Compêndio da Psicanálise: considerações sobre a obra não finalizada de Freud

Compartilhe este conteúdo:

O Compêndio da Psicanálise foi iniciado por Freud em 1938 e não finalizado devido a sua morte. A partir desses escritos, realizaremos considerações sobre os três primeiros capítulos do livro.

No primeiro capítulo, o Aparelho Psíquico, somos apresentados à uma introdução que faz menção à metapsicologia e à justificação do inconsciente, conteúdos presentes no livro Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) que servem de embasamento para os estudos da personalidade sob uma perspectiva psicanalítica. O aparelho psíquico diz respeito ao id, ego e superego. A mais antiga dessas instâncias é o ego, aquele que serve como intermediário entre o id e superego, herdado e estabelecido desde nossa infância.

Em algum momento no desenvolvimento, essa instância se transforma e então se estabelece uma nova, o id, que é o mediador entre o ego e o mundo externo. Vale ressaltar que essa transformação se deu diante da recepção de estímulos e a proteção contra eles e aí reside umas das primeiras funções do id, que é a de autoconservação. Ele experimenta desprazer quando alguma tensão não é solucionada e prazer quando encontra evasão à essa tensão. Quando existe este desprazer, ele pode sinalizá-lo como medo motivado pelo perigo sentido na situação. Como características da autoconservação podemos citar a fuga, adaptação, armazenamento de experiências e a modificação do mundo exterior ao seu favor, o que vem a ser atividade.

encurtador.com.br/htDR4

Para a introdução do superego no aparelho psíquico, Freud se utiliza da teoria econômica de distribuição da energia psíquica. Durante o desenvolvimento na dependência dos pais, se cria no indivíduo uma nova instância em que “essa influência parental tem continuidade” (FREUD, 2015, p. 50). Por sua vez, ela diverge do id e lida com suas demandas, do ego e da realidade, conciliando essas forças. No superego estarão presentes os discursos da família, da cultura, da sociedade, educadores e seus substitutos. Assim como afirma Freud, existem influências do passado presentes no ego e no superego, que apesar de sua diferença elementar, compartilham, no ego: de algo herdado e no superego de um passado que lhe é introduzido pela família e os demais.

Em Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) muito é falado sobre as pulsões do eu e do objeto, bem como a dinâmica dessas e seus deslocamentos. No segundo capítulo, a Teoria dos Impulsos, sintetiza essas duas pulsões como aquelas presentes em eros, que é a pulsão de vida, de criação, autoconservação e o seu contrário é a pulsão de morte, também conhecida como tânatos, que busca o estado inorgânico das coisas. À energia presente em eros, se dá o nome de libido, que cumpre o papel de neutralizar as tendências destrutivas existentes no id-ego e que podem ter destinos variados, como vimos no livro citado anteriormente, que poderá 1) fazer com que o afeto continue no todo ou em parte, 2) se transformar e tornar-se angustia ou 3) ser suprimido. Ainda sobre a libido, devemos ressaltar a sua mobilidade e fixação. Na primeira, existe uma função desejada do dinamismo da libido, em que passa de um objeto para o outro e na segunda um estado que pode perdurar por toda a vida e que leva à um empobrecimento psíquico.

encurtador.com.br/uDW69

No terceiro capítulo, o Desenvolvimento da Função Sexual, aponta-se que há quatro fases, a oral, anal, fálica e genital. Primeiramente, é falado sobre o escândalo que a psicanálise causou em sua época quando formulou que a sexualidade está presente desde a infância e influencia os indivíduos de forma pontual, mas procura esclarecer que a genitalidade é diferente de sexualidade e que na vida sexual o ganho de prazer existente num primeiro momento nada tem a ver com reprodução.

O primeiro órgão que faz solicitações libidinosas é a boca, que busca satisfação biológica e que aspira pelo ganho de prazer. Por esta razão, se faz sexual. Neste capítulo, Freud adentra na questão edípica de que na mulher falta o pênis e que o processo de finalização do édipo não se dá como no menino, pois ela se percebe sem o falo e vive uma frustração, se distanciando por algum tempo da vida sexual. Esta teoria teve contribuições posteriores e novas perspectivas através dos estudos psicodinâmicos.

As três primeiras fases não acontecem quando uma finaliza, mas se justapõem e uma se acrescenta à outra. A organização completa se dá na fase genital, em que alguns processos são finalizados com sucesso e outros são recalcados, salientando que nem sempre essa organização se dá de forma impecável. A construção desse pensamento finaliza-se na importância de estudar esses fenômenos pelo ponto de vista dinâmico e econômico e que a etiologia das perturbações deve ser estudadas no primeiro período de vida do indivíduo.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Compêndio da Psicanálise. Porto Alegre: L&PM, 2015.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Compartilhe este conteúdo:

“Perdi meu corpo” e a angústia de separação

Compartilhe este conteúdo:

A angústia que sentimos diante de uma separação, na verdade vem desde o nascimento, é a primeira experiência de perda do objeto amoroso

O longa francês, Perdi meu corpo (J’ai Perdu Mon Corps) conta a história de uma mão decepada que escapa de um laboratório de dissecação.  Com a fuga ela foca em um só objetivo: retornar para o restante de seu corpo e voltar a fazer parte de um organismo completo. Enquanto ela vaga pelos arredores de Paris, se lembra dos tempos de quando era apenas uma jovem mão no corpo de um apaixonado rapaz.

Texto contém spoilers!!

Logo no início do longa podemos ver uma mão ganhando vida, despertando em um laboratório onde aprende a andar com os dedos e como se de imediato, soubesse o que fazer, iniciando sua busca pelo restante do seu corpo. Aos poucos durante seu trajeto ela vai revendo memórias de quando seu dono era criança. Uma sensação de saudosismo de uma época em que fazia parte de um corpo, um ser completo.

O longa se passa em três linhas do tempo, uma em que a mão está, outra antes do acidente e as lembranças do Naoufel da sua infância.

Naoufel, o dono da mão que até então não foi separada de seu corpo, aparenta ser um jovem preso ao passado, onde seus pais ainda estavam vivos. Ele guarda diversas fitas em que gravava variados tipos de sons, desde sua mãe cantando até o som do vento na grama. Por mais que ele não tenha mais gravado sons após a morte de seus pais, Naoufel nunca se desfez das fitas e parece que as ouve com frequência. Parece pairar uma sombra de culpa, pois quando ele ouve a última fita, mostra momentos antes do acidente em que Naoufel quase cai da janela do carro ao tentar gravar o som do vento do lado de fora e nisso o pai é quem o segura. Nesse momento de distração o acidente ocorre.

Dessa forma, o personagem parece ficar preso nesse passado até que conhece a Gabrielle. Parece que a partir disso, algo se movimenta dentro dele, essa energia que provém das pulsões ou instintos e que afeta nosso comportamento e que Freud (1978) define como libido, passa a ser investido para esse novo objeto amoroso que passa a ser uma obsessão. Ele acaba assim, fazendo várias coisas para se aproximar dela.

A mão, dessa forma, pode ser uma representação desse sentimento de angústia que ele sente. Freud (1926) aponta que essa angústia que sentimos diante de uma separação, na verdade vem desde o nascimento, é a primeira experiência de perda do objeto amoroso. Assim, quando entendemos as linhas do tempo, fica claro que a partir do momento em que ele perde a mão, começa sua jornada para seguir em frente.

Da mesma forma sua relação com Gabrielle é essa tentativa de voltar ao estado de simbiose com um objeto amoroso, porém se frustra e acaba em uma briga na festa do amigo. Freud (1926) afirma que existem defesas com o intuito de evitar novas situações traumáticas. Portanto temos de um lado a busca pela fusão com um novo objeto amoroso e do outro uma busca por algo que o fizesse seguir em frente, que no caso seria ressiginificar essas lembranças que o faziam de refém dessa angústia.

FICHA TÉCNICA:

PERDI MEU CORPO

Título original: J’ai Perdu Mon Corps
Direção: Jérémy Clapin
Elenco: Dev Patel (Naoufel), Victoire Du Bois (Gabrielle), Patrick d’Assumção (Gigi);
Ano: 2019
País: França
Gênero: Animação, drama;

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. Inibições, sintoma e Ansiedade (1926). In:______. Um estudo auto-biográfico inibições, sintomas e ansiedade a questão da análise leiga e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, S. A Teoria da Libido. In: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XVIII. Londres: The Hogarth Press e Institute of Psycho-Analysis, reimpresso em 1978.

Compartilhe este conteúdo:

Santa Clarita Diet: estrutura psíquica em Freud

Compartilhe este conteúdo:

Santa Clarita Diet, série original da Netflix, estreada em 03 de fevereiro de 2017, é uma comédia politicamente incorreta. Retrata a vida de um casal, Sheila (Drew Barrymore) e Joel (Timothy Olyphant), ambos corretores de imóveis, que levavam uma vida blasé em Santa Clarita, um populoso subúrbio no condado de Los Angeles.

Porém, logo suas vidas apáticas ganham uma reviravolta radical, quando Sheila adquire um gosto um tanto quanto peculiar: o de comer carne humana. Com a ajuda de sua filha adolescente, Abby (Liv Hewson) e de seu amigo, Eric (Skyler Gisondo), eles descobrem que Sheila se tornou um zumbi, ou, como preferem chamar, morta-viva (por acharem o termo zumbi pejorativo).

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

A partir disso, o casal entra em uma situação complicada. Sheila necessita de carne humana, pois nenhum outro alimento lhe satisfaz, somente essa dieta do tipo sanguíneo a deixa vívida, feliz e com aspecto super saudável e jovial, mesmo que para isso tenha que matar outras pessoas. Ela encontrou vida após a morte. E, para conseguir esse alimento valioso, seu marido lhe ajuda, dizendo que vão passar por essa situação juntos, como sempre estiveram.

Então, a caça começa. O casal, que no início ainda tentava manter a moralidade intacta, passam a procurar por pessoas “imprestáveis”, que já fizeram ou fazem mal à sociedade. Entretanto, suas buscas são frustradas, uma vez que, ao se depararem com tais pessoas, acabavam por descobrir que, na realidade, não eram más. Sheila chega ao seu ápice, não suportando a fome. Logo, quem cruza seu caminho, acaba “acidentalmente” morto.

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

Contudo, essa não é a tarefa mais difícil do casal. Com a filha na adolescência, eles têm noção da responsabilidade que possuem, assumindo a necessidade de serem bons pais. Mas, convenhamos, matar pessoas e guardar no freezer para comer mais tarde não é um exemplo louvável. Para suprir a necessidade de Sheila e, ao mesmo tempo, serem bons pais, o casal faz suas coletas escondidos da filha.

É nesse ponto que se torna interessante observar a estrutura psíquica descrita por Sigmund Freud (1933) e bem representada por essa família singular. Sheila, claramente, é o Id, pois, ao se tornar uma morta-viva, seu instinto aflora demasiadamente, fazendo-a seguir sua pulsão de vida (através da morte) sem se preocupar com as consequências que suas ações podem trazer (irracionalidade). Ou seja, Sheila possui os aspectos primitivos que formam a instância inconsciente dos seres humanos, como a necessidade de alimento e de sexo, por exemplo, ambas bem expressadas pela personagem.

Fonte: http://zip.net/bptFmN
Fonte: http://zip.net/bptFmN

Abby, a filha do casal, representa o Superego, pois, é dela que os pais tentam esconder os assassinatos, análogo às convenções sociais e proibições que tal instância psíquica impõe ao indivíduo, principalmente no que tange aos desejos do Id. Também há de notar-se os conflitos gerados entre o Superego e o Id, quando o primeiro descobre o que o segundo está “aprontando”, quando Abby encontra o corpo de um homem dentro do freezer, no depósito da família, e percebe que pedaços dele estavam faltado, concluindo que a mãe estava se alimentando dele, fazendo o contrário do que havia prometido (não comer gente).

E por último, mas não menos importante, há o Ego na série, representado por Joel, marido de Sheila e pai de Abby. Seu papel de mediador fica bem evidente, dado que ele ajuda sua esposa a adquirir seu alimento preferido e, ao mesmo tempo, tenta manter a posição de educador da filha, buscando uma forma dessa não descobrir as artimanhas da mãe, sabendo que haveria conflito se isso ocorresse. Da mesma maneira, o Ego tenta mediar a relação entre o Id e o Superego.

Fonte: http://zip.net/bltC9f
Fonte: http://zip.net/bltC9f

Enfim, uma série divertidíssima e muito interessante, ainda mais ao se notar os aspectos freudianos nela presentes. Mas será que a relação entre esses três amiguinhos da Psicanálise vai se manter saudável até o fim? Será que haverão muitos conflitos? E o mais importante: Será que Sheila encontrará a cura para o vírus zumbizóide que corre em seu corpo, voltando a ser a mulher de antes, que se preocupa em não causar danos sociais? Essas dúvidas só serão sanadas na próxima (2ª) temporada. Fique atento!

REFERÊNCIAS:

SADALA, G. MARTINHO, M. H. A estrutura em psicanálise: uma enunciação desde Freud. Ágora (Rio J.) vol.14 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982011000200006>. Acesso em 08 Fev 17.

FICHA TÉCNICA:

SANTA CLARITA DIET

Fonte: http://zip.net/bjtDB7
Fonte: http://zip.net/bjtDB7

Gênero: Comédia/Terror
Ano: 2017
Elenco: Drew Barrymore, Timothy Olyphant, Liv Hewson
País: EUA
Criação: Victor Fresco

Compartilhe este conteúdo:

Pulsão, afeto e paixão em “O Príncipe das Marés”

Compartilhe este conteúdo:

Escrevo instantes depois de (re)assistir ao filme “O Príncipe das Marés”, que, sem dúvida, abriga em si grande riqueza sobre a teoria das pulsões, “pedra angular sobre a qual repousa a psicanálise” (Freud, 1914). Entre dor, silêncios, sarcasmos, angústias dissimuladas, surge um homem morto/vivo desempenhando papéis confusos de irmão, pai, marido. Ele demonstra alguns tipos de resistências, mecanismos de defesa, tendo no chiste a sua principal marca. Vale ressaltar que “para atingir seu objetivo, que é ajudar a suportar desejos recalcados, os chistes requerem a presença de pelo menos três pessoas: o autor da piada, seu destinatário e o espectador” (ROUDINESCO, E. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998). Tom Wingo (Nike Nolte), é um treinador de futebol americano que vai da Carolina do Sul para Nova York ajudar a irmã Savannah, poetisa, frágil suicida em potencial. Lá, tem que se haver com a terapeuta da irmã, Susan Lowenstein (Bárbara Streisand), uma mulher forte que, em contraste com a fragilidade dele e da irmã gêmea, provoca as mais diferentes e intensas emoções, “abrindo a caixa preta”, o inconsciente bem guardado pela resistência. A partir de então, mecanismos de defesa, chistes, resistências e transferências acontecem a cada encontro em eletrizantes manifestações psíquicas entre “paciente” e terapeuta.

Na dinâmica cinematográfica, a “alegria e descontrações próprias do Sul” escondem tormentos inomináveis de um menino que viveu experiências terríveis e foi orientado a guardá-las como quem guarda um cadáver de estimação. Ele narra, então, sua triste saga que tem como pano de fundo as mulheres de sua vida.

As primeiras palavras da narrativa são interessantes: “Filho de uma mulher bonita e um pescador, eu amava o contorno dos barcos”. O deslocamento (de afeto) é visível. Trechos parecem fluir como a própria licença poética: “vivi com uma mulher lindamente torneada (sem essência materna), mas prefiro coisas, ou melhor, o contorno, o superficial, do inanimado que não me cobra, não me afeta, não me questiona”. Impressiona a paixão negativa que o move em relação à mãe. Quer parecer que ele sabe ou deposita nela toda representação de sua dor.

Odiando-a, inibe o retorno daquilo que deseja esquecer (do recalcado), fugindo do desprazer da lembrança. Ela encerra, sepulta, torna-se representante do que deve ser esquecido, deletado, anulado da memória.

Quando com os irmãos experimentava o conforto do útero das águas, sentia-se bem, longe, num mundo estéril, neutro, quase seguro. A água também os asfixiava, obrigando-os a voltar, nas palavras do narrador e protagonista. “Voltávamos para o medo que nos esperava na superfície”. A resistência se instala muito cedo. A fuga como saída é vivência desde a infância.

As palavras mais fortes, ditas e com maior ênfase e paixão raivosa, sempre se referiam à mãe. “Odeio minha mãe”. A transição edípica não se fez plenamente, afetando seu relacionamento com a esposa. Enquanto andavam pela praia e ao ser confrontado com o fato de não demonstrar afeto, houve a segunda fuga (a primeira na cozinha) da tentativa de conversarem sobre o relacionamento desgastado. Mostrando a Ursa Maior (olhando para longe em plena fuga), é alvo de um desabafo exasperado, e diz: “Não é pessoal, não sei o que sinto por coisa nenhuma”… Mais tarde, Tom Wingo diz à analista que evita coisas dolorosas, para depois rir…

Sobre a transição edípica, entende-se a “representação inconsciente pela qual se exprime desejo sexual ou amoroso pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo oposto, fator importante para a elucidação das relações do ser humano com suas origens e sua genealogia familiar e histórica” (Derrida, J. & Roudinesco, E. (1994). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2004). Durante o decorrer da trama, apoiada SEMPRE no complexo de Édipo – tanto para a irmã Savannah, quanto para ele, Tom, fatos advindos da transição mal resolvida do édipo vão se desenrolando em suas vidas. Para sobreviverem, adquirem outros mecanismos defensivos que geram confusão na identidade, personalidade e fluxo da vida.

Do encontro com a terapeuta da irmã em diante, toda trama narrada por Tom Wingo se dá a partir da entrevista de investigação sobre a irmã gêmea, produzindo, por consequência, fatos ligados à própria vida, até o desfecho de um relacionamento afetivo com a analista. Há uma transferência quase que imediata entre paciente e analista e, posteriormente uma contratransferência da analista para com o irmão da paciente. Completamente envolvida na história de Savannah, ela intervém sempre no sentido de focar nesse ponto, enquanto Tom tenta escapar para alguma distração. O que se passa nos momentos de relatos sobre ela, pode ser tomado como uma sessão analítica na qual as memórias e entendimentos ressurgem sem maiores distorções, apesar das tentativas de escondê-los.

A vivência com pais instáveis e a violência doméstica constante lhe renderam uma autoestima fraca, em sua compreensão, “um garoto educado do Sul que sempre obedecia, responsável, normal, um banana”. Ao ser interpelado se sabia de um fato desencadeador do desejo de morte da irmã, insere o nome do marido da analista, Herbert Woodruff: “Toca uma rabeca e tanto”, a resistência se manifestando em forma de chistes (aqui como cinismo). A “alegria, performance” encobrindo o caos, o feio e o desagradável. Vários episódios de humor ácido são apresentados, como no do diálogo abaixo:

… “Laila Wingo não merece a confiança de Savannah”

(Analista) – “Sua confiança, quer dizer”

… (Tom) – “Desculpe, contei a história errada, esqueça… lembrarei uma melhor”. (Analista) – “O que o incomoda”?

– (Tom) “O efeito estufa, a chuva ácida, a dívida pública… e minha mulher que está tendo um caso com o cirurgião. Eu me sinto um idiota. Nem sabia o que estava havendo” …

Na sequência de palavras, uma cadeia significante: estufa, ácida, dívida. Uma concatenação de pensamentos, linguagem figurada (significada) respondendo à provocação: “O que o incomoda”? ISSO, um mecanismo de defesa chamado negação. A base desse mecanismo é a tendência a negar fatos dolorosos, por entender que não consegue lidar com os mesmos, o que está ligado ao princípio do prazer. Seguindo as palavras, chega à traição da esposa. O diálogo segue.

(Analista) – “Talvez não tenha prestado atenção”.

(Tom) – “Besteira!” … “Pensemos isso, que a mulher é mais perversa que o homem. Vocês (incluindo a analista, já em franca transferência) sabem dissimular, manter segredo (referindo inconscientemente ou até conscientemente sobre o segredo que a mãe lhe “obriga” a carregar), mentem sorrindo e esperam que o homem seja uma torre sólida (falo), quando ele tem algumas fraquezas, inseguranças, vocês simplesmente o traem, maldição! ”

Intervenção:

– “Então se sente traído por sua mãe? ”

– “Estou falando da minha mulher! ”

– “ODEIO ESSA MERDA FREUDIANA”.

– “Sua função aqui não é ouvir meus problemas, vou embora”…

Uma sessão analítica rica de paixão. Uma criança oferecendo suas fezes à mãe (Analista). A paixão negativa pela mãe projetada nas “mulheres”.

Passo a narrar a riqueza do discurso de elaboração da sessão analítica que ocorre no Táxi.
– “Maldita analista! ” “Quem eu estava iludindo? ” …

“Eu era campeão em guardar segredos, melhor que qualquer mulher (mais uma vez “mulher”) até que aparece Suzana Loweinstein” …

“Um homem que não falava, agora não faz outra coisa além disso” …

Esse resultado demonstra o que diz Rui Aragão em “A Entrevista Clínica Psicanalítica”, ao mencionar o que provoca a relação analista/paciente.

No referencial psicanalítico, a entrevista assume-se essencialmente pelo estabelecimento da relação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo da atividade mental, indo, portanto, muito além da mera e sempre importante partilha de informação”. A construção da relação exprime uma parte da atividade intrapsíquica de ambos, entrevistador e entrevistado, com realidades inconscientes, a natureza conflitual e os processos de mudança e de resistência inerentes (ARAGÃO, 2010).

Loweinstein consegue, na construção da relação com Tom, esse desfecho se dá de tal forma que a partir desse encontro, Tom busca a mãe para avisá-la que vai falar.  A análise traz o paciente para um “lugar de desconforto” pelo confronto ao tocar no quesito emocional que fará contato com o recalcado. A pergunta: – “O que o incomoda”? funciona como um alfinete que fura um balão e todo ar represado escapa num estouro libertador.

Outra sessão maravilhosamente rica ocorre quando o protagonista descobre que Renata Halpern é o nome falso da irmã gêmea. A mistura de transferências e paixões se constitui um duelo de titãs no qual ninguém é mais forte. Ao contrário, as dores e fragilidades se confundem unindo ainda mais analista e analisando, de uma maneira um tanto hollywoodiana, mas digna de menção. A chave é a aceitação da provocação do analisando pela analista, contratransferindo no setting. Para tentar explicar o porquê de não ter mencionado o fato a ele, é como se segue:

(Analista) – “Savannah fingia ser judia. O pai, segundo ela, um peleteiro que sobreviveu ao holocausto.

Tom – “A que ela está tentando sobreviver”?

(Analista) – “Ela queria ser outra pessoa”.

Tom – FODA-SE VOCE, FREUD E RENATA HALPERN!

(Analista) -“Como quer que eu reaja”?

Tom -“E se fosse com seu filho”?

(Analista) – “Não é a mesma coisa”!

Tom – “Vou mudar o nome dele”!

(Analista) – “Ele não tentou se matar”!

Tom – “É só dar tempo a ele”!

(Analista) – “Seu filho da puta”! (Algo voa e machuca Tom).

Os efeitos do processo analítico têm resultado singular, vivido a partir da transferência, no qual o inconsciente do analisando e analista estão colocados em ato. O inconsciente do analista pode e, às vezes, é acionado devolvendo ao analisando o afetamento de forma violenta, forte, presente, atuante, como é o caso de Loweinstein (contratransferindo).

A essa altura, Samanntah se torna um pano de fundo para a grande revelação: O abuso sofrido pela família, o choro pelo irmão “endeusado” que se torna apenas um irmão que soube exteriorizar os traumas canalizando-os para a ação, se protegendo e tentando proteger os irmãos. Depois desse diálogo eivado de paixões próprias, o analisando, ao perceber a humanidade da analista, se liberta: o choro contido rola solto, livre e libertador. Nesse momento, no ápice da terapia, ambos chegam ao âmago do problema, partindo para o ato propriamente dito. Paciente é conduzido ao choro, à vazão da dor retida por anos.

Os acontecimentos posteriores não dizem respeito ao objetivo deste texto. Fica evidenciado no filme que a entrevista psicanalítica, diferenciada pela inclusão de processos inconscientes, portanto da dinâmica mental, oferece ao analisando e ao analista oportunidades de interação quase impostas, uma vez que ambos reproduzem comportamentos “ditados” por este na práxis psicanalítica. Como bem colocou Freud, “Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, se convence que os mortais não podem ocultar nenhum segredo”.

REFERÊNCIAS:

ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998;

OLIVEIRA, Rui Aragão – A Entrevista Psicanalítica. Revista Portuguesa de Psicanálise 01/2010; Fonte: http://www.researchgate.net/publication/216423730_A_entrevista_clnica_psicanaltica, acessado em 14.05.2014.

FREUD, Ana. O Ego e os Mecanismos de Defesa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 3ª Edição, 1974.

Derrida, J. & Roudinesco, E. (1994). De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2004.

FICHA TÉCNICA

O PRÍNCIPE DAS MARÉS

Gênero: Drama
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Jay Presson Allen, Pat Conroy
Elenco: Barbra Streisand, Blythe Danner, Brad Sullivan, George Carlin, Jason Gould, JeroenKrabbé, Kate Nelligan, Melinda Dillon, Nick Nolte
Produção: Andrew S. Karsch, Barbra Streisand, CisCorman
Fotografia: Stephen Goldblatt
Trilha Sonora: James Newton Howard
Ano: 1991

Compartilhe este conteúdo:

5 Lições de Psicanálise: um retorno à gênese freudiana

Compartilhe este conteúdo:

O presente texto aborda os principais conceitos de teoria desenvolvida por Sigmund Freud no texto “Cinco Lições de Psicanálise”. Ao longo do trabalho buscou-se uma compreensão dos conceitos apresentados pautada nas explicações dadas pelo próprio autor longo de sua obra.

As Cinco Lições de Psicanálise compreendem uma síntese de cinco palestras ministradas por Sigmund Freud (1856 – 1939), em setembro de 1909, durante as comemorações do vigésimo aniversário da Fundação da Clark University, localizada em Worcester, Massachusetts – EUA. Nesse evento, Freud tem o desafio de trazer para uma classe não médica – principal público que vinha aderindo à psicanálise até o momento – os principais conceitos de sua teoria, esta ainda vinha sofrendo fortes críticas pela sociedade tradicionalista de Viena daquele período.

Diante a particularidade da plateia do evento, o autor busca trazer em uma linguagem mais clara e acessível, os principais conceitos da nova abordagem, ilustrando com relatos de casos clínicos o tratamento psicanalítico para os – assim chamados – males do espírito. O texto está dividido em cinco partes que tratam da história e fundação da Psicanálise. Nele Freud descreve seu processo psicanalítico com relatos precisos de casos clínicos, narrando sistematicamente como se deu o desenvolvimento de sua teoria e técnica.

Breve Histórico do Autor

Sigmund Schlomo Freud – ou Sigmund Freud – (1856-1939) foi um médico, especializado em neurologia e criador da teoria psicanalítica.

De origem judaica, era o primogênito da família. Freud sempre demonstrou talento em sua vida escolar/acadêmica, sendo o primeiro aluno da turma durante 7 anos (FREUD, 1925, p.16 apud FADMAN & FRAGER, 1986, p.03).

Prosseguindo seus estudos, interessou-se pela carreira médica e ingressou-se na Universidade de Medicina de Viena 1873. Interessou-se por histologia e publicou artigos sobre anatomia e neurologia (FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

Aos 26 anos Sigmund Freud recebeu seu diploma de medicina e, tendo-se casado 1886, precisou abandonar a carreira teórica em busca de melhores salários, desse modo ele se tornou interno no principal hospital de Viena onde fez o curso de Psiquiatria. Ainda apaixonado pelas explorações científicas, entre 1884 e 1887 Freud realizou pesquisas relevantes sobre a cocaína e seu efeito no Sistema Nervoso Central, mas logo ele mudou essa posição ao constatar os malefícios de suas propriedades viciantes, interrompendo essa pesquisa (FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

Tendo conseguido uma bolsa de estudos em Paris para trabalhar no Hospital Psiquiátrico Saltpêtrière com Charcot (1825 – 1893), Freud ingressou nos estudos sobre histeria com sugestão hipnótica. Ele constatou que o sintoma histérico era uma doença psíquica. Essa aproximação com Charcot e com a histeria foi decisiva para a consolidação da psicanálise. Após a conclusão de seus estudos com em Saltpêtrière, Freud concluiu que

os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse) (FREUD, 1914, p.17 apud FADMAN & FRAGER, 1986, p.04).

De volta a Viena, em parceria com seu ex-professor e incentivador Breuer, Freud aprofunda seus estudos sobre a histeria, utilizando-se da hipnose como instrumento terapêutico, a qual ele logo abandona logo em seguida pela sua ineficácia. Em 1896 Freud emprega pela primeira vez o termo “psicanálise” para descrever seu método.

Freud dedica sua vida a desenvolver, ampliar e consolidar sua teoria. Em 1900 ele publica um de seus trabalhos mais revolucionários, a Interpretação de Sonhos. Logo uma serie de médicos interessados pelo seu trabalho formam um circulo em torno de Sigmund Freud e a psicanalise é disseminada, após sua conferencia em 1910 nos Estados Unidos da América (EUA), suas obras são traduzidas para o inglês e sua teoria é disseminada pelo mundo, influenciando principalmente a Medicina, a Psiquiatria e a Psicologia (FADMAN & FRAGER, 1986, p.05).

1ª Lição

Na primeira lição, Freud fala de seu trabalho com o médico Joseph Breuer (1842 – 1925), e confessa ter sido o próprio Breuer o primeiro a utilizar a técnica que, tempos depois, viria a ser chamada de Psicanálise.

O primeiro caso relatado por Freud, diz de uma jovem vienense, 21 anos com um quadro sintomatológico muito particular:

Tinha uma paralisia espástica de ambas as extremidades do lado direito, com anestesia, sintoma que se estendia por vezes aos membros do lado oposto; perturbações dos movimentos oculares e várias alterações da visão; dificuldade em manter a cabeça erguida; tosse nervosa intensa; repugnância pelos alimentos e impossibilidade de beber durante várias semanas, apesar de uma sede martirizante; redução da faculdade de expressão verbal, que chegou a impedi-la de falar ou entender a língua materna; e, finalmente, estados de `absence‘ (ausência), de confusão, de delírio e de alteração total da personalidade […] (FREUD, 1910, p. 8).

Essa configuração de vários sintomas incomuns apresentados ao mesmo tempo, mas sem causa objetiva (comprovada por exames médicos), e com forte apelo emocional, constituía o quadro de histeria.

É importante ressaltar que, como mencionado pelo próprio Freud (1910, p.9), para a medicina daquele período, os quadros de histeria eram descreditados, e/ou enfrentados com descaso pela comunidade médica. Comparado com alguém que apresentava um quadro patológico com causa orgânica comprovada via exame objetivo, o paciente histérico era deixado para segundo plano, “pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave” (idem).

O diferencial do Breuer foi dar a essa jovem em questão à atenção merecida. Freud relata que o médico observou os estados de alteração da personalidade acompanhada de confusão (absence), da jovem e percebeu que ela murmurava algumas palavras que pareciam ter relação com “aquilo que lhe ocupava o pensamentos” (Freud, 1910, p. 9). Breuer anotou tais palavras e induziu sua paciente a um estado hipnótico onde as repetiu, esperando que ela associasse junto a essas, novas ideias.

Em estado de hipnose, a paciente começava a reproduzir para o médico as fantasias de onde haviam sido tiradas aquelas palavras. Observou-se também que as criações psíquicas (devaneios) “tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem à cabeceira do pai doente” (Freud, 1910, p. 9).

Os estados de absence cessavam após a jovem relatar um grande número de experiências, ela então se sentia “como que aliviada e reconduzida à vida normal” (Freud, 1910, p.09). Breuer e Freud notaram que esse bem-estar só vinha posteriormente à revelação das fantasias.

[…] A própria paciente, que nesse período da moléstia só falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de `talking cure’ (cura de conversação) qualificando-o também, por gracejo, de `chimney sweeping’ (limpeza da chaminé) (Freud, 1910, p.09).

O caso sugeria que os sintomas da jovem tinham origem em traumas psíquicos vividos no passado. Tais traumas eram, portanto, resíduos e símbolos mnêmicos resultantes de experiências emocionais anteriores frustradas “[…] e o caráter particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena traumática que o causara” (FREUD, 1910, p.10). Pode-se averiguar, pelos relatos verbais da jovem atendida por Breuer, que seus traumas tinham forte ligação com o evento da morte do seu pai, e seu sentimento de culpa em relação a isso.

A análise do caso levou Freud a concluir que “onde existe um sintoma, existe também uma amnésia, uma lacuna da memória, cujo preenchimento suprime as condições que conduzem à produção do sintoma” (FREUD, 1910, p.14).

Freud e Breuer ainda notaram que, nem sempre, o sintoma histérico era causado por um único evento. Comumente, estes quadros patogênicos eram resultados de cadeias de traumas interligados de forma análoga e repetida. A cura, portanto, se dava pela reprodução dos traumas psíquicos em ordem cronológica inversa, ou seja, do ultimo trauma para o primeiro, até chegar-se ao evento traumático originário do transtorno (idem).

2ª Lição

Freud relata a forte influencia das pesquisas de Charcot sobra à histeria exerceram em seu trabalho e a necessidade que ele teve em abandonar o método da hipnose em seus atendimentos, uma vez que nem todos os seus pacientes era sugestionáveis à hipnose e pelo caráter de não cientificidade da técnica utilizada por Breuer.

Por meio da entrevista clínica de seus pacientes em estado consciente Freud sugere que eles recordassem o máximo de elementos possíveis, a fim de identificar as memórias e associa-las ao trauma originário do sintoma, o que ele chama de método catártico. O que não é tão simples, pois se percebia uma forte resistência do paciente em acessar estes conteúdos traumáticos. Com o passar do tempo, o autor percebeu a existência de uma força maior que faz com que as memórias ligadas ao trauma originário permaneçam no inconsciente, tornando os inacessíveis para seus pacientes, denominada por ele: Repressão (FREUD, 1910, p. 15).

Freud (1909, p. 16), reconhece na repressão o mecanismo patogênico da histeria. Trata-se do aparecimento de um desejo violento e incompatível com o ego do paciente, devido às cobranças morais da sociedade e à sua própria personalidade. Por não ter mecanismos para lidar com a carga afetiva do desejo, a psique desloca a ideia da consciência para o inconsciente, onde ela permanece reprimida/inacessível (idem).

Uma vez que o conteúdo reprimido retorna à consciência, ou seja, após desfeitas as resistências – o que se da por meio da análise psicanalítica – o conflito psíquico se desfaz, dando fim ao sintoma. Freud entende que existem três mecanismos relacionados com fim do sintoma (cura da neurose),

[…] Ou a personalidade do doente se convence de que repelira sem razão o desejo e consente em aceitá-lo total ou parcialmente, ou este mesmo desejo é dirigido para um alvo irrepreensível e mais elevado (o que se chama `sublimação’ do desejo), ou, finalmente, reconhece como justa a repulsa. Nesta última hipótese o mecanismo da repressão, automático por isso mesmo insuficiente, é substituído por um julgamento de condenação com a ajuda das mais altas funções mentais do homem – o controle consciente do desejo é atingido (FREUD, 1910, p. 18).

A função do mecanismo da repressão é, basicamente, evitar o desprazer, de modo a proteger a personalidade psíquica. Ele é regulado pelo Principio do Prazer, ou seja, a tendência inconsciente que todos temos de incentivar o que é prazeroso e evitar o desprazer (FREUD, 1910, p. 15).  Sendo a repressão à força que impede o evento traumático de recobrar a memória, Freud entende que a cura do paciente, só poderia ocorrer após a supressão de todas as resistências ligadas ao trauma originário.

3ª Lição

Freud desenvolve sua teoria a partir do Determinismo Psíquico, pressuposto no qual se acredita que eventos ocorridos na infância (passado) têm relevância no modo como o sujeito atua no presente (FREUD, 1910, p. 19). Sob essa ótica, pode-se crer que existem duas forças antagônicas sobrepondo-se constantemente na psique: uma tentando trazer à consciência o conteúdo reprimido enviado ao inconsciente, outra impedindo a passagem do conteúdo reprimido de volta à consciência (resistência).

Outro pronto relevante é que o conteúdo reprimido ao retornar à consciência sofre deformações por parte da resistência, quanto maior a resistência maior a deformação do conteúdo reprimido. (FREUD, 1910, p. 19). O chiste é um dos vários mecanismos da psique para dar vazão ao potencial energético reprimido. Ele é um substituto do(s) conteúdo(s) inconsciente(s) que sofre(m) deformação por parte da resistência para emergir a consciência – nesse caso – em forma de gracejo/piada/humor, tirando o foco do trauma original, o chiste permite que o conteúdo se torne consciente sem agredir o ego do paciente (idem).

Freud (1910, p. 20), chama esses conteúdos ideacionais interdependentes, catexizados de energia afetiva de “Complexo”. Na clínica psicanalítica, utiliza-se a fala desordenada do paciente, que é estimulado a falar abertamente sobre o assunto de seu interesse, por acreditar que ela (a fala) não destoará daquilo que mais lhe agride, no caso, o conjunto de traumas (complexo) investigado. Por esse método, denominado “Associação Livre” o terapeuta tem acesso ao conteúdo reprimido. Por mais cansativo que pareça esse método de investigação, identificação e eliminação dos complexos por meio da livre associação de palavras, segundo Freud, é ele, seguramente, “o único praticável” (idem).

Dentre as técnicas psicanalíticas para acesso ao inconsciente Sigmund Freud aponta: a associação livre de palavras (citada à cima), a interpretação de sonhos, e o estudo de lapsos ou atos casuais.

A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise” (FREUD, 1910, p. 21). Os sonhos são a realização de desejos inconscientes. Comumente a análise de sonhos é ridicularizada pelo senso comum, por se apresentarem, na maioria das vezes, de forma confusa e sem nexo. Freud alude para o fato de que nem todos os sonhos são de difícil interpretação. “A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez” (FREUD, 1910, p.22). No adulto não seria tão diferente, contudo ele traz uma bagagem de vida com mais elementos que a criança, mas a compreensão dos seus sonhos é possível mediante uma análise clínica minuciosa.

Todos os sonhos são compostos por elementos conscientes (verbalizados) e inconscientes (não verbalizados). O processo de formação do sonho tem mecanismos muito semelhantes aos do sintoma histérico. “O conteúdo manifesto do sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes do sonho” (FREUD, 1910, p.22), e sua interpretação assemelha-se com o processo de associação livre do histérico.

Os conteúdos manifestos dos sonhos, elementos simbólicos verbalizados pelo paciente após o sonho, se diferem do conteúdo latentes: elementos simbólicos cujo paciente não tem mais acesso após o sonho, pois se encontram armazenados no inconsciente.  Os conteúdos latentes sofrem deformação pela resistência, para conseguir tornarem-se conteúdos manifestos. Por meio da análise dos elementos simbólicos do conteúdo manifesto no sonho do paciente, pode-se chegar ao conteúdo originário do trauma, que sempre estará relacionado a um desejo não satisfeito (FREUD, 1910, p.22).  É um processo muito semelhante ao da formação do sintoma no histérico. Logo, o psicanalista, ao abdicar a aparente conexão entre os elementos manifestos dos sonhos, buscando evocar no paciente as ideias suprimidas por meio da livre associação, ele conseguirá acessar os elementos latentes do sonho. Ao processo no qual o conteúdo latente do sonho se transforma em conteúdo manifesto Freud deu o nome de “Elaboração Onírica” (idem).

Esse material associativo que o doente rejeita como insignificante, quando em vez de estar sob a influência do médico está sob a da resistência, representa para o psicanalista o minério de onde com simples artifício de interpretação há de extrair o metal precioso(FREUD, 1910, p. 21).

Para Freud (1910, p.23), os pesadelos, contudo, não se contrapõem ao que foi dito até agora, mas eles demostram uma clara relação com a ansiedade para realizar o desejo reprimido. do neurótico. Pode-se concluir que a interpretação de sonhos, quando não a não nos direcionam para o excesso de resistências do paciente, leva-nos ao conhecimento dos seus desejos ocultos e reprimidos, como no caso dos pesadelos.

Baseado no Determinismo Psíquico, Freud conclui que a vida onírica do homem adulto carrega consigo todas as aspirações e peculiaridades de sua vida desde a infância. Pela análise dos sonhos ele chegou à conclusão de que “o inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais” (FREUD, 1910, p.23).

Outro elemento de peso na análise dos conteúdos inconsciente são os atos falhos. Eventos cotidianos sem importância aparente, mas que para a psicanálise, dado o Determinismo Psíquico, tem forte relevância. Como o esquecimento de coisas que deveriam saber (como nome de pessoas próximas), ou lapsos de linguagem, além de gestos rotineiros (manias) como piscar um olho, roer unha, etc., são elementos fundamentais da clínica psicanalítica por serem de fácil interpretação e terem relação direta com o trauma reprimido. Para o autor, esses atos/impulsos dizem de conteúdos que deveria permanecer reprimidos no inconsciente. Eles são de grande valor, pois “testemunham a existência da repressão e da substituição mesmo na saúde perfeita” (FREUD, 1910, p.24).

A análise de sonhos, atos falhos e associação livre de palavras, juntos fornecem ao psicanalista os elementos – mais do que suficientes – para trazer a tona o material psíquico patogênico originário do sintoma, dando fim ao quadro patológico resultado da “produção dos sintomas de substituição” (FREUD, 1910, p.25).

4ª Lição

Nessa lição Freud alude para o fato de como a teoria psicanalítica relaciona os sintomas mórbidos com a vida erótica do paciente. Para ele, o sintoma tem ligação direta com componentes instintivos eróticos, logo, as “perturbações do erotismo têm a maior importância entre as influências que levam à moléstia, tanto num como noutro sexo” (FREUD, 1910, p. 26).

Na quarta lição Freud aborda a ligação dos sintomas mórbidos com a vida erótica do paciente, contudo, ele alega uma grande dificuldade em se conceber – principalmente para a medicina – que o quadro patológico do paciente tenha relação direta com sua vida sexual. Freud chega a afirmar que sua experiência clínica não lhe deixa dúvidas (1910, p. 26). Certo de sua premissa, ele alega que uma das principais dificuldades do tratamento psicanalítico é o fato de as pessoas terem dificuldade em falar abertamente de sua vida sexual. Comumente eles omitiam detalhes e/ou distorciam informações, o que, segundo ele, diz de uma tendência social, e não exclusiva de seus pacientes. Logo, eles apenas repetiam um modelo que já existe há séculos, uma espécie de pacto coletivo, que nos impede de falar da vida erótica sem restrições (idem).

Contudo, há percalços quanto ao entendimento do sintoma mórbido e a investigação da vida passada do paciente (infância e adolescência) a fim de investigar possíveis eventos causadores do sintoma no presente. Freud alerta para más interpretações de sua teoria. Todavia, o exame psicanalítico pretende não ligar o sintoma a fatos sexuais, mas sim, ao modo como os acontecimentos traumáticos da história de vida do paciente ficam impressos em sua psique.

Ainda nesta lição ele faz uma afirmação ainda hoje criticada pela sociedade: a constatação da sexualidade infantil. Para o autor,

A criança possui, desde o princípio, o instinto e as atividades sexuais. […] Não são difíceis de observar as manifestações da atividade sexual infantil; ao contrário, para deixá-las passar desapercebidas ou incompreendidas é que é preciso certa arte(FREUD, 1910, p. 27).

Freud atribui ao peso da educação e da civilização a resistência da sociedade em não admitir a sexualidade na infância. Para ele o exercício da autoanalise nos permitiria desfazer essas barreiras (FREUD, 1910, p.28). A sexualidade nessa fase da vida, não está diretamente ligada à reprodução, do contrário, diz da estimulação de zonas sensórias do nosso corpo ligadas ao prazer libidinal. O prazer sexual infantil estaria ligado à excitação dessas zonas corpóreas particularmente excitáveis, “além dos órgãos genitais, como sejam os orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies sensoriais” (idem).

Nessa fase do desenvolvimento sexual, o prazer é alcançado no próprio corpo, dai o nome “auto-erotismo”  proposto por Havelock Ellis (1859 – 1939), e do  qual Freud se apropria para se referir a justificar certos comportamentos sexuais da criança. Ele cita como exemplos, a satisfação do desejo de sucção do bebê no ato de chupar/mamar o dedo, a e excitação masturbatória dos órgãos genitais. Acontece ainda na infância a escolha do objeto de desejo sexual, sendo esta outra pessoa, que não a própria criança. Aqui cabem alguns esclarecimentos: por ainda não ter uma representação sexual totalmente definida, esse objeto de desejo da criança pode não ter obedecer a uma representação exclusivamente heterossexual, contudo isso não resultará respectivamente em um adulto homossexual. Constantemente essa escolha objetal tem mais ligação com as considerações relativas ao instinto de conservação (FREUD, 1910, p. 29).

A escolha objetal da criança se da inicialmente entre seus cuidadores, depois entre seus genitores para, por fim, focar-se em um só como receptáculo de seus desejos eróticos. Para Freud o incitamento do desejo vem dos próprios pais e do modo de cuidado com a criança, que tem em origem (inconscientemente), cunho sexual (1910, p. 30). Mais comumente, “O pai em regra tem preferência pela filha, à mãe pelo filho: a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da filha” (idem). Os sentimentos ambivalentes (ternura e hostilidades) nascidos dessa relação formam o Complexo de Édipo. Contudo, a pulsão sexual não permanece nos pais, sendo reprimida no primeiro momento, numa fase posterior do desenvolvimento psicossexual a criança tende a investir sua libido em direção a pessoas desconhecidos (ibidem, 31).

5ª Lição

Na ultima das cinco lições Freud recobra os principais conceitos da psicanálise trabalhados até o momento, inclusive a sexualidade infantil, e a relação do complexo de Édipo com a formação do sintoma nos neuróticos. Logo, os indivíduos adoecem quando são privados de satisfazerem suas necessidades sexuais (libidinais).

Dentre os mecanismos empregados na repressão da pulsão está o intento, por parte do paciente, em fugir da realidade, levando – de modo inconscientemente – sua psique a estágios anteriores do desenvolvimento psíquico, o que Freud chama de Regressão. A Regressão apresenta-se sob dois aspectos distintos: “temporal, porque a libido, na necessidade erótica, volta a fixar-se aos mais remotos estados evolutivos – e formal, porque emprega os meios psíquicos originários e primitivos para manifestação da mesma necessidade” (1910, p.32).

Comumente, durante o tratamento psicanalítico, surge nos neuróticos um sintoma identificado como “Transferência”, isto é: o paciente reproduz no terapeuta uma serie de sentimentos afetuosos, vez ou outra, mesclados de hostilidade, provenientes de fantasias inconscientes (FREUD, 1910, p.33). Trata-se de um fenômeno global, não restrito do setting terapêutico, mas que abrange espontaneamente todas as formas de relações humanas. A análise desse fenômeno torna-se uma ferramenta valiosíssima para o psicanalista no tratamento de seus pacientes, na identificação da origem sintomas reprimidos (idem).

Nesta lição Freud ainda identifica três mecanismos pelos quais ele acredita que o sintoma neurótico pode ser desfeito:

O primeiro se dá pela conscientização do conteúdo reprimido, que acontece durante o tratamento psicanalítico. É comum que o sintoma ao ser conscientizado seja anulado pela ação mental, que substitui a repressão pelo julgamento de condenação efetuado com mecanismos superiores do próprio ego. Outra solução apresentada, considerada por Freud a mais eficaz, seria a Sublimação, mecanismo de defesa do ego, onde a energia proveniente dos desejos libidinais infantis é empregada em atividades de cunho artístico e/ou intelectual, de valor social. A esse respeito Freud afirma que

[…] Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele, está novamente livre o caminho para a sublimação (FREUD, 1910, p.34).

Por ultimo ele aponta a plasticidade, uma característica nata do ser humano: a plasticidade dos instintos sexuais por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa das pulsões (idem).

Em última análise

É possível perceber a partir da leitura do texto que a construção da teoria psicanalítica estava intimamente ligada com a vida e as impressões de Sigmund Freud. Suas colocações eram, para a sociedade vienense daquele período, inconcebíveis, mas cheias de significados. É notório que dada à mudança na ordem social atual, e a própria concepção de sexo e sexualidade atual tornam algumas das ideias de Freud ultrapassadas, contudo, essa mudança se deve, em grande parte, pelas contribuições psicanalíticas à ciência e a sociedade. A medicina, a psiquiatria, a psicologia, dentre outras ciências, foram diretamente impactadas pelas ideias Freudianas.

Todavia, a leitura das 5 Lições de Psicanálise, como texto introdutório à teoria de Freud torna-se valida pela leveza da linguagem e cuidado com a qual o autor aborda os principais conceitos psicanalíticos até então empregado, proporcionando ao leitor, principalmente o iniciante, um melhor entendimento de sua obra. Outros autores, inicialmente discípulos de Freud, como Carl Gustav Jung, discutem se a sexualidade tem efetivamente papel central na vida do individuo e na formação do sintoma psicótico, o que levou a vários teóricos a romperem com Freud.

Com efeito, as ideias sobre sexualidade na infância e Complexo de Édipo ainda enfrentam resistências por muitas correntes de pensamento, mas se dúvida alguma, proporcionaram um novo olhar sobre a infância, o cuidado com as crianças e o tratamento clínico de transtornos psíquicos, tal como a histeria, antes tida como tentativa de chamar a atenção, portanto, indigna de real atenção pela medicina, como cita o próprio Freud na primeira lição.

 

Compartilhe este conteúdo:

E de tanto tentar achar sentido pra vida…

Compartilhe este conteúdo:

E de tanto tentar achar sentido pra vida,
o gato criou bigode
e a saia da baiana não mais sacode;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
a Rapunzel ficou careca
e a princesa continuou perereca;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
o dia virou noite e ficou escura
e a liberdade passou a se chamar loucura;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
o seguro morreu de velho
e as pedras de Pessoa formaram um castelo;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
minha avó ficou caduca
e o desprendado vovô um mestre cuca;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
a cabeça ganhou chapéu
pra depois virar música de Carlos Gardel;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
quem ousou virou um mestre,
trabalhou um bom semestre
e fez, então, algo que preste;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
a carruagem “aboborou”,
a cinderela se cansou
e desistiu do seu amor;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
as letras se juntaram,
as palavras se alinharam
e as frases se formaram;
E de tanto tentar achar sentido pra vida,
a vida criou seu próprio final,
dando à morte seu sentido,
e ao nascer seu ideal.

E mesmo concluindo que o sentido para a vida encontra-se na morte, a tememos. Tememos que a morte simbolize o fim da busca do sentido. Devíamos, ao contrário, usar dos nossos sentidos para sentirmos que na vida o que vale é a busca, como Freud já dizia sobre a insaciabilidade das pulsões…

Compartilhe este conteúdo:

Quero ser John Malkovich

Compartilhe este conteúdo:

Podemos afirmar que o sujeito é verdadeiramente aquilo que aparenta ser?

Articulando as discussões da Psicanálise e o filme “Quero ser John Malkovich”, quais forças veladas operam em nossas vidas de modo a nos determinar e definir nossas ações e comportamentos? Indique uma cena (ou mais de uma cena) que materializa esta situação de fragilidade, nomeando personagens em articulação com aspectos conceituais. Lembre-se de refletir sobre as funções de EGO, ID, SUPEREGO e, fundamentalmente, o INCONSCIENTE.

Resposta:

Não. O sujeito é complexo, uma polifonia de vozes (já observado no século XIX por Dostoiévski), e, como diz Lacan, numa clara crítica ao cartesianismo de Descartes, o homem pensa onde não é e é onde não se pensa. O que transparece na superfície do indivíduo é parte do que ele, conscientemente, deixa ser visto. Mas, em uma observação mais aprofundada são nítidas as contradições entre aquilo que a pessoa aparenta ser e o que verdadeiramente é. Essas contradições residem no inconsciente do sujeito, pois se as contradições viessem à tona em sua totalidade no consciente, muito provavelmente o homem se fragmentaria.

Primeira Cena – Marionete
http://youtu.be/LU19Rqy1s9Y

A primeira cena do filme traz uma metáfora da projeção do inconsciente do personagem Craig. Nela a marionete executa uma espécie de dança do desespero. O ápice da cena se dá quando a marionete olha para o alto e “vê” quem tem domínio sobre seus movimentos (Craig), assim ela busca o espelho e nele observa, em vários aspectos, como sua figura é vista pelo outro, a triste figura que ele é e, principalmente, vislumbra a figura que poderia ser. Não suportando o que enxerga, ele destrói o espelho, mas mesmo com a destruição de sua imagem, ele ainda existe. Assim, a marionete pode ser representada pelo EGO consciente, que está preso às regras da sociedade, família etc representados pelos fios que a movem através da autoridade do SUPEREGO (o títere). Em meio a tudo isso, há pulsões que residem no inconsciente do indivíduo, representadas pelo desespero e angústia da marionete.

Na cena seguinte, tem-se o “diálogo” entre Craig e o macaco. Esta cena solidifica a ideia da profunda angústia vivida pelo personagem. “Você não sabe a sorte que tem de ser um macaco, pois consciência é uma maldição terrível. Eu penso, eu sinto, eu sofro”. O seja, por maior que fosse o dom que ele tinha (em relação às questões profissionais, por exemplo), a figura na qual ele estava preso, ou seja, o homem em que ele se transformou, não tinha como seguir adiante, só lhe restava a triste consciência da sua limitação e o cansaço do seu corpo exposto na decadência da sua própria figura. Essa figura decadente é fruto dos recalques às pulsões advindas do seu inconsciente.

Um dos personagens mais intrigantes do filme é a Maxine, dado o enorme poder de manipulação que ela exerce sobre os demais personagens. No entanto, ao invés de discorrer comentários sobre a sua força, é interessante a interpretação de uma possível projeção do seu parceiro ideal (uma junção do homem e da mulher desejados) tendo como base a figura do John Malkovich quando este está sob a influência de Lotte. Pode-se observar que tal junção é o ideal para Maxine, já que ela tem a sua disposição, em um mesmo ser, o corpo do homem e o “olhar” de uma mulher. De igual forma, há em Lotte o desejo de ser para a Maxine essa simbiose “homem e mulher”, que é sentida no momento em que ela é John Malkovich. Daí tem-se a frustração da personagem, pois ao sair do Malkovich, ela retorna sua condição de ser “somente mulher”. Evidencia-se o recalque que é trazido à tona no momento que, sendo John Malkovich, ela dá vazão aos seus mais recônditos desejos, rompendo tais barreiras.

A fila que se forma para “ser John Malkovich” representa um anseio coletivo de ser o outro, quando a pessoa que você é não reflete aquilo que você queria ser. Algumas indagações emergem desse fato: a vontade de ser um outro é universal? Em algum ponto da vida, talvez haja um desejo de desapegar-se do “ego”, não para ser um outro, mas para buscar um “eu” que pela sua própria complexidade é inatingível? Por mais bem resolvida que uma pessoa seja, há sempre uma falta?

Em uma das últimas cenas do filme, pressionado pelo Dr. Lester e por Lotte, Craig tem que decidir entre a vida de Maxine e a sua vida como John Malkovich. Nesse embate, ele percebe que até sua figura como Malkovich é frágil, incompleta, falha. Assim, quando questionado se é Malkovich, ele grita “não sou John Malkovich”. Então, nesse momento, ele deseja separar-se de seu objeto de desejo. Até então, a figura de Malkovich funcionava simbolicamente como um “falo” e separar-se dele, numa atitude de castração, seria seu pior pesadelo. No momento em que o poder advindo do objeto de desejo perde um pouco o sentido pela consciência de sua limitação, ele sai e volta a ser Craig. Isso porque, ao final, ele entende que sempre foi o Craig, mesmo no corpo do outro, ainda era ele.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

QUERO SER JOHN MALKOVICH

Diretor: Spike Jonze
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: John Cusack, Cameron Diaz, Catherine Keener, Orson Bean;
Ano: 1999
País: EUA, Inglaterra
Gênero: Drama

Nota: Questão apresentada pela professora Alice na disciplina de Psicologia Clínica I (2008/1) no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA

Compartilhe este conteúdo: