“Tropa de Elite” – um retrato do adoecimento gerado pelo poder

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Em Outubro de 2007 chegou às telas do cinema brasileiro um dos filmes que marcou a cinematografia nacional, o filme “Tropa de Elite – Missão Dada é Missão Cumprida”. A película policial foi dirigida por José Pardilha, roteirizado juntamente com Braulio Mantovani e Rodrigo Pimentel e produzido por Marcos Prado conta a história pelo ponto de vista do Capitão Nascimento das operações do BOPE na cidade do Rio de Janeiro.

Por diversas vezes o filme retrata o adoecimento psíquico desse profissional que sua recusa ir em busca de um tratamento e ajuda devido a diversos motivos, podemos interpretar como alguns desses motivos como a organização policial é feita no Brasil e a cultura machista que perpetua a ideia de que pedir ajuda é sinal de fraqueza.

                                                                                                       Fonte: pixabay.com

 

Desde o início da criação do Estado fez-se necessário o surgimento de formas que regularizem o comportamento em sociedade para que o crescimento e organização se expandisse a medida que a sociedade tomasse novas proporções, sabemos que no Brasil os caminhos da história nos trouxeram para o quadro em que o Governo é nosso mediador nessa organização, sobre isso Tavares dos Santos (2012) aponta que a constituição da governabilidade estabelece-se a partir das práticas de poder e Foucault (1996) vai pontuar dois principais exercícios de poder: a Razão de Estado e a Polícia. Nessa visão entendemos que a polícia vai estar ligada à expansão do poder do Estado e a medida que ambos vão crescendo o poder que está em suas mãos também vai crescendo, e com isso a polícia que era vista como símbolo de justiça, igualdade, proteção em que enxergava como principal objetivo a vivência dos homens começa a se corromper e passa a buscar interesses não mais voltados para o bem comum social.

                                                                                                     Fonte: pixabay.com

 

Com isso o poder e proteção se transformam em violência que acaba por ser normalizada na cultura brasileira. José Padilha, diretor do filme, em entrevista dada ao canal do YouTube “Trip TV” aponta que um dos objetivos que buscava passar na trama era mostrar a violência presente no meio policial, não como forma de apoio e sim de barbaridade, diz ainda que o Brasil acabou por perder o senso do absurdo, em suas palavras diz que “as pessoas para assaltar uma bicicleta esfaqueiam, fazendo um paralelo, se estivessemos em Nova York e alguém fosse esfaqueado Nova York iria fechar, porque o sujeito de lá consegue ver o absurdo, mas a gente não consegue ver o absurdo”.

Podemos ainda somar a essas questões que o indivíduo que ingressa nessa atuação acaba por não buscar ajuda, Costa et al (2020) mostra em sua pesquisa que a maioria dos profissionais com o tempo passam a adquirir hábitos que não possuíam antes como fumo e consumo exagerado de álcool, além de problemas cardiovasculares, mas sem busca de um tratamento adequado. Parte disso pode-se dizer que é pelo medo de perder sua posição na profissão e

assim seus status de poder.

Referências

(1996) Michel Foucault, um pensador das redes de poder e das lutas sociais. Revista Educação, Subjetividade e Poder, Porto Alegre, NESPE/ PPG-Educação da UFRGS, Ed. UNIJUI, 3: 7-16, janerio-junho.

Tavares dos Santos, José Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial, consenso e violência. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, IFCH , Departamento de Sociologia, Rio Grande do Sul, Brazil. Junho, 2012.

Costa, Francis Ghignatti da. et al. Qualidade de vida, condições de saúde e estilo de vida de policiais civis. Junho, 2020.

 

 

 

 

 

 

                                                                            

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O mito da mulher guerreira: uma análise da canção ‘’estou nervosa’’ filme Encanto

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Mais uma canção do filme Encanto (DISNEY, 2021), Como já vimos, o filme é rico em metáforas e reflexões, nos fazendo perceber que animação não é só coisa de criança. De fato é um verdadeiro encanto. Dessa vez vamos falar sobre a canção  ‘’Estou nervosa’’ no original ‘’surface pressure’’. Produzida por Lin- Manuel Miranda.

 

 

Antes de falar sobre a canção, cabe entendermos  um pouco da personagem Luísa, a qual  é marcada pelo arquétipo da mulher guerreira, tanto em sua aparência alta, com grandes músculos,  como o dom que ela recebeu da casita; força física. E é  através desse dom, que ela usa de estratégias e artifícios para ajudar as pessoas. 

fonte:http://encurtador.com.br/rtAZ4

As sociedades antigas e medievais, encontraram na transmissão dos mitos a forma de perpetuar, seus medos, anseios, verdades, e fantasias (DETIENNE,1992). O mito por trás da mulher  guerreira nos mostra que para tal  titulação uma mulher deve ser justa, disciplinada, corajosa, intrigante e competente, alguém que faz de tudo para atingir metas, e coloca o bem maior dos outros acima do seu. As mulheres guerreiras dos mitos e histórias, sempre causaram sentimentos contraditórios nos homens, ao qual desenvolveram um certo fascínio por elas, devido as suas habilidades no manejo de armas, e no campo de batalha, sendo vista com temor, ao mesmo tempo em que sua feminilidade desata e desafia a coragem e honra masculina. 

 A mulher guerreira, sempre muito forte mas ao mesmo tempo feminina, perpetua o imaginário de homens até hoje, alguém que consegue suportar tudo e ao mesmo tempo trazer a satisfação necessária. ‘’E, desta feita, a mitologia vai se adaptando e modificando ao longo dos tempos, pois “em cada imagem que cria e inventa, a mitologia se metamorfoseia e seu saber se desloca: ela toma a forma efêmera do espaço que habitou um dia.” (DETIENNE, 1992, p. 226)

Percebemos na canção  um desabafo de Luisa, frente ao seu papel ao revelar a sua sobrinha o quanto anda sobrecarregada dos diferentes afazeres em prol da vila e da família, mas que até então faz sem reclamar ou questionar.

fonte: http://encurtador.com.br/aexDU

Descartes (1596- 1650) na sua perspectiva do dualismo substancial, nos diz que somos constituídos de uma coisa extensa, o ccorpo, e uma coisa pensante; a mente, que vivem em constante interação e que formam um todo único.  Ele ainda aponta que quando estamos em uma emoção, significa  que possuímos um conhecimento intuitivo, direto, subjetivo não apenas sobre o que ocorre na mente, mas também no corpo. ‘’Cumpre notar que o principal efeito de todas as paixões nos homens é que incitam e dispõem a sua alma a querer as coisas para as quais elas lhes preparam os corpos; de sorte que o sentimento de medo incita a fugir, o da audácia a querer combater e assim por diante.’’ Descartes (1973a, p. 242).

Luisa é movida por esse misto de sentimentos ao mesmo tempo que se dispõe da audácia de querer combater,  da compaixão de querer ajudar, é cercada por um medo que enfraquece seus poderes e incita a fugir, mas ela não pode, pois quem iria fazer suas atividades? quem conseguiria estar no seu lugar? a pressão é tão grande que percebemos a ansiedade surgindo em seu desabafo. 

‘’ a pressão

é tanta por aqui-qui

que já me estressou, uou

e a pressão faz tic, tic, tic

meu limite chegou,uou, oh ,oh ‘’

Assim como Luisa, muitas mulheres compartilham dessa ansiedade, e sentem que já chegaram aos seus limites por  tantas cobranças e afazeres. As ditas ‘’mulheres guerreiras’’, não querem mais ”guerrear’’. Uma matéria  do buzzfeed intitulada: ‘’Precisamos parar de romantizar o termo “mulher guerreira” (Sofia Riccardi) Nos trouxe relatos de algumas mulheres, que estão cansadas de serem tratadas assim. Materia completa: http://encurtador.com.br/wHIPX

fonte:encurtador.com.br/wHIPX

Um paralelo entre esses desabafos e a canção, é a sobrecarga de afazeres, sociais, familiares e pessoais, a conciliação de tantas coisas chega a parecer impossível.  ‘’Se antes a “mulher perfeita” era a que cuidava bem do lar e da família, hoje ela precisa se destacar profissionalmente sem descuidar das questões anteriores e, ainda, ter um corpo modelo.’’( MORAES 2012, p.4).

Pesquisas feitas demonstram que mulheres são mais afetadas pelo estresse e esgotamento profissional, do que os homens. A  justificativa para isso são as inúmeras cobranças entre: trabalho, casa,filhos, saúde, conjugue, autocuidado. Essas mulheres são marcadas por um cansaço, falta de energia, desmotivação, desinteresse, irritação, mudanças de humor repentino, redução na concentração, esquecimento, desânimo, sentimento de fracasso e uma baixa autoestima. 

Sabemos que o stress é uma defesa natural do organismo, uma resposta fisiológica frente a agentes estressores. Quando existe a sobrecarga  dessas respostas, ocorrem consequências e danos à saúde. A sobrecarga da ‘mulher guerreira’ faz com que muitas mulheres de hoje desenvolvam o burnout e a ansiedade, pois estão tão empenhadas aos seus afazeres, que negligenciam a si mesmo. Podemos observar no trecho da canção:                                

‘’Não questiono se é pesado

O meu corpo suporta o fardo

Se me dão aço, eu piso, eu amasso

Com a força dos braços, eu faço estilhaço

Mas estou nervosa e ansiosa

Na corda bamba, sigo cautelosa

Estou nervosa

Como um herói que se cansou numa luta horrorosa’ Encanto (2021)

Essa sobrecarga ainda é marcada por julgamentos e críticas a si mesmo, quando não suportam mais e cedem a angústia, são por muitas vezes chamadas de surtadas.‘’É sempre um trabalho mental permanente, exaustivo e invisível, e portanto não reconhecido’’. Indiara leite (COMUNICA,2021)

‘Estou nervosa

Se eu não for generosa, me sinto ociosa

Não posso cansar, não posso falhar

Será que eu vou quebrar? o que me faz quebrar’’

Quanto a esse trecho da canção [..]

‘Estou nervosa, Eu fico ansiosa

Mas tento fingir ser corajosa

Estou nervosa

Ameaça é raivosa, fatal e silenciosa Encanto (2021)

Eu estou nervosa

Eu sei sou orgulhosa, a vida é perigosa

A casa vai cair, preciso agir

Eu uso a minha força, mas não sei como impedir ‘’ Encanto (2021)

 

Temos essa reflexão de Indiara Leite (COMUNICA, 2021)

” Infelizmente enquanto crianças, meninas frágeis e inocentes não sabíamos e ninguém nos disse que o mundo também é nosso por direito! Ninguém disse que a luta seria de igual para igual, ninguém dos falou de equidade e que por meritocracia conquistamos o que quer que seja, e por isso, corremos atrás do tempo, das oportunidades, das referências, do protagonismo, dos títulos e dos cargos, das migalhas e muitas vezes corremos contra outras mulheres para provar não sei o’que para não sei quem.

De acordo com a BBC (2021) especialista dizem que não existe uma única razão pela qual mulheres ficam esgotadas, mas que tem ligação com a forma com que as estruturas sociais e normais de gêneros se cruzam, ao causar desigualdades, um exemplo disso é o ambiente de trabalho.  Em geral, pesquisas ligam baixas rendas a altos níveis de estresse a uma saúde mental ruim.

No dia a dia vemos muitas mulheres como Luisa, sobrecarregadas, tendo que lidar com uma rotina exaustiva, equilibrando mil coisas, por isso precisamos repensar sobre o termo mulher guerreira, e as implicações que vem com tal ‘’estilo de vida’’.  É necessário entender que não está tudo bem, e poder proporcionar um espaço para que essas mulheres olhem para dentro de si, e se permitam sentir além dos julgamentos.  Precisamos ainda refletir e problematizar as questões de gêneros e combater o machismo tão estruturado ao qual coloca mulheres nessa posição. Ensinando as nossas garotas, que o lugar delas no mundo não é confortável, mas que lutamos para que seja, então está tudo bem sentir.

  A partir de hoje, quando você lembrar de uma mulher e pensar o quanto ela  é guerreira, pense também nas implicações que atribuem a ele esse fato e de que forma você pode ajudar, seja estendendo a mão, seja trazendo conhecimento,  de forma a tornar seus  fardos  menos pesados.

 

REFERÊNCIAS

COX, Josie.Por que mulheres sofrem mais de síndrome de burnout do que homens. BBC. 2021 Disponivel em <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58869558> acesso em 06 de maio de 2022

ENCANTO. ‘’Estou nervosa’’. EUA. Disney+ 2021. 1:14.

LEITE, Indiara. Burnout nas Mulheres:sobrecarregadas para a romantização da “mulher guerreira. COMUNICA. 2021. Disponivel em <https://comunicarh.com/burnout-nas-mulheres-de-sobrecarregadas-para-a-romantizacao-da-mulher-guerreira/> acesso dem 06 de maio de 2022.

O mito da mulher guerreira: uma análise da saga de Hervör. João Pessoa: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos, 2021, 258 páginas. ISBN: 978-65-00-22255-5

MORAE, E. Ser mulher na atualidade: representação discursiva da identidade feminina em quadros humorísticos de maitena. In TASSO, I., and NAVARRO, P., orgs. Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas [online]. Maringá: Eduem, 2012. pp. 259-285. ISBN 978-85-7628-583-0. Available from SciELO Books .  

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Para todas as heroínas em busca da própria jornada

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Em novo livro, escritora Elizabeth Cronise McLaughlin, ex-advogada do Wall Street redesenha paradigmas tradicionais da liderança feminina em combate às estruturas opressoras.

Somos todas heroínas: uma ferramenta de luta contra a opressão sistêmica, institucional, interpessoal e internalizada do patriarcado supremacista branco. O lançamento da  VR Editora, pelo selo  Latitude, é uma novidade da escritora  Elizabeth Cronise MCLaughlin. Advogada por 15 anos do Wall Street, ela largou a carreira jurídica e fundou a  Gaia Project for Women’s Leadership  – Projeto Gaia para Liderança das Mulheres, em português – fundação reconhecida por personalidades como Arianna Huffington, cofundadora do site de notícias  The Huffington Post.

Para contribuir na jornada das leitoras heroínas contra cada uma das estruturas opressoras, a escritora apresenta quatro estágios para seguir durante o processo. Reconhecimento, reconciliação, revolução e renascimento, são instrumentos para a construção da liberdade e igualdade de gênero. “O que escolhemos fazer juntas agora vai nos levar ao mundo no qual viveremos pelos próximos séculos. Esse futuro depende da cura e do renascimento das heroínas em todos os lugares, de dentro para fora”, explica Elizabeth.

Aos que questionam a diferença da jornada do herói para a jornada da heroína, a escritora destaca que a primeira é normalmente originada por uma razão individual, como uma guerra ou uma mulher, ao exemplo da mitologia grega, com o objetivo da glória e prestígio. No entanto, a jornada para a qual o sexo feminino é chamado busca um benefício coletivo, em que cada indivíduo é tomado por um espírito de resistência.

Somos todas heroínas é um convite para que cada leitora encontre a própria jornada a partir do pensamento e vivências de grandes mulheres. Conforme afirmou LaTosha Brown, cofundadora da  Black Voters Matter, no prefácio da obra, “este livro fala diretamente com nós, mulheres, que precisamos colaborar e conspirar para fazermos um futuro melhor juntas, pois nenhuma será livre enquanto todas não formos”.

Ficha técnica:

Título: Somos todas heroínas Autora:  Elizabeth Cronise MCLaughlin Número de páginas:  262 ISBN:  978-65-89275-19-0 Editora:  VR Editora, selo Latitude Formato:  16 x 23 cm Preço: R$ 59,90 Link de venda

Sobre a autora:  Elizabeth Cronise McLaughlin é doutora em Direito pela George Washington University Law School, Estados Unidos. Foi uma advogada de sucesso em Wall Street e após uma carreira de 15 anos fundou a Gaia Project Consulting, LLC, empresa de consultoria executiva. Cinco anos depois criou o Gaia Project for Women’s Leadership – Projeto Gaia para Liderança das Mulheres. Seu trabalho foi reconhecido por mulheres como Arianna Huffington, cofundadora do site de notícias The Huffington Post; Amanda Steinberg, fundadora do DailyWorth, plataforma de mídia financeira para mulheres; Chantal Pierrat, fundadora do Emerging Women Live, projeto de liderança feminina. Palestrante em corporações sem fins lucrativos, pretende transformar os paradigmas tradicionais de liderança.
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O poder dos homens sobre a sexualidade das mulheres

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Um conceito derivado do machismo que durante muitos anos foi ensinado a sociedade fortalecido desde os tempos antigos, é de que a mulher deve ser vista como um suporte ao homem, que deve sempre lhe dar apoio, e que ao mesmo tempo se torna menos que o mesmo.  Tal característica é apresentada desde a Idade Antiga quando houve início a sociedade patriarcal, que tem como forte aspecto a supremacia do homem, no poder, na política, nas decisões etc. As decisões e escolhas das mulheres eram negadas a elas, e o poder sobre o seguimento de suas vidas era hora destinado ao pai que decidia com quem a filha iria se casar, hora ao marido que lhe dava a casa e filhos para que ela pudesse cuidar e hora a igreja que falava sobre o que era certo e o que era errado (CARELLI, 2017).

Como forma de exercer poder sobre as mulheres e sobre a legitimidade dos filhos, o sexo era pregado pela igreja durante a Idade Antiga e a Idade Média, como pecado. Para a mulher casada era visto como algo sujo e errado, já para os homens, um pecado que podia ser cometido com mulheres em prostíbulos, para assim manterem suas esposas puras. Existiam nessa época diferentes tipos de acompanhantes, inclusive mulheres que tinham acesso ao estudo e ao aprendizado sobre música e arte para que pudessem entreter seus acompanhantes (LINS, 2012).

Durante a Idade Moderna, a ideia de amor romântico surge, e a mulher é levada a crer desde a sua infância na existência de príncipes encantados, que iriam conquista-las, e a quem deviam seu amor fervoroso e lealdade. A virgindade da mulher passa a ser vista como um presente que deve ser dado a uma pessoa especial. Já aos homens a ideia de conquista desse presente guardado a sete chaves, era visto como um ato de virilidade, e que a conquista de vários e o desejo das mulheres sobre esse homem, relacionava a ideia de certo poder (LINS, 2017).

Nos dias atuais, falar sobre sexualidade ainda é de certa forma um tabu. Não é permitida a educação sexual nas escolas, embora possam ser encontradas facilmente notícias sobre abuso sexual. Em alguns meios religiosos, ainda são apontados como pecado a procura do prazer sexual, ou a masturbação. E a mulher ainda sofre muitos preconceitos e pode ser considerada uma mulher sem valor, por querer exercer sua sexualidade da forma que deseja.

De acordo com Castro (2009), é perceptível entre os jovens ainda a ideia de que a meninas que exercem sua sexualidade, ou demonstram seus interesses afetivos e sexuais, são vistas pelos meninos, como sem valor e vulgares. Os jovens ainda apontam que essas meninas apenas servem para relacionamentos passageiros ou ficadas. Apesar disso, meninos da mesma idade, apresentando os mesmos comportamentos são vistos como conquistadores, e recebem certo conhecimento por terem muitos relacionamentos.

Leal (2003) coloca que há uma preocupação entre as jovens mesmo nos dias atuais, a relacionarem sua primeira relação sexual a um relacionamento afetivo, ou sentimentos de paixão e amor. Isso pode ocorrer devido a ainda nos dias atuais, a mulher ser levada a crer também desde a infância na ideia de que a mulher que exerce sua sexualidade ser mal vista.

Segundo Francisca e Luis (2008), é possível notar que a mulher quando exerce os mesmos comportamentos esperados do homem, como na normalização do adultério, ou a busca pela satisfação conjugal quando insatisfeita na relação em que se situa, pode ser ainda mal vista pela sociedade em que se encontra, e questionada ou influenciada a retomar uma relação que decidiu pôr um fim.

É apontado ainda, segundo Rodrigues (2008), que as mulheres nos dias atuais podem exercer maior controle sobre as finanças, e conquistam a estabilidade financeira antes de seus cônjuges. Apesar disso, podem ser percebidos sentimentos de baixa autoestima por parte dos homens que se sentem como se não tivessem obtido sucesso ou das mulheres sobre como se sentem estando ao lado de homens que dependem financeiramente dela, isso pode ocorrer devido a busca de papéis em que o homem é colocado como detentor do poder, o que pode influenciar na intimidade do casal.

Sendo assim, é percebido que as mulheres apesar de conquistarem muitos direitos, e poderem escolher sobre seus desejos e vontade, acabam por serem influenciadas a conceitos antigos que colocam a mulher como uma figura pura, e que será levada a sério se manter-se recatada. As mulheres acabam por cobrarem e vigiarem seus comportamentos com receio de serem julgadas, ou cobram de si mesmas, retorno a papéis em que o homem seja o detentor do poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R.J.S. Violência no namoro entre adolescentes do Recife: em busca de sentidos. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009. Disponível em: Acesso em 23 de setembro de 2021.

DIEHL, A. VIEIRA, D. L. Sexualidade – do prazer ao sofrer. 2. ed. São Paulo: Roca, 2017.

FRANCISCA, L.A.; LUIS, F.R.N. Homens cornos e mulheres gaieiras: infidelidade conjugal, honra, humor e fofoca num bairro popular de Recife/Pe. 2008. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Disponível em: Acesso em 23 de setembro de 2021.

LEAL, A.F.. Uma antropologia da experiência amorosa: estudo de representações sociais sobre sexualidade. 2003. Disponível em:. Acesso em 16 maio de 2021.

LINS, R.N., 1948. O livro do amor, volume 1 [recurso eletrônico] : da Pré-história à Renascença / Regina Navarro Lins. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

LINS, R.N. Novas formas de amar / Regina Navarro Lins. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

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Você vive um relacionamento abusivo?

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Não é fácil definir um relacionamento abusivo, muito menos identificar se você é o abusador ou o abusado. Claro, algumas situações são óbvias, como por exemplo, quando a esposa apanha do marido, quando há uma violência explicita. Mas o relacionamento abusivo não se limita a surras e a danos físicos. O dano psicológico é até mais devastador do que o corpo machucado. Mulheres gostam de apanhar? A não ser em casos de masoquismo, a resposta é “não”. Então por que não se defendem? Por que não delatam o companheiro violento? Por que continuam com ele e ainda inventam desculpas para suas surras? Simples, porque antes de serem abusadas fisicamente, elas foram abusadas psiquicamente.

Antigamente, somente os homens trabalhavam. Eram eles que sustentavam a família. Eram eles que recebiam salário. Eram eles que detinham o poder dentro de casa. O marido mandava e a mulher obedecia. Simples assim. Em famílias mais machistas, o homem poderia trair a esposa, agredi-la física e verbalmente, inclusive diante de outras pessoas, controlar suas amizades, seus relacionamentos familiares, enfim, o homem era o dono e a mulher, a propriedade. A maioria aceitava o fato como se fosse uma lei. No entanto, mesmo aquelas que se revoltavam contra isso, eram obrigadas a aguentar, ou porque não tinham como se sustentar sozinhas, dependiam do marido para tudo, ou porque a família era contra a separação. O aspecto religioso também tinha muita influência na submissão da mulher. O homem era a cabeça, dizia a igreja, e a esposa tinha obrigação de obedecê-lo. Em algumas partes do mundo, até hoje isso é realidade.

Mas e quanto às mulheres que são independentes, livres da dominância masculina e religiosa? Por que não se rebelam contra o relacionamento abusivo? Por que continuam dia após dia ao lado do abusador? Por que inventam desculpas que protegem o homem que as espanca?  

Fonte: encurtador.com.br/jrIJ5

Alguns esclarecimentos  

Para efeito desse artigo, usarei sempre o exemplo de um homem, como abusador, e sua companheira, como abusada.  Mas antes de mais nada, é preciso deixar alguns pontos bem claros. Nem todo abusador usa da violência física. A violência psicológica é mais poderosa e duradoura. Não deixa marcas e o dano pode ser irreversível.

Nem sempre o abusador é o homem. Mulheres também podem ser, e muitas vezes são, abusivas.

Qualquer relacionamento pode ser abusivo. Entre pessoas de sexos opostos ou não.

Qualquer relacionamento pode ser abusivo, não apenas entre casais. Pode haver abuso entre amigos, entre pais e filhos, entre professores e alunos.

Nem sempre o abusador sabe que está abusando e nem sempre o abusado percebe que está sendo dominado.

O abusador não tem cara de vilão e o abuso começa aos poucos, discretamente, disfarçadamente. Normalmente ele é encantador, cativante e você não acredita na sorte que teve de encontrá-lo.

Muitas vezes o abusador se torna abusador porque o abusado lhe confere muito poder. Nem sempre é fácil resistir ao poder.

Fonte: encurtador.com.br/vDFQV

Mas no que consiste o abuso?

Como saber se você está em um relacionamento abusivo?

Você começa a perder a voz. Sua voz não é mais ouvida, não tem mais valor.

Você começa a perder os amigos. De repente, não há mais nenhum amigo em sua vida.

Você começa a se afastar dos parentes. Frequenta cada vez menos os eventos, as festas, as reuniões sociais.

Você muda a maneira de se vestir, você para de beber, não dá mais aquelas gargalhadas altas, não faz mais nada divertido.

Você frequentemente se sente inadequada.

Você frequentemente se sente indigna de amor.

Você já não tem mais autoestima.

A única pessoa que te ama verdadeiramente é aquela que está ao seu lado.

Nada do que você faz está certo. Nada do que você faz tem valor.

Você não serve para nada.

Você se olha no espelho e não mais se reconhece.

Quando é maltratada, você acha que mereceu, que a culpa foi sua.

Você tem medo de perdê-lo, pois ninguém mais vai te querer.

Fonte: encurtador.com.br/hJM45

A armadilha

Júlio é encantador. Não necessariamente bonito, mas charmoso. Desde o começo trata Amanda como se ela fosse uma joia rara e delicada. Ele lhe dá presentes lindos, leva a amada a diversos restaurantes, conquista toda a sua família e até os amigos dela incentivam o namoro.

Ele pede que Amanda vá morar com ele e ela prontamente aceita.

Um dia, vão sair para jantar e ele diz, com todo o cuidado, que a roupa dela está muito decotada. Mulher de respeito não usa roupas daquele jeito. O que vão pensar dela? Se ela quiser sair assim mesmo, tudo bem, ele só está zelando por sua imagem. A mulher gosta de sua roupa, mas talvez ele tenha razão. E não custa nada agradá-lo, só dessa vez.

Mas aos poucos, ela começa a usar, cada vez mais, roupas mais sérias e sóbrias. Afinal, não quer que ninguém pense mal dela e seu companheiro só está tentando protegê-la.

Eles vão a uma festa na casa de alguns amigos e na volta ele fica amuado. Quando ela insiste em saber o que aconteceu, Júlio lhe diz que seus amigos são falsos e não gostam dela de verdade. Com exceção do Rafael que está dando em cima dela e só ela não percebe.

A mulher não acredita, mas quando saem com seus amigos novamente, ela começa a procurar sinais em todos eles. Aos poucos, vai se afastando dos homens e restringe sua amizade só às mulheres.

Mas as mulheres também não prestam. A Luciana tem inveja dela e a Raquel está sempre se insinuando para ele. Assim, Amanda começa a evitar suas amigas. Com o tempo, os convites ficam mais escassos e logo a mulher não tem mais com quem sair, a não ser os amigos de Júlio, de quem ela não gosta muito.

O homem também começa a implicar com a família de Amanda. Nada muito óbvio, nenhum insulto claro. Apenas algumas alusões à fatos que ele percebeu: sua família nunca a amou de verdade. O preferido sempre foi seu irmão. Seu pai, obviamente não gosta dele e faz com que ele se sinta um intruso na família.

Aos poucos, Amanda começa a se afastar também da família. Não tem problema, ela está com Júlio, o único que a ama de verdade.

Então, ele começa a fragilizar a confiança da mulher. Ela está engordando. Em tom jocoso, começa a chamá-la de bolota. Seus cabelos estão muito compridos. Seus cabelos estão muito curtos. Ela não vai envelhecer muito bem. Ela está com aparência de doente. Ainda bem que ele não liga para as aparências. Mas ela podia se esforçar um pouquinho mais.

Júlio sempre caçoa de Amanda, chamando-a de burrinha. Tudo o que ela diz, é bobagem. Ela não sabe de nada. Tão tapadinha, coitada.

Ele vai minando as forças da mulher em todas as áreas. Quando ela fica zangada ou ofendida, no dia seguinte ele lhe dá uma dúzia de rosas.

Em um dia, ele lhe agrada. No dia seguinte, ele a despreza.

Amanda passa a viver em uma montanha russa de emoções. Quando acha que não vai suportar mais suas grosserias, Júlio a surpreende com algum presente ou a leva para jantar em seu restaurante favorito. Ele a eleva um pouquinho, para em seguida deixá-la cair de cabeça.

Ninguém jamais vai te amar como eu te amo. Você é burra mesmo. Nossa, você está cada dia mais feia. Quem vai olhar para você? Seu gosto para roupas é muito cafona. Deixa que eu escolho o que você vai vestir. Você não percebe que todo mundo caçoa de você. Fala menos que é melhor. Não sei o que vi em você. Mas não se preocupe, estarei sempre ao seu lado.

A autoestima de Amanda nunca esteve tão baixa. Uma mulher linda, inteligente, independente. Competente em seu trabalho. Respeitada pelos colegas. Mas quando ela se olha no espelho, tudo o que ela vê é uma mulher gorda, acabada, velha, burra, desprezada, um zero à esquerda. Ela não tem mais valor. Ela não tem mais opinião própria. Era viva, alegre, sorridente. Agora mal sorri. Mas Amanda não conta nada a ninguém. Não quer que julguem seu companheiro. Afinal, ele é muito bom para ela. Se às vezes ele a magoa é porque só quer o seu bem. Ele a ama.

Depois de um tempo nesse relacionamento tóxico, Amanda já se acostumou a ser maltratada. Os insultos ficam cada vez piores. As gentilezas cessam. A sutileza some. Uma vez, a comida está sem sal. Ele joga o prato que se espatifa no chão. Furioso ele manda a esposa limpar aquela sujeira. Amanda se recusa. Está magoada e assustada. Júlio, então lhe dá um tapa na cara. Mais tarde, ele vai procurá-la no quarto e diz que ela o força a fazer essas coisas. Ele não quer, mas ela precisa aprender. Amanda, já com seu psicológico completamente fragilizado, passa a acreditar que realmente tudo é culpa dela.

Um dia a mulher chega ao trabalho com o olho roxo. Os colegas perguntam o que aconteceu e ela responde que caiu e bateu o rosto no móvel da sala.

Outro dia ela liga para o trabalho alegando que está doente. Mas quando ela volta a trabalhar, as marcas em seus braços ainda são visíveis.

A violência física e verbal vai se tornando cada vez pior. Amanda pensa constantemente em se separar, mas e se nunca mais alguém gostar dela? Ela é muito amada, tem certeza disso. Quem mais a amaria? Quem mais cuidaria dela como Júlio cuida? Ela não vale nada. Ela é feia, gorda, burra, incompetente. Quem mais ficaria ao lado dela?

E assim acontece com muitas mulheres, nesse mundo moderno, ainda nos dias de hoje. Não há, necessariamente violência física. Nem todos os relacionamentos abusivos chegam até esse ponto. Mas certamente há violência psicológica. E essa é a chave de tudo.

Fonte: encurtador.com.br/kvxGZ

Como então, se proteger?

V ocê pensa: ah, isso jamais aconteceria comigo. Será? Imagine uma torneira pingando uma gota de água incessantemente. No começo, você não presta atenção. Depois, começa a ficar levemente irritado. Depois acha que vai enlouquecer. Mas as primeiras gotas, você nem percebe. É muito fácil se deixar influenciar sem perceber. Depois de ser bombardeado com determinada informação, o cérebro passa a acreditar naquilo que está ouvindo constantemente. E quem manda é o nosso cérebro.

Lembre-se, nem sempre percebemos essa lavagem cerebral. Precisamos estar constantemente atentos. Isso é possível? Se estivermos sozinhos, será muito difícil. A armadilha é sutil. Nenhum homem maltrata uma mulher logo que a conhece. Primeiro ele a conquista. Depois ele vai minando sua confiança pouco a pouco. As mulheres abusadas não são burras, não gostam de apanhar, não são carentes, não escolheram ser abusadas.

Então não tem saída? Sim, tem. Nunca se isole. Converse sempre com alguém de sua confiança. Você precisa ter pelo menos alguém na sua vida com quem possa conversar sobre tudo, nem que seja um terapeuta. Alguém que não vai julgar, não vai condenar, e vai mostrar uma perspectiva que você não está enxergando. Uma pessoa que possa devolver a sua voz.

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Aladim, os jogos de poder e o processo de iniciação da Alma

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Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Aladim é um filme de 2019, adaptado do desenho animado Aladdin, de 1992, e baseado no conto árabe As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland. O conto Aladim na verdade só se uniu as Mil e uma noites a partir do século XVIII, anteriormente ele não fazia parte da narrativa do livro.

No conto o jovem Aladim é descrito como um adolescente que se recusa a aprender o ofício do pai, que é alfaiate, sendo descrito por sua mãe como imaturo, “esquecido que não é mais criança”. O nome Aladim pode significar em árabe a “nobreza da fé”. Ou ser advindo da mistura de Alá e Djin (gênio ou daimon).

Djin ou Jinn, significa gênio na religião muçulmana, e era uma entidade sobrenatural do mundo intermediário entre o divino e humano. Estava além do bem e do mal, e rege o destino de alguém ou de um lugar.

Ele é um espírito guardião designado para cada pessoa ao nascer. Portanto, o gênio é concebido como um ente espiritual ou imaterial, muito próximo do ser humano, e que sobre ele exerce uma forte, cotidiana e decisiva influência. Sendo ele o responsável pelo cumprimento do destino de cada ser humano. Ou seja, Aladim é o herói que liberta o espírito divino preso na lamparina. Libertar o gênio não é um processo fácil, é o processo da individuação que exige disciplina e coragem.

Fonte: encurtador.com.br/fgwO7

No filme Aladim é um órfão pobre e ladrão, que vive em Agrabah. Ele é chamado de “rato de rua” e seu amigo é um macaco que o acompanha em suas aventuras. Mas antes de adentrar a história mesmo, é importante comentarmos sobre um simbolismo muito importante: o da lâmpada mágica.

A lâmpada é uma figura presente em contos e lendas. Ela é um instrumento de iluminação associada ao ser humano, que contém em si o fogo do interno. Como lamparina ou lâmpada é transitória e o fogo dessa iluminação pode se extinguir, sendo necessário o tempo todo ser aceso. Ou seja, o ser humano precisa de tempos em tempos reacender o fogo da espiritualidade em si, pois enquanto matéria, somos levados a nos manter inconscientes e em nossa zona de conforto.

O fogo e o gênio são acionados quando nos esforçamos e decidimos adentrar em nosso interior. A lâmpada é na verdade uma lamparina semelhante àquelas utilizadas na iluminação doméstica.

Na Grécia antiga o culto da deusa Héstia, deusa representada pelo fogo, era feito em seu templo e em casa, por meio do fogo que deveria ser mantido aceso sempre. As sacerdotisas dos templos tinham que estar sempre atentas para que esse fogo não se apagasse.

Fonte: encurtador.com.br/aJOS4

Héstia também estava presente em cultos domésticos. A importância de Héstia é encontrada em rituais, simbolizada pelo fogo. Para que uma casa se tornasse um lar, a presença de Héstia era solicitada.

Ou seja, o fogo do espírito deve estar presente em nosso recôndito mais íntimo, no nosso lar interno. O fogo do espírito, ou seja, o conhecimento além da simples matéria, o fogo da essência divina (do Self) deve estar sempre presente no nosso cotidiano.

Aladim no filme é inquieto, está em busca de algo que o tire da rotina e não se preocupa em encontrar uma profissão e ganhar seu dinheiro. É tido como irresponsável e infantil. Porém, estamos falando de um herói. E como herói é necessário que olhemos para ele não como um ser humano comum, mas como uma imagem arquetípica.

O herói não necessariamente é aquele que luta e mata os monstros, dragões e bruxas. Ele muitas vezes pode se apresentar como um bobo, ou como alguém com caráter duvidoso (o anti-herói).

Fonte: encurtador.com.br/cdKL5

Como ladrão, Aladim apresenta características do deus Hermes. Hermes é o deus grego da inteligência, astúcia, magia, divinação, viagens, estradas e dos ladrões. Além de ser um guia de almas. Era o único deus capaz de transitar nos três mundos: deuses, humanos e dos mortos. Se tornando o mensageiro dos deuses. Mas o principal atributo de Hermes é a alquimia. Deus alquímico, transformador e guia da alma humana.

A alquimia representa a mais profunda transformação humana. É o processo de individuação projetado na transformação da matéria sem valor em algo valoroso. Podemos, portanto, observar Aladim como essa matéria bruta que irá se transformar em algo valioso.

Aladim tem como amigo um macaco, um animal que está muito próximo do ser humano. Para os Astecas e Maias o macaco estaria ligado às artes e à sabedoria. No hinduísmo havia um deus macaco chamado Hanuman. Ele era cultuado como uma encarnação do deus Shiva, que encarnou com a missão de ajudar um rei a derrotar um demônio. Hanuman representa a natureza instintiva do ser humano e a sua origem animal, que pode ser transformada e transmutada para o encontro com o divino.

Simboliza também a mente humana, que pula como um macaco para um lado e para o outro, de galho em galho, sem foco. Ao desejarmos tudo o que vemos nossa mente se atrapalha e se distrai nos tirando do que é essencial. Uma clara armadilha do ego humano. Hanuman transcende as paixões do ego e os sentidos e simboliza a disciplina da mente.

Fonte: encurtador.com.br/qtyZ9

No filme, Aladim parece não ter foco. Ele mesmo pula como macaco e vive distraído. Porém, seu macaco mostra a virtude do foco que acaba sendo essencial em diversos momentos cruciais, sendo um deles o encontro com a lâmpada mágica.

Aladim é escolhido então pelo vilão Jafar para ir buscar a lâmpada em uma caverna, pois esse possui as qualidades necessárias para poder entrar e sair vivo. O rapaz vai ao deserto com Jafar, confiante, e ele entra nessa gruta. Mas antes é avisado de que lá ele encontraria muitas jóias e tesouros, mas que não deveria tocar em nada. Ele deveria focar em encontrar uma lâmpada antiga e trazer para Jafar.

A entrada na caverna, ou descida, é um tema comum nos contos e jornadas heroicas. Trata-se de um mergulho do herói em si mesmo para buscar algo de valioso. Psiquê desce ao mundo de Hades para buscar a beleza de Perséfone, Orfeu para buscar sua amada, Héracles desce para pedir o cachorro Cérbero emprestado. Odisseu e Enéias também descem.

Descer exige coragem para enfrentar suas imperfeições, seus pesadelos. Deve-se ter foco para isso, pois é fácil se perder neste processo. Trata-se de um grande teste e de um processo de purificação para que o herói seja apto e digno de encontrar o tesouro e ser realizado.

Fonte: encurtador.com.br/azAIS

Cada vez que um ser desce ao submundo e enfrenta a provação, ele se despoja de um ou vários aspectos impuros de seu interior. Ele se purifica de aspectos egóicos e infantis para que possa retornar, ascendendo sua consciência. Trata-se da verdadeira iniciação, a da alma.

A descida de Aladim é a de se despojar dos desejos egóicos e focar no desejo do espírito (a lâmpada), que irá guiá-lo ao seu destino. Para isso só alguém puro (não necessariamente perfeito), ou seja, alguém que não tem pretensões egóicas, que se entrega a jornada sem imaginar qual será o resultado.

Após Aladim retornar da gruta, Jafar pede a ele que entregue a lamparina. Mas Jafar o engana e ele fica preso na gruta. No entanto, a lamparina também fica com ele. Ao friccionar a lâmpada suja, aparece então o gênio. Aquele que irá satisfazer seus desejos e será seu daimon. O gênio lhe concede três desejos, e ele então pede que seja tirado de lá.

Aladim antes de conhecer o gênio havia conhecido a filha do sultão. Ela diz a ele que é a empregada da princesa e ele se apaixona. Após saírem  da caverna, Aladim usa seu desejo de se tornar um príncipe para impressionar Jasmine (sem saber quem ela de fato é).

Fonte: encurtador.com.br/fozRX

Ele se transforma em um príncipe com muitas riquezas, mas não impressiona a moça. Ela deseja mais do que apenas riquezas e o seu pretendente precisa estar à altura de sua nobreza, não externa, mas interna. Jasmine, do ponto de vista do herói, pode ser a anima que desafia o homem a encontrar o seu valor. A olhar para dentro de si e não apenas para fora.

Mas Jafar descobre a verdadeira identidade do príncipe e o joga no mar. No entanto, o gênio o salva. Temendo que Jasmine descubra sua identidade e a presença do gênio, ele se recusa a libertá-lo, sucumbindo á sua sombra, que é o poder.

Além disso, o sultão, pai de Jasmine, está velho e cansado e sucumbe ao poder de seu aspecto sombrio, simbolizado por Jafar.

O reino também não possui uma rainha, ou seja, o aspecto feminino não está presente na consciência coletiva. Quando esse aspecto está reprimido há um endurecimento dos sentimentos e uma instalação de seu oposto, o poder!

As leis são embrutecidas e não há lugar para o lado humano. Vemos isso em uma cena que Jasmine permite que uma criança roube uma maçã e sendo então condenada a perder a mão.

Lei é lei apenas, não se faz nada pelo simples fato de amar alguém. E é esse o grande ensinamento de Jasmine. Ela simplesmente ama Aladim, e está disposta a quebrar as regras por amor.

“Você confia em mim?”
Fonte: encurtador.com.br/uyBF5

A princesa também tem de lutar com o preconceito contra seu gênero. Ela luta para que seus subordinados aceitem as ordens dela, pois quem dita as ordens é Jafar, o tirano ambicioso colocado pelo próprio rei como comandante. Além disso, ela só terá o poder de “se livrar” de Jafar quando for rainha, o que só acontece com o casamento. Isso mostra que até certo momento, em nossa sociedade, a mulher só tem valor com o casamento. De forma velada, isso perdura até hoje.

Outro aspecto do filme que é muito interessante, é a relação de Aladim com o gênio. Ao logo do filme, o gênio deixa de ser apenas aquele que satisfaz os pedidos do herói para se tornar um protetor e guia. Aladim passa a ouvi-lo e ao final o liberta da prisão.

Libertar o gênio significa libertar o divino para que possa ocupar o mundo. Enquanto está na lâmpada ele se mantém preso à ganância do ego.

Ao libertar o gênio, Aladim percebe que o Self e o sagrado não mais estão à disposição do ego, mas está disponível para o coletivo, para algo maior que se expande para o mundo.

Quando temos um dom, esse dom não é apenas para a nossa satisfação momentânea e do ego, mas para que possamos servir a humanidade através dele, uma vez que o dom veio pelo divino, pelo inconsciente.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

 

Aladdin

Diretor:  Guy Ritchie Elenco:Will Smith, Mena Massoud, Naomi Scott Gênero: Aventura, Fantasia País:  EUA Ano: 2019

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A necessidade de um herói e o problema da projeção do Self

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Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Isso, no final das contas, é uma projeção do Self

A onda de nomear “heróis” não vem de hoje, e há a necessidade de sentir o seu ideal defendido por um ser acima de todos, que detém um nível de poder – seja imaginário ou real – para concretizar os desejos daquele que projeta. Isto é o que Carl Jung classifica como projeção do Self (por inabilidade em se autodesenvolver, o sujeito passa a apostar as suas fichas em terceiros, na vã esperança de se redimir do processo de transformação interior).

É importante diferenciar, no entanto, a Jornada do Herói Mitológico,  que é o caminho de autodesenvolvimento que cada um de nós está “condenado” a realizar, e a projeção do Self, quando recusamos fazer nosso próprio percurso, terceirizando-o (que é o que pretendo abordar neste texto). Sobre o mito do herói, pode ser visto na vida cotidiana (quando dona Maria incorpora o papel de líder de seu bairro), nas grandes estruturas arquetípicas da mitologia e nas histórias em quadrinhos (que são uma espécie de mitologia atualizada do mundo).

Atualmente, as projeções do Self (que podem bem ser confundidas com a Jornada do Herói), se replicam no meio político (aliás, onde há configuração social, eis lá a eclosão de estruturas arquetípicas). Campbell (2007) afirma que a tarefa do herói de hoje em dia não é a mesma de antigamente onde se lutava explicitamente contra as trevas (muito embora, metaforicamente, as trevas significam as limitações impostas pela Sombra, que deve ser integrada para ser potencializadora), e sim aquele disposto a restaurar a ordem, corrigir um erro que seria o início da sua jornada. Neste caso, é necessário observar qual de fato é o arquétipo que opera no político. Pois, em muitos casos, o que pode ocorrer em tais personagens é a ação a partir do princípio do poder, como já explicitou Adler.

Fonte: encurtador.com.br/yDKMR

Em continuação, nota-se que desde tempos anteriores, há uma repetição de padrões em pessoas reconhecidas como “heróis/heroínas”. Alguns exemplos são Getúlio Vargas, que é conhecido ainda hoje como pai dos pobres e primeiro político a lançar sua força sobre a classe operária estabelecendo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); Lula, um espelho da classe metalúrgica refletida na Presidência da República, a personificação do poder de ascender e ocupar o lugar da elite burguesa e, hoje, está preso e é réu em terceira instância; Newton Hidenori (japonês da Federal) que ficou conhecido por conduzir presos da Operação Lava Jato e foi preso por facilitar contrabando; Moro, que foi eleito herói do povo, atualmente é Ministro da justiça com várias provas que ele não é quem parecia ser e, finalmente, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que podemos deixar suas atitudes diante da mídia falar por si só.

Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Então defender o oposto de uma opinião te caracteriza como um vilão, alguém que está atacando diretamente o outro lado e se aliando ao inimigo. Como dizia Nietzsche em um de seus aforismos, “um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos”. Ora, certamente não é deste herói arquetípico que a Psicologia Analítica se debruça, pois para que ocorra de modo consistente a Jornada, é necessário iniciar o processo de Individuação (normalmente, depois da Metanóia, que é a grande crise existencial que, acredita-se, todos terão de passar). E a Individuação não coaduna com projetos pessoais escusos, muito menos com o princípio do Poder. Basta lembrar uma célebre frase de Jung, para quem “onde há poder, não há amor. Ambos se excluem mutuamente”.

Fonte: encurtador.com.br/jkRW9

No cenário político e num clima de polarização de narrativas, ignorar determinados comportamentos dessas pessoas reconhecidas como “heróis” vai de encontro com o que Freud (1990) define como idealização, onde uma pessoa adquire uma perfeição total que não pode ser contestada. Existe então a idealização de uma pessoa que detenha algum tipo de poder e um inimigo em comum que será combatido, onde os meios justificam os fins.

Deste modo, enquanto se mantiver essa idéia de uma luta contra a fonte de todo o mal a história se repetirá e uma possível melhoria real não será alcançada. Assim se faz necessário uma reavaliação dos fatores que levam a determinadas escolhas dos representantes em todas as áreas. Só assim para que ocorra a chamada função transcendente, quando há a síntese das ações numinosas com as sombrias, num movimento de crescimento interior que desencoraja a criação de discursos rasteiros e polarizados.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Ed Pensamento, 2007.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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Vice: quando homens ordinários conduzem a política de um país

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Concorre com 8 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Montagem, Melhor Maquiagem e Penteados

Vice, escrito e dirigido por Adam McKay, conta a história “real” de Dick Cheney, o 46º vice-presidente americano durante a era Bush (2001 a 2009). Já no início do filme, McKay esclarece em um tom satírico que Cheney é conhecido justamente por ser um dos líderes mais reservados da história, então, nestas condições, fez o melhor possível (em suas palavras: “But we did our fucking best”). De certa forma, o que McKay tenta mostrar nas duas horas do filme foi como um funcionário burocrático de Washington se tornou silenciosamente, como um fantasma, o homem mais poderoso do mundo quando foi vice-presidente de George W. Bush, remodelando a forma como o jogo do poder político era conduzido e promovendo interpretações obscuras da constituição americana. Para Wilkinson [1],

Vice não quer humanizar Dick Cheney. Então, em vez disso, (talvez) demoniza a América. Poucos filmes em 2018 foram mais polêmicos do que Vice, o conto do diretor Adam McKay sobre o moderno Partido Republicano, concentrado na pessoa do ex-vice-presidente Dick Cheney. As resenhas de críticos foram fortemente divididas entre aqueles que amaram o filme e aqueles que o desprezaram, assim como a abundância de comentários polarizados.

Dick Cheney é interpretado de forma magistral por um irreconhecível Christian Bale, que teve sua forma física alterada, ganhando mais peso, e sua face e cabeça remodeladas por próteses.  A história toda é narrada por um personagem fictício interpretado por Jesse Plemonse o tom como este conduz a narrativa mostra-nos, de certa maneira, a forma como o diretor enxerga a figura central do seu filme.

Em alguns pontos da narrativa, há recortes do passado de Cheney, mostrando-nos que antes dele se tornar uma figura tão poderosa, ainda nos idos de 1963, era apenas um estudante e esportista medíocre, que só conseguiu obter uma bolsa em Yale graças a ajuda de sua inteligente e focada namorada (e futura esposa) Lynne (Amy Adams, impecável). Mas as bebedeiras e sua inabilidade para os estudos acadêmicos acabam lhe rendendo uma expulsão da faculdade e o consequente retorno a Wyoming, onde trabalhou como eletricista. McKay, na voz do seu narrador, insiste em dizer que naquela época Cheney deveria ser considerado um moleirão inútil, já hoje o chamariam simplesmente de imbecil. Ou seja, tudo o afastava do seu destino de ser o homem mais poderoso do mundo, ainda que nossa recente história nos mostra que possivelmente por essas características ele teria muito mais chance de ser eleito presidente de um país.

Lynne tinha um foco bem definido na vida, queria ter uma vida extraordinária, e isso seria menos difícil se não tivesse nascido em uma época em que as mulheres vinham em segundo plano na política e em todo o resto. Logo, dedicou sua vida a fazer de Cheney um homem importante e, também, de se fazer importante nesse meio. De forma bem simplista, a reviravolta de Cheney é mostrada ao público, por exemplo, quando seu vício em álcool é substituído pelo vício em comida e, especialmente, pelo vício em um tipo específico de energia, aquela advinda do poder.

Sua escalada ao poder começa na era Nixon, quando iniciou o trabalho com o implacável Donald Rumsfeld (Steve Carell). Em sua primeira investida no universo político, Cheney não passava de um estagiário de Rumsfeld, que o seguia para todos os lados, permanecia em silêncio o suficiente para não ser descartado e tinha uma esposa que alegrava os jantares. Certa vez, quando o jovem Cheney perguntou a Rumsfeld em que ele acreditava? Ele riu. Ao final, parece que Cheney entendeu que na política as verdades estavam relacionadas com a interpretação dos fatos de quem detinha o poder, ou melhor dos fatos criados para produzirem verdades desejadas.

O início do filme traz o momento dos ataques terroristas de 11 de setembro, e depois de mostrar um pouco da fase jovem de Cheney, inicia-se a parte principal da história, que são as ações do governo seguidas das consequências imediatas aos ataques, já com Cheney como vice-presidente. O Cheney apresentado no filme é uma figura paradoxal, parece um funcionário público saído de um livro de Dostoiévsky, aparentemente calmo, quieto, monótono, que aceita ordens e as cumpre simplesmente porque elas vieram de uma figura superior, mas também é um predador voraz, que olha o inimigo ou quem ele considera idiota com menosprezo, e que é capaz de dar ordens para destruir um avião ou uma cidade com o mesmo tom de quem pede duas colheres de açúcar no café.

Para contrabalançar a figura política de Cheney, vimos, em alguns momentos, ele com sua família, mostrando-o totalmente devotado à sua esposa e filhas. Para Bradshaw, do The Guardian [2],

Vice é divertido e niilista, especialmente quando se trata do relacionamento de Cheney com sua amada filha Mary Cheney (Alison Pill), uma mulher gay e ativista do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O tratamento final de Cheney com ela neste filme me fez pensar em Cidadão Kane ateando fogo em seu trenó de infância e dizendo que nunca gostou de equipamento de esportes de inverno com o nome de flores.

De certa forma, nem seus momentos de pescaria, ou carregando os netos, nem seu carinho pela filha caçula o tiram do foco. Se para candidatura da sua filha mais velha, esta precisaria dizer que era contra o casamento gay, pois estava fazendo campanha em um estado extremamente convencional, então ela diria. Nesse ponto, as cenas bucólicas da família são substituídas pelas ações que o mantêm como parte do tabuleiro político. Mesmo o trenó sendo tão significativo para Kane, ele o queimou. Mesmo Cheney tendo apoiado a filha quando esta revelou a sua homossexualidade, ele a traiu quando foi necessário fazer uma jogada no tabuleiro político em que estava inserido.

É difícil pensar em algum cenário que humanize Dick Cheney quando se entende o ambiente que ele ajudou a criar depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, a partir do poder que exercia sobre o presidente (o aparentemente confuso George W. Bush) e sobre outras figuras importante do universo político americano.

Em uma síntese, McKay apresenta alguns fatos que compõem esse cenário nos momentos finais do filme: a Halliburton Company, uma empresa multinacional americana do ramo petrolífero, nos anos seguintes à invasão do Iraque aumentou o valor de suas ações em 500%; a gestão Bush-Cheney alegou ter perdido 22 milhões de e-mails, incluído milhões que foram escritos no período que precedeu a guerra do Iraque; os memorando do advogado John Yoo estabeleceram uma base legal para a tortura, descrito por Cheney em uma entrevista como “interrogatório aprimorado”. E, ainda o uso da Teoria Unitária do Poder Executivo, que segundo [3],  remete “a ideia de que nada que um presidente faça possa ser considerado ilegal e, portanto, este não pode ser processado (recentemente este argumento legal especioso foi reciclado por estudiosos conservadores e oportunistas em defesa do presidente Trump)”. É um tipo de política melhor descrita a partir da regra Reductio ad Absurdum, ou seja, cria inimigos, expõe sua própria força armada a experiências terríveis, mata civis, mas vai à igreja aos domingos orar pela família e pelo país.

Nos momentos finais do filme há uma cena de uma entrevista com Cheney e em um dado momento ele olha para a tela e diz: “Não vou me desculpar por manter suas famílias seguras. E não vou me desculpar por fazer o que precisava ser feito para que seus entes queridos pudessem dormir tranquilamente à noite. Tem sido uma honra servir a vocês. Vocês me escolheram e eu fiz o que vocês pediram.” E essa frase final é o que há de mais terrível, pois geralmente o mal extremo pode até ser articulado por uma pessoa ou um grupo, mas só acontece, de fato, quando o povo cegamente o permite (e o deseja).

FICHA TÉCNICA DO FILME:

VICE

Título original: Vice Direção: Adam McKay Elenco: Christian Bale, Amy Adams, Steve Carell, Sam Rockwell, Alison Pill, Jesse Plemons; Ano: 2018 País: EUA Gênero: Biografia, Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.vox.com/2018/12/21/18144605/vice-review-dick-cheney-adam-mckay-christian-bale-sam-rockwell-bush-steve-carell-rumsfeld

[2] https://www.theguardian.com/film/2018/dec/17/vice-review-christian-bale-dick-cheney-biopic

[3] https://www.spin.com/2018/12/vice-movie-review-dick-cheney/

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Trama Fantasma: luxo, poder e desamparo

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Concorre com 6 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Paul Thomas Anderson), Melhor Ator (Daniel Day-Lewis), Melhor Atriz Coadjuvante (Lesley Manville), Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Figurino

O novo filme de Paul Thomas Anderson, “Phantom Thread”, é sobre muitas coisas, desde roupas e perfeccionismo até café da manhã e relacionamentos. Mas talvez seja principalmente sobre poder, especialmente a forma de poder mais complexa, aquela que é construída nos relacionamentos amorosos. Há uma série de análises sobre esse filme na internet, algumas o interpretam como uma ode à masculinidade em seu estado mais tóxico, outros simplesmente aceitam-no como algo não categorizável, justamente por ser demasiado humano (para o bem e/ou para o mal).

Daniel Day-Lewis, no último filme de sua brilhante carreira, é Reynolds Woodcock, um gênio na arte de criar vestidos, um estilista que vive em Londres na década de 50 do século XX. Como alguns gênios, é mimado, orgulhoso e pouco empático. Descarta pessoas no café da manhã como se descartasse um croissant por não estar saboroso o suficiente. O mundo que lhe interessa é o universo de seus vestidos, que são artisticamente desenhados, milimetricamente construídos, em uma atmosfera que mais parece um idílico local de oração, com costureiras trajando branco em um silêncio profundo e cerimonioso.

A primeira cena de Woodcock no filme traz a figura de um homem magro, vestindo-se impecavelmente. Traz em destaque suas canelas frágeis, em contraste com sua figura poderosa e austera. No primeiro diálogo dele com sua irmã Cyril (Lesley Manville), que coordena seus negócios e direciona toda a parte prática de sua vida, mostra-nos uma característica que virá à tona em alguns momentos no filme, ainda que, por vezes, imperceptível como um fantasma, seu desamparo. Um desamparo que está na ausência da mãe, no equilíbrio doentio que busca através da convicção de que a sua arte é sua totalidade e na tranquilidade que venera.

Mas todo gênio precisa de uma musa. E a musa de Reynolds Woodcock surge em um restaurante de um hotel em uma cidade do interior, próxima a Londres, onde ele vai em busca de mais tranquilidade. A garçonete Alma (Vicky Krieps) e Woodcook tem seu primeiro embate quando este lhe faz um pedido no jantar (tão longo quanto as cenas de luta de um filme da Marvel). E tem quer ser um Daniel Day-Lewis para conseguir pedir bacon, geleia e salsichas com a profundidade de quem recita uma poesia barroca. Nessa cena, há, de forma sutil (ou não), um jogo de sedução. Ele, mostrando seu poder em cada pequeno gesto, ela deixando claro que, mesmo ruborizada, é confiante e quer participar daquele “duelo” .

Rhonda Richards-Smith, uma psicoterapeuta de Los Angeles e especialista em relacionamento, diz assim sobre sua primeira impressão da relação de Reynolds e Alma [1]:

A primeira coisa que notei foi que não havia fronteiras entre os dois em seu encontro inicial. Em qualquer relacionamento, se não há limites definidos no início em termos de como você espera ser tratado, muitas vezes o relacionamento pode sair dos trilhos. Às vezes, um parceiro irá invadir os limites do outro parceiro, e talvez é preciso redefinir esses limites em um momento posterior. Mas sempre é mais difícil redefinir esses limites depois de começar um relacionamento dessa maneira.

A relação sem limites, sem reflexão e necessária a ambos de forma orgânica passa por fases. Primeiro, a irritação, quando Reynold compreende que a sua musa não é etérea, nem tão pouco silenciosa. A cena do café da manhã, em que Paul Anderson exponencializa o som de cada ação de Alma, mostra-nos como Reynolds não é capaz de adaptar-se ao mundo dos outros, pelo contrário, todos que o rodeiam devem lhe dar o mundo que ele considera ideal. Sua tranquilidade é necessária à sua arte e sua arte, na percepção dele, parece ser maior que os outros, tão ordinários em sua simplicidade.

Mas há a segunda fase, em que começamos a entender o contexto através do olhar de Alma, que o ama, e acredita ser amada por ele com a mesma intensidade. Ela não deseja criar o equilíbrio, tão necessário ao mundo de Reynolds até então, pois isto lhe daria um Reynolds poderoso, frio, aparentemente completo. Ela quer provocar sua calmaria, envenenar sua indiferença, já que com isso o desamparo que pulsa em Reynolds, ainda que fantasmagoricamente, poderá vir à tona.

Entre vestidos maravilhosos, uma fotografia belíssima e uma música avassaladora, Paul Thomas Anderson constrói um filme complexo, um tanto na contramão dos grandes sucessos atuais. Não há um algoz nem uma vítima com limites totalmente definidos. Toda a história parece esconder uma trama fantasma, uma certa perversidade e um desamparo tão humanos. Cada um dos personagens em meio ao luxo que os cerca parece estar a um passo de provocar sua própria destruição. Ao invés de fugir disso, aceitam tal fato e, em alguns momentos, parecem até que o almeja. Ao final, um deles diz que a sensação de estar apaixonado desmistifica a vida. O que ele (ou ela) quis dizer com isso?  A interpretação depende dos fantasmas que cada um carrega consigo.

FICHA TÉCNICA

TRAMA FANTASMA

Diretor: Paul Thomas Anderson Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps e Lesley Manville Gênero: Drama Ano: 2017

Referência:

[1] https://www.thecut.com/2018/01/dissecting-the-twisted-relationship-in-phantom-thread.html

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