A necessidade de um herói e o problema da projeção do Self

Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Isso, no final das contas, é uma projeção do Self

A onda de nomear “heróis” não vem de hoje, e há a necessidade de sentir o seu ideal defendido por um ser acima de todos, que detém um nível de poder – seja imaginário ou real – para concretizar os desejos daquele que projeta. Isto é o que Carl Jung classifica como projeção do Self (por inabilidade em se autodesenvolver, o sujeito passa a apostar as suas fichas em terceiros, na vã esperança de se redimir do processo de transformação interior).

É importante diferenciar, no entanto, a Jornada do Herói Mitológico,  que é o caminho de autodesenvolvimento que cada um de nós está “condenado” a realizar, e a projeção do Self, quando recusamos fazer nosso próprio percurso, terceirizando-o (que é o que pretendo abordar neste texto). Sobre o mito do herói, pode ser visto na vida cotidiana (quando dona Maria incorpora o papel de líder de seu bairro), nas grandes estruturas arquetípicas da mitologia e nas histórias em quadrinhos (que são uma espécie de mitologia atualizada do mundo).

Atualmente, as projeções do Self (que podem bem ser confundidas com a Jornada do Herói), se replicam no meio político (aliás, onde há configuração social, eis lá a eclosão de estruturas arquetípicas). Campbell (2007) afirma que a tarefa do herói de hoje em dia não é a mesma de antigamente onde se lutava explicitamente contra as trevas (muito embora, metaforicamente, as trevas significam as limitações impostas pela Sombra, que deve ser integrada para ser potencializadora), e sim aquele disposto a restaurar a ordem, corrigir um erro que seria o início da sua jornada. Neste caso, é necessário observar qual de fato é o arquétipo que opera no político. Pois, em muitos casos, o que pode ocorrer em tais personagens é a ação a partir do princípio do poder, como já explicitou Adler.

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Em continuação, nota-se que desde tempos anteriores, há uma repetição de padrões em pessoas reconhecidas como “heróis/heroínas”. Alguns exemplos são Getúlio Vargas, que é conhecido ainda hoje como pai dos pobres e primeiro político a lançar sua força sobre a classe operária estabelecendo a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); Lula, um espelho da classe metalúrgica refletida na Presidência da República, a personificação do poder de ascender e ocupar o lugar da elite burguesa e, hoje, está preso e é réu em terceira instância; Newton Hidenori (japonês da Federal) que ficou conhecido por conduzir presos da Operação Lava Jato e foi preso por facilitar contrabando; Moro, que foi eleito herói do povo, atualmente é Ministro da justiça com várias provas que ele não é quem parecia ser e, finalmente, o presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que podemos deixar suas atitudes diante da mídia falar por si só.

Quando acolhemos uma pessoa como “herói”, existe uma idéia de depositar uma esperança de salvação e que todos os atos do mesmo são justificáveis e seguidos às cegas. Então defender o oposto de uma opinião te caracteriza como um vilão, alguém que está atacando diretamente o outro lado e se aliando ao inimigo. Como dizia Nietzsche em um de seus aforismos, “um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos”. Ora, certamente não é deste herói arquetípico que a Psicologia Analítica se debruça, pois para que ocorra de modo consistente a Jornada, é necessário iniciar o processo de Individuação (normalmente, depois da Metanóia, que é a grande crise existencial que, acredita-se, todos terão de passar). E a Individuação não coaduna com projetos pessoais escusos, muito menos com o princípio do Poder. Basta lembrar uma célebre frase de Jung, para quem “onde há poder, não há amor. Ambos se excluem mutuamente”.

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No cenário político e num clima de polarização de narrativas, ignorar determinados comportamentos dessas pessoas reconhecidas como “heróis” vai de encontro com o que Freud (1990) define como idealização, onde uma pessoa adquire uma perfeição total que não pode ser contestada. Existe então a idealização de uma pessoa que detenha algum tipo de poder e um inimigo em comum que será combatido, onde os meios justificam os fins.

Deste modo, enquanto se mantiver essa idéia de uma luta contra a fonte de todo o mal a história se repetirá e uma possível melhoria real não será alcançada. Assim se faz necessário uma reavaliação dos fatores que levam a determinadas escolhas dos representantes em todas as áreas. Só assim para que ocorra a chamada função transcendente, quando há a síntese das ações numinosas com as sombrias, num movimento de crescimento interior que desencoraja a criação de discursos rasteiros e polarizados.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Ed Pensamento, 2007.

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 14. Rio de Janeiro: Imago, 1990.