Pecar e Perdoar – Não existe “inveja branca”

Compartilhe este conteúdo:

“Se quiséssemos apenas ser felizes, seria fácil. Mas queremos ser mais felizes que os outros, então é difícil, pois achamos os outros mais felizes do que realmente são” – Montesquieu

Sucesso de crítica, “Pecar e Perdoar – Deus e o Homem na História” (Editora Nova Fronteira), do professor Leandro Karnal (Unicamp), é de uma clareza e lucidez tocantes. Em 204 páginas e com uma linguagem leve e apropriada, Karnal aproxima do grande público um tema que a priori parece espinhoso, ainda sob a égide da filosofia e da teologia, mas que é pertinente e incrivelmente presente na vida da maior parte das pessoas (os cristãos diriam que está presente em todos, tendo em vista a inclinação básica para “o pecar”). Este tema, que salta aos olhos em relação às demais abordagens do livro, é a famigerada inveja.

Como parte dos clássicos “Sete Pecados Capitais” da Igreja Católica – que delinearam e foram a base moral e ética de toda a civilização Ocidental, tal qual a conhecemos hoje –, a inveja – assim como os demais pecados – é explicada a partir da perspectiva do perdão. Desta forma, como defende Karnal, “o erro nasce com o perdão, ou a explicação pelo erro”.

E o que isso tem a ver com o nosso tempo? Karnal diz que a experiência humana – cujo ápice é a sua própria inserção no mundo real (fenomenológico) – recebe (como já defenderam vários teóricos) grande influência coletiva dos preceitos religiosos. Esta influência estaria incrustada  tanto no inconsciente coletivo quanto na formação psíquica individual.

Em que pese os alertas de que os monoteísmos de forma geral – se houver abordagem exclusivista e teísta-antropomórfica – e a ênfase fundacionista em particular, notadamente quando usadas sem refreio pelas três grandes religiões abraâmicas, geram mais dissabor que inclusão, não se pode “jogar para debaixo do tapete” as influências que tais traições ainda exercem no cotidiano da vida ocidental, seja na política, nas artes, na educação e justiça. E são muitas as boas influências. É este um dos alertas que Karnal faz em seu livro, de forma direta ou indireta. Reverbera, também e complementarmente em suas palestras sobre o tema, um assunto que a professora Rochelle Cysne (Universidade Católica de Brasília) defende com propriedade: a atual “crise existencial” do Ocidente se deve, em parte, às tentativas de execrar o cristianismo da Europa para substituí-lo pelo secularismo com realce ao ateísmo militante (ateísmo antirreligioso). Tanto Karnal – em suas exposições públicas e neste livro em questão – quanto Rochelle dizem que o grande problema é que as artes seculares e a própria ciência – no primeiro caso, uma porta voz “natural” da vontade de imanência, a partir do século “das luzes” – não estariam conseguindo impingir a mesma experiência estética que as tradições religiosas produzem. O resultado: uma sociedade desesperançada, sem conexão com aspectos teleológicos e num autocentrismo estridente. Este autocentrismo não representaria autopoiese. Antes, é uma forma de projetar-se para o mundo sem (re)conhecer a si próprio, numa escalada de “esvaziamento da subjetividade”. Daí a “enxurrada” de transtornos psíquicos supostamente típicos da contemporaneidade. Este é um tema que daria outro texto (portanto, não será aprofundado no momento), e que encontra eco na “Civilização do Espetáculo”, do Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa, para quem “o declínio da linguagem”, que passou a sofrer com a proeminência imagética, desembocou em tal estado de coisas.

Sobre o processo de resignificação do pecado – que passa de algo execrável para tolerável, no sentido e uso comum –, a inveja também é apresentada por Karnal como algo sutil e venenoso, por isso não haveria “inveja branca”. De acordo com Karnal, que se utiliza de um humor ao mesmo tempo fino e ácido, “invejar é ter dor pela felicidade alheia. O que me incomoda não é, exatamente, o que o outro tem, mas o quanto ele é feliz com isso. Não quero a casa do outro, mas fico incomodado como ele vive bem nela”. Assim, Karnal considera a cobiça menos danosa e, em alguma medida, propulsora da ação. Ao cobiçar algo, o agente se move em direção à conquista. Portanto, o desejo de ter a mesma capacidade e/ou habilidade que outra pessoa configura-se, em súmula, numa grande diferença em relação a inveja. A cobiça, desta forma, seria até essencial para a existência.

Karnal acrescenta que a inveja é uma espécie de “pecado avergonhado”, tendo em vista que boa parte das pessoas pode até admitir publicamente que vive pelo (impulso ao) sexo, pela comida ou mesmo pela vaidade estética. “Mas você já encontrou alguém que diga que é muito invejoso? Já esbarrou com uma pessoa que reconheça que não pode ver a felicidade alheia que já cai em dor mortal como todo invejoso? Acho que não”, provoca o professor da Unicamp. E isto ocorre, segundo Karnal, porque

A inveja nunca é boa, ou usando uma expressão duvidosa, nunca é “branca”. A inveja é sempre destrutiva, sempre terrível e sempre “ruim”. Não existe inveja boa. O que pode ser menos danoso é um tipo de cobiça muito especial. (KARNAL, 2015, p. 68)

Desta forma, a existência de uma “cobiça branca” no tecido social é algo desejável. Age de modo semelhante ao estado dionisíaco executado por tempo determinado e observado de perto. Esta cobiça pode ser propulsora de boas mudanças e geradora de progresso.

A inveja, prosseguindo, é algo corrosivo, pois quem inveja não consegue perceber o esforço que o interlocutor fez para chegar a tal patamar. Esta assertiva leva a outros desdobramentos, como o fato de que o período pós-moderno pode acabar por influenciar reações de inveja, já que exorta os indivíduos a saírem do âmbito do privado para se projetarem, incessantemente, no ambiente do público, sobretudo através da comunicação por redes. Ainda assim, diriam os existencialistas, há uma vontade-base que depende exclusivamente de quem inveja. Em outras palavras, o invejoso tem condições de, por si só, decidir parar de invejar.

Karnal diz que ao optar pela inveja, o invejoso torna-se um cego espiritual (e aqui ele não se refere a “cego religioso”), num frenético jogo de comparações com o mundo externo. Desta forma,

O centro do olhar do invejoso é o outro. Em linguagem moderna, falta psicanálise ao invejoso; ele não tem senso crítico sobre si e nem conhecimento das suas limitações. Em linguagem filosófica, o invejoso não cumpre o mandamento socrático de conhecer a si mesmo. (KARNAL, 2015, p. 69)

Leandro Karnal aponta para as prováveis raízes da dor causada pela inveja. “Ela dói porque ela me reconhece menos. O que o outro parece conseguir de forma tão fácil, eu não consigo ou não tenho” (KARNAL, 2015). Há, portanto, uma pressão psicológica provocada pela falsa ideia de que o invejoso foi “excluído dos eleitos”, num desgaste interno que é lento e ressentido. Isso leva a outra investida, não menos danosa: a de “querermos nos parecer bem e felizes sempre”, para pelo menos de forma superficial – através de “likes” em postagens, por exemplo –, ter o prazer de receber o feedback e a aprovação do mundo. Esta é uma dinâmica que poderia ser a causa de algo ainda mais sério, o narcisismo patológico. Zizek já apontou para este caminho em um de seus últimos escritos.

Por fim e em resumo, a inveja aponta para um duplo caminho. Se por um lado ela age como uma “entorpecedora” da alma, ao obstruir os próprios referenciais – em decorrência da aflição com a condição do outro -, por outro lado ela desencadeia uma quase patológica necessidade de se apresentar para o mundo de forma superficial e aparentemente impecável. E haja energia para manter tantas “máscaras”! Sobre tema semelhante, certa vez Jung já advertiu que “quem olha para fora, sonha; que olha para dentro, desperta”.

No fundo, Leandro Karnal tenta, através de “Pecar e Perdoar”, despertar o máximo de pessoas de uma suposta letargia contagiante que ronda o contemporâneo. Trata-se de um livro atual e instigante.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

PECAR E PERDOAR – DEUS E O HOMEM NA HISTÓRIA

Autor: Leandro Karnal (Unicamp)
Publicação: Editora Nova Fronteira
Páginas: 204
Temas: História, Teologia, Filosofia, Vida Cristã

REFERÊNCIAS:

KARNAL, Leandro. Pecar e perdoar – Deus e o Homem na História. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

VARGAS LLOSA, Mario. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura; tradução Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

ZIZEK, Slavoj. Problema no paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

Compartilhe este conteúdo:

A vaidade e seus espelhos partidos

Compartilhe este conteúdo:

“Prefiro ser senhor do Inferno que escravo no Céu”
John Milton

Vaidade, definitivamente meu pecado predileto’, palavras do diabo, personificado em John Milton, personagem de Al Pacino no filme Advogado do Diabo. De fato, o pecado do orgulho é considerado o mais severo entre todos, mas divide com a inveja a classificação do mais maligno, conforme descreve Dante Alighieri, na Divina Comédia. Pecados que estão interligados e que são, nos dias de hoje, aqueles que entorpecem, narcotizam, embriagam e paralisam a sociedade, tornando os homens bestiais.

Orgulho que fez com que Lúcifer, o anjo portador da luz e mais belo dos arcanjos, pretensiosamente, quisesse o posto do Criador. Vaidade que sustentou a rivalidade a Deus e que teve como consequência sua expulsão e queda do céu. Queda tão brutal que fez das profundezas da terra seu refúgio, seu inferno, o oposto ao paraíso divino. O inferno, lugar de condenação e sofrimento.

A concepção do orgulho, atribuída a Lúcifer na tradição judaico cristã é evidenciada no poema de John Milton: ‘Prefiro ser senhor do Inferno que escravo no Céu’.

O pecado capital é aquele que nos leva a cometer outros. Capital derivado de ‘caput’, que significa cabeça. Cabeça que é a morada de nossos anjos e demônios. Por exemplo, o homicídio é o crime oriundo do pecado da ira. Mas de todos os pecados, o orgulho é o mais poderoso, pois somos constantemente envolvidos por nossa vaidade, tal qual Eva e Adão foram seduzidos pela serpente. Tentação da qual não nos desvencilhamos. Ao contrário das certezas e afirmações que insistimos em defender, das posturas e posicionamentos soberanos, convicções intransponíveis, somos pela vaidade escravizados, expondo nossas fraquezas e a contradição de nossos posicionamentos.

A vaidade surge na ideia de abdicar o ‘nós’ e tornar-se apenas ‘eu’, tal qual o Diabo em relação a Deus. Um ‘eu’ tão avolumado de ganância e cobiça que, pesado, cai em si. Se destrói. Motivo este da igreja coibir tal pecado. A beleza não poderia ser enaltecida, nem mesmo o amor próprio. Amor apenas a Deus e assim, o ascetismo religioso vigora entre os homens. Os prazeres mundanos devem ser aniquilados em prol da fidelidade e obediência ao Ser Supremo.

Loving Earth/Photopin – fonte: http://info.abril.com.br/

Narciso é a imagem mais emblemática da vaidade do ser humano. Permanecendo imóvel à contemplação ininterrupta de sua face, morreu diante de sua beleza e por sua vaidade sufocante e atormentadora.

São os altos preços que muitas pessoas pagam para satisfazer suas vidas. Buscam preencher-se com aquilo que o espelho revela faltar. Procuram, desesperadamente, curar o que não toleram na imagem refletida. Talvez a sociedade esteja vivenciando uma de suas maiores mazelas, a automutilação. A dismorfia corporal é o transtorno psíquico do momento, pautada por uma preocupação exagerada com um defeito real ou imaginado na aparência física. É o demônio que existe em cada espelho.

Para enquadrar-se aos padrões impostos, nos sacrificamos. Nos baseamos em modelos determinados e efêmeros, buscamos ser referência. A sociedade tornou-se onanista, que reivindica seu prazer, mas para tal, corrompe, distorce, maltrata, agride e açoita.

O historiador Leandro Karnal nos brinda com uma reflexão: ‘por trás de cada virtude existe uma exuberância que nos aproxima do vício’. A crença contemporânea de que a virtude é a vaidade. Eis o que ele denomina como o homem efêmero. Aquele que não suporta sua quietude, provavelmente porque assim terá que refletir sobre a própria vida e, portanto, está sempre atrás do outro. Prefere a falta de tempo, mesmo reclamando disso, do que o marasmo que possibilita as verdades inaceitáveis.

Solícitos, exigimos elogio e atenção. Nas redes sociais somos o retrato da perfeição. Um paraíso de sorrisos e harmonia. Preferimos monólogos a diálogos. Quando o outro fala, aproveitamos o ensejo para falar de nós mesmos. A vaidade é tamanha que facilmente nossa onipotência se revela e não admitimos mais falhar.

Karnal ainda insiste numa outra ideia, de que não consertamos as relações humanas, mas as trocamos porque assim ganhamos originalidade. Dessa maneira, na nova pessoa exploro o quanto sou interessante e instigante. Ele conclui: ‘E ao trocar sapatos, computadores e pessoas que amamos por outras, vamos substituindo a dor do desgaste, pela vaidade da novidade’.

Fonte: serfelizeserlivre.blogspot.com

Alimento novos espelhos, novos reflexos, porque para alimentar minha vaidade, desejo que o outro seja um reflexo meu, me admire e sustente meus caprichos.  A pessoa do passado me mostra o quanto sou desinteressante, desnecessário e irrelevante. Talvez por isso, expressar a própria opinião tenha se tornado um crime.

A opinião contrária a minha é condenável, pura e simplesmente, porque não está de acordo com meu espelho. O soberbo não divide espaço, apropriando-se dele e, para tal, torna-se maioria em detrimento à minoria, supostamente, ignorante e inadequada. O orgulho impossibilita que admitamos que as pessoas sejam diferentes de nós e que de fato elas podem não gostar da gente. Bem que Caetano já cantava, “Narciso acha feio o que não é espelho”.

Compartilhe este conteúdo:

A tristeza pela felicidade alheia: a Inveja

Compartilhe este conteúdo:

Tristitia de alienis bonis
(Tomás de Aquino)

A tristeza em relação às coisas boas dos outros. É essa a definição de Tomás de Aquino para a inveja. Napoleão Bonaparte, por sua vez, costumava afirmar que “a inveja é um atestado de inferioridade”. Ao contrário dos demais pecados, a inveja é um pecado que causa vergonha, que não goza de boa reputação.

Dizer-se guloso não é problema para ninguém. Dizer-se luxurioso é, muitas vezes, motivo para gabar-se. O pecado da ira é, em nossos dias, comum no trânsito, nas relações de trabalho e nas familiares. Mas dizer-se invejoso, ah isso não. Quase nunca admitimos que temos inveja de algo. E quando admitimos, dizemos que é uma inveja branca, o que não existe!

Para Espinosa, “Se imaginarmos que alguém se alegra com uma coisa que pode ser possuída apenas por um só, esforçar-nos-emos por fazer de maneira que ele não possua esta coisa. […] Vemos assim como os homens são geralmente dispostos por natureza a invejar aqueles que são felizes e a invejá-los com um ódio tanto maior quanto mais amam a coisa que imaginam na posse do outro”.

Renato Mezan, em um artigo publicado em Os Sentidos da Paixão, vai nos dizer que a “inveja tem parentesco com o desejo, a agressividade, a astúcia e a sagacidade, o roubo e a rapina; há algo nela que tem a ver com os olhos; seu objeto é indeterminado, variando do ‘qualquer coisa’ ao ‘tudo’”. E, por isso, devemos estar atentos à diferença entre a cobiça e a inveja. Cobiçar é desejar o que os outros têm. E esta pode ser positiva. Agora a inveja nunca é positiva, é sempre tristeza pela alegria alheia, pelo que o outro tem.

Neste aspecto, voltamos à etimologia da palavra, que vem do latim invidia, aquele que não vê. O invejoso não vê a si, só vê os outros. No Inferno de Dante, os invejosos têm os olhos costurados com arame. O que está relacionado com a não visão que a inveja provoca.

Pintada como uma mulher sinistra por Giotto, a inveja tem uma serpente que sai de sua boca e que retorna a ela, penetrando-a pelos olhos, parecendo querer dizer que a energia enviada pela pessoa invejosa retorna sobre o sujeito, cegando-o, envenenando seu olhar, infundindo-lhe um olho mau.

Giotto, A Inveja, Capela dos Scrovegni (Pádua, Itália)

 

Ainda sob o aspecto da visão, não é demais lembrar o “olho gordo” da inveja, que seca, esteriliza e mata. A palavra também quer dizer olhar com malícia. É comumente associada à cor verde, como na expressão “verde de inveja”. A frase “monstro de olhos esverdeados” (green-eyed monster, em inglês) se refere a um indivíduo que é motivado pela inveja. A expressão é retirada de uma frase de Otelo de Shakespeare, cuja personagem Iago é a personificação da inveja.

 

Travamos contato com a inveja nas primeiras histórias e nas primeiras leituras que fazemos. Em Cinderela, dos Irmãos Grimm, a inveja motiva a ação das irmãs ao verem o interesse do príncipe por uma misteriosa moça, elegantemente vestida e usando um sapato de cristal. Elas querem o coração do príncipe. E elas são capazes de cortar o pé para que o sapato sirva.

 

A madrasta encomenda a morte de Branca de Neve por um só motivo: a inveja de sua beleza, que agora é a “mais bela de todo o reino”.

 

Em outro conto, agora o da Bela Adormecida, é a inveja que também motiva a bruxa a lançar sobre a princesa o feitiço do sono: a bruxa não tinha sido convidada para a festa de batizado.

 

 

A inveja está fundada no ódio e a espoliação se faz com agressividade. No entanto, é importante atentar-se para o fato de que, embora esteja ligada à voracidade, a inveja não se confunde com ela: o voraz quer obter algo para si, o invejoso, não. O objetivo do invejoso é tirar algo do, o invejoso não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. É o que ocorre entre Caim e Abel:

1Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Possuí um homem com a ajuda do Senhor.” 2E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. 3Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. 4Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, 5mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. 6O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? 7Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo”. 8Caim disse então a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo.” Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o (Gn 4,1-9).

A representação de Ovídio é peculiar:

A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas […]. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor […]. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício (OVÍDIO, 1996, p. 770 e seg.).

A inveja também é um personagem do anime/mangá Fullmetal Alchemist, que possui cabelos verdes/negros, e o poder de transformar-se em qualquer objeto: Envy (Inveja): É um homúnculo frio, sarcástico, impaciente e piadista. Possui a habilidade de se transformar em diferentes animais e pessoas. No anime, foi criado pelo clone do pai dos irmãos Elric, e tem o objetivo de destruí-lo. No mangá, ele é um monstro reptiliano de oito membros; olhos diferentes e corpos nas costas e na língua, cometeu suicídio após ter sido derrotado por Roy Mustang. Ele aparece na forma de um dragão em um longa da série.

Em Amor à Vida, nova novela das 21h da Globo, Félix (Mateus Solano) cobiça o patrimônio do pai, mas, antes de tudo, inveja a irmã Paloma (Paola Oliveira): o fato de ela ter tudo de seu pai, inclusive a atenção e o amor.

A inveja está relacionada com alguém próximo a nós. Não invejamos a quem está longe, mas invejamos o cunhado, o colega de trabalho, o vizinho. E muitas vezes colocamos a inveja como o motivo de nossa falta: o fato de não ter conseguido um emprego, o fato de não ter conseguido uma vaga na universidade, o fato de não ter conseguido uma bolsa de estudos.

Se postarmos agora no Facebook o seguinte: “Estou muito feliz, fui promovida, estou bem de saúde e amando!”. Que respostas teremos? “Hummm…”, “Sei.”, ou o silêncio. Mas e se postarmos “Luto”, logo teremos uma lista enorme de solidariedade. O invejoso não se reconhece, o invejoso não vê (novamente a etimologia da palavra).

Inveja é a última palavra de Os Lusíadas de Camões:

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.

O poeta, na instância 156, chama a atenção para o fato de os lusíadas (os portugueses) não precisam ter inveja de Aquiles, pois Aquiles fora cantado por Homero e o povo português pelo próprio poeta (Camões). Neste caso, já podemos entender que, de certa forma há uma pitada de inveja de Homero por Camões.

O invejoso sempre almeja o que não tem, tal como Machado de Assis nos mostra no poema Círculo Vicioso:

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

– Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:

– Pesa-me esta brilhante aureola de nume…
Enfara-me esta azul e desmedida umbela…
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

Machado de Assis nos diz que, em vez de pensar-se a si mesmo, a inveja nos dá a cegueira para não enxergar a nós mesmos. Estamos, sempre, buscando o que nos falta, pela comparação com o outro. E sempre haverá alguém pior e alguém melhor do que eu.

Para finalizar, uma ideia sobre a inveja está ligada à ideia de justiça social. Aquilo que deve ser distribuído é aquilo que eu não tenho, então deve ser distribuído. E ainda: quando eu não tenho nada, defendo que tudo seja distribuído. Enfim, não é nosso foco, mas é para pensar.

 

Bibliografia:

ABREU, A. S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. São Paulo: Ateliê, 2001.

ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BÍBLIA. Versão eletrônica 1.0, 2005.

FELDMAN, E.; DE PAOLA, H. Uma investigação sobre o conceito de inveja. Revista Brasileira de Psicanálise, Associação Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 32, n. 2, 1998.

FIGUEIREDO, Maria Flávia; FERREIRA, Luis Antonio. Olhos de Caim: a inveja sob as lentes da Linguística e da psicanálise. In: Sentidos em movimento: identidade e argumentação. Disponível em: http://publicacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestradoEmLinguistica/article/viewFile/417/344, acesso em 25 de maio de 2013.

KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MEZAN, R.. A inveja. In A. Novaes. Os sentidos da paixão (pp. 117-140). São Paulo: Companhia das Letras.

Compartilhe este conteúdo:

Luxúria: Viagem nas asas da liberdade dos desejos mais profundos

Compartilhe este conteúdo:

 

A vida, meu amor, é uma grande
sedução onde tudo o que existe se seduz.
Aquele quarto que estava deserto e por
isso primariamente vivo.
Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido
.
Clarice Lispector

 

 

O desafio para retratar a Luxúria comove os sentidos e provoca sede na alma do escritor. Escrever se transforma em arte de movimentos sinuosos e dotados de tanta sensibilidade que impulsionam os hormônios em direção da corrente sanguínea em busca do proibido prazer alcançável, ilimitável, mas, nem sempre, perdoável.

Nesse sentido, arquejam as doses extras de desejo para descrever esse pecado capital, tão intempestivo e avassalador, que não se limita a citações absortas nos moldes convencionais da descrição e da razão. Propõe-se, assim, que sejam esquecidas as regras e as restrições cotidianas.

Para uma compreensão mais efetiva, sugere-se o cenário que será palco para a representação das tentações mais íntimas. Imagine-se em um quarto com cortinas púrpuras e decoração escarlate. Sinta o sussurrar do vento que penetra pelo ambiente e desarruma os lençóis de seda da cama suntuosa. Sinta o gosto do vinho tinto que está servido na taça do mais fino cristal sobre a mesa. Deixe-se ser tocado pela maciez das pétalas vermelhas das rosas que decoram o chão. Permita-se inalar o aroma das paixões proibidas que vaga no ar.

 

Autorize-se a vivenciar o excesso dos prazeres desse texto. Feche os olhos e sinta prazer em ser invadido pelas palavras que estão vestidas com o vermelho dos arroubos das paixões que desfilarão pelas folhas do papel com a boca sedenta  pelo prazer desenfreado e lascivo em descrever a Luxúria. Aceite o desafio de se aproximar da Luxúria.

Definir a Luxúria remete, obrigatoriamente, à noção de pecado. Mas, afinal, o que é PECADO?

 

O pecado é concebido como uma disfunção da natureza humana. Assevera-se que é inerente ao homem. Porém, é relevante informar que, somente com a Súmula Teológica de São Tomás de Aquino, séc. XII, os sete pecados capitais, Gula, Luxúria, Avareza, Ira, Soberba (Vaidade),Preguiça e Inveja, foram oficializados pela Igreja Católica. Etimologicamente, pecado vem de caput (cabeça). Logo os pecados capitais são as cabeças dos demais pecados.

A Luxúria, na conotação sexual, opõe-se ao sexo para propagação da espécie, visto que satisfaz somente suas necessidades. Por isso, possui status relevante e inquisidor no meio pecaminoso, pois representa o prazer pelo excesso, compulsão por algo ou alguma coisa. Ouso afirmar que substancia o mais carnal dos pecados. E, partindo do pressuposto de que a antítese ALMA x CARNE consiste em recorrentes temáticas nas paradoxais reflexões humanas, compreende-se que a Luxúria possui idade que remota à essência das contradições humanas.

Destarte, torna-se notório a distinção entre Sexo e Amor. Para fundamentar essa distinção remete-se aos preceitos preconizados na Bíblia.

Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne.
Gálatas 5:16

Cada um, porém, é tentado pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e seduzido. Então esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ser consumado, gera a morte.
Tiago 1:14-15

Compreende-se que o Amor envolve, enaltece, valoriza e se compromete com a pessoa amada. Logo, o sentido de Amar reside no outro. Contudo, a Luxúria é egoísta, somente seus sentimentos e ambições são importantes. Por ensimesmar-se, não admite compromissos. Sua subjetividade, sentimentalismo egocêntrico a tornam autossuficiente. Talvez, por isso tão temida e execrada. Afinal, a Luxúria é guerreira atroz e tirana que enfrenta nas lutas da existência seu maior rival: o Amor puro, casto e fiel. Portanto, Luxúria e Castidade são opostos de um ser, como as duas faces de uma moeda. Admita-se, cada face com seu encanto peculiar. Cabe a cada um escolher a face que mais lhe seduz.

 

A Luxúria não se esconde, ela tem iniciativa. Por isso, esse pecado capital, às vezes, aparece acompanhado da Gula. Segundo São Tomás de Aquino, a Luxúria remete aos prazeres sensuais. Ele ressalta que tanto a comida quanto a relação sexual tem como finalidade a conservação da vida, por isso o não atendimento a essa finalidade implica PECADO.

 

 

Embora tão contundente e desafiadora dos preceitos divinos, a Luxúria, desde o pecado original, sempre protagonizou ações dignas de serem descritas. Remetamo-nos à era das Cavernas. Quem incitava o sexo instintivo e infielmente descompromissado entre os primitivos? A Luxúria!

Seguindo o curso da história, a razão destes comportamentos tão distanciados da intimidade do AMOR, condicionou a compulsão pelo sexo desmedido, desregrado onde se busca somente a exaustão pelo prazer. E, em se tratando de prazer imensurável, citam-se as festas proporcionadas pelo Deus grego Baco, o Deus do Vinho. Esses bacanais de prazer eram realizados em homenagem à Luxúria.

A Luxúria não segue doutrinas, ela define e nunca acata normas consensuais. Por isso, manifesta nos seres, o desejo desmedido e obcecado pelo prazer. Devido à tamanha empáfia, a Luxúria sempre foi laudada em versos e prosa. Desde Safo (630-560 a.c.), poetisa da Ilha de Lesbos cujos poemas sobre o Amor sexualmente emocional e platônico entre elas e outras mulheres que se propagaram no decorrer dos séculos.

 

A Luxúria é clássica quando se vê retratada na obra “Os Lusíadas” de Camões, no episódio intitulado “Ilha dos Amores”. Nessa ilha, povoada de ninfas e presente da Deusa Vênus aos portugueses, Tétis, a  filha de Nereu, encontrou na Luxúria sua companheira inseparável para o exercício de seus atributos inigualáveis na arte da sedução.

 

A temática relativa a Luxúria encanta também a contemporaneidade. Para ratificar essa afirmação, contempla-se a obra ‘Lucíola” de José de Alencar. Afinal, em pleno romantismo na literatura, a personagem Lúcia, cortesã sedutora e caprichosa,  alude a Lúcifer, dado o fascínio e leviandade dos seus encantamentos no ofício de cortesã mais cobiçada e desejada do Rio de Janeiro. Ou seja, a Luxúria está presente, inclusive, nas obras idealistas do Romantismo.

Cumpre citar que a Luxúria enquanto desejo obsessivo possui relevante destaque também nos contos da literatura infantil. Afinal, nas compulsões desmedidas pela busca da beleza eterna e do poder, as bruxas dos contos de fadas são motivadas pelos devaneios da Luxúria.

 

Se a Luxúria invade todos os tempos e espaços, ela deleita-se na modernidade. Fato comprovado nas obras de Nelson Rodrigues, cujo enfoque central são as motivações que a Luxúria possibilita. Dessa forma, apimentando de forma maliciosa o enredo de suas narrativas. Como exemplo, cita-se a obra “O Beijo no Asfalto”. Pois quando Aprígio mata Arandir, seu grande amor, com um tiro. Com certeza, a Luxúria das paixões impossíveis o incitou e ajudou a puxar o gatilho.

 

A Luxúria serve de inspiração para todas as manifestações textuais. Asseveração comprovada na observação dos quadrinhos de Carlos Zéfiro, considerados “catecismos” para descrição da Luxúria.

 

Então, questiona-se o porquê da Luxúria embora tão proibida seja tão sedutora e presente no nosso cotidiano?

Talvez a resposta consista no fato de que a Luxúria não é somente maldita, mas metódica, séria, imprevisível e destemida. Como já defendia São Tomás de Aquino, o sexo não é pecado desde que tenha por fim a procriação. Sendo assim, a Luxúria que reside, também e de sobremaneira, no desejo sexual obsessivo, encontra nessa necessidade humana, ambiente propício para sua morada eterna.

Seria essa a razão da sua contínua tentação?

 

 

Freud asseverou acerca das zonas erógenas oral, anal, genital do desenvolvimento do sujeito. Sendo a Luxúria sábia não duvide se ela possuir um mapeamento dessas particularidades intrínsecas ao comportamento humano.

Diante do exposto, a cautela é fundamental para se lidar com a Luxúria. Segundo Irvin D. Yalom, em sua obra “Quando Nietzsche Chorou”, o personagem de Nietzsche não condena o sexo, mas adverte que o sexo desmedido torna-se dominador, pois corrompe o Amor, tornando-o indesejável. Nesse sentido, a Luxúria condiciona  o isolamento do ser. Mas como isso é possível? Muito simples, a Luxúria escraviza. Ela invade a alma, devorando-nos em um processo de alienação do mundo real.

 

 

Na finalização dessa deliciosa e tentadora abordagem sobre a Luxúria, cabe a reflexão “Se a Luxúria destrói padrões do cotidiano, esvazia-nos pela obsessão, por que, mesmo assim, ela é objeto contínuo no despertar de nossos desejos?”

O demônio Asmodeus, capeta da Luxúria, talvez tenha a resposta. Então, como não dialogamos , ouso afirmar que a sedução pela Luxúria reside no inegável fascínio humano pelo alcance do gozo do prazer absoluto. E nessa busca incessante, deparamo-nos com o ortodoxo enigma da vida “Qual o limite para o prazer? A Luxúria tem a resposta: “Nenhum”.

Cabe a cada um de nós decidir se acatamos ou não essa resposta. Afinal, a Luxúria seduz, domina, impõe e escraviza, mas nós decidimos o limite de nossas ações. Contudo, saiba que a Luxúria estará sempre à espreita aguardando pela sua curiosidade de conhecê-la mais intimamente. Caso isso venha a acontecer, ela chegará nas asas da liberdade em um convite atraente e leviano para o deleite dos desejos proibidos e mais profundos que não ousamos sonhar em nossa vã filosofia.

O convite está feito. A Luxúria aguarda, na sua calma sedutora, sua decisão.

 

 

Citações
Bíblia sagrada.
Quando Nietzche chorou. Irvin D. Yalom
A castidade impossível a Luxúria Maldita. Luiz Felipe Ponde.
Os Lusíadas. Luís Vaz de Camões
Lucíola- José de Alencar
O beijo no Asfalto – Nelson Rodrigues
Quadrinhos de Carlos Zéfiro.

Compartilhe este conteúdo:

Comer não é pecado

Compartilhe este conteúdo:

“(…) nem só de pão viverá o homem (…)”(Mateus  4:4)

 

Comer não é pecado. Definitivamente, comer não é pecado. E nem faz mal a saúde. O que faz mal, e isso nossas avós já diziam, é comer demais. E olha que, no meu caso, isso era dito há anos, muito antes dos modismos atuais que ditam formas esqueléticas para mulheres e barriga tanquinho para os homens. Lembro-me da dona Doraci, minha avó paterna, marcando sua opinião,lá pelos anos 1980, com um de seus ditados: “– Come demais seu pateta, amanhã se põe de dieta”.

De simples prevenção familiar, carinhosa e cuidadora, o alerta ao comer demais se converte, em termos religiosos, em uma atenção ao pecado da gula. Pecado este que assume diferentes formas e conotações e acabam extrapolando a preocupação inicial com o “comer demais”. O guloso não quer somente mais comida, ele quer “mais”. E o comer mais (muito mais) é só uma demonstração visível do seu querer.

E o que mais o guloso quer? Dinheiro, poder, status? Não, pois aí estaríamos falando de outros pecados, como a ganância e a vaidade. O guloso não quer “pra fora”, ele quer “pra dentro”. Ele quer algo que possa ser ingerido, engolido, deglutido, absorvido; algo que passe a ser seu sendo parte de seu corpo, de seu ser. Ele quer mais comida, sim, mas também quer, busca, precisa, anseia, por tudo que complete aquele vazio impaciente que parece ser maior do que ele mesmo.

Foto: Irenides Teixeira

“Muitos adultos encaram o alimento sólido ‘como se’ ele fosse líquido, a ser engolido em goles. Tais pessoas são sempre caracterizadas pela impaciência. Exigem a satisfação imediata de sua fome – elas não desenvolveram o interesse em destruir alimento sólido. Sua impaciência está combinada com a gula e a incapacidade para obter satisfação (…)” (PERLS, 2002).

Homer Simpson (personagem criado por  Matt Groening)

Esta insatisfação, no guloso, transforma-se naquele apetite voraz, no desejo por aquele prato especial, no ato de comer sem se dar conta do que está sendo engolido (sim, engolido, pois não há degustação na gula). Não há prazer, ainda que a busca pelo prazer seja uma das características do guloso quando busca se satisfazer à mesa. Essa satisfação não acontece pois o guloso não tem a paciência necessária para esperar que o que foi engolido seja digerido e aplaque sua fome. “Para compreender a estreita relação entre gula e impaciência, basta apenas observar a excitação, a gula e a impaciência do bebê quando ele bebe. (…) Quando os adultos estão muito sedentos, se comportam de forma semelhante, sem ver nada errado nela” (PERLS, 2002).

O guloso é sedento não somente de comida. Ele busca por atenção, afeto, carinho. Ele quer se encher daquilo que lhe faz falta, ainda que possivelmente nada lhe falte; ele não tem a paciência para esperar e poder observar que sua barriga está cheia e sua fome foi aplicada. Ainda que sua barriga, em muitas das vezes, seja sua alma e sua fome seja o nome dado à sua carência.

Daí se desprende que comer demais não é, necessariamente, sinônimo de gula. O mesmo pode-se dizer da busca pelo prazer à mesa, quando nos deliciamos com os sabores de pratos bem elaborados, quando percebemos cada um dos detalhes de sua elaboração e apreciamos os ingredientes que lhe conferem seus sabores tão específicos. Isso não é gula.  “O beija-flor, prazer dos nossos jardins, não é idealista, não beija flores. Devora cinco vezes o peso do seu próprio corpo por dia. Isto não é gula. Gula é o prazer de devorar, o puro devorar pelo devorar” (FLUSSER, 2006).

E é a esse “devorar pelo devorar” que a Bíblia chama a atenção quando alerta sobre os males da gula. “(…) encoste a faca à sua própria garganta, se estiver com grande apetite. Não deseje as iguarias que lhe oferece, pois podem ser enganosas. Não esgote suas forças tentando ficar rico; tenha bom senso! As riquezas desaparecem assim que você as contempla; elas criam asas e voam como águias pelo céu” (Provérbios 23:2-5).

Ao aproximar o “grande apetite” da “tentativa de ficar rico”, a Bíblia não relaciona somente dois pecados capitais.  Ela provoca a percepção de que tanto um como o outro representam o desejo de ser mais, de ter mais, de aparentar mais; desejo esse que por vezes está mais ligado ao anseio de suprir carências pessoais, internas, do que realmente atender necessidades reais. Até porque, lembrando, comer não é pecado, como também não o é desejar ser rico. O pecado, e também a patologia, está quando um e outro não se bastam e viram obsessão. Quando perdemos o foco de nossas vidas e nos deixamos levar pelas nossas obsessões perdemos também o comando de nossa própria sanidade. “Pois os bêbados e os glutões se empobrecerão, e a sonolência os vestirá de trapos” (Provérbios 23: 21).

Nesse momento, “o destino deles é a perdição, o seu deus é o estômago e eles têm orgulho do que é vergonhoso” (Filipenses 3:19). Nesse momento, deixamos de ser nós mesmos e passamos a ser o que queremos. Aí pecamos, segundo a Bíblia. Aí adoecemos, em nossa perspectiva mais terrena.

Quando a gula se torna a mãe de todas as nossas ações é porque desistimos de lutar pelo que desejamos e passamos a desejar o que está mais à nossa disposição. Deixamos de trabalhar para atingir nossos objetivos com nossas próprias mãos e aceitamos o que nossa mente nos propõe. Flusser (2006), de forma poética, lembra que “a vida em sua brutalidade luxuriosa não dispõe de órgão para a gula. Esse órgão é mental, é a mente em oposição e como sujeito realizador da natureza. Todas as goelas de todos os tigres, todas as pinças de todos os escorpiões, todos os braços de todos os pólipos são instrumentos inocentes e inofensivos, se comprados com a mente em sua oposição à natureza e em sua ânsia gulosa de transformá-la em ‘realidade para a mente’”.

Mas se a gula é um pecado tão, digamos, pessoal e se o maior mal que a gula faz é ao próprio “pecador”, por que tanta importância lhe foi dado ao ponto de torná-la um dos pecados capitais? Scliar (2005) nos aponta as razões históricas para tal: “A ascensão do cristianismo, na Europa, coincidiu com um período de pobreza e fome. A vida era curta, brutal, desalentadora; a única coisa que sustentava os seres humanos era a esperança de uma recompensa no Céu. Em contrapartida, havia o Inferno para punir os pecados. Quais os pecados? Uma lista foi elaborada, e ali estava a gula. Por uma razão facilmente compreensível: embuchar-se de comida em meio aos famintos era, no mínimo, um ultraje”.

Scliar também descreve que a gula se aproxima de outro pecado por uma questão, assim, anatômica: “(…) diferente de outros pecados, a gula tem uma expressão visível: a pança. Os doutores da Igreja não deixavam de chamar a atenção para a proximidade entre o ventre e os genitais: a gula levaria à luxúria, à prática pecaminosa do sexo”.

Ah, a pança e a tendência geral de ligar a gula à obesidade e de transformar o gordinho ou a gordinha em seres pecaminosos que, aos olhos de muitos, além de gulosos ainda conseguem ser preguiçosos e irresponsáveis. Nem tanto ao Céu nem tanto a Terra. Nem todo obeso é guloso, nem todo guloso é obeso. Vale lembrar que muitos obesos assim o são por muitos motivos além de um constante ataque desenfreado aos pratos. Aspectos fisiológicos podem estar relacionados ao aumento de peso que foge ao controle.  Entretanto, quando existem elementos psicológicos que levam o obeso a alimentar-se sem controle, tem-se aí aquela situação anteriormente descrita em que a gula se apresenta como patologia ou como expressão sintomática de algo mais profundo.

 

 

De qualquer forma, ao nos depararmos com aquele desejo incontrolável por aquele prato que sabemos que não precisaríamos atacar, percebemos que Roberto Carlos é que estava certo ao indagar: “será que tudo o que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda?”
Fontes:

BÍBLIA SAGRADA

FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2006.

SCLIAR, Moacyr. O olhar médica: crônicas de medicina e saúde. São Paulo: Ágora, 2005.

PERLS, Frederick S. – Ego, Fome e Agressão: uma revisão da técnica e do método de Freud. São Paulo: Summus Editorial, 2002.

 

Compartilhe este conteúdo:

L’anima Dannata: A Ira no Sujeito Pós-Moderno

Compartilhe este conteúdo:

 

E o sujeito confuso, atordoado, recorre ao intelecto para compreender a razão de tanto ódio e explosão desmedida ao ser acometido por pensamentos banais que, longe de estarem à altura de gatilhos justificadores de cólera, nele, são como faísca em paiol. Animais, supostamente menos evoluídos, têm explosões raivosas quando necessidades básicas são ameaçadas: fome, sede, reprodução, território, perpetuação da espécie e a própria vida… Mas, o sujeito-homem não. Desenvolveu o cérebro há milhões de anos, passou a vagar pela Terra, fazendo escolhas e protelando gratificações instintivas para que mais tarde pudesse construir o que chama de civilização. Sem que tivesse refreado impulsos mais odiosos (e desejosos), seria impossível sua sobrevivência, pois seguramente iria imperar a vontade do mais poderoso, com isso, ou se destruiriam todos, ou seriam esmagados por espécies mais fortes. A cria humana é sem dúvida a mais dependente e frágil de todas. Enquanto tartarugas ou jacarés logo após nascerem se lançam sozinhos ao mundo, ela depende por longos anos de cuidados intensivos e formadores do penoso processo de humanização. Vale dizer com isso que todos nascem bichos e aos poucos vão incorporando a humanidade em sua constituição.

O sujeito sabe no seu íntimo que a condição básica para a civilização continuar a existir é o desejo coletivo permanecer preponderante ao individual. Mas, sabe também que o preço cobrado por isso é alto, isto é, exige que impulsos vindos do interior da mente, desejosos por realização, sejam adiados, refreados e modificados (FREUD,1980). A humanidade paga caro por ainda habitar o planeta sob a bandeira da dominância: o custo de que o indivíduo sempre se submeta ao grupo. Assim, ao adiar a gratificação, protelar a realização do desejo e derivar impulsos hostis para finalidades mais nobres, criou-se não só a possibilidade de viver em comunidade com maior justiça e divisão, mas também os inúmeros problemas decorrentes. Por um lado, se ao invés de matar quando se bem deseja, esganar, trucidar ou ferir, se cria, por exemplo, uma ONG em prol dos desvalidos ou leis de proteção à infância; por outro lado, ao invés de saciar-se e chafurdar-se na lascívia e volúpia da promiscuidade, pedofilia, estupro ou incesto, em roubos, assassinatos etc., surgem os sintomas e as desordens mentais que são tentativas de proteger o sujeito a qualquer custo de inclinações dessas naturezas (FREUD,1980). A civilização, como a conhecemos hoje, só se sustenta através de leis, normas, proibições e tabus, possibilitando limites e convivência, mas também criando fantasias, projeções, medos complexos, divindades poderosas, defesas contra forças ameaçadoras que vêm de fora e, principalmente, contra aquelas que vêm de dentro do próprio homem…

Voltando ao sujeito em questão, civilizado, pós-moderno, capitalista, agora, neste exato momento em que rumina sobre sua condição existencial, em algum lugar do planeta, sente o coração subitamente queimar tal fornalha, enquanto seus lábios se cerram.

 

 

A respiração é ofegante e ele hesita tentando controlar o impulso odioso para não lançar o veículo contra o algoz que lhe ultrapassou a frente de súbito, logo após o semáforo abrir. Decide se emparelhar com seu novo desafeto e na menor olhada de repreensão, sarcasmo, escárnio ou revide, explodirá com certeza toda a ira, agora revestida de ferro e lata contra o infeliz que cruzou seu caminho. O peito, no entanto, se congela quando vê ao volante daquele veículo uma cabecinha branca, sulcos profundos na face, óculos grossos, lutando com expressão assustada pra compreender o caos da civilização e o trânsito frenético que há mais de setenta anos não existiam em sua vida. Uma garotinha no banco de trás sorri e abraça o avô ao volante, acenando para o sujeito sem saber da iminência de uma possível desgraça. Naquele instante, seus sentimentos se repolarizam e logo dão lugar ao buraco da culpa, do remorso, da estupidez e do desejo de se redimir. Na hora, sentindo-se pequeno recorre novamente ao intelecto, lembrando-se que o ódio só surge quando a razão sucumbe à emoção (Sêneca, 2001), que o amor deverá ser mais forte para que possa haver reparação (KLEIN e RIVIERA,1975). E tentando, por fim, justificar sua irracionalidade evoca Schopenhauer (2001), que afirma ser estúpido e vulgar alimentar sentimentos assim…

O momento de desatino vai então amenizando, o sujeito se retrai ao ergástulo solitário de sua alma e se dá conta que vive num mundo intolerante, desigual, onde poucos têm muito e muitos têm quase nada, fazendo acirrar o ódio fundamentalista e religioso entre os povos. Lembra-se que vive repleto de tecnologia e aparatos que trazem conforto, bem-estar, luxo e status, mas, como disse Zygmunt Bauman (2008), em nenhuma pesquisa se comprovou que ganhar mais, ser rico, ter mais coisas, traga felicidade. Queria naquele momento o sujeito abarcar o conceito de felicidade, congelá-lo e jamais permitir que saísse de dentro dele. Queria aprisionar a felicidade, ah, a felicidade! O que é essa palavra tão perseguida e tão pouco contemplada por homens e mulheres?  Já recorreu antes a momentos de ócio, contemplação e à tentativa de um dolce far niente pra ver se a felicidade estava lá, mas fracassou. Não se desligou do celular, do laptop, da necessidade de informação e preenchimento do vazio. Tempo pra ele vale dinheiro, como se diz no jargão popular. Que tristeza, este sujeito detesta sua própria companhia.

Mesmo assim, curioso, naquele momento em que estava em seu carro, sem saber como, nem por que, controlou de fato os impulsos de ira e acabou se sentindo bem com isso, deixando o ancião, que lutava por sentido num mundo que o exclui sem piedade, ir embora com a pequenina que nada sabia sobre a vida. Triunfante, descobre vitória efêmera da cultura sobre o instinto, do amor sobre a ira, da conciliação sobre a discórdia, do coletivo sobre o individual. Jura, diante do espelho retrovisor, que doravante será cristão verdadeiro e que seu amor pelo próximo será como amar a si mesmo… Mas, tudo é fugaz nele, afinal, é um sujeito deveras insaciável. Ao proferir as palavras de amor cristão, se lembra da improbabilidade das mesmas nos escritos tristonhos de Freud (1980)  no final da vida quando este alega ser um preceito narcísico e muito pouco razoável para ser exercido. Isso é demais pra ele, não dá…

Mas, seja como for, esse sujeito é pós-moderno, narcisista, competitivo, capitalista e racionalizador. Sucumbirá, a qualquer instante, na impaciência, tédio, falta de sentido e viverá o tempo todo à espera de um acontecimento grandioso e de um lugar que não seja os não-lugares de seu cotidiano enfadonho. Logo, fica entediado com seu trabalho, sua parceira, suas amantes, amigos, com a vista da janela de seu quarto… Passa a não suportar a mobília e os quadros que imitam arte pendurados na parede, comprados em shoppings da periferia. Não mais tolera seus pensamentos, nem ele mesmo. Dá-se conta da finitude da vida, das teorias tacanhas que tentam explicá-la e dos pastores tele-evangélicos multimilionários, mercadores de almas que engordam contas bancárias e roçam volumosas panças suadas nas coxas de generosas meninas que os acompanham em orgias secretas, tudo em nome do Senhor: Aleluia! A ira cresce e o aprisiona em si mesmo novamente. Adolf Hitler, Torquemada e Genghis Khan, o que teriam em comum com Madre Tereza de Calcutá e Mahatma Gandhi? Segundo ele, em que pese a heresia da conclusão, apenas a mudança de direção no vetor do ódio, afinal crê de verdade que amar profundamente é odiar com extrema conveniência.  Não tem noção, coitado, que se tornou novamente um depositário de ódio latente. Ódio pelo que não sabe, pelo que deseja e não sabe que deseja, por frustrações consecutivas…

 

 

Este sujeito sabe muito bem que não teve ‘maternagem da boa’ no início da vida. Esta sim iria aplacar seus temores de bebê e criaria no cérebro conexões sinápticas profundas de paz, tranquilidade e superação. Se tivesse sido lambido e embalado, agora adulto, essas sinapses disparariam gatilhos de uma memória emocional reconfortante diante de perigos e angústias. Só lhe restou então chorar quando lembrou Paul Mccartney descrevendo a exata passagem do funcionamento mnêmico emocional na música Let it Be, evocando a doce voz de sua mãe, falecida há mais de dez anos, mas que estava ali gravada em suas entranhas, e no momento necessário o reconfortaria: ”When i find myself in times of trouble, mother Mary comes to me, speaking words of wisdon, let ib be, le ot be..” – algo como: “Quando me encontro em tempos difíceis, mãe Maria, vem até mim falando palavras de sabedoria: deixe estar, deixe estar…”  Pobre sujeito, sente não ter tido estes registros de acolhimento fixados no inconsciente, pois ele é, definitivamente, fruto da sociedade pós-industrial onde tudo é mercadoria barata e as famílias tradicionais se esfacelaram junto com os papéis parentais esvaziados. No lugar dos pais surge agora uma nova classe de especialistas que ‘ensinam’ como criar filhos (LASCH,1979). A maternagem passa a ser um conceito cada vez mais poético e passado, não aplicável às mulheres contemporâneas cuja maternidade se torna um fardo ameaçador à independência penosamente conquistada. Assim como ele, muitos se tornaram esquizoides, esquisitos com pouco investimento libidinal no corpo e na mente. Ele é um sujeito que cresceu aprendendo a ser individualista e ego centrado para sobreviver. Seus investimentos amorosos são assim também, cada vez mais pautados na lógica mercadológica do uso e descarte. Vive paixões fulminantes, não amores construídos e edificados na tolerância e superação. Quanto mais virtuais, menos chatos, melhor (BAUMAN, 2008).

E de novo, após refletir com dureza, o alívio e aquela pseudo-paz se esvaem por completo, está prestes a se transformar numa bomba ambulante. Bastará um sorriso, uma palavra, uma fechada no trânsito, uma contrariedade no trabalho para sentir ódio, ira, cólera. Os seus dias já não têm grandes emoções, a rotina é surda e o tempo feito de pontos não lineares, sem passado e futuro, só presente. Não há poesia ao lembrar-se da infância, dos amores pretéritos, dos amigos e suas descobertas fantásticas… Concebe o tempo como se fossem pontos fragmentados (um tempo pontilista, segundo Bauman). Nele, cada momento é separado sem conexão histórica com o sujeito. Vive-o intensamente, pois não tem mais que a duração daquele único instante. A junção destes pontos é nada menos que a sua própria vida: o todo é só uma somatória das partes.  Sendo assim, precisa de emoções frenéticas que abrilhantem o aqui e agora, é só o que importa. Frequenta bares com regularidade, bebe mais do que devia e compra compulsivamente, pois deseja muito, ainda que nunca saiba o que é e jamais se satisfaça com nada. Abastece sempre um poço desejante sem fim com aparelhos eletrônicos da moda, até que novos modelos desses mesmos aparelhos lhe evoquem a obrigação de troca e dispensa dos anteriores ao lixo, pois só assim crê encontrar felicidade e aceitação social, esta última, tão imprescindível quanto o ar que respira. Aparelhos pra ele são divindades em si. Não importa a que se prestam ou o quanto vão lhe servir. O importante é que os tenha e sejam  modelos novos com durabilidade, claro, já pré-datada. Ali está a felicidade tão veiculada pela sociedade espetacular. Se nos anos quarenta do século vinte as propagandas vendiam a imagem de um produto confiável, durável e muito útil, hoje, ela é apenas ligada à imagem de uma família ou alguém feliz, realizado e saudável. Basta ter o produto e pronto, é felicidade na certa! Isso é o que nos ensina o simulacro ditador da mídia, hábil em manipular o desejo insaciável dos seres humanos com mensagens fantasiosas e sem sentido. Afinal, quem de sã consciência vê qualquer relação em comer margarina de tal marca no café da manhã como condição para conquistar a moça bonita e ser feliz? A sociedade consumista nos promete a felicidade como nunca antes foi prometida por cultura alguma. E esta felicidade só pode existir no consumismo (BAUMAN, 2008).

O sujeito então, para evitar novas erupções coléricas, tentará imaginar maneiras de fugir da inquietude que jamais sacia. Assume novos empregos, residências, lugares, promiscuidade, álcool, viagens, drogas, terapia, carros de luxo, parceiros ou parceiras, doutrinas e teorias… Quando junta tudo por algum tempo, parece funcionar, e ao acontecer isso sai às ruas, efusivo, agitado, sorrindo (mais ansioso que feliz). Raiva agora só se temer que alguém roube dele essa sensação tão prazerosa. Sujeito desconfiado, autorreferente. Os poucos amigos se preocupam e juram que ele é bipolar ou possua qualquer outro diagnóstico tão comodamente criado às pencas para denominar a angústia do homem contemporâneo. Se o sujeito, aliás, desejar, encontrará tantos quanto queira. Basta ir a algum mentecapto representante da nova ciência da mente que se prostituiu e trocou os predicativos da subjetividade pelos predicativos da biologia (LIMA, 2005). Terá diagnósticos e drogas de qualquer natureza para seu bel-prazer e para o deleite de grupos  farmacêuticos multinacionais.

Numa tentativa final de compreender seu furor, crê que tudo se explique por viver numa época em que as utopias terrestres caíram por terra e não há mais qualquer discurso de contestação que aplaque o desamparo, sendo o consumismo extremo, o fundamentalismo e outras posturas radicais, os novos continentes para essa angústia (KEPEL, 1996). Mas, acaba desistindo de pensar assim, pois sabe que ao longo dos tempos a ira, o ódio, sempre estiveram presentes, ainda que com outras roupagens, coloridos e manifestações. Ele se retrai e vê sua insignificante condição humana que ao tomar consciência da finitude, teve um buraco negro aberto na alma que jamais se fechou. Dá-se conta de que vive numa sociedade de aparências espetaculares onde imagens midiáticas são a própria essência da vida (DEBORD, 2006)…

 

Bem, mas chega o dia então que este sujeito acorda no seu novo quarto em meio a uma nova família, nova amante, novo cenário, nova mobília e  novos quadros na parede. Vira-se de lado, puxa o pigarro viscoso da garganta, acumulado após tantos anos de tabaco e, sem ter onde cuspir, engole tudo. Leva a mão ao lado, no criado-mudo, toma um último gole de vodca e desliga a TV que repetia o menu do DVD pornô durante toda a noite enquanto dormia num mesclado de vodca com diazepam. Este DVD é o protótipo da compulsão à repetição que é sua vida esvaziada de sentido. Não tarda e logo tem o mesmo sentimento de fastio em relação à luz do dia que se infiltra pela janela do quarto. Tomado por angústia e raiva crescentes daquela condição se repetir, sente que é hora de mudar com a máxima urgência, pois de certo deve haver algo, em algum lugar, que o faça realmente feliz…

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. A vida para o Consumo. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Projeto Periferia, 2003. Disponível em www.geocites.com/projetoperiferia). Acessado em 02/05/2013.

FREUD, Sigmund. O Mal Estar na Civilização (1930). Rio de janeiro: Imago,1980. (edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v.21).

KEPEL, Gilles. A Revanche de Deus. São Paulo: Siciliano, 1996.

KLEIN, Melaine. & RIVERA, Joan. Amor, ódio e reparação. Rio de Janeiro: Imago,1975.

LASH Christopher. A Cultura do Narcisismo: A vida americana numa Era de
Esperanças em Declínio. Rio de janeiro: Imago, 1979.

LIMA, Rossano Cabral. Somos Todos Desatentos? O TDAH e a Construção das Bioidentidades. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2005.

SÊNECA. Medeia. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,
2011.Disponível em https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/bitstream/123456789/69/1/medeia.pdf. Acessado em 03/05/2013

SHOPENHAEUR, Arthur. A Arte de Ser Feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Compartilhe este conteúdo:

Avareza: um pecado acumulativo que afeta as emoções

Compartilhe este conteúdo:

Dinheiro na mão é vendaval
Na vida de um sonhador
Quanta gente aí se engana
E cai da cama
Com toda ilusão que sonhou
E a grandeza se desfaz
quando a solidão
É mais…

(Pecado Capital – Paulinho da Viola)

I. A semente do PECADO

Não é pelo Jardim do Éden que esta história começa (tampouco termina). Se há um ponto de partida interessante para se falar do sagrado, ou mesmo de religião, esse ponto é desde quando e como os preceitos religiosos católicos intensificaram e atravessaram gerações, ao constar-se que tal religião perdura fortemente até os dias de hoje e introduziu a noção dos 7 Pecados Capitais, tratados nessa série.

Os preceitos religiosos católicos, por vários vieses, foram-se adentrando na relação humana com o pecado. Quando a confissão pública perdeu sua mágica, pois a época da Idade Média já previa uma leve alteridade ao antropocentrismo, a noção de confissão privada ganhou terreno através da consciência do pecador. O pecador, portanto, devia reavaliar suas ações, julgá-las através de sua consciência, arrepender-se das ações “erradas”, confessá-las às autoridades (nesse caso, os padres) e pagar as penitências impostas por essas autoridades, de acordo com a gravidade do pecado.

Para o Catolicismo, o pecado representa uma prisão ou falta de liberdade, bem como a incapacidade que alguém tem de agir conforme a razão. O homem em pecado é tido como o homem escravo do diabo.

De acordo com Ferreira (1999) pecado significa “transgressão de preceitos religiosos”, “vício”, “culpa”, “falta” e “demônio” (FERREIRA, 1999, p.411).

No Catolicismo, a origem do mal está no homem. O mal é fruto do pecado e ocorre através do livre-arbítrio dado por Deus ao homem que, infortunadamente, faz uma má escolha. A partir disso, Rocha (2011) destaca que o auge da confissão privada trouxe consigo a distinção de dois pecados:

“[…] o primeiro seria aquele que o homem traz consigo sem conhecimento ativo, cuja punição é a perda de visão de Deus; já o segundo que, dependeria do livre-arbítrio, poderia acarretar a punição eterna, no Inferno.” (ROCHA, 2011, p.10 apud LE GOFF, 1987: 276).

Com isso os Sete Pecados Capitais surgem oficialmente no Catolicismo no século XIII da Idade Média:

“A igreja criou uma lista de pecados particularmente graves que acarretam a danação do pecador, morto sem penitência. Esta lista se fixou em sete pecados capitais: soberba, inveja, avareza, cupidez, luxúria, ira e preguiça” (ROCHA, 2011, ps. 10 e 11).

Embora os pecados capitais tenham sido listados pela Igreja Católica somente no século XIII, outras civilizações, anteriores à época do Cristianismo, já abordavam os pecados. Os gregos já enxergavam a depressão e melancolia como um vício, mas somente no Catolicismo essa depressão foi associada ao pecado da Preguiça.

Daqui elucida-se uma questão: os pecados são estados ou atos? Rocha (2011) defende que enquanto estados, eles são vícios e enquanto atos são pecados consumados em si.

Antes da lista dos sete pecados capitais, os pecados eram conhecidos como: pecado atual, da carne, habitual, mortal e original. Hoje a distinção se dá pela falta de consciência ou não para cometê-los. Como já dito e repetido em outros textos da série, o termo “Capital” é derivado da palavra em latim “caput” (cabeça) que se refere aos pecados que, se cometidos, podem originar outros tipos de pecados.Em outras religiões (como Judaísmo e Protestantismo) há referências ao pecado, mas o termo “capital” foi originalmente criado e adotado pelo Catolicismo no século XIII.

Para a religião Católica, há dois remédios para o pecado: o arrependimento e a confissão. Os combatentes para os 7 Pecados são as 7 Virtudes (em breve em outra série, aqui no (En)Cena).

Segundo Eliade (2008), o homem se relaciona no mundo de duas maneiras diferentes, sendo uma delas o sagrado – enquanto modalidade de ser no mundo – e o profano. O sagrado e o profano constituem“duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história” (ELIADE. 2008, p. 20). Estas formas de se relacionar com o mundo se dão porque o mundo permite que haja esse jogo dual na existência humana. A dualidade referente a esse texto se dá entre a abundância e a avareza. A segunda é considerada como pecado porque é profana e se mantém oposta àquilo que é sagrado, que seria a abundância.

Vilém Flusser (2006), em seu livro “A história do Diabo”, defende que os pecados são praticamente inócuos:

Soberba é a consciência de si mesmo. Avareza é economia. Luxuria é instinto (ou afirmação da vida). Gula é melhora do standard de vida. Inveja é luta pela justiça social e liberdade política (FLUSSER, 2006, p.25).

Os pecados ainda são distintos quanto à forma como afetam o ser humano em sua existência. A gula e a luxúria afetam a carne ou o corpo; a vaidade e a soberba afetam a mente ou intelecto humano, a ira e a avareza afetam o coração, as emoções e os sentimentos.

II. Prelúdios sobre Avareza

De acordo com Brandão (1997), Avareza (Avaritia), em latim Avarus, está relacionada ao verboAvare, que significa “querer muito” ou “desejar desesperadamente”.

A palavra em si não designa que este “querer muito” está associado ao dinheiro e ao acúmulo de bens materiais.

Seriam, pois, avarentas as mulheres que “desesperadamente desejam” ter um filho? Seriam avarentas as pessoas que abdicam do pecado da Preguiça -não para adquirirem bens – mas para realizarem o “querer muito viver confortavelmente”? Seria avarento o Amor que dele mesmo se alimenta e se nutre aumentando-se cada vez mais em abundância?

A questão não está no “querer muito”, mas sim no que se faz para que esse querer seja alcançado. Eis a brecha para o tal do pecado. Santo Agostinho foi quem associou a Avareza ao acúmulo de bens.

III. Personalidade Avarenta e a Teoria Psicanalítica

Outro aspecto da Avareza é que ela não designa somente ganância em acumular bens materiais, mas também designa o medo que a pessoa avarenta tem em perder algo que já possui. Neste caso, a avareza é vista como um apego exagerado ao que se possui, além referir a incapacidade que a pessoa avarenta tem em conceber perdas, principalmente no campo material.

O avarento tem dificuldades em fazer trocas e investimentos. Tem uma crença de que a maioria dos negócios é desvantajosa e que a maioria das pessoas, se puder, lhe “passará a perna”. Eles são também chamados de egoístas, ambiciosos, gananciosos e sovinas.

O dinheiro para o avarento é, segundo Freud (1917), um objeto de desejo. Para o pai da psicanálise, em sua obra “As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal”, de 1917, o erotismo anal (advindo da retenção de fezes – encoprese – e incontinência fecal na fase da primeira infância) tem equivalência simbólica ao dinheiro.

Freud (1917) apontou que alguns indivíduos se distinguem de outros por determinados traços de caráter e que esses traços se referem à:1) ordem, 2) parcimônia e 3) obstinação. No caso do avarento, o traço da parcimônia é o que prevalece através de um exagerado esmero a assuntos econômicos e financeiros.

A retenção feita na fase anal é transformada através do mecanismo de sublimação, fazendo com que o avarento despenda bastante tempo de sua vida para a superação dessa fase através da retenção de dinheiro. É quando Freud (1917) relaciona dinheiro às fezes:

[…] onde quer que tenham predominado ou ainda persistam as formas arcaicas do pensamento – nas antigas civilizações, nos mitos, nos contos de fadas e superstições, no pensamento inconsciente, nos sonhos e nas neuroses – o dinheiro é intimamente relacionado com a sujeira. Sabemos que o ouro entregue pelo diabo a seus bem-amados converte-se em excremento após sua partida, e o diabo nada mais é do que a personificação da vida instintual inconsciente reprimida. Também conhecemos a superstição que liga a descoberta de um tesouro com a defecação, e todos estão familiarizados com a figura do ‘cagador de ducados’ [Dukatenscheisser]’. Na verdade, segundo as antigas doutrinas da Babilônia, o ouro são ‘as fezes do Inferno’ (Mammon = ilu manman). Assim, aqui como em outras ocasiões, a neurose, acompanhando os usos da linguagem, toma as palavras no seu sentido original e significativo; parecendo utilizá-las em seu sentido figurado, está na realidade simplesmente devolvendo a elas seu sentido primitivo […] (FREUD, 1917, 162-164).

Para Freud (1917) acontece com o sujeito a transferência da impulsão primitiva para o objetivo emergente, pois ele enxerga os caráteres citados acima como prolongamentos inalterados dos instintos originais ou mesmo a sublimação desses instintos como reações contra eles mesmos. O autor afirma que “a defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal. Ou reparte obedientemente as suas fezes, ‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as retém com a finalidade de satisfação” (FREUD, 1917, p.139).

Assim, as fezes, que são tidas pelo bebê como o seu primeiro presente concreto, transferem-se simbolicamente à coisa mais valiosa do mundo: o dinheiro. Disso surge o prazer parcimonioso do avarento em guardar dinheiro como lembrança do prazer inconsciente infantil de reter as fezes.

IV. O pecado da Avarenta Avareza

A avareza enquanto apego à fortuna foi convencionada como pecado, segundo Testa (2001), frente a uma desigualdade social marcante:

Realizando uma leitura sob um viés sócio-político, as composições podem representar o embate entre classes, ou seja, aqueles que detêm o pão: os ricos; a classe dominante (uma minoria) e aqueles que estão à mercê desta classe dominante; os pobres, os dominados (a maioria). Este jogo entre abundância e escassez, entre os que têm o alimento em suas mesas e os que apenas vêem o alimento, pois este está inacessível e somente pode ser olhado e desejado, configura o alimento como alvo de disputa, de lutas, sendo estas cada vez mais acirradas, alimentando a ideia dos pecados capitais, principalmente, se contextualizadas do ponto de vista da desigualdade social, que é uma das mazelas que predominam no sistema capitalista (TESTA, 2011, p.9).

Flusser (2006) defende que a tentação só escolhe onde mora o desejo. Assim, se há desejos embutidos nos pecados, há formas prazerosas de cometê-los. A Igreja Católica pondera que se há pecado e há prazer, há também castigo. Parece um embate constante entre o Hedonismo Capitalista, que costuma dizer que “a vida é uma só”, e as pregações religiosas, com suas promessas de paraíso e vida eterna. No entanto, são esses mesmos embates que adornam a existência do homem e o constrói com crenças, regras, ações, valores, ética e moral.

Assim, a avareza enquanto prazer em acumular bens materiais fere as virtudes da Generosidade (que é o dar sem esperar receber) e da Caridade (que é a manifestação de disposição ao outro, podendo esta disposição ser material). Aqui, é como se o que é tido como pecado e o que é considerado virtude não pudessem coexistir, pois um anula o outro. A generosidade é tida como o maior combatente da avareza.

Na era capitalista, em que a questão do dinheiro e da posse de bens materiais toma uma dimensão imensurável, todos os pecados – exceto a Preguiça – parecem estar exaltados, enquanto as virtudes parecem estar aniquiladas ou submergidas.

A avareza perdeu seu caráter inócuo quanto foi associada à idolatria. Via de regra, a Igreja Católica não admite que as pessoas idolatrem o dinheiro, quando somente Deus é digno de idolatria. Por não querer, com polêmicas, parecer parcial nesta questão, terminarei esse assunto da idolatria com um ponto final.

V. Se há pecado, há, pois, castigo.

Os Sete Pecados Capitais não são expressamente tratados na Bíblia Sagrada (1982), mas inúmeras são as passagens bíblicas que dizem, em formas de metáforas, sermões ou mesmo parábolas, do que é hoje chamado de pecado, além de dizer sobre as punições. A referência mais explícita sobre a Avareza é encontrada em Êxodo 20:17, quando são tratados os 10 Mandamentos. Na lei mosaica a avareza está expressa no décimo mandamento que diz: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.” Neste caso, a avareza se funde à inveja, sendo o termo “cobiça” designado como um desejo imoderado e inconfessável de possuir; no caso da inveja esse desejo relaciona-se mais ao “ser” do que ao “ter”, embora se misturem.

A seguir são apresentados alguns versículos bíblicos, provenientes de várias partes da bíblia, ou de vários livros nela embutidos, que falam da avareza e do que os avarentos podem e devem esperar como castigo:

1) “Acaso alguém pode esconder fogo consigo sem que se queime a sua roupa?” (Provérbios, 6:27)

2) “Quem esconde o trigo será amaldiçoado pelo povo; mas a benção está sob os que vendem” (Provérbios,11:26)

3) “Quem confia nas suas riquezas cairá; os justos, porém, como folhas verdes germinarão” (Provérbios,11:28)

4) “Há quem seja tido por rico, e nada tem; e há quem se faz de pobre, possuindo muitos bens. A garantia da vida de um rico são as suas riquezas; quem é pobre não sofre ameaças” (Provérbios,13: 7 e 8)

5) “Quem é bom deixa herança para filhos e netos, a riqueza do pecador é guardada para o justo” (Provérbios,13:22)

6) “Para que serve o dinheiro na mão do insensato? Para comprar a Sabedoria, se ele não tem Juízo?” (Provérbios,17:16)

7) “Quem ajunta tesouros com língua mentirosa, o vento lançará nos laços da morte” (Provérbios, 21:4)

8) “Mais vale um bom nome do que muitas riquezas; acima do ouro e da prata, o bom acolhimento” (Provérbios, 22:1)

9) “Não te afadigues para enriquecer mas, com tua prudência, acalma-te. Se levantares os olhos para as riquezas, elas já desapareceram: pois se cobrem de penas como águias e voam pelos ares” (Provérbios, 23:4 e 5)

10) “Tem pressa em ficar rico o ambicioso, e não sabe que a indigência vai cair sobre ele” (Provérbios, 28:22)

11) “Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui” (Lucas 12:15)

12) “Pois o amor ao dinheiro é uma fonte de todos os tipos de males. E algumas pessoas, por quererem tanto ter dinheiro, se desviaram da fé e encheram a sua vida de sofrimentos” (Timóteo, 6:10)

13) “Seja a vossa vida sem avareza. Se você deseja ter a salvação, uma das medidas é deixar de ser avarento, abra os seus olhos, e vigie para que este sentimento não venha amarrar a sua vida e atrapalhar o seu sonho de conquistar a salvação” (Hebreus, 13:5).

(Fonte: Google Imagens)

A maioria dos versículos fala mais da soberba associada a avareza.

No Espiritismo, no Livro dos Espíritos (1994), de Allan Kardec, também há referências (que não foram transcritas nesse trabalho) sobre a Avareza, entre as perguntas 901 e 906.

Na verdade, a avareza é vista como um dos pecados mais perigosos porque, se de um lado ela ambiciona o acúmulo de bens e de outro ela evita a tudo custo que os bens já adquiridos sejam desfeitos ou se esvaiam, as formas de nutrir a avareza (eis que é ela um pecado capital que incita outros) podem ser naturalmente outros pecados.

VI. Avarezas e avarezas

É comum e corriqueiro referir-se à Avareza a partir da ótica religiosa do Catolicismo e de suas ferramentas doutrinárias, assim como é natural existir outras óticas que falam da Avareza, como foi o caso de Flusser (2006) ao dizer da inocuidade dos pecados e como foi o caso de Freud (1917) ao associar o caráter parcimonioso daquele que junta dinheiro a um desejo inconsciente da primeira infância.

Como já debatido também, o termo Avareza em sua natureza genuína ou etiológica, não pode ser considerada como pecado quando ainda não associada ao dinheiro.

Sartre (1963), ateu convicto, em sua obra “Reflexões sobre a questão judaica”, discute sobre a avareza judaica e a avareza cristã, as distinguindo substancialmente. Para Sartre (1963) o judeu (assim como todo homem) é diferente e singular. O Judaísmo em si é peculiar dando caráter distinto à avareza tradicional dos judeus. Para o autor, a avareza judaica é uma tradição, não um pecado. A avareza judaica foi condenada pelo intuito de universalizar o homem a uma só regra (neste caso, a católica). Essa universalização do homem já foi e ainda é pretexto para dizeres e práticas anti-semetistas (como no caso de inquisições, cruzadas e o marcante holocausto).

Para Sartre (1963), que considera o homem enquanto umser em situação, os sujeitos não possuem essência que possa ser considerada inata, boa ou má. Para ele, a avareza não é uma natureza de traços componentes de um indivíduo, que remanesce idêntica em todas as circunstâncias, mas sim algo que diz de valores maiores, como a forma que um povo tem de compor sua família, de fazer suas riquezas, suas economias e seu desenvolvimento. Para o filósofo não existe natureza humana senão situacional e se há pecado no mundo é aquele que tenta universalizar o que é singular, pecado que, segundo Sartre (1963), dissolve a “riqueza simbólica” do ser humano.

VII. Avareza no meio artístico

Assim como a Bíblia se disseminou para falar de um saber, assim como Flusser, Freud e Sartre escreveram livros para dizerem de seus argumentos, outros autores, de diversas áreas, usaram-se de seus meios para contar-nos sobre a Avareza. Muitos desses contos classificam-se na comédia-trágica, numa mistura de humor e lamento.

Hoje em dia, ao associar Avareza ao telejornalismo, encontramos, por vezes, um “furo de reportagem, o esconde-esconde dos fatos para que o telejornal se destaque a partirde uma notícia bombástica que nem sempre é devidamente apurada” (JUNIOR, 2008, p.1).

No teatro (e também em livro), encontramos a peça e obra L’Avare (1668), em português “O Avarento”, do dramaturgo francês Jean Baptiste de Molière (1622 – 1673), onde Harpagon é o personagem que tem ouro enterrado no quintal e vive o terror de ser roubado, além de não deixar sua filha casar com um pobretão. A moral dessa obra é a de que a avareza traz discórdia e desentendimento familiar.

Harpagon, O Avarento, de Jean Baptiste Molière – peça teatral (Fonte: Google Imagens)

Outro avarento destacável é Shylock, da obra Shakespeareana “O Mercador de Veneza (1596-1598). Shylock é um agiota judeu que faz um contrato instigante com o protagonista Antonio. A obra é parcialmente criticada como anti-semetista.

Al Pacino como Shylock no filme O Mercador de Veneza (2004) – (Fonte: Google Imagens)

Não poderia faltar o rabugen… ops, avarento Ebenezer Scrooge, do romance “A Christmas Carol” (Um conto de Natal – 1843) do romancista inglês Charles Dickens (1812-1870). Scrooge é um homem que, a princípio, odeia tudo e todos, mas há em sua vida uma reviravolta, como uma lição da remissão dos pecados.

Personagem Scrooge, no filme A Christmas Carol (2008) – (Fonte: Google Imagens)

Na dramaturgia brasileira, destacam-se dois personagens: Nonô Correia, da novela “Amor com Amor se paga” (1984), interpretado pelo ator Ary Fontoura, e Conde Claus, da novela “Chocolate com Pimenta” (2003-2004), interpretado por Cláudio Correia e Castro. Na primeira novela, o personagem levava uma vida miserável e mesquinha mesmo contendo uma fortuna escondida. A comicidade estava em trancar sua geladeira para que ninguém roubasse sua comida. Já o Conde Claus era um banqueiro egoísta que costumava aplicar golpes nas pessoas para acumular dinheiro.

Nonô Correia (Ary Fontoura) em Amor com Amor se paga (1984)- (Fonte: Google Imagens)

Conde Claus (Cláudio Correia e Castro) na novela Chocolate com Pimenta (2003-2004) – (Fonte: Google Imagens)

Por fim, mas não por ser menos importante, mas sim para fecharmos com chave de ouro, já que em se falando de ouro é dele mesmo que estamos falando, está o conhecido personagem “Srooge McDuck”, ou melhor “Tio Patinhas”, inspirado no Scrooge de Dickens, criado pelo cartunista Carl Barks (1901-2000) em 1947. Tio Patinhas é a figura engraçada do avarento. Tem uma mansão onde toda a sua fortuna está guardada num imenso cofre. Há pensamentos persecutórios de que as pessoas vão cortar sua garganta e roubar seu dinheiro.

Tio Patinhas (Scrooge McDuck) – (Fonte: Google Imagens)

Uma das maiores características associadas aos personagens avarentos é a miséria, onde eles abdicam de outros prazeres, como o da luxúria, por exemplo, para acumularem bens. Assim vemos que na avareza – enquanto extravagância de um pecado – há também prazer, punição (ou privação) e comicidade!

Para terminar: se a avareza é, em si, um pecado acumulativo, pois se consubstancia pelo acúmulo de bens materiais, será também o pecado mais pecaminoso e, portanto, mais passível de punição?

Fontes primárias:

BIBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Centro Bíblico Católico. 34. ed rev. São Paulo: Ave Maria, 1982.

BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 1997, vol. 1.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2008. Trad. Rogério Fernandes. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Riode Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.

FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. São Paulo: Annablume, 2006.

FREUD, S. As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal. 1917. In: Obras psicológicas completas. Ed.Standard Brasileira (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XVII.

JUNIOR, R. Os sete pecados capitais e o telejornalismo. VI Simpósio de Ensino de Graduação. São Paulo. 2008.

LE GOFF, Jacques. Pecado. em Enciclopédia Einaudi, Vol. XII por ROMANO, Roggerio. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.

ROCHA, Tereza. Os homens, o pecado e a misericórdia divina na Legenda Aurea (2ª  Metade do Século VIII). São Paulo: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. 2011.

SARTRE, Jean Paul. Reflexões sobre a questão judaica. SãoPaulo: Europeia do Livro, 1963.

TESTA, Eliane. Lendo as representações do sagrado e do profano “No pão nosso de cada dia”, de Marcos Dutra. Revista Entreletras. nº 2. 2011.
Obra citada:

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB, Rio de Janeiro, 1994.

Sites consultados:

AVAREZA. In: Origem da palavra – site de etimologia. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/palavras/avareza/> Acesso em: 24 de Fevereiro de 2013.

CONTEÚDOS DIVERSOS. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org> Acesso em: 24 de Fevereiro de 2013.

CONTEÚDOS DIVERSOS. In: Google Images. Disponível em: <https://images.google.com> Acesso em 24 de Fevereiro de 2013.

QUAL A ORIGEM DOS SETE PECADOS CAPITAIS – Revista Mundo Estranho. Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/materia/qual-a-origem-dos-sete-pecados-capitais> Acesso em 24 de Fevereiro de 2013.

CAPUT. In: Dicionário de Latim. Disponível em: <http://www.dicionariodelatim.com.br/> Acesso em 25 de Fevereiro de 2013.

Compartilhe este conteúdo:

Preguiça: pecado capital ou ato de rebeldia?

Compartilhe este conteúdo:

“São os ociosos que transformam o mundo,
porque os outros não têm tempo algum”.

Albert Camus

“A preguiça é o melhor dos sete pecados,
pois ela te impede de cometer os outros seis”

Autor anônimo

Tenho que confessar: sou um preguiçoso. Tenho preguiça de acordar cedo, de fazer exercícios e até mesmo de comer laranja porque preciso descascá-la. Também tenho preguiça de escrever. E, por causa desta preguiça, fui adiando a escrita desse texto até o último momento, quando já não tinha mais como fugir. Ou seja, além de preguiçoso sou um procrastinador – e você já se deu conta de que a procrastinação é uma espécie de prima-irmã da preguiça? Apesar disso, não me considero uma pessoa improdutiva. Tento me inspirar nos princípios da chamada “procrastinação positiva”. Sim, isso existe! Como aponta o filósofo John Perry, autor do livro “A arte da procrastinação”, em um artigo do jornal New York Times1, “procrastinadores raramente fazem absolutamente nada”. Só não fazem o que deveriam estar fazendo. Portanto, para ser um ‘procrastinador produtivo’ deve-se seguir o princípio de que “qualquer um pode fazer qualquer quantidade de trabalho, desde que não seja o trabalho que pretensamente se deveria estar fazendo naquele momento”. Não é um bom princípio este? Às vezes consigo segui-lo, às vezes não. Neste caso, adiei porque escrever sobre preguiça dá muito trabalho. Aliás, escrever dá muito trabalho. E tudo que dá trabalho, que exige esforço, gera preguiça.

 

Arte: William Tylee Ranney

 

Aliás, preguiça e trabalho quase sempre andaram de mãos dadas. Quem não trabalha ou não quer trabalhar é entendido, até hoje, como vagabundo, preguiçoso, indolente. “Vai trabalhar vagabundo”, diz aquela música do Chico Buarque. O dicionário Aurélio define preguiça, antes de tudo, como “aversão ao trabalho”, mas também como “morosidade, negligência, moleza, indolência”. A própria noção de preguiça como um pecado capital tem relação com este entendimento. Num mundo dominado pela ideologia cristã, uma forma astuta de fazer as pessoas trabalharem – e mais: desejarem trabalhar – foi disseminar as ideias de que a preguiça é algo condenável e de que “o trabalho enobrece o homem”. E isto foi tão difundido no mundo ocidental, especialmente após a Reforma Protestante no século XVI, que se tornou uma espécie de verdade inquestionável. O trabalho nos define de tal maneira na atualidade, que ficar desempregado é como perder uma parte importante de si mesmo. Como diz aquela música do Legião Urbana, “Sem trabalho eu não sou nada/ Não tenho dignidade/ Não sinto o meu valor/ Não tenho identidade”. Isto é tão forte em nossa sociedade que logo que somos apresentados a uma pessoa, a primeira coisa que normalmente fazemos é perguntar “O que você faz?”. E a partir de sua resposta (“Sou psicólogo”, “Sou cozinheiro”, “Sou gari” – e perceba como vinculamos o que fazemos com o que somos) elaboramos uma série de julgamentos que influenciarão de forma significativa a maneira de nos relacionarmos com tal pessoa.

No entanto, anteriormente à ascensão do capitalismo como sistema econômico e social hegemônico, o trabalho foi visto, muitas vezes, de uma forma negativa. A própria Igreja Católica considerou, por um bom tempo, o trabalho como algo que afastava os homens das orações e, logo, de Deus. A preguiça era entendida não como preguiça de trabalhar, mas como preguiça de orar e se dedicar a Deus. Santo Agostinho chamava de “ócio santo” justamente o tempo necessário para se dedicar à contemplação e à oração. Antes disso, os gregos, especialmente os atenienses, valorizavam o ócio muito mais do que o trabalho. Interessante constatar que a palavra escola deriva do grego skole, que significa ócio. Ou seja, as escolas para os gregos eram considerados locais de ócio – de um ócio criativo, como diria muito tempo depois o sociólogo Domenico De Masi. Para os atenienses, os homens sábios deveriam se dedicar às ideias e ao espírito. Desta forma, estar ocioso não significava estar fazendo nada (aliás, o que é estar fazendo nada?), mas sim, “dedicar-se operações de natureza intelectual e espiritual que se traduziam no exercício da contemplação da verdade, do bem e da beleza, de forma não utilitária” (Bacal, 2003). Segundo Paul Lafargue, autor do livro-manifesto “Direito à preguiça”, publicado em 1880, ”os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses”. Importante se atentar que para realizar os trabalhos manuais existiam os escravos. O ócio e a atividade intelectual eram privilégio dos homens livres2.

Arte: Tarsila do Amaral

Esta visão negativa do trabalho está presente na própria origem da palavra trabalho, do latimtripalium, que designa um instrumento de tortura. Da mesma forma, labor, denota sofrimento, dor, fadiga. Tal visão do trabalho enquanto algo sofrido ou penoso aparece até mesmo no Velho testamento, quando Adão e Eva são expulsos do paraíso e condenados ao trabalho árduo como forma de expiar o pecado cometido. “Com o suor do teu rosto comerás teu pão”, teria dito Deus a Adão. Já Eva Deus teria condenado às dores de parto. E não por acaso, todo este doloroso processo é chamado de “trabalho de parto”. Por sua vez, o ócio aparece na Bíblia majoritariamente de uma forma positiva. Por exemplo, após criar o céu, a terra e tudo o mais, Deus teria se permitido, no sétimo dia, um momento de descanso para contemplar sua obra. A recomendação de não se trabalhar aos sábados vem daí. Posteriormente, o filósofo Sêneca apontava para uma divisão entre o otium (ócio) e o negotium (negócio, negação do ócio), na qual o primeiro era associado à contemplação, ao estudo, ao autoconhecimento e à serenidade enquanto o segundo ao trabalho repetitivo e estressante – tal como o trabalho a que Sísifo foi condenado, e que virou sinônimo de uma atividade laboral esgotante e inútil.  Até hoje tal conotação se faz presente em expressões como “escrever dá trabalho” ou “tal tarefa é trabalhosa”. Com tudo isso quero apontar que o ócio (e o trabalho) nem sempre tiveram o sentido que possuem hoje. E, da mesma forma, nem sempre o ócio e a preguiça foram vistos como coisas negativas e o trabalho como algo indispensável para o bem-viver.

Já a noção de preguiça enquanto um pecado capital é quase tão antiga quanto o próprio cristianismo. Diz-se que no final do século VI o papa Gregório Magno, tomando como referência as cartas do apóstolo São Paulo, determinou os pecados capitais (capital vem do latim caput, cabeça, chefe, líder), ou seja, os pecados mais graves – opostos, de certa forma, aos chamados pecados veniais, mais leves e perdoáveis. Sete pecados foram definidos como capitais: a Vaidade, a Avareza, a Gula, a Luxúria, a Inveja, a Ira e a Preguiça. Mas tal lista só teria sido oficializada na Igreja Católica no século XIII, a partir da Suma Teológica, escrita por São Tomás de Aquino. Posteriormente a Igreja definiu as sete virtudes fundamentais, que deveriam servir como uma espécie de antídoto aos pecados capitais. São elas: a Humildade (oposta à vaidade), a Generosidade (oposta à avareza), a Temperança (oposta à Gula), a Castidade (oposta à Luxúria), a Caridade (oposta à inveja), a Paciência (oposta à ira) e, finalmente, a Diligência – entendida como a presteza ou prontidão para a ação, e, portanto, como “remédio” para a preguiça.

 

Arte: Bosch

É possível interpretar a criação e disseminação da noção de pecados capitais (e mesmo de virtudes fundamentais) como uma tentativa de controle de certas questões humanas, demasiada humanas, como diria Nietsche. Em um debate realizado no Brasil, o escritor português e eminente crítico das religiões, José Saramago, disse o seguinte: “Quando a Igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle. Um instrumento de controle dos corpos. Porque aquilo que perturba a igreja católica é o corpo: o corpo com sua liberdade, o corpo com seus apetites, o corpo com suas ansiedades”3(e, poderíamos acrescentar, o corpo com suas preguiças). Concordo com ele. Os pecados são uma tentativa – um tanto quanto infrutífera – de controlar o que há de mais humano em nós mesmos. Afinal quem nunca sentiu inveja e desejou ter a grama tão verde como a do vizinho? Quem nunca foi tomado pela gula quando se sentiu ansioso ou triste? Quem nunca foi avarento, pão duro ou apegado às próprias coisas ou ao dinheiro? Quem nunca foi tomado por uma paixão e desejou uma pessoa de forma luxuriosa? Quem nunca ficou irado quando contrariado ou quando se deparou com uma injustiça? Quem nunca foi tomado pela soberba quando atingiu algum objetivo de vida? E finalmente, quem nunca sentiu vontade de não fazer nada de produtivo, de simplesmente vagabundear? Que jogue a primeira pedra quem nunca fez (ou desejou fazer) como na música Lazy Song, do Bruno Mars: “Hoje eu não estou com vontade de fazer nada/ Só quero ficar deitado na cama/ Não quero atender o telefone/ Então deixe o recado na secretária eletrônica/ Pois juro que hoje eu não quero fazer nada/ Vou ficar com os pés pro alto olhando para o ventilador/ Vou ligar a TV, ficar com as mãos no bolso/ Ninguém vai me dizer que não posso fazer isso/ Porque no meu castelo quem manda sou eu”. Pela lógica da Igreja (e mesmo do mundo do trabalho), o preguiçoso deve se sentir culpado e mesmo ser punido pelo que deixou de fazer.

Esta visão crítica dos pecados como instrumentos de controle se evidencia também no fato de que, por exemplo, a alcunha de “preguiçoso” foi e ainda é utilizada basicamente para se referir aqueles que estão na base da pirâmide social ou a grupos socialmente marginalizados. Durante o período colonial, os índios e os escravos eram considerados “naturalmente” preguiçosos e indolentes. Outro exemplo são os baianos, que até hoje são alvo de piadas por supostamente serem preguiçosos. Para a antropóloga Elisete Zanlorenzi, autora da tese “O mito da preguiça baiana”, tal visão é completamente falsa. Segundo ela, o entendimento do baiano como culturalmente preguiçoso teve início com o intenso movimento migratório de nordestinos (genericamente chamados de “baianos”) para o sul do país, especialmente São Paulo, a partir da década de 40. Predominantemente negros e pobres, se instalaram em precários cortiços e favelas e tiveram grande dificuldade em conseguir emprego. Segundo Elizete, “estas condições contribuíram para que o termo baiano fosse associado a outros como sujo, desorganizado, não produtivo e, finalmente, preguiçoso”4. Além disso, a pesquisadora aponta para a contribuição da indústria do turismo e da imprensa na disseminação da imagem do baiano como preguiçoso. Finalmente, Elizete afirma que os próprios artistas baianos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Dorival Caymmi, têm sua parcela de responsabilidade na popularização desta imagem. “Eles chegavam no eixo Rio-São Paulo afirmando serem preguiçosos. Era como dizer: eu não sou daqui”, aponta a pesquisadora.

Relacionado a esta visão, li certa vez que o compositor baiano Dorival Caymmi, passava várias horas do dia olhando para o mar, contemplando sua beleza. Independente disto ser verdade ou mentira – e sem desejar reforçar o mito da preguiça baiana – gostaria de trazer a discussão para o presente e propor o seguinte questionamento: você consegue imaginar tal comportamento no mundo atual? Num mundo hiperconectado e hiperativo como o nosso, a contemplação (e a preguiça) tem cada vez menos espaço. Cada vez menos olhamos para o mar ou para o céu ou ainda para as pessoas. Tenho observado nas ruas, que o comportamento padrão de muitas pessoas quando estão sentadas esperando o ônibus ou dentro do metrô é ficarem mexendo ininterruptamente no celular ou no tablet. Parecem imersas naquele mundo virtual, como que ignorando o mundo real à sua volta. Cada vez mais olhamos menos para o mundo e para as outras pessoas. Ao mesmo tempo, nunca interagimos tanto, nunca estivemos tão interligados, nunca tivemos tão próximos de pessoas distantes fisicamente de nós. Se perdemos por um lado, ganhamos por outro, obviamente. Mas, de fato, temos perdido, cada vez mais, a capacidade de contemplar o mundo. E isso tem consequências.

Como aponta o jornalista Carl Honoré, autor do livro “Devagar”, atualmente cultuamos o “evangelho do sempre-mais-depressa”. E de acordo com este evangelho, devemos prezar sempre pela velocidade e pela quantidade, em detrimento da calma e da qualidade. Devemos ocupar nosso dia (e das nossas crianças) com o máximo de atividade que pudermos. Devemos manter nossa mente sempre ocupada, afinal, “cabeça vazia é oficina do diabo”. Devemos trabalhar o máximo e dormir o mínimo. Não podemos nos esquecer que “tempo é dinheiro”. Devemos andar depressa, comer depressa, transar depressa, amar depressa. A vida é curta, não há tempo a perder. Devemos viver o máximo, aproveitar o máximo, gozar o máximo. O ócio e a preguiça devem ser evitados a todo custo. O problema é que, como aponta Honoré, “certas coisas não podem nem devem ser apressadas. Elas levam tempo, precisam de lentidão. Quando aceleramos coisas que não devem ser aceleradas, quando esquecemos como é possível moderar o ritmo, sempre pagamos um preço”. E este preço tem sido cada vez mais alto. Estamos cada vez mais ansiosos, mais deprimidos, mais doentes do corpo e da alma. E toda esta velocidade certamente contribui para este mal-estar contemporâneo.

Mas felizmente, como reação a esta brutal apropriação do tempo pelo capitalismo contemporâneo, um contingente cada vez maior de pessoas tem aderido à filosofia Slow e tentado ir mais devagar. Como aponta Honoré, “enquanto o resto do mundo vai em frente vociferando, uma minoria considerável e cada vez maior opta por não fazer tudo com o pé no acelerador. Em todas as esferas de ação humana que você possa imaginar, de sexo, trabalho e exercícios a alimentos, medicina e urbanismo, estes rebeldes vem fazendo o impensável – estão abrindo espaço para a lentidão”. Num mundo que anda com tanta pressa, nada mais revolucionário do que ir devagar. Nada mais rebelde do que ser um pouco preguiçoso. Está lá na Bíblia: “Todo aquele que vive habitualmente no pecado também vive na rebeldia, pois o pecado é rebeldia” (João 3:4). Então, que sejamos rebeldes. Viva o ócio! Viva a vagareza! Viva a preguiça!

 

Foto: Henri Cartier-Bresson

 

Referências:

BACAL, Sarah. Lazer e o universo dos possíveis. Aleph: São Paulo, 2003.

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Sextante: Rio de Janeiro, 2000.

LAFARGUE, Paul. Direito à preguiça. Hucitec: São Paulo, 2000

HONORÉ, Carl. Devagar: como um movimento mundial está desafiando o culto à velocidade”. Ed. Record: Rio de Janeiro, 2005.

 

Notas:

1http://www.nytimes.com/2013/01/15/science/positive-procrastination-not-an-oxymoron.html?_r=0

Segundo De Masi (2000), para os gregos, “’trabalho’ era tudo o que fazia suar, com exceção do esporte. Quem trabalhava, isto é, suava, ou era um escravo ou era um cidadão de segunda classe. As atividades não-físicas (a política, o estudo, a poesia, a filosofia) eram ‘ociosas’, ou seja, expressões mentais, dignas somente dos cidadãos de primeira classe”.

3 Assista um trecho deste debate neste link: http://www.youtube.com/watch?v=ihnAvfbX4Rk

4http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/cbn/capital_171105.htm

Compartilhe este conteúdo:

Tudo é Vaidade

Compartilhe este conteúdo:

Era uma vez um Deus e seu Anjo. Um dia o Anjo também quis ser Deus. Eis o início da vaidade.

Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. […] Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e achei que tudo era vaidade e aflição de espírito. Os perversos dificultosamente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito.
(Bíblia Sagrada – Antigo Testamento. Livro do Eclesiastes)

 


Figura: Charles Allan Gilbert, All Is Vanity (1892)

 

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra ‘vaidade’ pode ser compreendida como “a qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória; a valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros”. No entanto, a análise conceitual de uma palavra vai além de um conjunto de significados que atribuímos a ela. Para Wittgenstein (1958), o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”. Isso dá ao conceito uma amplitude maior no que tange à sua análise, pois já não há um campo seguro de verdades finitas ou constantes.

Historicamente, a vaidade pode ser relacionada a uma categoria de pecado da qual ninguém está imune, ou seja, aquele pecado que permite ao indivíduo, por vezes ordinário, sentir e querer mostrar-se aos outros como alguém extraordinário. Há quem defende tal pecado como uma necessidade básica, pois a criação de personas em torno de sua “real” figura torna-se relevante para a definição e criação das mais infinitas obras e perfis, que vão desde a ascensão de impérios e estados até a imortalização de uma imagem (quando aquilo que a vaidade construiu se torna maior do que aquilo que a pessoa de fato é).

Em Os Irmãos Karamázov, vimos um dos personagens apresentar um questionamento que traz à tona a complexidade do conceito de liberdade, mesmo diante de um contexto que parece primar pelo pecado da vaidade, ou seja, pela possibilidade de recriar um “eu” segundo a sua imagem e semelhança.

“’Diante de quem se inclinar? Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar…” (Os irmãos Karamazov, Dostoiévski)

Parece que as palavras do Grande Inquisidor de Dostoiévski formam uma contradição à vontade de poder apresentada por Nietzsche em sua obra “Assim falou Zaratustra”, na qual ele diz que “onde encontrei vida, ali encontrei vontade de poder, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor”. Mas, para uma contradição vir à tona tem-se que ter um grau maior de entendimento da semântica dos enunciados. Assim, quando as frases ganham (talvez por vaidade) uma complexidade semântica, situá-las em polos extremos para entender conceitos como contradição torna-se, por vezes, uma tarefa não apenas incongruente, mas também sem sentido.  De certa forma, há a necessidade de ser senhor e, para tanto, a vaidade exerce um papel decisivo, mas, em contrapartida, há um desejo primitivo em ser guiado.

 

Foto: Hitler – Hulton Archive / Getty Images

 

A vaidade de Hitler, por exemplo, ajudou a criar a figura histórica responsável pelas maiores atrocidades do século XX. Sua vaidade foi estabelecida diante da fraqueza de um país em decadência econômica e publicamente humilhado depois da Primeira Grande Guerra. Assim, temos o início de uma espécie de vaidade gerada no indivíduo, mas defendida por toda uma população, sustentada por uma espécie de “loucura coletiva”. Essa passagem atribulada da história foi contada de forma crua (e polêmica) no livro do professor de Harvard Daniel Jonah intitulado “Os carrascos voluntários de Hitler”. Nele, o autor apresenta a corresponsabilidade do povo alemão nas ações que definiram o genocídio dos judeus. E, com isso, as palavras sombrias do Grande Inquisidor de Dostoiévski ecoam pelos séculos cada vez mais atuais:

Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. 

Marylin Monroe por Richard Avedon (1957)

“Nunca enganei ninguém, só deixei que as pessoas enganassem a si mesmas. Ninguém se preocupou em tentar descobrir quem eu era de verdade. Inventaram uma personagem para mim. Nunca desmenti”. Marilyn Monroe

 

Essas fotos da atriz americana Marylin Monroe feitas pelo fotógrafo Richard Avedon sintetizam a ideia da vaidade que reside em cada um de nós, mas especialmente apresentam o momento em que ela nos deixa a sós. Acostumar-se a vaidade não significa viver o tempo todo com ela. Parece que até a vaidade, o pecado que veio acompanhado pelo quantificador universal (todo) na Bíblia, às vezes afasta-se do seu hospedeiro. Avedon contou uma vez como aconteceu o momento decisivo para capturar uma imagem da Marylin sem a vaidade dos seus personagens. Ele disse que, depois de um tempo fazendo poses sensuais e luminosas, ela sentou-se em uma cadeira no canto do estúdio e pareceu se encolher, como uma criança assustada. Nesse instante, ele produziu a última foto do ensaio e, para o fotógrafo Vik Muniz, “o quadro final resultante está entre os retratos mais famosos de todos os tempos”. Roland Barthes, ao elogiar Avedon por captar esse momento, disse que essa foto “é a evidência de que, dentro da imagem, há sempre algo mais”. Talvez nem tudo seja vaidade.

 

Foto de Robert Doisneau, 1963

O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso.

Fernando Pessoa, in “Da Literatura Européia”

 

A última possibilidade apresentada por Pessoa (“ser vaidoso sem ser orgulhoso”), considerando sua definição de orgulho e vaidade, reflete a complexidade da natureza humana, que mesmo sem a consciência, de fato, dos seus méritos e virtudes, constrói um conjunto de disfarces para que possa ser exaltada, copiada e seguida. Na continuação desse texto, Pessoa diz que “o homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é”. Com essa última frase, ele apresenta um novo vislumbre dessa pessoa  vaidosa e sem orgulho, ou seja, esse indivíduo não é alguém que ignora seus méritos, mas apenas não os acha bons o suficiente para o tornar alvo de admiração dos outros, daí criam-se as máscaras.

 

Foto: Elizabeth Taylor em cena no filme ‘Ash Wednesday’ em 1973

 

Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Poesias de Álvaro de Campos, Tabacaria, Fernando Pessoa)

 

No livro “Os nus e os mortos” (publicado originalmente em 1948), Norman Mailer, ao apresentar sua visão dos campos de batalha na Segunda Guerra (a partir de sua vivência nas trincheiras), traz nas falas de seus personagens uma reflexão sobre a identidade humana: “Há aquele equívoco popular de considerar que o homem é uma coisa situada entre a besta e o anjo. Na realidade, o homem está em trânsito entre a besta e Deus”. E, novamente, tem-se o retorno ao início da vaidade, ao desejo da criatura em tornar-se o criador, mas com grande possibilidade de tornar-se o seu contrário, ao menos no que tange a representação dessas duas figuras no imaginário coletivo.

 

Charlie Chaplin por Richard Avedon (1952)

 

“Não é a religião, isso é óbvio, não é o amor, não é a espiritualidade. Todas essas coisas são engodos, propinas que inventamos para nós mesmos quando as limitações de nossa existência nos desviam do outro sonho: o de nos igualarmos a Deus. Quando entramos esperneando no mundo, somos Deus, o universo é o limite de nossos sentidos. E quando nos tornamos mais velhos, quando descobrimos que não somos o universo, sofremos o mais profundo trauma de nossa existência.”

(Os nus e os mortos, Norman Mailer)

 

A vaidade em seu aspecto mais conceitual é representada pelo vazio, pela inconsistência. No entanto, não há leveza nesse vazio, há uma luta constante em manter uma representação, em partir para o embate (seja com Deus ou com sua própria natureza), em refutar aquilo que É em nome daquilo que gostaria DE SER. Por que insistir em representar uma figura para os outros? Talvez porque Sartre tenha razão: “o inferno são os outros”. A vaidade existe porque há o outro. O anjo só se rebelou porque havia um Deus. Embora tenha iniciado esse texto buscando (internamente e, talvez, vaidosamente) refutar o axioma inicial (“Tudo é vaidade”), termino-o derrotada, isso porque há o outro.  Assim, se a existência do outro é condição suficiente e necessária para a concepção e base da vaidade, então que aprendamos a lidar com o pecado e, principalmente, a sobrevivermos a ele.

Referências:

A BÍBLIA SAGRADA, Velho Testamento, Eclesiastes.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. 2  volumes.

GOLDHAGEN, Daniel J. Os Carrascos Voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto. Tradução de Luís Sérgio Roizman. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

MAILER, Norman. Os nus e os mortos. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Silva. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos (Tabacaria). Disponível em:
http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

Compartilhe este conteúdo: