referência à Nietzsche.

Andrew Neyman “abocanha” a própria vida quando passa a ditar um ritmo que lhe é peculiar, ordenado a partir dele, sob sua regência. Ele passa a olhar o professor com uma impetuosidade que não reflete desdém, pelo contrário, trata-se de uma segurança que está além de qualquer convenção. Depois de uma longa e sofrida batalha, desperta. Já o “professor-carrasco” lembra os poetas aclamados pelo filósofo de Röcken, “impudicos para com as suas vivências. Antes, prefere explorá-las”. Nasce, sob as cinzas de muito sofrimento e dedicação, um artista forjado para a autenticidade. O percurso é tenso, perturbador. Mas talvez a estória (ou história) seria menor se assim não se desenrolasse.

 

Referências:

Sinopse de “Whiplash: Em Busca da Perfeição”. Disponível em  http://www.adorocinema.com/filmes/filme-225953/ – Acessado em 22/02/2015;

Perfil de JK Simmons. Disponível em http://www.cineclick.com.br/perfil/j-k-simmons – Acessado em 22/02/2015;

Transtornos Obsessivos. Disponível emhttp://www2.uol.com.br/vyaestelar/comportamento_toc.htm – Acessado em 22/02/2015;

O niilismo como doença da vontade humana – entrevista com Clademir Araldi. Disponível emhttp://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3702&secao=354 – Acessado em 22/02/2015;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

RACHELS, James. Os elementos da filosofia da moral. 4. ed. São Paulo, SP: Editora Manole, 2006;

 

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

WHIPLASH: EM BUSCA DA PERFEIÇÃO

Título original: Whiplash
Lançamento: 8 de janeiro de 2015 (1h47min)
Dirigido por Damien Chazelle
Elenco: Miles Teller, J.K. Simmons, Paul Reiser, Melissa Benoist,  Jayson Blair, dentre outros
Gênero: Drama, Musical
Nacionalidade: EUA

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“Birdman” ou a inesperada virtude da ignorância

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Com nove indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu), Melhor Ator (Michael Keaton), Melhor Ator Coadjuvante (Edward Norton), Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone), Melhor Roteiro Original (Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo), Melhor Fotografia (Emmanuel Lubezki), Melhor Edição de Som (Martín Hernández e Aaron Glascock) e Melhor Mixagem de Som (Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga).

– E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? – Consegui. – E o que você queria? – Considerar-me amado, me sentir amado nessa terra. (Raymond Carver, escritor americano – frases escritas em seu epitáfio)

O som de um solo de bateria e os fragmentos de uma das últimas poesias escritas por Raymond Carver marcam o início de Birdman. E depois do que parece ser a trajetória de um cometa no céu, vimos a imagem de um homem levitando em um camarim de um teatro na Broadway no mais completo silêncio. Até então não sabemos se devemos encarar a cena como um sonho ou se é mais um tipo de aventura de super-herói saída de algum quadrinho da Marvel, uma temática tão recorrente nos filmes atuais. E nossa percepção fica ainda mais incerta quando o homem se levanta e olha para o espelho. Nesse momento, ouvimos uma voz. A voz que está em sua cabeça, mas que fala no plural como se tivesse existência própria.

“Como viemos parar aqui? Esse lugar é horrível. Cheira a testículos. Não pertencemos a este buraco de merda.”

Riggan Thomson, como Michael Keaton que o interpreta, é um ator que teve um sucesso avassalador fazendo um super-herói no cinema (o Birdman), mas desistiu de continuar a franquia quando percebeu que era menos importante que a criatura alada que representava, pois já não era tão querido, nem tão relevante, qualquer um poderia usar a máscara e ser o homem-pássaro. A história com Keaton foi diferente, foram oferecidos mais de 15 milhões de dólares (isso há 20 anos) para que ele continuasse a franquia de Batman, mas ele recusou e, até onde sabemos, não ficou com a voz do homem-morcego na cabeça.

Considerando a frase que Riggan mantém em seu camarim -“uma coisa é uma coisa, não o que é dito dela” -, parece que ele procura entender se há algo na pessoa que ele vê refletida no espelho que seja essencialmente ele, algo que não foi estabelecido nas relações criadas pela mídia em torno da sua figura pública, uma figura que ele tenta ignorar, mas que grita furiosamente em sua mente. O que nos remete a Umberto Eco (apud PINO, 1993) quando diz que “enquanto sujeitos, nós somos o que a forma do mundo produzida pelos signos nos faz ser[…]”.

A voz ganhou existência fora de sua mente e a impressão que temos é que Riggan cansou de prendê-la lá, ou melhor, já não suportava a ideia incongruente de existir em duplicidade, ou seja, ser a figura sedenta por reconhecimento e poder e, ao mesmo tempo, o ator de talento, que valoriza a arte por si só, sem comprometimento com toda a ostentação que a cerca.  Considerando que o termo esquizofrenia significa “cisão das funções mentais” (do grego schizo= divisão, cisão; phrenos = mente) e um dos sintomas da esquizofrenia paranoide são ideias delirantes e alucinações (visuais e/ou auditivas), esse talvez seja um caminho mais coerente para uma explicação razoável sobre o que vemos na tela.

Mas essa é somente a interpretação mais óbvia dos elementos sobrenaturais apresentados no filme (p.ex.: telecinese, levitação). Conforme apontado por Young (2014), as cenas parecem estar convidando o público para as alucinações e delírios de um indivíduo psicótico, como aconteceu em Black Swan ou no início de Uma Mente Brilhante. Esses filmes obtiveram um excelente resultado ao enganar o público fazendo-o acreditar em eventos que pareciam ser reais, embora fossem consequência de uma série de alucinações e delírios. Birdman provoca o público no sentido contrário, fazendo-o crer que Riggan seja, de fato, “louco”, apresentando os eventos bizarros apenas quando o personagem está sozinho e evitando qualquer evidência objetiva de que ele realmente tenha habilidades excepcionais.

“O trabalho cultural feito no passado, por deuses e sagas épicas, agora está sendo feito por comerciais de sabão em pó e personagens de histórias em quadrinhos.” (Roland Barthes)

Para mostrar esse duelo entre o indivíduo e seu alter ego, acompanhamos os últimos ensaios de uma peça escrita (baseada na obra de Carver), dirigida e protagonizada por Riggan. Essa peça representa a possibilidade dele ser reconhecido de fato, sem os subterfúgios da máquina de franquias do cinema. Para criar esse cenário, há a exímia direção de fotografia de Emmanuel Lubezki (de Gravidade e A Árvore da Vida), a trilha sonora crua e fantástica composta pelo baterista de jazz Antonio Sanchez e o uso da câmera em movimento, como se a própria tela refletisse a perspectiva do olhar do pássaro voando sobre o cenário, dando a impressão de que todo o filme é uma única e contínua cena. Ou seja, o filme é tecnicamente surpreendente, mas Birdman vai além da técnica, mostra-nos, através de um homem cansado e confuso, como os nossos desejos últimos parecem ser dirigidos por uma profunda necessidade de ser amado.

A relação conturbada de Thomson com sua filha (Sam, interpretada por Emma Stone) proporciona um dos melhores momentos do filme. Essa cena é suficiente para justificar a indicação de Stone ao Oscar de Atriz Coadjuvante. O monólogo sobre “ser relevante” em um contexto que todo mundo parece temer não ser notado, “compartilhado” ou “curtido” é de uma atualidade patética e irritante.

“É minha chance de fazer algo que signifique alguma coisa.”

“[…] Falando sério, pai, você não faz isso pela arte. Você faz isso pois quer ser relevante de novo. Adivinha? Há um mundo lá fora onde pessoas lutam todo dia para serem relevantes. E você age como se isso não existisse. Coisas acontecem em um lugar que você ignora. Um lugar que, aliás, já se esqueceu de você. Quem diabos é você? Você odeia bloggers, tira sarro do Twitter, nem tem um Facebook. É você que não existe. Você faz isso porque morre de medo, como todos nós, de não ser importante. E que saber? Tem razão, você não é importante.  Acostume-se.”

“A popularidade é o primo pobre do prestígio” (Mike)

Assim como o cinema produz um personagem com capa e máscara a cada dia, comercializando o mito do herói em grande escala, o sucesso e a qualidade das peças da Broadway parecem ser movidos pela generalização da visão de um grupo seleto de críticos.  O conceito da arte pela arte não parece ter mais espaço nesse contexto, o que faz com que a luta de Riggan com seu alter ego tenha um vencedor evidente e ele entende isso quanto mais se aproxima do dia da estreia.

O pequeno grupo de atores que compõe a peça é uma ode a conturbação psíquica. Há a atriz insegura que está angustiada pela consolidação de seu maior sonho – estrear na Broadway, interpretada por Naomi Watts; Laura (Andrea Riseborough), uma atriz apaixonada pelo diretor ou pela ideia de se apaixonar, o que evidencia ainda mais suas carências; e Mike (Edward Norton), um renomado ator teatral que parece só funcionar em cima do palco. Em todo o restante do tempo, Mike teme errar e cria uma série de artifícios que o transforma num fantoche de si mesmo.

“Você não é um bom ator. Quem se importa? Você é muito mais do que isso. Você se sobressai sobre esses idiotas do teatro. Você é uma estrela do cinema, cara. Uma força global, não entende? Passou sua vida construindo reputação e contas bancárias e então explodiu ambos. […] Tire essa cara patética, faça uma cirurgia. seu filho da mãe. Você é o original, cara. Você pintou o caminho para esses outros palhaços. Dê às pessoas o que elas querem. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga. ‘Homem-Pássaro, a Fênix Ressurge’.” (Birdman)

Birdman é a personificação do desespero de Riggan. Um desespero pautado na falta de sentido das escolhas que ele fez na vida, desde papéis superficiais no cinema até a infidelidade no casamento e a negligência na criação de sua única filha. Como concluiu Khoshaba (2014), esse sentimento se aproxima do que Kierkegaard chama de consciência do desespero. Para Kierkegaard (2006 [1849] apud JANZEN & HOLANDA, 2012), o desespero se caracteriza quando o sujeito quer ou não ser ele mesmo e é nesse aspecto que reside o caráter paradoxal da existência. Esse pensamento pode ser refletido no fato de Riggan ignorar quem, de fato, ele é, pois a impressão que temos é que ele ainda não entendeu se é o ator sensível de teatro em busca da redenção familiar ou a celebridade predadora dos blockbusters. Talvez fosse mais coerente concluir que ele não é nem uma coisa nem outra, já que dificilmente a natureza humana pode ser traduzida de forma tão cartesiana. É essa tentativa de escolher um dos extremos que quebra sua psique e faz vir à tona pensamentos suicidas.

“Você confunde amor com admiração.”

E, ao final, qual o sentido da frase “a inesperada virtude da ignorância” no título do filme? Segundo o Diretor (Alejandro G. Iñarritu)1, essa frase reflete o estado conflituoso da mente do personagem principal. Assim, interpreto que Riggan ao ignorar qual voz interna de fato o personificava  tenha estabelecido uma nova ordem em sua psique. Por isso, nem se tornou o Birdman totalmente nem assumiu um lugar naquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”.  A eliminação da contradição dos dois extremos que ele tentava desesperadamente sustentar colocou-o em outro patamar. Nesse novo lugar talvez tenha encontrado o perdão da filha e da ex-esposa, tenha lido uma crítica positiva de sua peça na Times e, até, ganhado um novo rosto. Mesmo não sendo completamente um homem-pássaro pôde reaprender a voar e, quem sabe, voltou a ser amado. E não é esse o desejo de “quase” todos?

 

Referências:

JANZEN, Marcos Ricardo and HOLANDA, Adriano Elementos para uma psicologia no pensamento de Søren Kierkegaard. Estud. pesqui. psicol., Ago 2012, vol.12, no.2, p.572-596. ISSN 1808-4281. Disponível em: http:// http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8283

KHOSHABA, D. Film Analysis of Birdman – The Unexpected Virtue of Ignorance. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/get-hardy/201502/film-analysis-birdman

PINO, Angel L.B. Processos de significação e constituição do sujeito. Temas psicol.,  Ribeirão Preto ,  v. 1, n. 1, abr.  1993 .   Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1993000100004&lng=pt&nrm=iso. acessos em  18  fev.  2015.

YOUNG, Skip Dine. Playing with Psychosis in ‘Birdman’. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/movies-and-the-mind/201411/playing-psychosis-in-birdman

[1] http://www.foxnews.com/entertainment/2015/02/04/what-in-name-for-birdman-or-unexpected-virtue-ignorance-maybe-oscar/

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

FICHA TÉCNICA DO FILME

BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA)

Título Original: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)
Direção: Alejandro González Iñárritu
Roteiro: Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo
Direção de Fotografia: Emmanuel Lubezki
Elenco Principal: Michael Keaton, Emma Stone, Edward Norton, Naomi Watts, Zach Galifianakis e Andrea Riseborough
Ano: 2014
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Operação Big Hero: uma perspectiva de elaboração do luto na adolescência

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Filme de Animação

 

Mais uma vez os estúdios Walt Disney Pictures inovam com uma super produção voltada para público infantil, mas com linguagem atual que transcende gerações. Logo após o sucesso mundial de “Frozen – uma aventura congelante”, que rendeu à produtora seu primeiro Oscar de Animação, além da estatueta de Melhor Canção com “Let it Go”, Operação Big Hero chega aos cinemas em 2014 com a promessa de ser uma produção ainda melhor, principalmente por contar com a coprodução dos estúdios Pixar, eternizada por seus clássicos: Toy Story, Vida de Inseto,Procurando Nemo, Carros, Wall-E, Up – altas Alturas, Valente etc.

 

Logo nas primeiras cenas, podemos perceber que foco da trama não é mais o mundo mágico e fabuloso das princesas, como de costume. Em Operação Big Hero, os estúdios Disney parecem apostar nas tecnologias virtuais para criar uma nova realidade, não tão distante da que conhecemos. A produtora traz a ciência, a inteligência artificial e a robótica como novos elementos para suas tramas.

 

 

Focado agora em um público masculino – se é que ainda podemos pensar em diferenças de gênero quando o assunto são os filmes de animação – o longa, que é inspirado em uma série HQ publicada pela Marvel Comics na década de 1990, narra a história de um adolescente que tenta superar o luto da morte de seus pais e do seu irmão enquanto investiga, com a ajuda de amigos, estranhos eventos que acontecem em sua cidade: San Fransokyo. Uma cidade que mistura elementos urbanos de São Francisco e de Tóquio, mas que fica nos EUA. A cidade é mais uma prova dessa miscigenação de culturas e realidades que o roteiro pretende abordar, mas que também é um item recorrente nos quadrinhos da Marvel, e que o longa soube abordar tão bem.

 

 

ATENÇÃO: spolier’s à vista…

 

Hiro Hamada (voz de Ryan Potter), nosso personagem principal, é um adolescente prodígio, que aos 13 anos de idade já concluiu com honras o ensino médio, e mesmo assim não quer saber de faculdade. Hiro utilizou suas habilidades em robótica para criar um robô em miniatura, o qual utiliza para disputar apostas em um ringue ilegal de lutas robô. O comportamento rebelde e em conflito com leis de Hiro seria facilmente analisado como típicos de um adolescente se não soubéssemos que ele está atravessando o luto pela perda dos pais, que morreram em um acidente de trânsito.

 

Sob os cuidados da tia e do irmão mais velho, Tadashi Hamada, Hiro apresenta um comportamento intransigente nessa fase de sua vida. Eles se mantem distante dos familiares, e frequentemente foge à noite para participar de ringues de luta de robôs, chegando a ser detido pela polícia em uma dessas fugas. Sob uma ótica psicanalista, essas atitudes são consequências do processo de luto ocasionado pela perda dos pais de Hiro. Há no adolescente, um desvio da energia psíquica, que é dissociada de forma inconsciente do objeto real causador do trauma, e passa a ser investida em um novo objeto, no caso do nosso Herói: completo desrespeito às regras e normas sociais.

 

Esse comportamento de Hiro pode ser analisado sob à ótica do Arquétipo do Fora da Lei (MARK, PEARSON, 2001). Seu interesse por atividades solitárias e independentes, mais do que uma característica clássica do Luto pela morte repentina dos seus pais, diz respeito à fase da adolescência, que força na criança – agora um quase adulto –  uma ruptura com uma fase da vida onde impera a fantasia e a ingenuidade, sendo agora forçado a lidar com uma realidade dura, por vezes, cruel. Para alguns autores essa ruptura pode ser tão dolorosa que poderia ser comparada ao processo de luto. O comportamento sarcástico e cínico de adolescentes nessa fase se justificam pela perda de sua identidade de criança somada à necessidade de uma transformação forçada por aspectos internos; biológicos (puberdade); e sociais, que na maioria dos casos é enfrentada com dor e rebeldia.

 

Nesta fase, a trama apresenta um adolescente fragilizado e com preferência por atividades arriscadas, que desafiam figuras de autoridade imediata. Aqui, a psiquê de Hiro está totalmente fragmentada, há uma clara confusão e inversão de papeis, sobretudo, resultante do processo de enlutamento pela perda repentina dos pais. A função de Tadashi nesse momento, mas do que a do irmão mais velho também fragilizado pelo luto, é a de ser um apoio/suporte para o irmão caçula. Assim, ele se torna alvo de transferências do adolescente, assumindo inconscientemente o papel de novo pai, referencial de leis e normas sociais.

 

Tadashi aposta no amor que o irmão tem pela tecnologia para mostrar a ele seu laboratório na universidade e assim tentar convence-lo a ingressar na faculdade. Hiro fica fascinado com as pesquisas do irmão, que trabalha em melhorar seu robô, o Baymax. O modelo é uma espécie de enfermeiro do futuro. De uso individual e baixo custo, tem corpo inflável e visual acolhedor. O robô foi desenvolvido por Tadashi como um protótipo para ser testado em Hiro, mas que futuramente seria produzido e distribuído em larga escala para cada cidadão do planeta.

 

 

Cada vez mais próximo do laboratório, e após entrar em contato com os amigos de Tadashi (Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred), Hiro se vê empolgado com a possibilidade de desenvolver novas pesquisas e aplicar toda sua genialidade em prol de uma causa nobre, vemos aqui os primeiros sinais do desenvolvimento do Arquétipo do Herói no adolescente (MARK, PEARSON, 2001).  Empolgado com a possibilidade de ingressar na universidade, Hiro dedica seu tempo aos estudos e começa a pesquisar nano robótica para um trabalho que será apresentado na feira tecnológica, com objetivo de disputar ingresso na mesma universidade em que o seu irmão estuda.

Chegado o grande dia da feira, Hiro é ovacionado pelo seu experimento que atrai a atenção de todos. Com entrada garantida na universidade ele é surpreendido por um acidente que tira a vida de seu irmão de forma repentina e violenta. Esse novo luto, pela segunda vez em um período tão curto de tempo é sentido de forma muito dolorosa pelo adolescente, sobretudo pela representação paternal que seu irmão agora tinha em sua vida. Hiro, pela segunda vez, perde seu modelo transferencial de forma repentina e trágica, entrando em um processo de luto ainda mais intenso.

 

Com a morte do irmão, Hiro atravessa um segundo luto, muito mais forte e avassalador, sobretudo, por ainda não ter elaborado o primeiro. Mesmo com os esforços da tia e dos amigos de Tadashi que agora se sentiam compadecidos com o sofrimento de Hiro, o adolescente experimenta um quadro de enlutamento ainda mais severo que o anterior. Para a psicanalise Freudiana, o luto é uma representação do ego, onde a melancolia aparece, também, como uma representação de perda significativa da estrutura egoica (FREUD, 1917). A perda do referencial de identificação, resultante do luto, favorece a fixação de um polo melancólico no ego, este se torna alvo de interferências internas e externas, gerando um polo ambivalente e de múltiplas transferências e de conflito para o super eu.  Como resultado desse complexo, o luto é vivenciado por uma baixa autoestima, e quadros de regressão e ambivalência.

 

 

Como reações típicas do luto na adolescência podemos apontar: tristeza profunda, revolta, irá, desejo intenso de ficar sozinho, choro constate e/ou repentino, sentimento de culpa e impotência diante da vida, perca de apetite, inversão do ciclo de sono e vigília, problemas para dormir, pesadelos etc. Uso abusivos de medicamentos, álcool e outras drogas sem causa aparente também podem estar associados ao processo de luto vivenciados pelo sujeito. Estes sinais devem ser analisados com muito cuidado e atenção, pois podem facilmente evoluir para o desenvolvimento de um quadro depressivo no sujeito. Estudos apontam que quanto maior o grau de proximidade/afeto entre o enlutado e seu ente perdido, maior será a intensidade com que esses sinais serão vivenciados pelo sujeito em luto.

 

 

No caso do nosso personagem, Hiro experimenta um quadro de isolamento, choro, perca de apetite e tristeza profunda. A morte do irmão desperta nele a falta de interesse por tudo aquilo que antes faziam juntos, e que agora parecem não fazem mais sentido algum. Isso se prolonga até o adolescente reencontrar Baymax que, após forte resistência do adolescente, vai aos poucos se tornando um companheiro inseparável do garoto. Com o robô, Hiro vai redescobrindo o gosto pelas atividades do dia-a-dia, mas ainda não se sente totalmente bem. Eles criam um laço de afeto, e Baymax, apesar de uma máquina com inteligência artificial, demonstra um grande zelo e cuidado para com o garoto, que está cada vez mais apegado ao robô.

 

Apesar da resistência do adolescente em aceitar Baymax como amigo, o robô é o único elo que ele tem com seu irmão. Aos poucos, à medida que ele vai passando mais tempo ao lado do robô (que tem uma aparência dócil e “fofinha” como ele mesmo chega a afirmar), Hiro vai conquistando autoconfiança e começa a apresentar os primeiros sinais de superação do luto. Um fato importante de ser analisado, é que Baymax se desativa automaticamente quando seu paciente está “se sentindo bem”. Ao longo do filme percebemos que Hiro está tão apegado ao robô que evita ao máximo dizer que já está se sentindo bem, temendo perder seu grande amigo. Há uma clara resistência por parte do adolescente em perder seu amigo, temendo passar novamente pelo luto.

 

Com o aparecimento do vilão na trama, aparecem algumas lacunas na história sobre a morte de Tadashi. Hiro, conta com a ajuda de Baymax para desvendar esse mistério.  Para terem condições de lutar contra esse inimigo, Hiro emprega todas as suas energias em desenvolver um plano para recuperar sua tecnologia (os nano robôs). Assim, ele desvia a energia psíquica da dor do luto pela morte do irmão, em uma atividade altruísta. Nessa fase, os amigos de Tadashi reaparecem como apoio para Hiro, que está cada vez mais empenhado em desvendar quem é o vilão que roubou sua tecnologia de nano robôs. Assim, conhecemos um pouco melhor: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred.

 

Wasabi é outro gênio da robótica, maduro, racional e viciado em organização, ele é o mais racional do grupo. Com ajuda de Hiro, ele se torna “Afiado”, um herói com lâminas de plasma capazes de cortar qualquer superfície.

Honey Lemon é uma jovem cientista, curiosa e superinteligente. Dinâmica ela é conhecida pelo espirito criativo e habilidade de trabalhar em grupo. Com ajuda de Hiro ela se torna “Ir Girl”, uma heroína usa seu conhecimento em química para produzir misturas incríveis de acordo com a necessidade de sua equipe.

Go Go Tomago, é uma mulher forte e destemida. É a mais atlética e aventureira dos quatro amigos. Com ajuda de Hiro, ela se torna Maglev, uma heroína super veloz que usa rodas de liga leve e ultravelociade.

Por fim temos Fred, este pode ser visto como o menos habilidoso e geniais dos quatro amigos, mas que preserva um espirito ingênuo de criança. Viciado em revistas de quadrinhos e super-heróis, seu sonho sempre foi o de poder cuspir fogo como um dragão. Com ajuda de Hiro ele se torna Fredzilla, um monstro que cospe fogo e tem o poder de Supersalto.

 

Assim como os quatro amigos, Baymax também ganha melhorias. Sua aparência fofinha e vulnerável ganha, nas mãos de Hiro novas ferramentas que o tornam forte e resistente à batalha. Se entendermos o novo amigo de Hiro, como seu psicopombo (ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser humano entre dois ou mais eventos significantes), podemos perceber essas melhorias como uma forma de seu inconsciente externalizar novas defesas que sua psiquê fragmentada cria para conseguir lidar com a realidade. Esse inconsciente pessoal que é vivo, começa a se armar contra esses traumas afetivos, ao passo em que mortifica sua ingenuidade e fragilidade (características típicas de uma criança) enquanto luta pelo seu equilíbrio e homeostase. O ato simbólico de armar seu robô para essa nova batalha expressa a maturação do Herói.

 

Juntos: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago, Fred, Baymax e Hiro se transformam nos 6 heróis quem tem a missão de derrotar esse vilão e desvendar os mistérios por traz da morte de Tadashi. Nessa tarefa eles precisam aprender a casar suas habilidades e características pessoais para derrotar seu inimigo. Nessa luta, Hiro entra em contato com uma nova decisão, tirar ou não a vida do seu inimigo quem matou seu irmão. Aqui ele consegue entender que tem tanto o direito da escolha, como o de arcar com as suas consequências. Essa fase da trama mostra uma transformação e uma evolução da psiquê de Hiro, que agora demostra características de maturidade, senso de perigo e altruísmo.

O número 6 (integrantes da equipe) aqui não deve ser considerado ao acaso. Analisado de forma simbólica, o numeral 6 significa os atributos que o homem recebe em sua essência: Vontade, Sabedoria e Amor. Esses atributos precisam estar em harmonia e equilibrados para que haja uma transformação pessoal, de modo a permitir a evolução do sujeito.  Esse desejo por crescimento pessoal e amadurecimento parece ser, ao longo da trama, o tema central da história dessa fase da vida de Hiro.

É interessante notar que os quatro amigos: Wasabi, Honeu Lemon, Go Go Tomago e Fred, juntos, apresentavam características singulares presentes na personalidade de Hiro, mas que no início da história não se articulavam entre si. A jornada do herói na trama parece ser uma busca inconsciente para organização e integralização desses aspectos (responsabilidade, criatividade, dinamicidade e ingenuidade), afim da resolução do mistério que envolve a morte do seu irmão. Simultâneo à resolução desse conflito, ocorre elaboração do luto e individuação do personagem que agora consegue tomar decisões de forma consciente, levando em consideração as consequências de suas escolhas, indícios de mortificação a infância e migração para uma nova etapa do seu desenvolvimento: a adolescência.

 

Voltando ao luto enfrentado por Hiro, percebemos que a investidas do robô foram aos poucos tendo como resultado o desenvolvimento de uma relação de afeto sincero entre as duas partes. Aos poucos, Baymax foi ocupando na vida do adolescente um papel semelhante ao que o de Tadashi. Hiro se mostra no final da trama como um jovem resiliênte, empenhado em recuperar uma relação harmoniosa com sua tia, entendendo que não precisa sepultar dentro de si a dor e o amor que sentia pela perde de seus pais e do seu irmão, mas que agora podia empregá-los em atividades de cunho altruísta e de ajuda para com o próximo, tornando-se um herói.

 

Operação Big Hero é mais do que uma lição de como o Arquétipo de Fora da Lei pode dar vazão ao surgimento do Arquétipo de Herói, trata-se de uma experiência de transformação aliada ao processo de enfrentamento do luto por perda repentina de familiares e de consolidação de uma personalidade individuada e consciente de suas potencialidades. No filme podemos ver que o luto deve ser enfrentado, mas sobretudo, no tempo do sujeito e com recursos interno próprios. O apoio dos seus amigos e familiares se tornam elementos importantes para o processo, mas que servem apenas de auxílio na construção dessa nova psiquê, que precisa encontrar em suas reservas pessoais elementos próprios para se organizar e aprender lidar com essa nova realidade.

Referências:

MARK, Margaret. PEARSON, Carol. O Herói e o Fora-da-Lei. São Paulo: Cultrix, 2001.

FREUD, S. (1986). Luto e melancolia. In Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1917).

A Filosofia simbólica dos números, disponível em: <http://odespertardaespiritualidade.blogspot.com.br/2014/12/a-filosofia-simbolica-dos-numeros.html>. Acesso de 10 de fevereiro de 2015.

Operação Big Hero, disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-209529/> Acesso de 10 de fevereiro de 2015.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

OPERAÇÃO BIG HERO

Título Original (EUA): Big Hero 6
Título em Portugal: Big Hero 6 – Os novos heróis
Direção: Don Hall e Chris Williams
Gênero: Animação, Comédia
Estúdio: Walt Disney Studios
Duração: 108 minutos
Ano: 2014

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A Teoria de Tudo: Stephen Hawking e seu universo com Jane

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Com cinco indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Eddie Redmayne), Melhor Atriz (Felicity Jones), Melhor Roteiro Adaptado (Anthony McCarten) e Melhor Trilha Sonora.

“Desde o começo da civilização, as pessoas tentam entender a ordem fundamental do mundo. Deve haver algo muito especial sobre os limites do universo. E o que pode ser mais especial do que não haver limites? Não deve haver limites para o esforço humano. Enquanto houver vida, haverá esperança.” (Stephen Hawking)

 

Mesmo sem entender as teorias de Stephen Hawking, muitos já ouviram falar sobre os conceitos apresentados em seus livros, que vão desde buracos negros e o início do universo, até a teoria das cordas. Isso porque Hawking conseguiu a proeza de colocar o livro de um cientista teórico na lista de best-sellers (Uma breve história do tempo). Essa façanha só foi possível porque, seguindo o conselho de seu editor, elaborou um livro sobre alguns dos princípios da física teórica sem o uso de fórmulas matemáticas nas explicações (ou melhor, com uma única fórmula: E=mc2). Um livro que deu ao público em geral a oportunidade de apreciar conceitos complexos sem a estranha sensação de estar olhando para um enigmático conjunto de números e símbolos.

Mas quem buscou encontrar no filme longos relatos sobre as teorias de Stephen, provavelmente foi surpreendido. Em “A teoria de Tudo” vimos a história de Stephen e Jane (sua esposa) que, como muitas matérias que se atraem na natureza, parecem estar em campos opostos. Ele, um estudante de Física, que só acredita na ciência como forma de entender os mistérios do universo, ela, estudante de artes e uma cristã devota.

 

Jane: Você não falou por que não crê em Deus.
Stephen: Um físico não pode deixar que a crença em um criador sobrenatural atrapalhe seus cálculos.
Jane: É um argumento contra físicos, não contra Deus.

 

O filme foi baseado em um livro publicado por Jane Hawking, Travelling To Infinity: My Life With Stephen, e roteirizado por Anthony McCarten. Nele, vimos duas pessoas compartilhando uma vida com desafios complexos. A premissa da história poderia muito facilmente cair em uma ode piegas à superação humana e ao amor conjugal, mas graças a atuação impecável do casal principal, ao roteiro e a bela fotografia, o que presenciamos é um filme mais crível, logo mais interessante.

Claro, é uma história real contada em um filme hollywoodiano e isso já muda a perspectiva de muitos fatos, mas, ainda assim, com o desenrolar dos acontecimentos podemos ver o ser humano por detrás do gênio ou da pessoa portadora de uma doença tão devastadora, logo podemos enxergar, além de tantos aspectos positivos (perseverança, resiliência etc.), uma dose de egoísmo e orgulho. Aos poucos, vimos também que há uma certa melancolia crescente em Jane por algo que ela tem a impressão de ter deixado para trás, talvez um pouco de sua própria vida.

 

 

Jane e Stephen se conheceram no início da década de 1960 e foi logo depois disso que os sintomas da doença que iria mudar a vida de Hawking começaram a aparecer, primeiro em forma de pequenas dificuldades motoras até o momento de sua queda em Cambridge e do diagnóstico fatal: a doença do neurônio motor (DNM), ou de Lou Gehrig, que dava-lhe, no máximo, dois anos de vida (ele estava com 21 anos).

Observação: a denominação atual (e mais específica) da doença de Hawking é Esclerose Lateral Amiotrófica.

A esclerose lateral amiotrófica (ELA), também conhecida como doença de Charcot ou doença de Lou Gehring, e pertencente ao grupo das doenças do neurônio motor, é caracterizada pela progressiva degeneração dos neurônios motor superior (NMS) e inferior (NMI), geralmente associada ao envolvimento bulbar e do trato piramidal.Os sinais clínicos da ELA são evidenciados nos membros inferiores, superiores e, posteriormente, nas demais regiões do tórax e pescoço.(LIMA & GOMES, 2010)

 

 

O que vimos depois disso é a história de Stephen e Jane como casal, mesmo que todas as predições lógicas tentassem mostrar que tal história seria impossível na realidade. Eles se casaram em 1965, acreditando que o amor que sentia um pelo outro merecia ser vivido, mesmo que brevemente. E o “breve” imaginado pelos médicos e pela família só teve sentido se pensarmos que talvez todas as histórias humanas na Terra sejam breves, considerando o tempo e o espaço que nos cercam.

Tão difícil quanto explicar as teorias sobre as estrelas que entram em colapso ou a singularidade é entender como as pessoas se conectam, vivem juntas e superam dificuldades quase intransponíveis. O desempenho excepcionalmente crível de Eddie Redmayne transporta-nos através da trajetória de dor, vitórias e perdas (não somente a muscular) vivida por Stephen Hawking. Enquanto isso, vimos em Jane, interpretada no tom certo por Felicity Jones, toda a complexidade que é viver um casamento em que sua entrega e dedicação têm que ser tão intensa.

 

“Então Einstein estava errado quando disse que ‘Deus não joga dados’. Considerando o que os buracos negros sugerem, Deus não só joga dados, Ele às vezes nos confunde jogando-os onde ninguém os pode ver”. (Hawking)

 

No início da década de 1970, Hawking não conseguia mais falar, nem se movia sozinho da cadeira. Seus três filhos, ainda pequenos, mais sua necessidade de cuidados básicos, exigiam de Jane uma dedicação extrema. Talvez fosse mais poético se na história o amor superasse todas as barreiras, mas o amor é interessante justamente porque não nos dá certezas. É mais provável que entendamos através dele nossa própria fragilidade e os artifícios que criamos para nos reinventar a cada dia.

Se na teoria clássica, segundo Hawking, “não há como escapar de um buraco negro” porque as leis são regidas pela teoria da relatividade; na teoria quântica esse cenário é mudado radicalmente, o que tornaria possível, por exemplo, “que energia e informação escapassem”. Não havia como sobreviver, naquela época, com um diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, ao menos, a medicina até aquele momento não permitia enxergar além da primeira conclusão, ou seja, o diagnóstico fatal. Hawking talvez seja a melhor metáfora para a analogia da informação que escapa do buraco negro. O seu amor pela vida, por Jane e pela ciência contribuíram para sua sobrevivência, foi o movimento necessário para sua fuga da morte.

 

 

Hawking refutou sua própria tese de doutorado, ou melhor, ampliou as premissas mudando o alcance de suas concepções iniciais. Fez isso porque tudo é dinâmico, principalmente, o conhecimento humano. Seu casamento com Jane também sofreu modificações, por um tempo viveram uma relação aberta até se separarem na década de 1990. Mas mesmo sem um “viveram felizes para sempre”, a sensação que fica depois do filme é de termos presenciado uma profunda história de amor. De um amor que, como as teorias da física, não é estático, nem totalmente compreensível, mas essencial para mantermos o mínimo de equilíbrio nessa vida em constante movimento.

A Teoria de Tudo, ou melhor, a explicação do universo através de uma fórmula matemática geral, ainda não foi encontrada por Hawking. O menino de caligrafia terrível que nasceu exatamente no dia dos 300 anos da morte de Galileu e que ocupou a cadeira que antes havia sido ocupada por Isaac Newton em Cambridge, está com 73 anos e continua, como ele mesmo costuma dizer, com uma curiosidade infantil pelo universo. Seus filhos com Jane e sua própria história de vida evidenciam uma de suas principais teorias, que o universo não tem limites (nem a natureza humana).

 

Referência:

LIMA, S. R.; GOMES, K. B. Esclerose lateral amiotrófica e o tratamento com células-tronco. Rev Bras Clin Med. São Paulo, 2010 nov-dez;8(6):531-7.

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

A TEORIA DE TUDO
Título Original: The Theory of Everything
Direção: James Marsh
Roteiro: Anthony McCarten (screenplay), Jane Hawking (book)
Elenco Principal: Eddie Redmayne e Felicity Jones
Ano: 2014
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“Sniper Americano” e o (ainda) insuperável mito do herói

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Bradley Cooper), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição, Melhor Mixagem de Som e Melhor Edição de Som.

 

“Tal como a fumaça em elevação de uma oferenda, que atravessa a porta do sol, assim vai o herói, libertado do ego, pelas paredes do mundo… e segue adiante”.
Joseph Campbell

 

Com previsão de estreia no Brasil neste dia 19/02, Sniper¹ Americano é um sucesso de bilheteria e de crítica nos Estados Unidos, sobretudo depois de receber seis indicações ao Oscar 2015, incluindo três das principais categorias: Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado (além de Melhor Edição, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som). Há críticos, no entanto, que apontam erros grosseiros na obra – de continuidade, por exemplo – e não veem sentido na projeção que o longa tomou… Creditam o sucesso à tendência americana – por vezes ufanista – de destacar filmes que souberam sintetizar um ideal de vida festejado/almejado pelos yankees.

 

 

Sniper Americano é baseado numa história real, cujo roteiro é uma adaptação do Best Seller “American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History”, sobre a vida do franco-atirador Chris Kyle, interpretado no filme por Bradley Cooper, que precisou “aumentar” 18 kg para se assemelhar com as características físicas da personagem.

 

 

A narrativa conta a trajetória de Kyle, desde sua pacata vida de cowboy no interior dos Estados Unidos, até seu “despertar” para o fato de que com frequência vários americanos estavam morrendo ao redor do mundo – e no próprio EUA, com o fatídico episódio de 11 de setembro – em decorrência de ataques terroristas promovidos pelos radicais islâmicos. Por ser um excelente atirador, habilidade que conseguiu graças às interações com o pai, Kyle então resolve dar a sua contribuição às Forças Armadas de seu país. O filme aborda, dentre outros aspectos, um patriotismo que transcende as definições mais usuais e ideológicas e descamba para uma origem mítica.

Chris Kyle foi um dos mais letais atiradores americanos – matou mais de 200 –, no entanto sua vontade de preservar um estilo de vida – e a própria determinação em salvar os seus compatriotas, alvos de constantes e hostis investidas – lhe fez assumir o posto de sniper não como um fardo, mas como uma missão, cujo preço ele estaria disposto a pagar, “face a face com o seu Criador”. Numa guerra como esta, ainda em curso com o crescente desafio imposto pelo Estado Islâmico, presume-se que é melhor pecar pelo excesso do que pela ausência. Kyle já sabia disso. Não por menos, tanto o livro quanto o filme sobre sua curta vida são sinônimos de sucesso em seu país.

 

 

A história de Chris Kyle fascina porque ele, como poucos, ensejou traços paradoxais que envolvem desprendimento (da família e do “conforto” do lar) e, ao mesmo tempo, comprometimento, algo que remete ao clássico conceito de “mito do herói”, estudado por anos a fio pelo mitólogo Joseph Campbell, cujo sentido está em despojar-se das vontades pessoais (e familiares) para atuar numa causa maior, que beneficie o máximo de pessoas (no caso do filme, os compatriotas ameaçados).

Em Sniper Americano, dá para perceber claramente o padrão da aventura mitológica do herói, que nada mais é que a exacerbação de um ritual de passagem, com a “separação, seguida da iniciação e, por fim, o retorno” como diretiva de vida para alguém que mesmo sendo oriundo do mundo ordinário, se dispõe a usar de todas as suas forças para, na empreitada que abraçou em terras distantes, derrotar o inimigo e retornar, “trazendo consigo os benefícios aos seus semelhantes”, como pontua Campbell. Para Kyle, o fruto de sua ação é a perpetuação do ideário americano e, claro, a manutenção da segurança dos colegas militares e da própria estrutura de poder da nação, já que as incursões bélicas eram “preventivas”.

 

 

Como “portador simbólico do destino de todos”, Kyle atende “ao chamado da aventura mitológica”, o que significa que

O destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida, distante. […] O herói pode agir por vontade própria na realização da aventura, como fez Teseu ao chegar à cidade do seu pai, Atenas, e ouvir a horrível história do Minotauro; […] mas a recusa à convocação converte a aventura em sua parte negativa. Aprisionado pelo tédio, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado para se transformar numa vítima. (CAMPBELL, 2007, pág. 67)

 

Chris Kyle, na medida em que abraça a aventura heróica, se embaralha para situar-se no “retorno”. Para Campbell, isso ocorre porque há o risco de o herói ter o seu inconsciente violado. Passam a sofrer de uma “deficiência simbólica”. No caso de Kyle, após quase 10 anos servindo às Forças Armadas, se vê compelido a manter-se entre os ex-combatentes, mesmo depois do regresso ao seio familiar, numa espécie de “recusa de retornar da aventura”.

Nos contos de fadas, essa deficiência pode ser tão insignificante quanto como a falta de um certo anel de ouro, ao passo que, na visão apocalíptica, a vida física e espiritual de toda a terra pode ser representada em ruínas. Assim, […], o herói de contos de fadas obtém um triunfo microscópico, doméstico, e o herói do mito, um triunfo macroscópico, histórico-universais. (CAMPBELL, 2007, pág. 41)

A representação universalista, em Sniper Americano, se dá pelo ideal de liberdade.

Mas, afinal, qual seria exatamente o destino de um herói, diante de tão grande missão?, o leitor poderia perguntar… Campbell apresenta várias possibilidades que vão desde a glória à incompreensão (este último tão comum quanto se possa imaginar).

O “retorno e reintegração social”, muitas vezes, não ocorrem de forma suave. Para essa inaptidão em se reposicionar na vida comum, o herói pode pagar com a própria vida. Vejamos o caso de Chris Kyle (cuidado, spoiler à frente), que ao ajudar na recuperação de um colega ex-combatente, medida que adotou para superar o próprio processo de reinserção, acaba sendo assassinado. Há, então, um típico exemplo de que apesar de o herói

alcançar seu alvo (pela violência, pelo engenho, pela sorte) e levar a graça para o mundo que ele desejou, [não sai incólume] pois os poderes desequilibrados por ele podem reagir tão violentamente que o herói será destruído tanto a partir de dentro como de fora – crucificado, tal como Prometeu, no rochedo do próprio inconsciente, [ou como Jesus Cristo, cuja mensagem é tida como incompreendida por seus contemporâneos]. (CAMPBELL, 2007, pág. 42)

 

O desfecho é trágico, mas também é delineador da “eternização” do herói, onde piedade, horror, conquistas e perdas se mesclam, numa dinâmica que lembra um dos fragmentos (46) do filósofo grego Heráclito, para quem a partir “das diferenças surge a mais bela harmonia, e todas as coisas se manifestam pela oposição”. Chris Kyle é aclamado como herói, e paradoxalmente morre no ápice daquele que seria o momento de colher os frutos da aventura mitológica (assim como ocorreu com Ayrton Senna). Ainda em vida, soube resumir parte do sentimento comum/predominante americano, de que (pelo menos em tese) os deveres para com a nação devem estar acima de qualquer investida pessoal.

Deu tudo de si e, despido de egoísmo, se esvaiu na mesma velocidade com que lançava os projéteis. Eis uma das facetas do “caminho do herói”: intenso e rápido como um raio. Afinal, deles o que irá ficar não são os enlaces do dia-a-dia. É a bravura e a coragem de ter feito “o percurso” por inteiro… estas sim vão se transformar em verdadeiras credenciais imortalilzadas. O que certamente ocorreu com o sniper americano Chris Kyle.

 

 

Nota:

¹ – Atirador de elite. A palavra sniper vem do pássaro snipe que era muito difícil de caçar e passou a ser dados aos caçadores habilidosos.Foram os alemães que começaram a chamar seus atiradores como snipers. No Exército Brasileiro é chamado de caçador. Aqui será chamado sniper. A história dos snipers começara na guerra de independência americana quando milicianos locais conseguiam acertas formações inglesas à distância. Os alvos preferidos eram os oficiais que tinham uniformes bem diferenciados dos soldados. Alguns batalhões ingleses chegaram a perder todos os oficiais. Antes desta época as armas eram muito imprecisas para que o sniper fosse viabilizado. Fuzis com projeteis encapsulados permitiram aumentar a precisão e distancia de tiro. Acoplados a lunetas permitiram que as técnicas e táticas dos snipers se desenvolvessem. A função dos snipers não é só bater alvos inimigos. Uma missão típica geralmente é penetrar as linhas inimigas, matar oficiais, artilheiros ou metralhadores, ou atrasar avanço inimigo em uma retirada de tropas, sendo um meio para conseguir superioridade de fogo. A identificação de alvos é crucial com o sniper tendo que distinguir oficiais, mensageiros, operadores de radio, operador de armas pesada e tripulantes. Os snipers inimigos são os mais importantes e os soldados comuns estão no fim da lista de prioridade. Como arma sua função é diminuir a moral inimiga, criar confusão e atrasos. Fonte: ArmaPoint – disponível emhttp://www.armapoint.com/tutoriais-diversos/140-taticas/1352-taticas-de-combate-taticas-de-snipers – acesso em 16/02/2015.

 

Referências:

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

Crítica a Sniper Americano. Disponível em http://altamenteacido.com.br/review/critica-sniper-americano/ – acesso em 16/02/2015.

 

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

SNIPER AMERICANO

Título Original: American Sniper
Direção: Clint Eastwood
Duração: 132 minutos
Gênero: Ação – Biografia –  Guerra
País de Origem: Estados Unidos da América
Estreia: 19 de Fevereiro de 2015 ( Brasil )
Ano produção: 2014

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Como Treinar seu Dragão 2: o despertar da consciência

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Concorre ao Oscar de Melhor Filme de Animação

“O objetivo da individuação é nada menos que despir o self
dos falsos invólucros da persona, por um lado,
e do poder sugestivo de imagens primordiais, pelo outro.”

Carl Gustav Jung

Após o sucesso do primeiro filme da trilogia, Solução e Banguela estão juntos novamente em “Como Treinar seu Dragão 2” que acontece cinco anos após o primeiro. Nesta fase da história os personagens principais são jovens entrando na idade adulta.

A história atual nos apresenta um panorama diferente do anterior. No segundo filme, os personagens convivem de forma harmoniosa com os dragões, diferente do filme anterior onde estes eram seres odiados e temidos. As guerras intermináveis entre Vikings e Dragões cederam espaço à um cenário onde impera a paz e a harmonia. Homens e dragões aprenderam a conviver coletivamente.

Como herói ao avesso, a função de Soluço sempre foi a de trazer à consciência grupal o medo inconsciente que toda a ilha tinha dos monstros alados que assombravam a aldeia. A relação do menino com seu Dragão, o Banguela, mostrou que era possível interagir de forma harmoniosa com os temíveis monstros, chegando a considerá-lo seu melhor amigo.

Um fator interessante a ser analisado é que no final do último filme soluço perde o pé direito em um acidente com Banguela que não tem parte da plantadeira em sua calda. Com essa limitação ambos estão ligados de forma interdependente para poderem voar. Esse laço que une o jovem ao seu ser mítico pode ser analisado como uma ligação que nossa psique tem com os aspectos que consideramos positivos e negativos. Assim, a jornada de Soluço parece ser uma jornada para aprender a conviver com seus medos e temores mais primitivos.

Continue reading “Como Treinar seu Dragão 2: o despertar da consciência”

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Wild – Livre: uma jornada de autoconhecimento

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Com duas indicações ao OSCAR:

Melhor Atriz (Reese Witherspoon), Melhor Atriz Coadjuvante (Laura Dern)

A Dor – tem um Elemento de Vazio –
Não se consegue lembrar
De quando começou – ou se houve
Um tempo em que não existiu –

(Emily Dickinson in “Poemas e Cartas”)

“Wild” (Livre) é baseado no best-seller autobiográfico de Cheryl Strayed, publicado em 2012, dezessete anos depois que a autora vivenciou os eventos narrados no livro. Em 1995, Strayed iniciou uma caminhada solitária pela Costa do Pacífico nos EUA, percorrendo um total de 1,8 mil quilômetros (a pé). O filme estrelado por Reese Witherspoon e dirigido por Jean-Marc Vallée (deClube de Compras Dallas) apresenta de forma não linear os acontecimentos que culminaram nessa jornada e especialmente a viagem solitária e árida de uma mulher fragmentada demais para suportar a vida em um ambiente doméstico.

Há vários precipícios na Costa do Pacífico, mas talvez o que fica mais evidente desde o início é o precipício psicológico vivenciado por Strayed. Um abismo se formou de maneira abrupta em torno de sua aparente sanidade após a morte de sua mãe, a pessoa mais importante da sua vida. E para suportar a vida sem ela, Cheryl descontruiu a pessoa que ela tinha sido até então e iniciou uma queda vertiginosa em um precipício de relações fugazes e drogas, que resultou, inclusive, no fim do seu casamento.

 

“Se sua coragem negar-lhe, vá além de sua coragem.” (Emily Dickinson)

A difícil vivência do luto é um dos pontos evidenciados no filme. Alguns pesquisadores têm tentado definir as diversas fases do luto relatando sobre um período inicial de dormência que pode levar à depressão e, depois, a uma fase de reorganização e recuperação. No entanto, segundo Zisook e Shear (2009) em pesquisas recentes sobre o luto tem-se evidenciado o quão variáveis e fluídas podem ser essas experiências, pois elas podem diferir consideravelmente na intensidade e abrangência a partir de grupos culturais ou, mesmo, de pessoa para pessoa. Acrescentam ainda que até agora nenhuma teoria sobre as fases do luto tem sido capaz de explicar como as pessoas lidam com a dor da perda, por que elas experimentam diferentes graus e tipos de angústias em momentos diferentes, e como ou quando elas ajustam suas vidas sem seu ente querido. Mas, talvez, a resposta para isso esteja no sentido que cada indivíduo dá ao seu luto, assim, por mais universais que sejam alguns sofrimentos e algumas dores, há sempre particularidades que merecem ser observadas.

 

“Depois que me perdi na selvageria do meu luto, encontrei o caminho para fora da floresta”. (Strayed)

 

A decisão de parar, de tentar equilibrar-se novamente mesmo diante do peso da ausência (e as cenas das tentativas de suportar o peso da mochila gigante em suas costas são uma metáfora disso), foi criando forma e se solidificando através da lembrança da filha que ela um dia havia sido. Nessa decisão, as palavras calculadas e vazias do psicólogo que a atendeu não surtiram efeito.

Em seu manual do luto, o psicólogo resumiu em linhas gerais a dor vivida pela paciente, mostrando-lhe a fragilidade do seu estado a partir das suas atitudes. Mas, às vezes, palavras são apenas um amontoado de letras suspensas em um universo sem significado. Nesses momentos, o silêncio pesa, mas acalma. O silêncio, para ela, foi o elemento necessário para manter seus pés em movimento sobre o chão. Foi em busca do silêncio, de manter-se viva (e não simplesmente leve), que ela iniciou a jornada.

“Levei anos para ser a mulher que a minha mãe criou.”(Strayed)

Strayed tinha se transformado em um caos emocional, mas não estava indiferente, nem apática. E, de certa forma, foi isso que tornou possível uma reação. O filme poderia cair muito facilmente em uma mera e vazia encenação de alguma história de superação apresentada em um livro de autoajuda, mas salva-se graças aos recursos de feedback que ajudam a mostrar a natureza fragmentada da personagem em sua busca por reconstruir uma história na qual pudesse viver. Ela não é uma pecadora que se redime de seus pecados ao final, nem um herói solitário que sabe exatamente aonde quer chegar. Sua vida é um amontoado de acontecimentos, muitas vezes confusos e aleatórios. O final de sua caminhada é renovador porque, no silêncio e na solidão, ela conseguiu, finalmente, reconstruir a pessoa que foi, ou a pessoa que na lembrança que ela inventou ela deveria ser.


FICHA TÉCNICA DO FILME

LIVRE

Título Original: Wild
Direção: Jean-Marc Vallée
Roteiro: Nick Hornby, Cheryl Strayed (memoir “Wild: From Lost to Found on the Pacific Crest Trail”)
Elenco Principal: Reese Witherspoon, Laura Dern, Thomas Sadoski
Ano: 2014
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