Secretary (2002): Entre a Transgressão e a Problemática Representação do BDSM
20 de abril de 2025 Letycia Coelho Valadares do Nascimento
Filme
Compartilhe este conteúdo:
O filme Secretary (2002), dirigido por Steven Shainberg e estrelado por Maggie Gyllenhaal e James Spader, é uma obra provocativa que explora dinâmicas de poder, submissão e desejo em um relacionamento BDSM (Bondage, Dominação, Submissão e Masoquismo). No entanto, sua representação desse universo pode gerar reflexões controversas sobre consentimento, saúde mental e preferências sexuais, além de reforçar o tabu em torno dessas práticas.
Uma das principais críticas ao filme é a forma como a saúde mental de Lee Holloway é retratada em relação à sua inclinação ao BDSM. A personagem apresenta um histórico de automutilação e um estado emocionalmente fragilizado, o que pode reforçar a visão equivocada de que o BDSM é uma expressão de trauma ou desvio psicológico. Ainda que algumas pessoas possam encontrar nessas práticas um espaço para exploração de fantasias e sublimação, a vinculação direta com patologias psicológicas pode ser reducionista e problemática.
Fonte: Lionsgate Films
Outro aspecto que levanta questionamentos é a forma como o consentimento é trabalhado na narrativa. No BDSM, o consentimento é um dos princípios fundamentais, e sua ausência pode distorcer a percepção do público sobre essas práticas. Em Secretary, não há um diálogo claro entre Lee e o Sr. Grey sobre os limites e acordos da relação, o que pode levar a interpretações equivocadas sobre a dinâmica BDSM e sua diferença essencial para relações abusivas.
Apesar dessas críticas, Secretary também oferece uma perspectiva interessante sobre a submissão feminina como uma escolha consciente. Diferente de narrativas que colocam a mulher submissa como vítima, Lee encontra no BDSM um meio de expressar seus desejos e identidade. Isso desafia a ideia de que submissão é sinônimo de fragilidade, mostrando como a entrega pode, paradoxalmente, ser uma forma de empoderamento.
A transgressão das normas é outro ponto central no filme, funcionando como um processo de reinvenção pessoal. Ao quebrar padrões convencionais, Lee encontra uma nova forma de existir no mundo. O ato de desobedecer normas pode ter esse papel catártico, funcionando como uma válvula de escape para transformação moral e, acima de tudo, pessoal. Nesse sentido, a sublimação aparece como um processo importante na jornada da personagem: sua energia psíquica antes direcionada à autolesão passa a ser canalizada na dinâmica BDSM, onde ela encontra um espaço para expressão emocional e autonomia.
Ao tratar o BDSM como um tabu e associá-lo à problemática psicológica da protagonista, Secretary pode reforçar estereótipos prejudiciais. Entretanto, também é possível enxergar na narrativa um questionamento das convenções sociais sobre desejo, controle e identidade. A evolução de Lee, quando analisada sob a ótica da sublimação e da autoaceitação, permite uma leitura mais complexa do filme, que vai além da relação superficial entre transtornos psicológicos e práticas sexuais não convencionais.
Ficha Técnica
Título Original:Secretary
Ano de Lançamento: 2002
País de Origem: Estados Unidos
Gênero: Drama, Romance, Comédia
Duração: 104 minutos
Classificação Indicativa: 18 anos
Direção: Steven Shainberg
Roteiro: Erin Cressida Wilson (baseado no conto Bad Behavior de Mary Gaitskill)
Produção: Steven Shainberg, Andrew Fierberg, Amy Hobby
Produtora: Slough Pond, TwoPoundBag Productions
Distribuição: Lionsgate Films
Compartilhe este conteúdo:
Os transtornos alimentares são influenciados pelas redes sociais?
20 de junho de 2023 Glaub Silva dos Santos
Insight
Compartilhe este conteúdo:
Os fatores envolvidos nessa relação se associam com fenômenos comparação social, idealização do corpo e difusão de informações falsas nas redes sociais
Transtornos alimentares são condições psicológicas e físicas que afetam a relação de uma pessoa com a alimentação, resultando em comportamentos alimentares prejudiciais e disfuncionais. Esses transtornos são caracterizados por uma preocupação excessiva com o peso corporal, a imagem corporal e a alimentação. Eles podem ter graves consequências para a saúde física e emocional dos indivíduos afetados.
De acordo com a American Psychiatric Association (APA), os principais tipos de transtornos alimentares incluem a anorexia nervosa, a bulimia nervosa e o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP). A anorexia nervosa é caracterizada pela restrição alimentar extrema e uma percepção desassociada da realidade do peso corporal. A bulimia nervosa envolve episódios recorrentes de compulsão alimentar seguidos de comportamentos compensatórios inadequados, como vômitos auto induzidos ou uso abusivo de laxantes. O TCAP é marcado por episódios regulares de compulsão alimentar, sem os comportamentos compensatórios decorrentes da bulimia nervosa (APA, 2014).
A relação entre transtornos alimentares e gênero é significativa, (mas não causal, devemos assinalar), como destacado por estudos. A prevalência é maior entre as mulheres, como mencionado por De Andrade (2006), que aponta que os transtornos alimentares são mais comuns em mulheres do que em homens. Além disso, no caso específico dos adolescentes, como ressalta Le Grange (2018), “os transtornos alimentares têm uma taxa de incidência alarmante, atingindo até 10% da população jovem”.
Conforme informações fornecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 4,7% da população do Brasil enfrenta transtornos alimentares. Há uma maior prevalência desse problema entre as mulheres, com uma proporção de sete a oito mulheres para cada homem diagnosticado com algum tipo de distúrbio alimentar. Entre os adolescentes, o índice é ainda maior, chegando a 10%. (GUIMARÃES, 2022)
Pessoas conectadas por aparelhos eletrônicos Fonte: Imagem de Pikisuperstar no Freepik
As redes sociais são plataformas online que permitem que indivíduos interajam e compartilhem informações, ideias, interesses e conteúdo digital de várias formas. Elas têm se tornado uma parte integral da vida cotidiana e têm um impacto significativo nas comunicações, relações sociais, negócios e até mesmo na política.
Segundo Boyd e Ellison (2007), as redes sociais são definidas como serviços baseados na Internet que permitem que os indivíduos construam um perfil público ou semipúblico dentro de um sistema limitado, articulem uma lista de outros usuários com os quais compartilham uma conexão e visualizem e percorrem sua lista de conexões e aquelas feitas por outros no sistema.
Assim as redes sociais têm recursos que permitem aos usuários criarem um perfil pessoal, adicionar amigos ou seguidores, compartilhar postagens, fotos, vídeos e participar de comunidades virtuais. As redes sociais mais populares são Facebook, Twitter, Instagram, Linkedin, etc. Essas plataformas têm transformado a maneira como as pessoas se conectam, se comunicam e interagem umas com as outras. Elas permitem que indivíduos se conectem com amigos, familiares e colegas, mas também oferecem oportunidades para conhecer novas pessoas e estabelecer relacionamentos virtuais.
Além disso, as redes sociais têm se tornado ferramentas importantes para empresas e profissionais de marketing, blogueiros, permitindo que eles alcancem públicos-alvo específicos, promovam produtos e serviços e interajam diretamente com os consumidores.
Embora as redes sociais ofereçam diversos benefícios, também apresentam desafios relacionados à privacidade, segurança online, vício e impacto na saúde mental. Fonte: Imagem de Upklyak Freepik
As redes sociais têm sido objeto de discussões e pesquisas relacionadas aos transtornos alimentares devido ao seu impacto na percepção de imagem corporal, comparação social e influência de padrões de beleza irrealistas.
Em estudos realizados fora explorado a relação entre o uso de redes sociais e transtornos alimentares, destacando algumas preocupações potenciais. Por exemplo, um estudo realizado por Fardouly et al. (2015) descobriu que o uso frequente de redes sociais estava associado a maior insatisfação com a imagem corporal e maior probabilidade de adotar comportamentos de controle alimentar inadequados.
Além disso, um estudo de Perloff et al. (2014) observou que o uso de redes sociais pode levar à comparação social, resultando em sentimentos negativos em relação à aparência e ao corpo. Essas comparações podem levar a uma maior pressão para se adequar a padrões de beleza inatingíveis, o que, por sua vez, pode contribuir para a ocorrência de transtornos alimentares.
Muitas vezes o corpo idealizado como sendo o “corpo perfeito”, que grande parte da população deseja ter é, na verdade, uma meta inalcançável, e ao mesmo tempo, as pessoas que são tidas como modelos, podem não dispor de saúde para manter aquele corpo, uma vez que podem estar expostas à estilos de alimentação que vulnerabilizam a saúde física e mental. Por fim, é importante destacar que os fragmentos de realidade amplamente compartilhados e com alto alcance nas redes sociais, podem ser absolutamente dissonantes da realidade de quem está do outro lado da tela consumindo o conteúdo.
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
BOYD, Danah M.; ELLISON, Nicole B. Sites de redes sociais: definição, história e bolsa de estudos. Journal of Computer-mediated Communication , v. 13, n. 1, pág. 210-230, 2007.
DE ANDRADE, Laura Helena SG; VIANA, Maria Carmen; SILVEIRA, Camila Magalhães. Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), v. 33, p. 43-54, 2006.
FARDOULY, Jasmine et al. Comparações sociais nas mídias sociais: o impacto do Facebook nas preocupações com a imagem corporal e no humor de mulheres jovens. Imagem corporal , v. 13, p. 38-45, 2015.
LE GRANGE, D. (2018). Eating disorders in adolescence: Keys to diagnosis and treatment. The Medical Clinics, 102(5), 855-871.
PERLOFF, Richard M. Efeitos da mídia social nas preocupações com a imagem corporal de mulheres jovens: perspectivas teóricas e uma agenda para pesquisa. Papéis sexuais, v. 71, n. 11-12, p. 363-377, 2014.
A ligação (2020), estreia da Netflix deste ano, figura no Top 10 dos assistidos e por uma boa razão. Seo-yeon, uma das personagens principais, retorna para a casa que morou quando criança e recebe ligações estranhas de uma desconhecida pedindo por ajuda. Após descobrir o diário da mulher que lhe ligou numa espécie de porão da residência, acaba por descobrir que as duas estão na mesma casa, só que em tempos diferentes.
O jogo de passado e futuro influenciando um ao outro é uma das marcas do filme, que lançam as duas personagens, Seo-yeon e Oh Young-sook, em uma narrativa muito interessante sobre doença mental, luto e até onde as pessoas vão em nome dos próprios interesses. Seo-yeon e Oh Young-sook se tornam muito próximas através das ligações cotidianas, contando sobre suas famílias, como vivem e as diferenças existentes em cada época.
Foto: filme A ligação (2020)
Assim, ficamos cientes de que Seo-yeon mora sozinha, sua mãe está internada em um hospital em quadro aparentemente crítico e que seu pai morreu em um acidente doméstico quando ela era criança. Sobre Oh Young-sook, de que vive com sua madrasta que a tortura constantemente pois acredita que ela esteja possuída por demônios, além de enclausurá-la dentro de casa e manter sua rotina rigidamente.
Em dado momento, após Oh Young-sook encontrar no passado Seo-yeon ainda criança, procuram realizar a tentativa de evitar o acidente ocorrido com o pai de Seo-yeon e assim, consequentemente, evitar sua morte. A experiência tem sucesso e numa cena que lembra Matrix (1999) ou A Origem (2010), o presente de Seo-yeon é completamente alterado, mediante a mudança no passado.
Foto: filme A ligação (2020)
Nesse presente, seu pai está vivo e sua mãe não está doente, alterando também outras questões de ambiente, como a casa que vivem, como se comportam e outros. A relação das duas é equilibrada até o momento que Oh Young-sook percebe que a amiga está ignorando-a em nome de ter momentos com a família e sua madrasta descobrir que ela está falando com alguém ao telefone. Após mais uma sessão de tortura, Oh Young-sook retorna para a amiga, que lhe informa que ela será assassinada pela madrasta num ritual de exorcismo para “cura da doença mental”. Depois disso, fica claro que o futuro tem o benefício do conhecimento, pois tudo o que já passou foi documentado de alguma forma e pode ser utilizado pelas duas.
Foto: filme A ligação (2020)
Depois do assassinato e de finalmente se ver livre, Oh Young-sook sai às ruas, faz compras e experienta o que já desejava: um pouco de vida “normal”. A personagem não aparenta remorso em nenhum momento pelo o que fez, nem sequer no assassinato seguinte, quando mata um fazendeiro que a visita, por ter encontrado o corpo de sua madrasta na geladeira.
Quando observada a ausência repentina do fazendeiro que era amigo de sua família, Seo-yeon descobre através de relatórios policiais que Oh Young-sook foi acusada pelo homicídio das duas pessoas e condenada à prisão perpétua. A partir de então, a trama muda de direção e o que era amizade se torna hostilidade e ameaças, pois Oh Young-sook deseja saber qual prova a incriminou e assim evitar de ser presa, informação da qual apenas Seo-yeon pode lhe dar.
Na sequência, a história se dedica ao jogo de passado-futuro entre as duas personagens, com muitas reviravoltas, mortes e violência envolvida no processo. Até onde ir para evitar a morte de um familiar? Como processar o luto, quando ele ocorre mais de uma vez pela mesma pessoa? Quais os limites de comportamento em pessoas diagnosticadas com transtornos mentais? O filme é muito bem produzido e apesar da impossibilidade da trama, é interessante pensar o que faríamos se pudéssemos alterar nosso passado, presente e futuro. Ao final, resta a impressão de confusão, ao percebermos que as influências entre os tempos eram maiores do que inicialmente inferido.
Título Original: Call Ano de produção: 2020 Dirigido por: Lee Chung-hyun Gênero: Suspense, Terror Países de Origem: Coreia do Sul Duração: 112 minutos
Compartilhe este conteúdo:
História de um casamento: uma análise psicanalítica
Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro Original, Melhor Trilha Sonora Original.
A maturidade de cada sujeito é que determina a capacidade de superação, onde devem separar os conflitos internos dos conflitos externos que foram compartilhados
O filme História de um casamento (Marriage Story) problematiza o fim do relacionamento e o processo de separação de um casal e a briga pela guarda do filho. Podemos ver Adam Driver como Charlie e Scarlett Johansson como Nicole dividindo cenas emocionantes de todo esse processo e o desgaste físico e emocional enfrentado pelo casal no decorrer do filme.
Texto contém SPOILERS!!!
Nicole, apesar de aparecer menos durante o filme, é a personagem que permite mais nos aproximar de sua história. Ela vem de uma família neurótica obsessiva que Freud (1907) define como pessoas que realizam algum tipo de ato obsessivo sem compreender o sentido principal ou mesmo sem perceber o que faz. Isso fica evidente na forma como a mãe é imparcial com suas regras, querendo impor sua visão sobre a filha. As duas filhas não ficam muito atrás, ambas têm dificuldade em mudar a forma como operam no mundo, um exemplo disso é quando Nicole pede a sua irmã que entregue o papel da intimação do divórcio ao Charlie, e elas acabam ensaiando a entrega desses documentos, mas acabam sendo interrompidas pela chegada dele na casa.
Ela diz no filme que se apaixonou por Charlie dois segundos após vê-lo e não deixaria de amá-lo mesmo que não fizesse sentido. Roudinesco (2000) fala que o sujeito contemporâneo busca de uma forma desesperada vencer o vazio sem tirar um tempo para refletir sobre a origem dele. E como no filme mostra que Nicole se sentiu bem inicialmente, mas ela passou a viver pelo Charlie, isso pode ser ligado a um medo de um abandono ou ansiedade de separação, que de acordo com a American Psychiatric Association (APA, 2000) essa ansiedade é algo exclusivo da infância e adolescência. É um estado de regressão em que ocorre uma ansiedade excessiva pelo afastamento de pessoas com quem existe um vínculo, ou alguém que represente essa figura.
A mãe de Nicole relata sobre brigas e a separação do marido, na tentativa de dar alguma dica para a filha, mas esta também parece viver um processo de preencher um vazio, pelo fato de manter amizade com ex-namorado da outra filha Cassie. Lemaire (2005) narra que alguns sujeitos buscam desesperadamente um modelo fusional presente nas primeiras etapas da vida, ou seja, manter-se unida as figuras que ocupam o lugar de cuidadores na nossa infância, para assim evita entrar em contato com o luto do rompimento.
Roudinesco (2000) relata também sobre um indivíduo depressivo, que faz de tudo para fugir do seu inconsciente e se preocupa em retirar de si a essência de qualquer conflito. Charlie se comporta assim em quase todo o filme, ele evita falar sobre a família, onde sabemos que existia violência e álcool. Há um comodismo da parte dele, uma zona de conforto que faz com que ele evite entrar em contato com conteúdos conflitantes. E ele dialoga se defendendo que tudo o que está fazendo é pelo bem do filho, enquanto mal houve o que a criança tem a dizer.
Durante o filme fica bem claro essa relação que Charlie tem com o filho, sempre distante, não sabe o que o filho gosta, o que ele quer, tomando decisões precipitadas. Por sua vez a criança apresenta diversas dificuldades, até mesmo a de ir ao banheiro. Mostrando que ele já vem herdando as neuroses familiares e como aponta Corrêa (2000) esses aspectos transgeracionais mostram a importância e o impacto da família na vida dos sujeitos. E de acordo com Granjon (2000) a transmissão psíquica transgeracional é a que apresenta aspectos traumáticos e sintomáticos, onde anteriormente não existiu uma chance de mudança, pois essas situações passadas foram ignoradas pelos pais.
A maioria das cenas em que foca o casal mostra uma distância e um vazio que ambos carregavam em si e o relacionamento aponta que era praticamente uma fonte de escape para isso. A cena em que eles estão conversando no novo apartamento parece ser uma crítica quanto a isso, pois as cores e a complexidade do ambiente são mínimas. O diálogo maior ocorre apenas no final do filme, onde eles saem das sombras de seus advogados e põem para fora tudo o que não colocaram antes, até a tensão do filme parece diminuir após isso.
O filme consegue nos levar para a pele do casal, onde quase sentimos como se vivêssemos uma separação. Além de diversas outras críticas, o filme mostra a importância do diálogo claro e aberto dentro do relacionamento. Segundo Cleavely (1994), a maturidade de cada sujeito é que determina a capacidade de superação, onde devem separar os conflitos internos dos conflitos externos que foram compartilhados.
O término de uma relação demanda uma grande energia psíquica, é como um processo de luto, e como tal deve ser enfrentado. Freud (1917) escreveu que o amor é o que faz os vivos se apegarem a vida, que uma pessoa se torna forte ao se sentir amada. Dessa forma, buscar se conhecer faz parte do processo de amar, pois assim deixamos de amar somente na fantasia para amar também no real. Para finalizar, Erich Fromm (1996) aponta que o amor verdadeiro tem por características o cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento, e somente pessoas maduras conseguem, de fato, amar.
FICHA TÉCNICA:
HISTÓRIA DE UM CASAMENTO
Título original: Marriage Story Direção: Noah Baumbach Elenco: Scarlett Johansson, Adam Driver, Laura Dern, Merritt Wever, Azhy Robertson; Ano: 2019 País: EUA Gênero: Drama
REFERÊNCIAS
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – IV-TR) (4a ed). Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 2000.
CLEAVELY, E. Relationships: interaction, defences, and transformation. In: Ruszczynski, S. (org.). Psychotherapy with couples: theory and practice at the Tavistock Institute of Marital Studies (pp. 55-69). 2ªed. London: Karnac Books, 1994.
CORREA, O. B. R. (Org.). O legado familiar: a tecelagem grupal da transmissão psíquica. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
FREUD, S. (2006). Atos obsessivos e práticas religiosas. Obras completas, ESB, v. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora. (Trabalho original publicado em 1907).
_______. Lutoemelancolia. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 1917.
FROMM, Erich. A Arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996.
GRANJON, E. A elaboração do tempo genealógico no espaço do tratamento da terapia familiar psicanalítica. In: O. B. R. Correa (Org.), Os avatares da transmissão psíquica geracional (pp. 17-43). São Paulo: Escuta, 2000.
LEMAIRE, J.-G. Comment faire avec la passion. Paris: Payot & Rivages, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Sem dúvida alguma, a experiência em campo é algo extremamente enriquecedor e muito contribui para o entendimento daquilo o que é tão abordado em sala. A oportunidade de comparar o que é teórico com o que ocorre na prática faz com que o acadêmico visualize de forma mais completa do que realmente se está estudando. E isso foi o que aconteceu em intervenção proposta por uma professora de psicologia do CEULP/ULBRA onde grupos de acadêmicos deveriam intervir em escolas com base nos conhecimentos da Psicologia Escolar e Comunitária de acordo às demandas encontradas. Foi uma experiência que, com toda a certeza me fez crescer enquanto estudante de Psicologia e futuro psicólogo.
Logo de início, com as primeiras observações feitas por meio das visitas realizadas no campo em questão, pude perceber o quanto é necessária a inserção do psicólogo nesses ambientes e, além disso, o quanto ainda se precisa esclarecer a respeito da atuação deste na escola. Parece clichê tal afirmação, mas é, de fato, realidade que se mostra frequente nesse contexto de atuação. Um profissional com mero olhar clínico não conseguirá atender de forma eficaz as demandas apresentadas, até porque já é sabido que diagnosticar e laudar sem nenhum critério pode levar muitas vezes a estigmatização da criança e outras questões como a rede de interações no âmbito da instituição e de que forma contribuem ou não para o cenário de queixa escolar acabam sendo esquecidas.
Fonte: https://bit.ly/2L2dVWO
Concordo plenamente que o profissional de psicologia deve se despir de tudo aquilo o que pode atrapalhar a sua aproximação com o campo e na escuta dos vários agentes que envolvem a escola e estão ligados a esse ambiente. Humildade seria a palavra. Responsabilidade e engajamento também são essenciais.
Além das questões já conhecidas como estrutura física das salas, quantidade de alunos que ultrapassa o ideal, entre outros fatores, nos deparamos com o que posso destacar como demanda central: a relação professor-aluno. De um lado vimos professoras em posição de ataque nomeando as crianças com menor desempenho como “FRACOS”, e afirmando que “a coisa só vai funcionar quando eles se adequarem ao meu ritmo”, e do outro, essas mesmas professoras desabafando sobre o quanto é árduo o desafio de atender ao que é exigido pelas instâncias superiores a respeito dos conteúdos passados aos alunos e o tempo a ser cumprido pelas professoras. Além do trabalho na escola há também os de casa e os cuidados com filhos e marido, o que é cobrado pela sociedade. O resultado não poderia ser outro. Professoras esgotadas e alunos que “não aprendem”.
O ideal de aluno perfeito colabora para a tal produção do fracasso escolar. Aqueles que não conseguem atingir esse ideal são os “FRACOS” e necessitados de algo que diga qual é o “problema” deles. A essa altura qualquer comportamento emitido pela criança à vista da professora é tido como excessivo ou deficitário. Daí surgem as famosas frases “é uma criança apática, não aprende” e “não para um segundo, acho que tem déficit de atenção com hiperatividade”.
Diante desse quadro surge no ar aquela pergunta – quem é o culpado? Há um culpado disso tudo?
Fonte: https://bit.ly/2Lt8VGD
Porque o que me pareceu foi que as professoras buscavam além de algo que as protegesse e justificasse o “fracasso” do aluno, uma resposta que mostrasse que a família e a própria criança são os responsáveis. Isso revela o quão complexo é o processo de ensino- aprendizagem e o quanto as interações entre os vários agentes presentes na instituição devem ser observados e levados em conta pois refletem diretamente nos alunos.
Uma coisa é certa: A criança não é a culpada. E os professores tem o importante papel de criar formas interativas e cada vez mais atrativas de ensinar. Além disso, cabe ao psicólogo contribuir de maneira preventiva para a saúde mental dos professores, e isso inclui instigar nos mesmos, o desenvolvimento de automotivação e perseverança.
Com essa experiência em campo eu entendi que a psicologia tem grande potencial colaborativo nas questões escolares e a formação de profissionais com preparo para atuar nessa área é importantíssima. O combate a rotulação e estigmatização das crianças é ponto também fundamental e real pois é crescente a demanda por avaliação psicológica com queixas de dificuldade na aprendizagem, atenção e hiperatividade.
Fonte: https://bit.ly/2uttHQd
Sabe-se que muitas são as variáveis que atuam na produção da queixa e fracasso escolar. O psicólogo tem a responsabilidade de observar de forma acurada e analisar todos esses pontos bem como entender o fluxo dessa interação no âmbito escolar para que contribua sempre no desenvolvimento e aprendizagem dos alunos evitando assim que esses pequenos cidadãos tenham seu futuro prejudicado.
Compartilhe este conteúdo:
Vicky Cristina Barcelona: amor na era da descartabilidade
Num de seus mais festejados filmes, Woody Allen mostra a dinâmica de Vicky e Cristina, grandes amigas que estão de férias em Barcelona. Vicky é uma mulher sensata, madura, rígida e decidida. Ela está noiva. Cristina é uma mulher em busca de novas experiências, paixões que sejam capazes de desestruturá-la. Um dia, em um passeio em uma galeria de artes, as amigas conhecem Juan, um pintor atraente e sedutor que teve um relacionamento problemático com Maria Elena. Ainda naquela noite, durante o jantar, Juan se aproxima da mesa de Vicky e Cristina, e as convida para viajar com ele. Cristina, aventureira, aceita imediatamente, e convence Vicky a acompanhá-los. Cristina é a primeira a demonstrar interesse por Juan.
Juan mostra a cidade às amigas, Cristina se diverte muito e aproveita os passeios, enquanto Vicky se demonstra cética e insatisfeita. Juan, como um sedutor, sempre as convidando para dormir juntos; Cristina aceita e Vicky se diz aborrecida, pois está noiva e não se interessa por sexo vazio, escondendo o medo dos seus próprios sentimentos e negando o desejo e atração pela situação.
Vick, em um jantar á luz de velas com Juan, se rende á sedução do pintor e faz sexo secretamente com ele. Ela não conta à Cristina sobre o acontecido. Cristina é convidada a morar com Juan e se mostra feliz e realizada, enquanto Vicky reprime seus desejos e casa com seu noivo. Cristina conhece Maria, ex-mulher de Juan, que, após tentar suicídio, vai morar com o casal. Inicia-se uma relação a três, regada a entusiasmo, particularidades, delícias e conflitos, tornando-os amantes em harmonia. Até que Cristina resolve abandonar a relação e vai para a França. Maria, apavorada, sofre e volta ao relacionamento conturbado de brigas com Juan e, após um tempo, decide deixá-lo. Vicky se reencontra com Juan e passam a tarde juntos; Maria Elena aparece de surpresa, e fora de si, tenta matar os dois. Vicky se fere na mão durante a explosão de ciúmes, e após se recuperar, conta à Cristina que continua mantendo a relação com Juan, e Cristina compartilha sua decisão de retornar para seu país.
O filme Vicky Cristina Barcelona aborda, através de situações cômicas e reflexivas, os conflitos presentes nas relações humanas. Os personagens imprimem novas possibilidades de amor e desejo, e rompem os rótulos e paradigmas existentes na sociedade, que insiste em reprimir as várias formas de libertação. Neste movimento, a liberdade sede lugar à insegurança e à instabilidade. Há um preço para as escolhas que fizeram.
No livro Amor líquido Zygmunt Bauman traz em pauta a fragilidade das relações, que cada vez mais se mostram mercantilizadas e descartáveis. Para Bauman, quando a qualidade das relações diminui vertiginosamente, a tendência é que se tente compensar a falta desta qualidade com uma quantidade absurda de parceiros. Esta concepção é visível no filme, visto que, a insatisfação com as relações existentes, provoca nos personagens a necessidade de ampliar e transcender os vínculos amorosos já estabelecidos.
São as ‘relações virtuais’. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não falar daqueles com ‘compromisso’ muito menos dos compromissos de longo prazo), elas aparecem feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se espera e se deseja que as ‘possibilidades românticas’ (e não apenas românticas) surjam e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando -se mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de ser ‘a mais satisfatória e a mais completa’. Diferentemente dos ‘relacionamentos reais’ é fácil entrar e sair dos ‘relacionamentos virtuais’. Em comparação com a ‘coisa autêntica’, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear (BAUMAN, 2004).
Aquilo que torna o relacionamento frágil é a falta de responsabilidade e fidelidade mútua, que, como na personagem de Vicky, ultrapassa os limites de seu noivado, tendo relações sexuais com Juan, que por sua vez, já mantinha laços com Cristina, evidenciando a facilidade da desconexão e desestruturação das relações humanas.
Segundo Bauman, a afinidade está se tornando algo pouco comum em uma sociedade de extrema descartabilidade. Não há razão para caminhar à afinidade, sendo que não há o menor objetivo em firmar um laço. Em Vicky Cristina Barcelona, visualiza-se a falta de interesse em formar laços definitivos, tudo não passa de experiências passageiras.
Essa é, contudo, outra ilusão… O conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos amorosos é o conhecimento do “amor” como episódios intensos, curtos e impactantes, desencadeados pela consciência a priori de sua própria fragilidade e curta duração. As habilidades assim adquiridas são as de ‘terminar rapidamente e começar do início’ (BAUMAN, 2004).
A experiência tratada no filme pode provocar no expectador, também, o desejo de buscar novos caminhos, novos horizontes, por meio da necessidade de descobrir-se, de aproximar-se de si mesmo, ampliando seus aspectos internos de modo a facilitar o equilíbrio para lidar com a complexidade dos sentimentos inexplorados, com a aventura de existir, de ser e viver.
Vicky Cristina Barcelona traz a reflexão de que nem sempre os relacionamentos estão destinados a dar certo, vezes por infidelidade, desconfiança, outrora por confiança em demasia e repressão de desejos e sentimentos, o que vem a ser, em última instância, os amores rasos, descartáveis e líquidos citados por Bauman.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, ZYGMUNT. Tradutor: Medeiros, Carlos Alberto. Amor Líquido. São Paulo: Zahar, 2004.
VICKY CRISTINA BARCELONA Direção: Woody Allen Narração: Christopher Evan Welch Roteiro: Woody Allen Prêmios: Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante Ano: 2008
Compartilhe este conteúdo:
50 tons de cinza: porque o óbvio passa despercebido
Furor entre as mulheres. Este é o principal efeito do filme 50 tons de Cinza, que estreou recentemente no Brasil, embora uma boa parte do público já soubesse o final, devido ao fato da obra ser baseada na trilogia da escritora britânica E.L. James, um romance erótico que já vendeu mais de 100 milhões de cópias no mundo, e 5 milhões somente no Brasil (VEJA, 2015a).
O filme, uma adaptação de um livro de mesmo nome, conta a história de Anastasia Steele (interpretada por Dakota Johnson), uma ingênua e desastrada estudante de literatura de 21 anos que conhece o empresário Christian Grey (interpretado por Jamie Dornan), um bilionário de 28 anos. Apesar de sua inexperiência, Ana se mostra decidida se envolver com Christian e se entregar a relação amorosa que se inicia entre os dois. A estudante se deixa seduzir por um homem que ela idealiza como perfeito. Mas a medida que a relação se desenvolve, Grey mostra que tem gostos peculiares e é adepto a práticas sexuais sádicas.
Do ponto de vista do espectador que não leu o livro, e não faz ideia de como a trilogia se desenvolve, toda a trama parece desconcertante. Em vários momentos do filme, Anastasia se mostra hesitante. Não consegue compreender porque sente tanto amor e tanta repulsa pelo mesmo homem. Seus sentimentos estão confusos. Ao lado de presentes, passeios e aparentes demonstrações de afeto, estão a indiferença, o ciúme, a possessividade e uma violência psicológica sutil. Percebe-se claramente que ele atua por meio de um esquema de reforço intermitente, onde o reforço não ocorre após a emissão de um tipo de comportamento, mas forma aleatória (Skinner, 1972). Deste modo, a jovem Anastasia não entende porque o namorado tem comportamentos tão destoantes.
No entanto, Grey percebe intuitivamente que suas ações mantém o comportamento de interesse de Ana por mais tempo e diminui os riscos de uma extinção rápida. Apesar de ser uma ferramenta muito poderosa, este tipo de reforço (Pinto & Ferreira, 2005) apresenta conseqüências perniciosas, pois Ana se mostra cada vez mais confusa e mais incapaz de perceber o que está acontecendo, ao passo que se envolve cada vez mais intensamente com o milionário, experimentando práticas sexuais envolvendo violência.
Para um espectador mais atento, esta dualidade não passa desapercebida. Trata-se de uma relação doentia e perigosa, permeada por abuso físico e emocional (Grossman, 2015). O papel agressivo cabe ao homem, enquanto a Anastasia se limita a um papel passivo e defensivo. Tudo indica que se trata de um caso de perversão, em que Grey manifesta desejos sádicos, pois o que ele “sente, é tão somente o desejo de cometer atos violentos e cruéis em pessoas do outro sexo e uma sensação de volúpia” (Krafft-Ebing, 2009, p. 2) conjunta aos atos de crueldade
Nesse ponto do filme, o espectador começa a se perguntar se Anastasia é masoquista ou se não está compreendendo os desdobramentos dos encontros com Grey, que se tornam mais violentos a medida que se repetem. Pois no masoquismo “o sujeito se faz objeto diante do parceiro transformado em atormentador do seu fantasma, e goza pela erotização da dor infligida no seu parceiro” (VALAS, 1990, p.66). E a protagonista se mostra uma mulher bonita, mas que não percebe sua própria beleza, sendo extremamente ingênua e demostrando baixa autoestima.
Para além das especulações psicológicas, é preciso atentar-se para a fórmula midiática e comercial da mocinha boba que se apaixona por um homem poderoso, já vista outras vezes no cinema, como na saga Crepúsculo (MAIA, 2013; VEJA, 2015a). No entanto, a moça pretensamente ingênua, depois de experimentar o máximo de violência que Grey se diz capaz, resolve recuar e abandonar o relacionamento. O filme termina, e as luzes se acendem. O público sabe que haverá continuação da história, porque ainda faltam dois livros. As mulheres saem do cinema num frenesi desmedido. Mas, o que passou despercebido?
A problemática das relações de gênero. Mais uma vez a mulher está num papel de submissão. Há séculos a condição biológica feminina tem sido utilizada para legitimar processos sociais (PEDRO, 2005; SCOTT, 1995), em que homens e mulheres, são categorizados de forma diferente, onde o aquele ocupa uma posição de superioridade, dominação, racionalidade, e o último o de submissão e subserviência. Para Scott (2012) a dimensão social da relação entre homens e mulheres precisa ser problematizada, porque a “anatomia das mulheres não é o seu destino” (p.335), e os papéis e comportamentos determinados pelo nascer homem ou mulher devem ser discutidos.
O que 50 tons de cinza pode significar em termos de subjetividade? Que as questões de gênero encontram-se tão arraigadas, as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas, que as próprias mulheres não conseguem perceber isso, excitando-se com cenas em que o feminino é tido como submisso, frágil, inocente e desprovido de auto-estima.
Para Fraser (2006) a desvantagem social das mulheres restringe sua “voz”, impedindo sua a participação igualitária nas esferas públicas e na vida cotidiana, inclusive na formação da cultura. Apesar da história ter sido escrita e roteirizada por mulheres, os críticos consideram que ainda se constituiu numa produção machista, devido a muita nudez feminina e quase nenhuma masculina (VEJA, 2015b). Se o filme foi criado para o público feminino, é possível que “elas iam querer ver a câmera se demorando mais em Jamie Dornan” (VEJA, 2015b, p.1), o ator que interpreta Christian Grey.
A reação do público feminino, que não percebe a dominação masculina, nem quando ela é escancarada em alta definição, corrobora com as questões postas por Bourdieu (1999):
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça (Bourdieu, 1999, p.19).
Trata-se de um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica (FRASER, 2006), que, se não é percebido, não pode ser modificado. O que aponta que a injustiça de gênero deve ser combatida com mudanças não só na economia, como querem as mulheres de agora, mas também em outras esferas, como a política e a cultura (FRASER, 2006). Aguardamos as cenas dos próximos capítulos, ou melhor, da trilogia.
Referências:
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1999.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da Justiça numa era pós-socialista. Trad. Julio Assis Simões. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006.
Grossman, Miriam. A ‘carta de uma psiquiatra sobre 50 tons de cinza para os jovens. Trad. Marcos M. Dal Ponte. Psico On-line News, 2015. Disponível em: <http://www.psiconlinews.com/2015/02/a-carta-de-uma-psiquiatra-sobre.html>. Acessado em 25 fev. 2015.
KRAFFT-EBING, R.. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 12, n. 2, Jun. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-47142009000200012&script=sci_arttext>. Acessado em 27 fev. 2015.
MAIA, Ygo. Resenha: 50 tons de cinza. Mergulhando na Leitura – Blogspot, 2013. Disponível em: <http://ymaia.blogspot.com.br/2013/05/resenha-cinquenta-tons-de-cinza.html>. Acessado em 27 fev. 2015.
PEDRO, Joana Maria.Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. Revista História, São Paulo, v.24, n.1, p.77-98, 2005.
PINTO, Rodrigo Diniz; FERREIRA, Lívia Freire. Ciência do Comportamento e aprendizado através de jogos eletrônicos. Anais do I Seminário Jogos Eletrônicos, Educação e Comunicação – construindo novas trilhas. UNEB, Salvador – Bahia, outubro/2005. Disponível em: <http://www.comunidadesvirtuais.pro.br/novastrilhas/textos/rodrigopinto.pdf>. Acessado em 28 fev. 2015.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. RevistaEducação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SCOTT, Joan Wallach. Usos e Abusos do Gênero. Projeto História, São Paulo, n. 45, pp. 327-351, dez. 2012.
SKINNER, B.F. Tecnologia do Ensino. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.
VALAS, Patrick. Freud e a Perversão. Trad. Dulce Henrique Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
VEJA. Quem é quem em ‘Cinquenta Tons de Cinza. Cinema, fev. 2015a. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/quem-e-quem-em-cinquenta-tons-de-cinza>. Acessado em 28 fev. 2015.
Título Original (EUA): Fifty Shades of Grey Direção: Sam Taylor-Johnson Roteiro: Kelly Marcel Baseado em: Fifty Shades of Grey de E. L. James Música: Danny Elfman Estúdio: Focus Features Ano: 2015
Melhor Filme, Melhor Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu), Melhor Ator (Michael Keaton), Melhor Ator Coadjuvante (Edward Norton), Melhor Atriz Coadjuvante (Emma Stone), Melhor Roteiro Original (Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr. e Armando Bo), Melhor Fotografia (Emmanuel Lubezki), Melhor Edição de Som (Martín Hernández e Aaron Glascock) e Melhor Mixagem de Som (Jon Taylor, Frank A. Montaño e Thomas Varga).
– E, afinal, você conseguiu o que queria dessa vida? – Consegui. – E o que você queria? – Considerar-me amado, me sentir amado nessa terra. (Raymond Carver, escritor americano – frases escritas em seu epitáfio)
O som de um solo de bateria e os fragmentos de uma das últimas poesias escritas por Raymond Carver marcam o início de Birdman. E depois do que parece ser a trajetória de um cometa no céu, vimos a imagem de um homem levitando em um camarim de um teatro na Broadway no mais completo silêncio. Até então não sabemos se devemos encarar a cena como um sonho ou se é mais um tipo de aventura de super-herói saída de algum quadrinho da Marvel, uma temática tão recorrente nos filmes atuais. E nossa percepção fica ainda mais incerta quando o homem se levanta e olha para o espelho. Nesse momento, ouvimos uma voz. A voz que está em sua cabeça, mas que fala no plural como se tivesse existência própria.
“Como viemos parar aqui? Esse lugar é horrível. Cheira a testículos. Não pertencemos a este buraco de merda.”
Riggan Thomson, como Michael Keaton que o interpreta, é um ator que teve um sucesso avassalador fazendo um super-herói no cinema (o Birdman), mas desistiu de continuar a franquia quando percebeu que era menos importante que a criatura alada que representava, pois já não era tão querido, nem tão relevante, qualquer um poderia usar a máscara e ser o homem-pássaro. A história com Keaton foi diferente, foram oferecidos mais de 15 milhões de dólares (isso há 20 anos) para que ele continuasse a franquia de Batman, mas ele recusou e, até onde sabemos, não ficou com a voz do homem-morcego na cabeça.
Considerando a frase que Riggan mantém em seu camarim -“uma coisa é uma coisa, não o que é dito dela” -, parece que ele procura entender se há algo na pessoa que ele vê refletida no espelho que seja essencialmente ele, algo que não foi estabelecido nas relações criadas pela mídia em torno da sua figura pública, uma figura que ele tenta ignorar, mas que grita furiosamente em sua mente. O que nos remete a Umberto Eco (apud PINO, 1993) quando diz que “enquanto sujeitos, nós somos o que a forma do mundo produzida pelos signos nos faz ser[…]”.
A voz ganhou existência fora de sua mente e a impressão que temos é que Riggan cansou de prendê-la lá, ou melhor, já não suportava a ideia incongruente de existir em duplicidade, ou seja, ser a figura sedenta por reconhecimento e poder e, ao mesmo tempo, o ator de talento, que valoriza a arte por si só, sem comprometimento com toda a ostentação que a cerca. Considerando que o termo esquizofrenia significa “cisão das funções mentais” (do grego schizo= divisão, cisão; phrenos = mente) e um dos sintomas da esquizofrenia paranoide são ideias delirantes e alucinações (visuais e/ou auditivas), esse talvez seja um caminho mais coerente para uma explicação razoável sobre o que vemos na tela.
Mas essa é somente a interpretação mais óbvia dos elementos sobrenaturais apresentados no filme (p.ex.: telecinese, levitação). Conforme apontado por Young (2014), as cenas parecem estar convidando o público para as alucinações e delírios de um indivíduo psicótico, como aconteceu em Black Swan ou no início de Uma Mente Brilhante. Esses filmes obtiveram um excelente resultado ao enganar o público fazendo-o acreditar em eventos que pareciam ser reais, embora fossem consequência de uma série de alucinações e delírios. Birdman provoca o público no sentido contrário, fazendo-o crer que Riggan seja, de fato, “louco”, apresentando os eventos bizarros apenas quando o personagem está sozinho e evitando qualquer evidência objetiva de que ele realmente tenha habilidades excepcionais.
“O trabalho cultural feito no passado, por deuses e sagas épicas, agora está sendo feito por comerciais de sabão em pó e personagens de histórias em quadrinhos.” (Roland Barthes)
Para mostrar esse duelo entre o indivíduo e seu alter ego, acompanhamos os últimos ensaios de uma peça escrita (baseada na obra de Carver), dirigida e protagonizada por Riggan. Essa peça representa a possibilidade dele ser reconhecido de fato, sem os subterfúgios da máquina de franquias do cinema. Para criar esse cenário, há a exímia direção de fotografia de Emmanuel Lubezki (de Gravidade e A Árvore da Vida), a trilha sonora crua e fantástica composta pelo baterista de jazz Antonio Sanchez e o uso da câmera em movimento, como se a própria tela refletisse a perspectiva do olhar do pássaro voando sobre o cenário, dando a impressão de que todo o filme é uma única e contínua cena. Ou seja, o filme é tecnicamente surpreendente, mas Birdman vai além da técnica, mostra-nos, através de um homem cansado e confuso, como os nossos desejos últimos parecem ser dirigidos por uma profunda necessidade de ser amado.
A relação conturbada de Thomson com sua filha (Sam, interpretada por Emma Stone) proporciona um dos melhores momentos do filme. Essa cena é suficiente para justificar a indicação de Stone ao Oscar de Atriz Coadjuvante. O monólogo sobre “ser relevante” em um contexto que todo mundo parece temer não ser notado, “compartilhado” ou “curtido” é de uma atualidade patética e irritante.
“É minha chance de fazer algo que signifique alguma coisa.”
“[…] Falando sério, pai, você não faz isso pela arte. Você faz isso pois quer ser relevante de novo. Adivinha? Há um mundo lá fora onde pessoas lutam todo dia para serem relevantes. E você age como se isso não existisse. Coisas acontecem em um lugar que você ignora. Um lugar que, aliás, já se esqueceu de você. Quem diabos é você? Você odeia bloggers, tira sarro do Twitter, nem tem um Facebook. É você que não existe. Você faz isso porque morre de medo, como todos nós, de não ser importante. E que saber? Tem razão, você não é importante. Acostume-se.”
“A popularidade é o primo pobre do prestígio” (Mike)
Assim como o cinema produz um personagem com capa e máscara a cada dia, comercializando o mito do herói em grande escala, o sucesso e a qualidade das peças da Broadway parecem ser movidos pela generalização da visão de um grupo seleto de críticos. O conceito da arte pela arte não parece ter mais espaço nesse contexto, o que faz com que a luta de Riggan com seu alter ego tenha um vencedor evidente e ele entende isso quanto mais se aproxima do dia da estreia.
O pequeno grupo de atores que compõe a peça é uma ode a conturbação psíquica. Há a atriz insegura que está angustiada pela consolidação de seu maior sonho – estrear na Broadway, interpretada por Naomi Watts; Laura (Andrea Riseborough), uma atriz apaixonada pelo diretor ou pela ideia de se apaixonar, o que evidencia ainda mais suas carências; e Mike (Edward Norton), um renomado ator teatral que parece só funcionar em cima do palco. Em todo o restante do tempo, Mike teme errar e cria uma série de artifícios que o transforma num fantoche de si mesmo.
“Você não é um bom ator. Quem se importa? Você é muito mais do que isso. Você se sobressai sobre esses idiotas do teatro. Você é uma estrela do cinema, cara. Uma força global, não entende? Passou sua vida construindo reputação e contas bancárias e então explodiu ambos. […] Tire essa cara patética, faça uma cirurgia. seu filho da mãe. Você é o original, cara. Você pintou o caminho para esses outros palhaços. Dê às pessoas o que elas querem. Algum filme pornô apocalíptico à moda antiga. ‘Homem-Pássaro, a Fênix Ressurge’.” (Birdman)
Birdman é a personificação do desespero de Riggan. Um desespero pautado na falta de sentido das escolhas que ele fez na vida, desde papéis superficiais no cinema até a infidelidade no casamento e a negligência na criação de sua única filha. Como concluiu Khoshaba (2014), esse sentimento se aproxima do que Kierkegaard chama de consciência do desespero. Para Kierkegaard (2006 [1849] apud JANZEN & HOLANDA, 2012), o desespero se caracteriza quando o sujeito quer ou não ser ele mesmo e é nesse aspecto que reside o caráter paradoxal da existência. Esse pensamento pode ser refletido no fato de Riggan ignorar quem, de fato, ele é, pois a impressão que temos é que ele ainda não entendeu se é o ator sensível de teatro em busca da redenção familiar ou a celebridade predadora dos blockbusters. Talvez fosse mais coerente concluir que ele não é nem uma coisa nem outra, já que dificilmente a natureza humana pode ser traduzida de forma tão cartesiana. É essa tentativa de escolher um dos extremos que quebra sua psique e faz vir à tona pensamentos suicidas.
“Você confunde amor com admiração.”
E, ao final, qual o sentido da frase “a inesperada virtude da ignorância” no título do filme? Segundo o Diretor (Alejandro G. Iñarritu)1, essa frase reflete o estado conflituoso da mente do personagem principal. Assim, interpreto que Riggan ao ignorar qual voz interna de fato o personificava tenha estabelecido uma nova ordem em sua psique. Por isso, nem se tornou o Birdman totalmente nem assumiu um lugar naquilo que convencionalmente chamamos de “realidade”. A eliminação da contradição dos dois extremos que ele tentava desesperadamente sustentar colocou-o em outro patamar. Nesse novo lugar talvez tenha encontrado o perdão da filha e da ex-esposa, tenha lido uma crítica positiva de sua peça na Times e, até, ganhado um novo rosto. Mesmo não sendo completamente um homem-pássaro pôde reaprender a voar e, quem sabe, voltou a ser amado. E não é esse o desejo de “quase” todos?