“Olá, adeus e tudo mais” reflete as relações líquidas da pós-modernidade

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A dinâmica dos casais na era pós-moderna e o peso da cultura tradicional sobre as mulheres.

O filme “Olá, adeus e tudo mais”, desenvolvido por Michael Lewen em 2022, explora temáticas contemporâneas sobre relacionamentos juvenis e o impacto de transições significativas na vida dos jovens adultos. A obra cinematográfica, que se caracteriza no gênero de drama e romance adolescente, aborda de forma ampla sobre as complexidades emocionais que envolvem o término de um relacionamento às vésperas de grandes mudanças, como a transição para a faculdade. A trama apresenta uma jornada de autoconhecimento e reflete sobre os modos como as escolhas individuais afetam não só as relações interpessoais, mas também a própria construção identitária.

A narrativa do filme centraliza-se na história de Clare (Talia Ryder) e Aidan (Jordan Fisher), um jovem casal que possui um acordo para se separarem antes de iniciar a vida universitária. Esse acordo, no entanto, gera questionamentos e incertezas sobre os reais sentimentos de ambos e a viabilidade de manter um vínculo, mesmo diante da separação física. O filme se passa ao longo de uma última noite dos dois juntos, onde os personagens revisitam marcos importantes de seu relacionamento e buscam encerrar a relação de forma amigável.

O filme “Olá, adeus e tudo mais” pode ser interpretado como uma alusão das transições que marcam o fim da adolescência e o início da vida adulta. Essas transições são frequentemente acompanhadas por um sentimento de perda e de incerteza, à medida que os jovens se distanciam das estruturas familiares e sociais que antes definiam suas identidades (Mota e Matos, 2008). A separação de Clare e Aidan não é apenas o término de um relacionamento amoroso, simboliza também o término de uma fase da vida, onde as decisões não são mais mediadas pelas expectativas externas, mas pela construção de uma autonomia.

Fonte: imagem criada por Sarah Coelho utilizando elementos do Canva

“Olá, adeus e tudo mais”, nos dá uma oportunidade para refletirmos sobre os relacionamentos na era pós-moderna, especialmente em relação às transformações socioculturais que questionam os paradigmas tradicionais. A partir da história de Clare e Aidan, o filme nos convida a refletir sobre as mudanças nas expectativas em relação ao amor, à intimidade e à individualidade em um contexto em que a liquidez das relações e a fragmentação das identidades são características centrais (Bauman, 2014). A protagonista Clare, em particular, personifica muitos dos dilemas vividos por indivíduos na contemporaneidade, expressando de maneira clara um medo de fracasso associado ao seguimento dos padrões sociais do passado.

Na era pós-moderna, conforme argumenta Zygmunt Bauman (2004), as relações interpessoais tornaram-se “líquidas”, ou seja, menos fixas e mais fluídas, caracterizadas pela ausência de compromissos permanentes. Isso contrasta diretamente com os valores de antes, onde as relações eram vistas como duradouras e baseadas em compromissos rígidos, como o casamento e a monogamia estável. No filme, Clare, ao decidir terminar o relacionamento com Aidan antes de ir para a faculdade, exemplifica esse desejo de liberdade e autonomia que é tão característico dos relacionamentos pós-modernos.

A questão do medo do fracasso é um tema central na trajetória de Clare. Ela expressa medo em relação ao futuro e à possibilidade de que, ao tentar manter o relacionamento com Aidan, acabaria comprometendo sua liberdade pessoal e seu desenvolvimento individual. Este medo é exacerbado pela percepção de que os modelos tradicionais de relacionamentos, especialmente aqueles que envolvem sacrifício e compromisso a longo prazo, são incompatíveis com as demandas da vida contemporânea da protagonista, no qual é marcada por mudanças constantes e por uma maior ênfase na realização pessoal. Na era pós-moderna, o sucesso não é mais medido pela capacidade de manter uma relação duradoura, mas pelas possibilidades de transitar pelas mudanças sem perder a autonomia ou comprometer os projetos individuais.

A postura de Clare pode ser interpretada como uma crítica implícita aos padrões sociais de antigamente, que colocavam as mulheres em papéis de subordinação e sacrifício dentro das relações amorosas (Dias, 2004). Durante muito tempo, as expectativas sociais sobre as mulheres estavam ligadas à ideia de que o sucesso feminino era alcançado através do casamento e da maternidade (Zanello, 2022). Na era moderna, as mulheres eram socializadas para aceitar a ideia de que o compromisso amoroso era uma responsabilidade central de suas vidas, muitas vezes em detrimento de suas próprias ambições profissionais e pessoais (Zanello, 2022). Clare, no entanto, se afastada dessa ideia ao expressar seu desejo de se concentrar em seu futuro acadêmico e pessoal, sem que o relacionamento a defina ou limite suas possibilidades.

Esse medo de fracasso, associado ao não cumprimento das expectativas tradicionais, pode ser analisado na percepção das teorias feministas contemporâneas, que questionam a imposição de papéis rígidos de gênero nas mulheres. As autoras como Simone de Beauvoir e Judith Butler argumentam que o feminino foi historicamente construído em torno de expectativas sociais que limitam a agência das mulheres, colocando-as em posições de dependência emocional e econômica em relação aos homens (Beauvouir, 2014). No filme, Clare parece consciente de que manter um relacionamento a longo prazo poderia significar uma perda de sua independência recém-conquistada, e seu medo de fracasso está profundamente enraizado na ideia de que seguir os padrões de antigamente seria abdicar de seu direito de traçar seu próprio caminho.

Outro aspecto importante a ser considerado é a maneira como Clare se posiciona diante do amor romântico. O amor, que na era moderna era concebido como um ideal a ser alcançado e mantido a qualquer custo, na era pós-moderna assume uma forma mais flexível e menos central na vida dos indivíduos (Zanello, 2022). Para Clare, o término do relacionamento não é necessariamente um fracasso, mas uma escolha racional de não seguir o caminho tradicional que poderia limitar suas opções futuras. Isso exemplifica o que Giddens (2003), em sua teoria sobre a transformação da intimidade, chama de “relações puras”, que são baseadas no reconhecimento mútuo da individualidade e no desejo de que a relação funcione enquanto for satisfatória para ambos.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2004. 

BAUMAN, Zygmunt. Cegueira moral. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2014.

DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Nova Fronteira, 2014.

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos. Livraria do Advogado Editora, 2004.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Unesp, 2003.

MOTA, Catarina Pinheiro; MATOS, Paula Mena. Adolescência e institucionalização numa perspectiva de vinculação. Psicologia & Sociedade, v. 20, p. 367-377, 2008.

ZANELLO, Valeska. A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. Editora Appris, 2022.

 

 

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“Condição pós moderna” de David Harvey

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A pós-modernidade se apresenta como uma ruptura com as certezas da modernidade, trazendo à tona a fragmentação das identidades, a fluidez das relações sociais e a efemeridade das interações humanas.  Quando digo que a pós -modernidade rompe com as certezas, quero dizer que é uma reação à modernidade, questionando suas certezas e trazendo a ideia de que não há uma verdade absoluta ou um caminho único para o progresso. Ela celebra a diversidade, a pluralidade de experiências e a liberdade de viver em um mundo mais “liberal”. Esses aspectos  são discutidos e apresentados por David Harvey em sua obra O Mundo Pós-Moderno (2007), na qual o autor analisa o impacto das transformações econômicas e culturais no cotidiano contemporâneo. Meu intuito com este artigo é  ter como objetivo realizar uma análise crítica das ideias de Harvey, correlacionando-as com as relações contemporâneas, marcadas pela pluralidade, pela transitoriedade e pela influência da tecnologia digital.

David Harvey (2007) caracteriza a pós-modernidade como um período de “compressão espaço-tempo”, onde o avanço tecnológico e a globalização encurtam distâncias e aceleram o ritmo de vida. Para o autor, a modernidade baseava-se em grandes narrativas que buscavam dar sentido ao mundo e garantir certa estabilidade às interações sociais. Contudo, com o advento da pós-modernidade, essas narrativas perderam força, dando lugar a uma pluralidade de perspectivas, o que, de acordo com Harvey (2007), gera uma fragmentação nas identidades e nas relações sociais.

A fragmentação pode ser observada em diversas áreas da vida contemporânea. Nas interações interpessoais, por exemplo, a identidade não é mais vista como um elemento estável e imutável, mas como algo fluido e constantemente renegociado. Essa pluralidade de identidades reflete a complexidade do contexto globalizado, onde culturas e valores se misturam de maneira contínua (HARVEY, 2007). O impacto dessa fragmentação nas relações contemporâneas é evidente, uma vez que as pessoas transitam entre diferentes papéis sociais e apresentam múltiplas versões de si mesmas, conforme o contexto e a plataforma social em que estão inseridas.

Essa fragmentação que caracteriza a pós-modernidade também afeta diretamente as relações sociais. Enquanto, na modernidade, as interações eram mais estáveis e ancoradas em instituições sólidas, como a família, o trabalho e a religião, na pós-modernidade essas instituições perdem parte de sua centralidade. As relações contemporâneas se tornam mais transitórias e menos dependentes de compromissos a longo prazo, um fenômeno que pode ser observado nas dinâmicas familiares e laborais (HARVEY, 2007).

No contexto das relações familiares, a estrutura tradicional da família nuclear, defendida por muitos como o pilar da sociedade moderna, é desafiada por novas configurações familiares, como famílias monoparentais e casais homoafetivos. Harvey (2007) afirma que essa pluralidade é uma consequência direta da fragmentação pós-moderna, que permite o florescimento de novas formas de convivência social. Além disso, no ambiente de trabalho, a flexibilidade e a informalidade predominam, refletindo o modelo da “gig economy”, no qual as relações de emprego se tornam mais instáveis e fluídas (HARVEY, 2007).

Outro aspecto importante destacado por Harvey (2007) é a aceleração do tempo, impulsionada pelo avanço das tecnologias digitais e pelas demandas do capitalismo tardio. Na pós-modernidade, as interações sociais são marcadas pela efemeridade, onde os laços entre as pessoas se formam e se dissolvem rapidamente. Esse fenômeno pode ser observado nas relações interpessoais mediadas pela tecnologia, onde plataformas digitais, como redes sociais e aplicativos de namoro, facilitam o estabelecimento de conexões rápidas, porém muitas vezes superficiais.

Harvey (2007) aponta que essa aceleração contribui para a superficialidade das relações contemporâneas, pois as interações humanas se tornam breves e desprovidas de profundidade emocional. Nas redes sociais, por exemplo, os indivíduos são incentivados a manter múltiplas conexões, mas essas conexões carecem de compromisso e continuidade, refletindo a natureza fragmentada e fugaz da pós-modernidade.

A mediação tecnológica nas interações sociais é um dos principais fatores que contribuem para a fragmentação e efemeridade das relações humanas, de acordo com Harvey (2007). A tecnologia digital, embora facilite a comunicação entre indivíduos em diferentes partes do mundo, também cria novas formas de alienação e distanciamento. As interações virtuais, apesar de rápidas e eficientes, muitas vezes não substituem a profundidade das relações face a face, resultando em um tipo de conexão desprovida de empatia e intimidade (HARVEY, 2007).

Harvey (2007) também destaca que a tecnologia reflete as lógicas do capitalismo tardio, onde o consumo rápido de informações e a busca por validação social se tornam centrais para as interações humanas. As plataformas digitais moldam as interações de acordo com essas lógicas, resultando em uma cultura de superficialidade e imediatismo nas conexões interpessoais. Assim, as relações contemporâneas são profundamente influenciadas pela tecnologia, mas também sofrem com a falta de profundidade e compromisso a longo prazo.

REFERÊNCIA

HARVEY, David. O Mundo Pós-Moderno: Condições Sociais, Culturais e Econômicas no Capitalismo Avançado. São Paulo: Loyola, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

 

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A valorização da diversidade na pós-modernidade e as relações contemporâneas

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A era pós-moderna, segundo o filósofo Jean-François, foi caracterizada pela desconstrução de alguns conceitos enraizados na sociedade e pela valorização da diversidade. Nas relações atuais, essa apreciação se reflete no aumento da inclusão e respeito por diferentes identidades de gênero, orientações sexuais, etnias, culturas e estilos de vida. No entanto, essa transformação vem acompanhada por desafios expressivos que evidenciam as tensões presentes em um mundo cada vez mais globalizado e interligado (Lyotard, 1979).

A valorização da diversidade está diretamente ligada à inclusão, que na pós-modernidade é entendida como mais do que a simples aceitação das diferenças, obviamente ainda há uma grande luta pelos direitos. A inclusão, nesse contexto, significa criar espaços onde as “diferenças” possam ser expressas e celebradas, contribuindo para uma sociedade mais rica e dinâmica. Judith Butler, em “Problemas de Gênero” 1990, desafia o que é dito tradicionais de gênero e sexualidade, argumentando que o gênero é uma performance e que as identidades de gênero são socialmente construídas. Esse entendimento desestabiliza as categorias rígidas de gênero e abre espaço para a inclusão de uma ampla gama de expressões de gênero (Butler, 1990).

Fonte: Storyset

Movimentos sociais contemporâneos, como o feminismo e o movimento LGBTQIAPN+, têm desempenhado um papel importantíssimo na promoção da diversidade e inclusão. Esses movimentos não apenas lutam por igualdade, mas também por um reconhecimento mais profundo das complexidades das identidades individuais e coletivas. Questionam as normas sociais estabelecidas e promovem a ideia de que todas as identidades, independentemente de sua conformidade com as normas tradicionais, merecem respeito e reconhecimento.

A pós-modernidade é marcada pela crise das metanarrativas, como descrito pelo filósofo Jean-François Lyotard. Essas grandes narrativas, que tentavam explicar a história e a sociedade de forma unificada, começaram a ser questionadas, dando espaço para uma multiplicidade de pequenas narrativas. Essas novas narrativas valorizam as experiências individuais e coletivas de grupos que antes eram marginalizados, como as minorias étnicas, sexuais e culturais. Essa valorização da diversidade é, portanto, uma resposta à inadequação das abordagens universalistas que ignoravam as diferenças.

O movimento pós-colonial trouxe à tona as vozes e experiências das culturas não ocidentais, que foram sistematicamente oprimidas e marginalizadas durante o período colonial. Autores como Edward Said, em Orientalismo, criticam a construção ocidental do “Outro” como uma forma de dominar e controlar as culturas não ocidentais (Said, 2007, p. 41). Na pós-modernidade, essa crítica abriu caminho para a valorização das identidades culturais híbridas e para a compreensão da identidade como algo fluido e em constante construção.

Embora a pós-modernidade tenha promovido a valorização da diversidade, ela também trouxe novos desafios. Zygmunt Bauman, em Modernidade Líquida, argumenta que a sociedade contemporânea é caracterizada pela fluidez e pela incerteza. Essa volatilidade nas relações sociais pode levar a novas formas de exclusão e marginalização, mesmo em contextos onde a diversidade é oficialmente reconhecida (Bauman, 2001).

Fonte: Storyset

Por exemplo, a globalização tem aumentado a diversidade cultural nas sociedades, mas também gerou tensões relacionadas à identidade nacional e ao multiculturalismo. Em alguns casos, o aumento da diversidade tem sido visto como uma ameaça às identidades nacionais e ao tradicionalismo, resultando em movimentos xenófobos exclusão sociais. Homi Bhabha, em “O Local da Cultura”, explora como a hibridização cultural pode gerar tanto criatividade quanto conflito, destacando a complexidade das interações culturais na pós-modernidade.

Nas relações contemporâneas, a valorização da diversidade se reflete em práticas sociais, políticas e organizacionais. Empresas e instituições têm adotado recursos de diversidade e inclusão, como propagandas que geram identificação, reconhecendo que a pluralidade de perspectivas pode ser uma fonte de inovação e dinamismo. No entanto, a implementação dessas políticas não é isenta de dificuldades. A eficácia das políticas de inclusão muitas vezes depende da capacidade das organizações de lidar com as resistências internas e com as tensões entre a diversidade e a coesão social.

A valorização da diversidade também tem implicações nas relações pessoais. As identidades na pós-modernidade são menos fixas e mais flexíveis, o que pode levar a uma maior aceitação das diferenças nas interações interpessoais. No entanto, essa mesma flexibilidade pode gerar incertezas e ansiedades, como apontado por Richard Sennett em A Corrosão do Caráter. As relações contemporâneas, portanto, são um campo de tensão entre a celebração da diversidade e a busca por estabilidade e continuidade (Sennett, 1999).

Embora a pós-modernidade tenha promovido a inclusão e o reconhecimento das diferenças, ela também trouxe à tona novas formas de exclusão e novas tensões sociais. Nas relações contemporâneas, a diversidade é uma fonte de riqueza e dinamismo, mas também exige um constante esforço para equilibrar a pluralidade com a coesão social. A busca por uma sociedade mais inclusiva e diversa continua sendo um dos principais desafios da era pós-moderna.

Referências:

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1994.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FEMINISMO. Página principal. Disponível em: <link>. Acesso em: 2 set. 2024.

LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

MOVIMENTO LGBTQIA+. Página principal. Disponível em: <link>. Acesso em: 2 set. 2024.

PLUMMER, Ken. Contando Histórias Sexuais: Poder, Mudança e Mundos Sociais. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 1995.

SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

 

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A pós-modernidade e seus impactos na saúde mental

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A transição da modernidade para a pós-modernidade vem sendo uma temática bastante estudada e debatida no âmbito da Sociologia, Filosofia, Psicologia e outras áreas do conhecimento. Esses estudos surgem a partir da perspectiva de compreender o ponto de vista individual e coletivo e as transformações que ocorrem na sociedade.

A pós-modernidade é o nome denominado para o momento histórico que estamos vivendo, tempos de ruptura de fatos socioculturais da modernidade e do surgimento de novos, assim, a modernidade e a pós-modernidade se complementam e se contrapõem. Conforme apresenta Goergen (1997, p.63 apud Gatti, 2005, p. 602), “modernidade e pós-modernidade não se encontram numa relação de superação de uma pela outra, mas numa relação dialética”.

A juventude que passa por esse momento de transição afeta e é afetada por esse novo cenário, cada indivíduo é responsável pelo seu próprio progresso através de maneiras imediatistas. Nesse contexto, surge o “neo-individualismo” pós-moderno, no qual o sujeito vive sem projetos, sem ideais, a não ser cultuar sua autoimagem e buscar satisfação aqui e agora, “admirando-se a si mesmo e amando-se perdido na multidão” (GOMES; CASAGRANDE, 2002, p. 698).

Ainda nesta mesma perspectiva Gomes e Casagrande (2002), apontam que essa transição que os jovens estão passando se dá por circunstâncias pós-modernas de um mundo com pouca segurança psicológica, econômica e intelectual, sendo esse, um dos pontos negativos desta nova era, pois o mundo moderno é um lugar de certeza e ordem.

Fonte: Imagem por rawpixel.com no Freepik

Estamos em um tempo de desvalorização da cultura, novos valores estão se formando enquanto ocorre a desconstrução de valores construídos até então, e algumas dessas mudanças podem ser consideradas desfavoráveis, como por exemplo, o individualismo. Um indivíduo voltado para si próprio poderá ter problemas pessoais e grupais, considerando que a sociedade é multicultural, que considera valores, história, e além disso, vivemos em constante socialização para manutenção da sobrevivência.

Existe uma preocupação acerca da influência do individualismo que está relacionada a perda de laços sociais que acompanha a desconstrução de formas de relacionamentos e as possibilidades de diálogos fruto da redução das identidades sociais e culturais. Por outro lado, a pós-modernidade limita as chances de reconstrução desses laços que foram afetados no decorrer do tempo.

Conforme Lacaz (2001), essas novas características favorecem o capitalismo, pois os pós-modernistas compactuam com a forma de convívio social e modelo político-econômico, e o capitalismo traz uma ilusão de pluralidade, quando na verdade ele procura padronizar e homogeneizar. Lacaz ainda salienta que é importante estudar e ter conhecimento da realidade para o enfrentamento do capitalismo hodierno.

Outro ponto que se originou através do capitalismo e que perpetua no período pós-moderno é o consumo excessivo. Para Santos (2002), nos tempos atuais está havendo a sedimentação de um sistema econômico que afeta a todos e permeia as relações humanas. Pois, o modo como vem sendo cultivado e estabelecido o consumo acaba criando falsas necessidades que alimentam o desejo do indivíduo alienado na busca pelo objeto do consumo. Dessa maneira, todas as vezes que os desejos alienados de consumo forem satisfeitos, logo serão substituídos por outros em razão da frequência incessante do consumismo.

Fonte: Imagem no Freepik

Pode-se notar que a lógica dessa busca pela felicidade imediata não consiste apenas nas relações de consumo, como também nas relações sociais, onde o outro é influenciado cada vez adquirir o aspecto de um objeto também de consumo. Portanto, percebe-se que a felicidade se encontra num produto de consumo, que rapidamente é substituída por outro.

Freud (1930/1974), em sua obra “O mal-estar na civilização” destaca a busca das pessoas pela felicidade, relacionando com o princípio do prazer:

O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue (FREUD, 1930/1974, p.95).

Nessa passagem, Freud (1930/1974) afirma que a felicidade é de caráter temporário e que esta satisfação se prolonga, sendo mais flexível.

Fonte: Imagem no storyset no Freepik

A pós-modernidade não se resume nas subjetividades e nas relações sociais e políticas, mas, em igual medida, interpõe no modo de vida que interfere diretamente nas dinâmicas culturais, criando um problema que aparentemente é de ordem individual que acomete, sobretudo, os jovens contemporâneos. É preciso pensar, pois, nas gerações futuras, amplamente impactadas por um modo de vida que, de acordo com Bauman (2007), Birman (2013) e Freire Costa (2004), afirmou a autoviolência e a vertigem existencial – falta de perspectiva no futuro – como aspectos aceitáveis.

A saúde mental diante a pós-modernidade é afetada diretamente, pois os sujeitos tendem a ser mais individuais, egocêntricos e movidos por relações de poder, que de alguma maneira traga benefícios para si próprio. Por outro lado, o avanço da tecnologia ganha cada vez mais espaço, com isso as pessoas se aproximam sucessivamente desse movimento que a partir disso surgem as reflexões sobre o desenvolvimento do ser humano e os impactos que isso causam no bem-estar dos usuários.

A pós-modernidade está voltada para a tecnologia e para o presenteísmo, as pessoas têm tido uma necessidade de estar bem o tempo todo, produzindo e consumindo, mas a produção da saúde mental não acompanha esse ritmo a qual a sociedade vem se submetendo. A característica da tecnologia em saúde mental é peculiar, pois ao se cuidar do ser humano, não é possível generalizar condutas, mas sim adaptá-las às mais diversas situações, a fim de oferecer cuidado singular (GONÇALVES, 2009, p. 179).

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmund. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

BIRMAN, Joel. Novas formas de subjetivações. In: CPFL CULTURA – INVENÇÃO DO CONTEMPORÂNEO. Campinas-SP: CPFL, 2013. Disponível em: Acesso em: 22 mai. 2016.

FREUD.S. O mal-estar na civilização (1930). In:_______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXI, p. 37-171. Edição Standard Brasileira.

GATTI, BERNARDETE A. Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas. Cadernos de Pesquisa, [S. l.], v. 35, p. 595 – 608, 1 dez. 2005.

GONÇALES, Cintia Adriana Vieira. Cotidiano de atenção à pessoa com depressão na pós-modernidade: uma cartografia. 2010. Tese de doutorado (Enfermagem) – Aluna, [S. l.], 2009. DOI 10.11606. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7136/tde-11012010-123208/en.php. Acesso em: 25 nov. 2021.

LACAZ, Francisco Antônio de Castro. O sujeito n(d)a saúde coletiva e pós-modernismo. 2001. [S. l.], 2001. DOI https://doi.org/10.1590/S1413-81232001000100019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/YpbcLDxHVmYxsfXmTLV3YQv/?lang=pt. Acesso em: 25 nov. 2021.

SANTOS, L. A. R. dos. Psicanálise e educação: um olhar sobre a criança-consumidora e a escola nos dias atuais. Pulsional Revista de Psicanálise, v. 15, n. 155, p. 74-76, mar. 2002.

SOUSA, Sonielson. L.; MIRANDA, Cynthia Mara. Pós-modernidade e vertigem existencial entre jovens. Revista Humanidades e Inovação v.5, n. 4 – 2018.

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A obsolescencia dos vínculos afetivos na perspectiva de Zygmunt Bauman

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A pós-modernidade é marcada pela propagação da individualidade hedonista e do consumismo desenfreado.

Zygmunt Bauman (1927-2017), sociólogo, pensador, professor e escritor polonês, de grande importância para a sociedade contemporânea, sendo uma das vozes mais críticas da atualidade (morto recentemente), foi também responsável por criar a expressão “Modernidade Líquida” para classificar a fluidez do mundo em que os indivíduos não têm aqueles padrões de referências que antes norteavam e davam propósito para as gerações passadas.

A pós-modernidade é marcada pela propagação da individualidade hedonista e do consumismo desenfreado; a pessoa passa a dar ênfase a coisas mais supérfluas, que venha dar uma significado a sua existência mesmo que isso seja momentâneo. Guy Debord (2003) traz o termo “Sociedade do Espetáculo”, para personificar essa sociedade que tem os seu sentidos atrofiados, com supervalorização da visão, pois é através deste sentido que a mídia exerce um maior controle sobre o desejos das pessoas. Sendo assim, essa sociedade  molda seus comportamentos sobre a perspectiva do consumo, dentro daquilo que os meios midiáticos transmitem como ideal e importante. Neste âmbito, o que é mais importante é a busca pelo prazer, assim como a sociedade líquida de Zygmunt Bauman, isso é algo que o modelo econômico capitalista tem tido êxito em  inserir em seus discursos, que a busca pelo prazer é o único propósito da vida humana, isso tem levado a massa a consumir o que é oferecido sem as devidas críticas, mas ao mesmo tempo levam a crer que são críticos pelo simples fato de  serem consumidores de produtos e informações.

Esse discurso adquirido que vivemos para gozar o prazer que a nós é legado acaba por reverberar nos relacionamentos afetivos, criando barreiras de  incertezas, pois o contato com o próximo tornou-se frágil e sem relevância; vínculos afetivos duradouros  tornam-se cada vez mais difíceis de se manter, relacionar-se com o outro de forma mais autêntica e profunda não é tido com relevante para o contexto social da pós-modernidade. Daí parte indagações dos motivos que levaram estas mudanças de paradigmas humanos, ao mesmo tempo que somos seres sociáveis, damos as costas para a criação de vínculos afetivos duradouros, tudo isso para não entrar em conflito com a busca da liberdade e segurança, que não é mais caracterizada pela permanência das coisas. Amizades e relacionamentos amorosos nunca foram tão fáceis de se desfazer. Bauman traz um exemplo simples comparando as relações como uma revisão em um automóvel, que constantemente precisa ser revista (BAUMAN, 2004).

Fonte: encurtador.com.br/psY89

A modernidade que se tornou liquefeita agora é um agente que dificulta a manutenção de vínculos de maior durabilidade e de laços de qualidade, que venha dar às pessoas  vivências humanas providas de  maior responsabilidade e comprometimento para com o Outro; no capítulo dois da obra Modernidade Líquida de Bauman, temos a  afirmação “neste mundo aquilo que tenha um propósito ou um uso não tem espaço” (BAUMAN, 2001). A sociedade capitalista implantou no cerne do ser humano o desejo de ter mais do que aquilo que possa lidar criativamente e com qualidade, um exemplo disso é a era da informação em que vivemos, graças ao advento da mídia televisiva e da internet, possibilitou ainda mais  para o desenvolvimento da espécie humana, mas isso acabou por gerar pessoas temerosas em ter que perder a sua liberdade em prol de um relacionamento mais sólido.

A configuração de relacionamentos afetivos na pós-modernidade é de curto prazo pautado na individualidade podendo ser chamados de “relacionamentos virtuais” pois parecem ser feitos sob medida para este cenário líquido, relacionamento que antes era indesejáveis e impossíveis de se romper, na “rede” o ato de conectar e de excluir torna-se possível em uma capacidade silenciosa, estas conexões indesejáveis são rompidas sem que se torne detestáveis (BAUMAN, 2004).

A rede de internet, com seu muitos aplicativos de conversas e relacionamentos, contribui para que as pessoas se relacionem de forma que venha ter o mínimo de contato possível, os relacionamentos não podem colocar em risco a “identidade” e a “individualização”, por isso quando há uma relação que exige comprometimento ou é discordante dos ideais da pessoa opta-se por desfazer esses laços na mesma velocidade que se levou para criar, assim será para desfazer. “Você sempre pode apertar a tecla para deletar. Deixar de responder um e-mail é a coisa mais fácil do mundo”  (BAUMAN, 2004, p. 61).  A pós-modernidade é marcada por dispor a nós uma infinidade de informação e escolhas, seja comprar ou se relacionar, temos infinitas opções, isso gera a sensação de liberdade  que nos  é dada a todo momento, gerando infelicidade e angústia, não pela falta de escolhas, mas sim pelo excesso delas (BAUMAN, 2001).

Fonte: encurtador.com.br/rtLQ7

As relações afetivas duradouras passam a ser um objeto de pouca importância na sociedade pós-moderna pelo mesmo fato de que por haver muitas opções não há a necessidade de ser manter em um relacionamento por um longo prazo, isto demanda compromisso algo que é expurgado do mundo líquido (BAUMAN, 2001), pois compromisso remete a padronização ao sólido termo que foi derretido para dar lugar ao líquido. A obra Amor Líquido Bauman traz uma distinção entre amor e desejo para ele amor e desejo pode ser  irmãos e que podem ainda ser gêmeos, mas nunca idênticos, univitelinos (BAUMAN, 2004). O desejo tem sido o “combustível” que move as pessoas em suas vidas por algo novo e que lhe proporciona muito prazer. Esse desejo, por vezes, permeia o vazio existencial dos indivíduos e em muito casos é visto dentro dos relacionamentos como  amor genuíno.  Contudo, há  diferença entre eles: o desejo é egocêntrico, motivado para a saciedade de uma falta, já no amor a falta existe, mas não tem o objetivo central de ser saciada de forma intensa.

Segundo Colombo (2012) a vida moderna nos mostra que tudo é efêmero e em vão e que estamos inseridos em uma cultura regida pelo vazio que impulsiona as ações humanas  na busca irrefreada do prazer e do poder. A sociedade consumista produz cada vez mais pessoas individualistas e narcisistas, apresentando o “ter” como algo de maior importância na nossa cultura ao mesmo tempo que desvaloriza totalmente o “ser” sendo em muitas das vezes algo que não deve ser levado em consideração, isso se mostra nos relacionamento humanos de hoje.

Esta característica torna-se difícil para que o homem pós-moderno crie relacionamentos duradouros e vínculos afetivos resistente, passa assim a almejar o poder e a liberdade que a consumo pode lhe proporcionar, através do modelo econômico  capitalista, que redirecionou o foco de visão humano não sendo importante a durabilidade e qualidade, mas sim a facilidade de se adquirir e descartar. Nesta perspectiva as relações não são feitas para durar pois acabam por seguir o mesmo princípio do consumo dentro do  capitalismo, (BAUMAN, 2004)  compromisso a longo prazo se tornou um enfado para manter o convívio com o outro, a sociedade mantém longe o compromissos e também nos impede de exigi-los,  Bauman (2004) nos traz o termo “relacionamentos de bolso” que seria usado em momentos casuais e sem nenhum problema tornaria a guardá-lo.

Fonte: encurtador.com.br/jNVW6

Este momento em que vivemos é a era da liquefação dos padrões de dependência e interação (BAUMAN, 2001) ou seja não temos mais o dever de nos mantermos reféns de padrões tão rígidos e delimitados como vivia as gerações passadas. O homem contemporâneo vivendo o deslumbre da liberdade que esta modernidade líquida oferece, passou se séculos de privações, sendo elas impostas pela sociedade ou pela religião (que tinha aspectos rígidos e sólidos  e que reprimia este homem), passando a não ser mais reprimido podendo assim desfrutar de sua “liberdade”, essa liberdade chega também para os relacionamentos deste sujeito, não sendo necessário manter laços fortes com mais ninguém, pois isso implica na limitação ou  perda deste bem conquistado.

“A Vida Líquida é uma vida de consumo” (BAUMAN, 2009, p. 16), esta vida a qual Bauman se refere apresenta uma característica bastante importante. O objetos passam a ter uma expectativa de vida útil limitada por isto não há uma preocupação em manter algo por muito tempo, pois pode ser trocado com total facilidade. Isto refletiu nos relacionamentos afetivos dos seres humanos, uma dinâmica voltada ao consumo não poderia priorizar o cuidado, a paciência, a tolerância, pois são virtudes que demandam tempo e o tempo para a Modernidade Líquida passa a ser visto de forma diferente algo que deve ser usufruído para manter a individualidade.

Os relacionamentos afetivos e amorosos, neste contexto descrito por Bauman (2004), transformam-se em bênçãos ambíguas que oscila entre o sonho e o pesadelo (amor), algo que pode ser o sonho por ser uma mercadoria de grande valor e que antes na sociedade sólida a característica de durabilidade era visto como parâmetro primal dentro dos convívio humanos. Esse sentido de durabilidade não nos atrai, mas sim o sentimento de pertencer a algo ou alguém; ao mesmo tempo, esse tipo de relacionamento é um pesadelo pois exige de quem o busca que coloque a sua liberdade e comprometimento com o Outro, tendo que se dedicar a manutenção constante desse relacionamento.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 133 p.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 258 p.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 210 p.

COLOMBO, Maristela. Modernidade: a construção do sujeito contemporâneo e a sociedade de consumo. Rev. bras. psicodrama,  São Paulo ,  v. 20, n. 1, p. 25-39, jun.  2012 .   Disponível em                                          <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932012000100004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em                                                     11  nov.  2019.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Ed. Tradução de prefácios e versão par ebook. 2003 Disponível em:  https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf . Acessos em    11  nov.  2019.

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A adaptação esquizofrênica numa sociedade pós-moderna em “Greener Grass”

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Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma

Freud acreditava que a civilização cobrava um preço ao indivíduo: o mal-estar, a neurose. Ele e toda a sociologia clássica temiam a “anomia”, o momento em que o mal-estar explodiria contra a civilização. Mas a sátira do filme “Greener Grass” (2019), da dupla de humor de improvisação stand up, Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, mostra que no mundo pós-moderno paradoxalmente o mal-estar e alienação se tornam ferramentas de adaptação. Em um típico condomínio suburbano de classe média (algo como o sonho americano dos anos 1950 que caiu no Instagram do século XXI) temos uma visão maluca e surreal do tédio da vida suburbana kitsch e brega, vivendo um estilo de vida esquizoide: sentimentos confusos que tentam conciliar interações sociais competitivas com uma polidez politicamente correta neurótica. O resultado é uma sociedade à beira da depressão e, por isso, mais adaptada pela incapacidade de ousar.

Na sociologia clássica funcionalista “papéis sociais” são como “colagens de expectativas” do que os outros esperam de nós no exercício de determinada ação social. Tornam-se modelos abstratos de ação, scripts impessoais que exigem serem cumpridos da mesma forma, cotidianamente, não importando a subjetividade ou necessidades ou carências psíquicas individuais. Por isso, viveríamos no cotidiano verdadeiros “dramas de adaptação” – a tensão entre o script abstrato das colagens de expectativas que entendemos que os outros têm de nós, e a nossa “espontaneidade”: o conjunto de impulsos e demandas íntimas.

Por exemplo, para o sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1902-1979), esse ajuste do indivíduo aos papéis é fonte potencial de disfuncionalidade, o choque entre o que queremos e aquilo que a sociedade espera de nós. É o que Parsons chamava de “dupla contingência”: o drama de adaptação do ego ao papel imposto pelo sistema social de expectativas. Mas estamos no século XXI, e esse viés funcionalista da sociedade tornou-se mais complexo com diferentes matizes. Isto é, esse script abstrato que nos informa o que a sociedade espera de nós parece que se tornou tudo, menos “funcional” – ele pode ter se tornado fonte de profunda disfuncionalidade psíquica: esquizofrenia, psicose, indiferença, amoralidade etc.

Por esse motivo, Greener Grass (2019) é uma sátira maravilhosamente estranha na qual através de uma perfeita farsa suburbana e perversa expõe essa disfuncionalidade – uma visão absurda e surreal do sonho americano, na sua versão século XXI.

Dirigida, escrita, produzida e estrelada pela dupla de cineastas independentes Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe, o filme é uma versão estendida do curta-metragem de 2015 do mesmo nome. Nesse longa elas conseguem expandir a visão maluca do tédio da classe média suburbana (aquela que vive em uma vida asséptica de condomínios fechados) e as dolorosas consequências em se adaptar ao status quo. É como se o velho mundo em tons pastéis do sonho americanos da década de 1950 de repente caísse no Instagram.

Como o título nos informa, o argumento parte daquele velho provérbio de que a grama do vizinho sempre parece mais verde. Toda as interações dos personagens de Greener Grass são competitivas, carregadas de inveja e ansiedade. Porém, o paradoxo é que há uma expectativa latente e generalizada de que todos sejam amigáveis, sorridentes, polidos e simpáticos uns com os outros. Resultando numa estranha polidez que chega às raias da neurose, porque tentam conciliar a agonia da superação com uma cortesia neurótica politicamente correta.

A sociedade de Greener Grass acrescenta um requinte perverso aos dramas de adaptação descritos pela sociologia clássica – há uma espécie de armadilha esquizoide na qual os personagens caem quando tentam conciliar o inconciliável: competição e empatia; ansiedade de superação entrando em choque com uma sociedade que prega a igualdade e atitudes eticamente corretas. Um mundo de fluência, lazer, onde todos se locomovem em carrinhos de golfe entre suas casas que mais parecem cenografias de Show de Truman, o campinho de futebol para torcer histericamente pelos filhos e o boliche do shopping.

O Filme

Greener Grass começa com uma estranha sequência: Lisa (Luebbe) e Jill (DeBoer) sentam-se com um grupo de pais em um dia ensolarado (como todos), assistindo seus filhos jogarem futebol. Ambas as mulheres estão imaculadamente vestidas e maquiadas, com aparelhos nos dentes – todos usam aparelhos nos dentes! Jill segura um bebê recém-nascido e Lisa elogia o bebê: “fofo!”, diz.

Jill imediatamente entrega o bebê para Lisa: “Fique com ele… já tenho um menino”. Ninguém parece achar estranho, nem mesmo o marido Jill (Beck Bennett). Afinal, Lisa queria o bebê e seria egoísta não dar para ela… para sempre. Mais tarde, uma vizinha (Mary Holland) expressa ressentimento (na verdade inveja) por Jill não ter dado o bebê para ela. Jill então passa a ter sentimentos confusos sobre o que fez… No entanto, “sentimentos confusos” não são permitidos no mundo de Greener Grass.

O filho remanescente de Jill (Julian Hilliard) é um menino observador e perceptivo, que ao invés de tocar ao piano numa audição escolar uma música patriota executa uma composição própria de vanguarda atonal – um total freak para os pais, um inadaptável que sofrerá uma transfiguração surreal para poder se adaptar às expectativas do papai: ser um jogador profissional de beisebol.

Há uma cena em Greener Grass que é a síntese do paradoxo esquizoide dessa sociedade: quatro famílias em carrinhos de golfe ficam parados em um cruzamento de quatro vias. Todos gesticulam uns para os outros: “Você pode ir!”, “Não, pode ser você, eu insisto!”… E todos ficam sentados no cruzamento para sempre, com sorrisos congelados em seus rostos, em um estranho impasse de cortesia neurótica.

Síndrome de adaptação

Por isso, em Greener Grass ninguém ousa, produzindo uma estranha síndrome de adaptação – diálogos e ações são atravessados pela competição, inveja e ansiedade por superação. Mas ao mesmo tempo todos devem estar sorridentes, positivos, prá cima, alto astral. Que deve ser representado por uma espécie de polidez que se torna neurótica e paralisante. Ser altruísta pode ser também uma competição, especialmente quando os personagens fazem de forma performativa, para chamar a atenção para merecer aprovação dos outros.

Portanto, nesse mundo nivelador de Greener Grass, destacar-se é aterrorizante. Hipocritamente escondem-se num altruísmo neurótico criando uma surpreendente forma de adaptação jamais imaginada pelo funcionalismo de Talcott Parsons: uma adaptação através da disfuncionalidade psíquica. Mas esse mal-estar cobra um preço: um psicopata assassino ronda a vizinhança – alguém que resolveu ao seu jeito essa contradição entre competição/polidez: decidiu matar seus concorrentes sem piedade. A figura do assassino serial que irrompe no meio de um mundo colorido e alegre apenas confirma a espécie de redoma de vidro   sufocante que asfixia todos – por contraste, o assassino apenas reforça o estilo de vida asséptico e hipócrita.

Mesmo quando Jill se deteriora física e psiquicamente, comprova que não há saídas daquele mundo que parece tudo é apenas intercambiável – casas, filhos casais etc. Lisa pega uma bola de futebol, coloca debaixo do vestido e diz que está grávida, para todos participarem do seu “chá de bebê”; casais sem querer trocam seus parceiros e sem perceberem beijam o parceiro do outro; as casas parecem casas de boneca com decoração intercambiável, como se todos estivessem brincando de casinha.

Em suma, a narrativa de Greener Grass é um ótimo estudo de caso de como o mal-estar produzido pela socialização e adaptação pós-moderna (baseada em sentimentos contraditórios que anulam uns aos outros) produz uma estranha disfuncionalidade, não mais explosiva ou anômica. Mas agora, uma disfuncionalidade que anestesia, bloqueia a ousadia sob sintomas de cortesia neurótica, sorrisos nervosos e comportamentos estereotipados.

FICHA TÉCNICA:

Direção: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe
Elenco: Jocelyn DeBoer, Dawn Luebbe, Beck Benett, Neil Casey, Mary Holland;
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Comédia

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Professor da Psicologia tem capítulo publicado em livro da UFT e UFRR

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O artigo tem como tema “Pós-Modernidade e vertigem existencial entre jovens”

O professor Esp. Sonielson Luciano de Sousa, que no curso de Psicologia ministra as disciplinas de Antropologia e Filosofia, além da disciplina institucional Sociedade e Contemporaneidade, acaba de publicar – em coautoria – um capítulo no livro “Media Effects: ensaios sobre teorias da Comunicação e do Jornalismo”, pela Editora Fi, numa parceria entre a Universidade Federal do Tocantins – UFT – e a Universidade Federal de Roraima – UFRR. A publicação foi organizada pelos professores doutores Gilson Pôrto Jr.; Nelson Russo de Moraes; Daniela Barbosa de Oliveira e Vilso Junior Santi, além de ter a apresentação do prof. Dr. Geraldo Gomes.

Fonte: goo.gl/7xQrLA

O capítulo escrito pelo professor Sonielson é intitulado “Pós-Modernidade e vertigem existencial entre jovens: influência da mídia pela teoria do enquadramento”, onde há um diálogo entre autores da Psicologia, Psicanálise e Comunicação Social.

A proposta do livro é debater as grandes interfaces da comunicação, tendo em vista que a sociedade vive momentos de busca do entendimento, tanto dos fatos sociais como da reorganização constante do seu tecido e dos papéis de seus atores. De acordo com a proposta da publicação, o momento contemporâneo desenrola, a cada dia, novas implicações acerca das angularidades degradantes ou edificantes em impactos diretos e reflexos dos desdobramentos da aplicação das mais diversas teorias da comunicação. A comunicação, assim, é tomada como seara do conhecimento que tangencia a humanidade em todos os seus afazeres, da gestão pública à gestão empresarial, do consumo ao diálogo familiar, das cores às manifestações estabelecidas pelas condições humanas, passando pela Psicologia.

Para ter acesso gratuitamente ao livro, em formato e-book, basta acessar o link https://www.editorafi.org/272opaje . No mesmo endereço também é possível solicitar a versão impressa da publicação. (Com informações da Editora Fi)

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Professor da Psicologia tem ensaio publicado em revista da UFT

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*Ensaio trata do corpo como objeto de disputa política, religiosa, artística e, mais recentemente, científica.

O professor do curso de Psicologia Sonielson Luciano de Sousa – nas disciplinas de Antropologia, Filosofia e Sociedade e Contemporaneidade – teve um ensaio publicado na revista científica Observatório, da Universidade Federal do Tocantins – UFT, periódico do colegiado de Comunicação Social. O ensaio intitulado “Retorno ao Niilismo?” foi produzido em parceria com a orientadora de mestrado do prof. Sonielson, a profa. Dra. Cynthia Mara Miranda, e analisa um ensaio fotográfico sobre o percurso simbólico do ideal de corpo masculino nos últimos tempos, sobretudo na Pós-Modernidade.

O texto e as fotos tratam do corpo como objeto de disputa política, religiosa, artística e, mais recentemente, científica. Deste modo, o ensaio trás uma linha histórica apontando como o tema é encarado, bem como delineando o conjunto de significados, mitos e interditos relacionados ao corpo.

Fonte: goo.gl/Pj7Spq

No processo, tendo por base autores da psicologia, filosofia e sociologia clássica de diferentes épocas, aponta para a possibilidade de uma retomada do niilismo, na busca de um ideal de corpo. Isso porque, ao se utilizar de técnicas ascéticas, os sujeitos envoltos na dinâmica dão uma dimensão sagrada ao corpo, além de negar certos aspectos da vida, como a decrepitude e a impermanência, condições inalienáveis à dimensão humana. De acordo com a proposta do ensaio e baseado em diversos autores, o corpo volta a ocupar lugar central na sociedade – como já ocorreu na Grécia Clássica –, só que agora esvaziado de sua dimensão política e social.

A publicação de textos de caráter científico, por parte dos professores de nível Superior e pesquisadores de programas de Pós-Graduação, é uma prerrogativa para que a comunidade acadêmica conheça a produção e inquietações que movem os profissionais da educação. Além disso, as publicações passam pelo escrutínio dos pares, condição indispensável para o cotidiano e expansão da ciência.

Esta edição da Revista Observatório é a primeira de 2018 e as temáticas principais giram em torno da Pós-Verdade e da crítica às práticas jornalísticas. A publicação foi organizada pelos professores Amanda M. P. Leite, Leon Farhi Neto e Renata Ferreira da Silva, ambos da Universidade Federal do Tocantins (UFT), e pela professora Beatriz Marocco, da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS). A Comunicação é uma das áreas de maior contato interdisciplinar com a Psicologia, com aproximadamente 8 mil menções na plataforma Scielo e algo em torno de 625.000 menções no Google Acadêmico.

Para conhecer as fotografias e o ensaio “Niilismo repaginado?” basta acessar o link https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/4790/12186

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CAOS: Pós-modernidade, mal-estar existencial e saúde psíquica dos jovens

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Nesta quinta-feira, 24 de agosto, ocorreu na sala 405 do Ceulp/Ulbra as sessões técnicas com apresentações de trabalhos acadêmicos, no Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia (CAOS). Dentre as apresentações, houve o trabalho “Pós-modernidade e vertigem existencial entre jovens: panorama de autoviolência”, com autoria de Sonielson Luciano de Sousa (Ceulp/Ulbra).

Em referência a Freire Costa, Bauman e Birman, Sonielson diz que a pós-modernidade é marcada pelo enfraquecimento do estado enquanto instância mediadora hegemônica e lugar de diferentes cenários e modelos de educação e sociabilização nos núcleos parentais, gerando uma individualização que afeta a todos, principalmente os jovens, tornando-os descontentes e frustrados com as exigências para manter a originalidade e uma formação identitária adequada, que é inalcançável.

As antigas estruturas mediadoras aterrorizavam em sua onipotência, porém, criavam certo apaziguamento. Sai-se da geração de segurança para a valorização de hábitos que remetem à liberdade, provocando uma vertigem existencial e impactando sua saúde mental dos jovens, expressada nos índices de violência. Os jovens sofrem pelo excesso de possibilidades, em um cenário no qual os dispositivos de controle os colocam em protagonismo, enfraquecendo o núcleo parental imediato, isto, aliado ao contínuo movimento com que eles são submetidos e à ideia de trabalhar por progresso e autogerenciamento ininterrupto da vida.

Bauman (2007) e Birman (2013) assinalam sobre a sociedade de risco, onde nenhum indivíduo conta com a proteção do Estado e efetivamente todo problema das subjetividades associar-se-á a esta lógica. Atualmente, a aceleração não admite limites, responsabilizando os jovens por reciclar, revisar e reconstituir suas identidades. Trata-se de um movimento para, na esfera pública, demonstrar uma identidade compatível com as expectativas.

Quanto mais os jovens tentam ser diferentes, mais se assemelham no movimento com que mobilizam suas estratégias, uma vez que seguem a mesma estratégia de vida e usam símbolos comuns (BAUMAN, 2007, p. 26). A fragmentação pós-moderna em conjunto com as perdas de elementos que orbitavam em torno da política gera um panorama de ausência de mediadores, causando um mal-estar existencial, que requer atenção quanto à saúde psíquica destes jovens, sob pena de desaguarem à violência (BIRMAN, 2013).

A questão, portanto, não se resume às subjetividades e relações sócio-políticas, mas, em igual medida, entremeia um problema aparentemente de ordem individual, que ganha apelo de caráter ético, pois não se está apenas a falar das condições da saúde mental dos jovens contemporâneos, mas em como isso também pode afetar as gerações futuras, no campo da ética.

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