Tudo vale a pena em Fernando Pessoa

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Quem nunca citou a célebre frase “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”?

Esse trecho do poema Mar Portuguez é de autoria do poeta Fernando Pessoa. E poucos conhecem a beleza deste poema. A frase em epígrafe é somente uma referência aos perigos por que passaram os lusitanos na época das grandes navegações.

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por ti cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

Mas quem foi esse Fernando Pessoa, autor de uma das mais conhecidas frases da língua portuguesa?

Ele foi, além de criador de obras literárias, um criador de escritores: seu projeto de arte era vasto e sua inteligência, imaginação e capacidade criadora muito amplas. Por isso, não lhe bastava criar uma única obra, mesmo que ela tivesse diversos volumes e títulos: por meio da imaginação, idealizou diferentes personalidades poéticas. Essas personalidades, conhecidas como heterônimos, possuíam biografia, traços físicos, profissão, ideologia e estilos peculiares.

Mais de dez heterônimos foram desenvolvidos, semi-desenvolvidos ou, simplesmente, esboçados pelo autor de Mensagem. Dentre essas criações, destacam-se: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguidos por Bernardo Soares, Coelho Pacheco, Alexandre Search etc. Soma-se a essa galeria de poetas, o próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”), outra das muitas faces da obra do escritor. As características dessa poesia está marcada pelas faces pessoanas em que: Alberto Caeiro pensa com os sentidos; Álvaro de Campos pensa com a emoção; Ricardo Reis pensa com a razão. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pensa com a imaginação.

 

 

Fernando Pessoa (1888-1935) foi o principal escritor do Modernismo português. Ao lado de Camões, é um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. Nasceu em Lisboa e, aos cinco anos de idade, ficou órfão de pai. Por isso, em 1895, foi para a África do Sul, com sua mãe e seu padrasto, designado cônsul em Durban. Voltou a Portugal em 1905 e escreveu em língua inglesa durante algum tempo ainda. É dessa fase a obra 35 sonnets, publicada em 1918.

Em Portugal, Fernando Pessoa colaborou em várias revistas literárias que se editavam na época. Além disso, atuou como crítico em A Águia. Cultivou a poesia e a prosa (contos), não se esquecendo de criar textos de estrutura dramática, aos quais ele mesmo chamou de “poemas dramáticos”.

O ocultismo e a astrologia foram, também, objetos da curiosidade de Fernando Pessoa. A parte de sua obra que mais chama a atenção é a poesia, distinta por uma singularidade e criatividade incomparáveis na literatura de língua portuguesa e, também, na universal.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa construiu uma das mais importantes obras das literaturas de língua portuguesa, produzida desde os treze anos de idade, vasta e de notável qualidade artística.

Com alto índice de criatividade, Pessoa incorporou, artisticamente, as formas líricas da tradição poética portuguesa, para, em seguida, ultrapassá-las.

Partindo do saudosismo, sua obra evoluiu para o paulismo, o futurismo, o interseccionismo e o sensacionismo (as vanguardas europeias), realizando uma poética experimental na qual o poeta se desdobrava em várias máscaras. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é uma dessas máscaras e constrói a chamada obra ortônima (assinada pelo próprio Fernando Pessoa).

Em Fernando Pessoa, cada uma das máscaras constitui uma atitude-experiência por ele experimentada, mesmo que essa experiência seja fingida, como sugere o poema Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Esse poema apresenta uma dialética, envolvendo sentimento e sinceridade. A compreensão dessa dialética exige que ele seja lido de acordo com duas perspectivas: a da dor do poeta-escritor (que pode sentir a dor enunciada) e a da dor “fingida” pela máscara desse poeta-escritor, que é a dor do sujeito poético, construída pela escrita.

 


A épica

Em termos esquemáticos, a poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pode ser dividida em duas vertentes principais: a épica (poesia saudosista-nacionalista) e a lírica.

Em um tom visionário e nacionalista, Fernando Pessoa “Ele Mesmo” escreveu a obra Mensagem, publicada em 1934, única publicação do autor em vida. Essa obra, que se pretendia uma versão moderna da epopeia, chamando-se Portugal, resultou numa mistura entre o épico e o lírico.

Por que épico? Porque canta os mitos e os heróis coletivos de Portugal, lembrando, assim, Os Lusíadas.

Por que lírico? Porque expõe sentimentos de melancolia, saudosismo e euforia de um eu-lírico que, às vezes, é uma personagem histórica e, às vezes, o próprio poeta.

Nessa obra, retomando o passado grandioso das navegações e das descobertas, Fernando Pessoa pretende reacender a chama da conquista, característica maior do povo português no passado, apagada com o desaparecimento de D. Sebastião na África.

Em Mensagem, o poeta não canta o Portugal de seu tempo, o Portugal real, envolto num marasmo sem fim, mas o Portugal sonhado por seus heróis, loucos e insanos. Obra nacionalista, procura reviver o sonho de grandeza da nação, que vários poetas perseguiram desde o século XVII.

Mensagem é uma obra que procura explorar em profundidade o tema Portugal: dirige-se aos portugueses, trata de Portugal, de sua alma e de sua história. Dirige-se, ainda, a qualquer leitor, superando os nacionalismos mesquinhos, na medida em que trata da condição humana em geral, atingindo, assim, a universalidade. Não é um livro fácil. Seus vários sentidos respondem por sua complexidade, construída por uma estrutura em que há rigorosa relação entre o todo e as partes.

 

A Lírica

A vertente lírica da poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é constituída pelo Cancioneiro. Essa obra não apresenta um conjunto uniforme de temas ou mesmo uma filosofia definida como eixo condutor. Saudade, solidão, infância, vida e arte são explorados nela, às vezes com ceticismo, nostalgia e tédio. A consciência que o autor tem de si como poeta inserido numa tradição da poesia lírica e a vinculação de sua poesia à de Almeida Garrett e António Nobre são patentes no Cancioneiro.

Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é, sobretudo, o poeta da imaginação, como representam os poemas Autopsicografia (apresentado anteriormente) e o poema Isto, a seguir:

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.

Tudo que sonho ou posso,
O que me falha ou finda
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê.

Ao lado de poemas que fazem reflexão sobre a própria arte poética e o papel do artista (é o caso de Autopsicografia), há, ainda, na vertente lírica da obra de Fernando Pessoa, poemas que sondam o eu-profundo.

Leia mais em poemas em http://www.insite.com.br/art/pessoa/index.php

 

Enfim

Fernando Pessoa foi o principal escritor do Modernismo português. A poesia é a parte de sua obra que mais chama a atenção, pela singularidade e criatividade sem par na literatura de língua portuguesa e na universal. Além de criador de obras literárias, Fernando Pessoa foi um criador de escritores. Por meio da imaginação, Pessoa idealizou diferentes personalidades poéticas: os heterônimos. Além dessas personalidades, esse poeta português escreveu em seu próprio nome. Vem daí a obra de Fernando Pessoa “Ele Mesmo”.

E o poeta também é conhecido por suas cartas de amor, trocadas com Ofélia, sua namorada durante anos. Acaba de sair uma nova edição das cartas de Ofélia e Fernando, mas você pode ler algumas delas na página da Casa Fernando Pessoa: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2230

 

 

E por falar em cartas de amor, Álvaro de Campos (para quem “Todas as Cartas de Amor são Ridículas”) será nosso foco na próxima edição de Personagens. Até lá.

 

Para o meu Eli Pereira.

 

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Literatura Portuguesa em Perspectiva: Simbolismo e Modernismo. Direção de Massaud Moisés. São Paulo: Atlas, 1994.

_____. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999.
_____. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

_____. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

_____. Mensagem. São Paulo: Princípio, 1993.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Sonhando Acordado

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Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um obstáculo imperdível, ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo.

Palcos da vida – Fernando Pessoa

É com esses fragmentos do poema Palco da Vida, do escritor Fernando Pessoa, que começamos a contar um pouco da nossa experiência.

Em primeiro lugar não pensem que essa é uma poesia escolhida aleatoriamente só pela beleza que ela representa, sua escolha vem de algo mais profundo, tem a ver com a história de vida de quem a fez e sua analogia com uma criança que tivemos o prazer ou, sei lá, o dissabor de atendermos.

O autor, Pessoa, teve sua infância e adolescência marcadas por fatos que o influenciaram posteriormente. Seu pai morreu aos 43 anos, vítima de tuberculose, quando Pessoa tinha apenas cinco anos de idade. O poeta perdeu seu irmão poucos meses depois e, pra piorar a situação, sua mãe entra em profunda crise financeira. Sua mãe casa-se pela segunda vez e Pessoa tem que dividir a atenção da mãe com os filhos do novo casamento e com o padrasto.

Pessoa, a partir de então, começa a “outrar-se”, escrever “outros eus” com biografias próprias, mas que representam intimamente os desejos do autor que os produziu. Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos traduzem de forma simples os amores, desejos e vontades de Pessoa.

A criança sobre a qual falaremos será chamada de Fernando (nome fictício, escolhido por analogia ao autor citado acima).

Fernando, ao dar entrada no serviço de Psiquiatria da Faculdade ITPAC Porto Nacional, foi atendido, individualmente, por nós, acadêmicos. Na entrevista, ao ser perguntado sobre sua família, o mesmo a descreveu como uma família feliz. Seu pai todos os dias o levava e o pegava-o na escola, brincava com ele durante o caminho, contava piadas e sua mãe muito atenciosa sempre estava em casa, a esperá-lo com uma comida prontinha. Aos finais de semana, jogava bola com o pai e com os irmãos e, muitas vezes, o pai o punha para dormir, lendo livros de histórias infantis.

Mas como nem tudo o que parece é, entra pela porta a supervisora da instituição em que a criança era interna e logo vemos o semblante do menino mudar e, junto com ele, a sua história. Para nossa surpresa, conta a supervisora que aquela criança que apresentava um bom quadro clínico mental, estava figurando todo tempo a sua história. Fernando tem cerca de nove anos de idade e vive em um abrigo de menores, foi levado até lá há cerca de um ano, depois de ter sido retirado da guarda de seus pais pelo Conselho Tutelar, pois, Fernando, era vítima de agressões físicas constantes e maus-tratos, principalmente de seu pai. O garoto já apresentava sequelas provindas dos abusos físicos que sofria e nada que havia nos contado, principalmente em relação a seu pai, era verdade.

Atualmente ele vive cercado de crianças que têm histórias de vidas tristes como a sua e uma coisa em comum – embora sejam bem tratados por boa parte das pessoas da instituição, não têm convívio familiar.

Ao ver que estava em meio a pessoas desconhecidas e em um lugar totalmente novo, Fernando, desvinculado com o meio em que vivia, percebeu que havia a chance de refazer, recontar a sua história de vida. Embora a criança vivesse uma vida desgraçada, ela agora tinha chance de reconstruir sua história, mas dessa vez seria como Fernando realmente queria que fosse sua realidade, ou seja, com pais maravilhosos.

Vocês devem estar se perguntando: “o que Fernando Pessoa tem a ver com o Fernando por nós atendido?”.

Pessoa utiliza-se dos heterônimos e Fernando, a criança, utiliza-se de um processo chamado desterritorialização, para que possa sair do lugar onde não quer estar, e criar esse outro mundo. Contudo, ambos procuram a mesma coisa: expressar seus desejos mais íntimos, isto é, seus sonhos, até antes inatingíveis, agora ganham vida e se concretizam mesmo que no território da imaginação onde a verdade pode ser disfarçada ou a mentira não tem necessidade de ser verdade.


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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