Meu agir diante da dor dos outros

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A ideia desse texto me surgiu quando li um “Em cartaz” do Encena, e questionei-me sobre o meu agir diante da dor dos outros. Talvez ele pouco tenha a ver com empatia, tele, co-inconsciente,rapport, role plays e quaisquer outros termos que falam que nos colocamos no lugar do outro, já que tais produções se deram longe do contato com o outro, mesmo tendo sido fruto desse mesmo contato.

O que quero dizer é que aquilo que desenvolvi com tal questionamento, a princípio, só tenha servido a mim e não tenha sido repassado aos que me inspiraram. Frente a isso, esse relato – que pode ser repassado a outras pessoas para que também se inspirem – surge da elaboração que eu faço daquilo que ouço no dia a dia, no meu trabalho, como as queixas, as demandas e os sofrimentos os quais tento acolher, escutar, cuidar e quiçá entender.

Trata-se de pequenos versos que compus a partir do que senti pela dor dos outros e que adiante seguem:

I
Regurgito azedo vômito
Não consigo segurar
Escapole-me indômito
Que até me falta o ar.

Eu vomito e fico tonto
Não consigo nem pensar
Fico fraco e atônito
Só assim sei me expressar…
(Vô-Me-Tô)

II
Palavras babadas eu cuspo
No prato, na cara e no chão
A quem me reclama, não desculpo
Mas a quem me engole, dou perdão…
(Te cuspo e não me culpo)

III
Eu, pneu furado na’strada
Roda que não desliza
Engrenagem retravada
Estagnada em vida…
(Vazia)

IV
Sinto-me confuso,
Desconexo
Braços obtusos
sem amplexo
(Afeta a falta de afeto)

V
Finge que me escuta
Diz que estou eutímico
Mas se ouvisse o que não digo
Veria que não sou tímido…
(Ser não é pare-Cer)

VI
Alto sobe o dia
Amarga claridade!
Azeda-me os olhos
De realidade…
(Verticalidade)


Nota: O “Em Cartaz” que a autora se refere é o texto “Diante da Dor dos Outros” produzido por Irenides Teixeira e publicado no EnCena. Confira: http://ulbra-to.br/encena/2012/07/16/Diante-da-Dos-dos-Outros

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Galpão Cultural: (Des)encontros

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O que relato é fruto de um afeto comovido e de uma pesquisa às fontes virtuais do Galpão Cultural de Assis.

O Galpão Cultural é um espaço situado na Rua Dr. Teixeira de Camargo, nº 205, Vila Operária, e abriga diversos grupos culturais, os quais desenvolvem diferentes linguagens artísticas, realizam oficinas, espetáculos, ensaios, entre uma infinidade de atividades artístico-culturais gratuitas. Além disso, durante estes anos de desenvolvimento do Galpão Cultural, em parceria com grupos e associações da cidade e da região, foi premiado por alguns de seus trabalhos realizados, sendo os principais, o Ponto de Leitura (Ministério da Cultura), o Ponto de Cultura (Secretaria de Estado da Cultura/Ministério da Cultura), o Prêmio Arthur Bispo do Rosário (Conselho Regional de Psicologia), o Loucos pela Diversidade (Ministério da Cultura) e diversos Programa de Ação Cultural (Secretaria de Estado da Cultura), sendo que atualmente, há dois projetos em desenvolvimento, financiados por este Programa. (http://galpao-cultural.blogspot.com.br/)

O afeto comovido foi o de indignação, primeiramente. Depois de pena, sentimento bastante babaca e paralisante. A pena desfez-se rapidamente para dar lugar a um auto-xingamento, já bastante freqüente na idade dos 31 anos, que sabemos que somos sempre responsáveis por tudo, escolhemos sempre com o que nos envolvemos, o que falamos, quando falamos. De minha minerês fica sempre a fama de que sou calado. Com meu corpo estive presente em Assis, no Galpão Cultural, mirrado de sempre. Com sentidos talvez menos aguçados que os de hoje, mas certamente muito mais aguçados do que os da ignorância. Mesmo na distância do corpo, a notícia do fechamento do Galpão Cultural moveu minha indignação que fez aquele percurso inútil para chegar de volta à indignação e a essas palavras que aqui vão se tecendo. O caminho do afeto, que balança o corpo de um jeito, pra depois você criar as idéias, é longo para se integrar na brutalidade das palavras. De qualquer maneira, as idéias que me surgiram foram em forma de memórias. As memórias que tenho do Galpão Cultural é o de que ele deu-me ritmo musical no curto período em que freqüentei a Oficina de Maracatu e por várias vezes em que proporcionou Rodas de samba, nas festas, à noite, com gente bastante querida, com leveza e seriedade. Deu-me também formação profissional, na troca de experiências entre colegas de profissão, entre amigos, entre grupos de pessoas que se conhecem e que não se conhecem, pela música e pelos toques dados e recebidos. O Grupo que organizou o Galpão criou e até hoje mantém o Fórum Permanente de Saúde Mental da região de Assis, prestando-nos consultoria para abertura do Fórum Permanente de Saúde Mental do Tocantins. Tal experiência é suficiente para dizer da articulação que promovem esses colegas no campo cultural, no campo teórico-técnico e no campo afetivo.

Outra experiência promovida pelo Galpão da qual fui participante foi a ação para a pintura do Galpão. Tal ação consistiu numa Oficina de artes com um artista plástico de Londrina (se a memória não me falha), na convivência e na pintura, de fato, das paredes do Galpão, com almoço para todos e tinta angariada a muita custa. Foram, primeiramente, dois dias seguidos de trabalho intenso e, posteriormente, encontros de finalização da pintura se também, nesse caso, não me falham as memórias, duas já. De qualquer maneira a produção social desses encontros foi bastante importante juntamente com a produção em cada um dos presentes, uma produção que talvez não seja definível em palavras, chamo-lha vida e pronto, definida está. Algumas imagens talvez digam mais.

Tenho um conjunto de fotos que ora ou outra revejo por aqui em meio a outra vegetação, a outro clima, outros contextos. Partilhando, contudo, nas aulas que dou, tudo que aprendi com o que Assis, Cândido Mota e o Galpão ofereceram-me em pessoas e referencial práxico. Fotos de pessoas que talvez aqui não possa mostrar, por não ter pedido permissão aos que nelas aparecem; e a saudade é um sentimento que se atravessa em todos os outros.

Essas memórias servem para mostrar que O Galpão tratou-se de um acontecimento, um dispositivo, pelo menos para mim, provocou-me rupturas e compôs-me de outros relevos, de outros cheiros e de outros paladares e era assim tido por muitos que por nele passaram.

A irresponsabilidade do governo municipal de Assis, com o não cumprimento dos acordos feitos (o de não pagar as parcelas de aluguel), é a parte mais odiável do processo todo, a encomenda era bastante fácil e possível. Não dá para acreditar, na verdade, que isso seja fruto de desorganização ou ignorância. Resta apenas uma possibilidade e esta é a desarticulação de uma prática libertária demais para uma cultura atrasada demais. Intencional ou não, tem efeito desarticulante. O movimento chamado Galpão

Cultural deve incomodar gente importante em Assis. Sei lá. Não sei.

Só sei que experiência como o Galpão estimulou a criação do Festival de pipas de Cândido Mota, que tem edições anuais juntando grupos diversos de pessoas, agrupamentos e equipamentos, cada qual com suas próprias instituições, muitas transversais entre si. Dizendo de outra maneira, tecendo redes, objetivo inicial de quem quis fundar e fundou o Galpão. A rede nos pede uma atenção bastante diferente da atenção que andamos a desenvolver na correria do dia-a-dia. A atenção que andamos a dar nas coisas é a atenção rápida, pois aquilo que nos prende a atenção é a agilidade do desenvolvimento tecnológico e comunicacional, de disposição do conhecimento, do desenvolvimento da palavra; tal atenção, formada por pessoas que, por olharem a agilidade das coisas numa escala mundial, olham para longe e vislumbram apenas um horizonte embaçado, esfumaçado. Desenvolvem, portanto, uma visão superficial, de reconhecimento míope, que pula de coisa a coisa rapidamente, buscando experimentar cores, sons, odores, paladares, peles, sensações e sentidos diferentes, um pouco de cada…isso é o que pede os movimentos da diversidade. Contudo, nesse movimento de nossa atenção deixamos de olhar para práticas antigas que precisam de um tempo mais lento de atenção e uma visão mais detalhada do entorno, dos sujeitos próximos da gente como o é o cuidado com as relações afetivas. Isso sempre existiu, não precisamos inventar isso…o cuidado às relações afetivas, com culto ao Respeito e Solidariedade, não é tão inalcançável assim para o acharmos tão utópico. Tais relações não são difíceis de fazer, não custam caro. É por não custarem tão caro que são difíceis de manter. O que não movimenta uma quantidade grande de dinheiro, na relação entre movimento social e governo (de qualquer nível – lembrando que na relação interestadual discutem-se, preferencialmente, questões de ordem econômica e que as carreiras de administração e economia têm tomado bastantes cadeiras nas secretarias de saúde de todos os níveis do governo); retornando ao que estava falando, o movimento civil que não movimenta dinheiro e bens para o governo, tem a infeliz contra-força para se minguar; comparar o aparato de articulação (mídia e equipamentos) do governo ao dos movimentos sociais é injusto; ao aparelho do estado não interessa produzir relações que se justificam pelo o que de afetivo há nelas, pois elas não retornam o investimento em lucro de bens. Isso ocorre dentro da própria Política Nacional de Humanização, que por vezes é marginal nos níveis estadual e municipal, pelo fato de não levar verba a esses níveis de governo, ocorre também com os movimentos sociais de base.

Somos responsáveis por tudo isso. Mas tal responsabilidade não é dada e nem inata. Ela é buscada. A notícia do fechamento do Galpão Cultural, em seu blog, não foi comentada ainda nem sua NOTA DA OFICINA DE ARTES CÊNICAS – DA EXPRESSIVIDADE À CENA. Mas sei que o Galpão foi ocupado por pessoas envolvidas em sua criação, resistentes e cientes de sua importância para a vida cultural de Assis. Esse é o momento do Galpão: resistência contra um poder público que pratica o toque de recolher ou que há tempos vai sozinho para decisões que dizem respeito a muita gente. Por quantas vezes os CAPS de Assis, Cândido Mota e Maracaí ficaram sem o material básico de limpeza e de oficinas terapêuticas? Várias. O esforço do governo para repor tais estoques (próprios, diga-se de passagem) nem se compara ao esforço feito pelas pessoas envolvidas nos movimentos sociais e culturais do Galpão para conseguirem seus próprios materiais de limpeza e de oficinas terapêuticas. Sei lá também.

Que multipliquem experiências como o Galpão Cultural. Que fique expresso, nesse texto, o repúdio ao governo de Assis por ação tão irresponsável como essa.

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Acordo para a morte

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[…] eu quis matar sem casuística, matar para mim, só para mim! A esse respeito eu não queria mentir nem a mim mesmo! Não foi para ajudar minha mãe que eu matei – isso é um absurdo! Eu não matei para obter recursos e poder, para me tornar um benfeitor da humanidade. Absurdo! Eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim. […] Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar o limite ou não! Eu ouso inclinar-me e tomar o poder ou não! Sou uma besta trêmula ou tenho o direito de…

– Matar? Tem o direito de matar? (p. 428, Crime e Castigo, Dostoiévski)

Década de 80 (século XX)

Paraíso

6h

A professora acorda para mais um dia de trabalho. Executa a rotina matinal da maioria de nós: toma banho, escova os dentes, escolhe uma roupa básica, faz seu café da manhã. Depois pega o material da aula, pois várias crianças na faixa dos 10 anos de idade a esperam. Uma lembrança faz nascer um sorriso em seu rosto. Finalmente estava livre. Poderia andar pelas ruas, sair com suas amigas, quem sabe até encontrar um verdadeiro amor. Balançou a cabeça e falou em voz alta: “antes de passeios, amigas e amor, tenho um grupo agitado aguardando por mim.”. Lembrou-se do dia em que um grupo de meninas veio em sua casa (quando ainda estava casada) para lhe dar as boas vindas como professora em seu colégio. Uma delas nada falou, ficou em silêncio olhando-a encantada. Por algum motivo, lembrou-se desse episódio, de que algumas daquelas meninas poderiam um dia ser também professora. Mas ainda havia muito tempo para isso. Agora, precisava apressar-se, não poderia atrasar, não para seus alunos.

5h

O dia amanheceu, mas isso não fez muita diferença para ele, afinal não dormiu, não pregou os olhos uma única vez. Estava excitado com a ideia que iria executar em breve. Já sabia o trajeto que ela fazia todas as manhãs, assim quando fechava os olhos poderia até vê-la acordando, colocando a blusa preta (sua preferida), a calça jeans (na qual ficava linda) e realizando os preparativos para o trajeto que mudaria sua vida para sempre. Ele ainda podia sentir o cheiro dela em algumas das coisas daquela casa vazia. Esse cheiro impulsionava-o ainda mais a seguir seu destino. Era um homem com um destino, uma sina, um grande objetivo. Enquanto pensava essas coisas, amolava lentamente uma faca. Em um dado momento, o brilho da faca fez com que erigisse em torno dele e das coisas uma linha tênue que dava a tudo um aspecto distorcido. Perdeu o foco, parou os movimentos. Olhou no relógio. O tempo passou rápido, precisava partir, precisava esperá-la.

6h20

A menina tentava abrir os olhos com dificuldade. Era sempre um suplício acordar cedo, essa era a única coisa ruim em ter ido para a quinta-série. Pela insistência da mãe, levantou-se. Depois de tomar café (e sempre tomava muito café, apesar de seus 10 anos) começou a encontrar algum sentido em estar de pé naquele horário, então lembrou-se do óbvio: amava ir para aula e hoje sua professora preferida estaria com eles durante toda a manhã. Era tanta coisa para aprender. Sonhava em fazer contas com letras, em ler todos os livros da biblioteca, em vencer a timidez na hora de recitar a tabuada ou uma poesia. Queria ser professora, como aquela que estaria ensinando-lhe esta manhã, mas, para isso, precisava conseguir falar em público, respirar normalmente em meio às pessoas, suportar o olhar dos outros. A voz da sua mãe trouxe-lhe de volta. Vestiu a saia com pregas profundas na altura do joelho, a blusa com o nome de santo, calçou a franciscana e caminhou em direção ao colégio, que ficava quase em frente a sua casa.

6h30

Já estava ficando com câimbra por permanecer na mesma posição, escondido no pilar da parede da escola. Tentou manter a respiração tranquila, pensou no que estava prestes a fazer. Sentiu-se imenso, quase um deus.

6h50

O sorriso ainda permanecia em sua face enquanto caminhava em direção ao colégio. Cada passo a aproximava das crianças, de seu ofício, da sua nova vida. Errou ao se casar tão jovem e com um homem que, de fato, não conhecia bem. Mas agora isso era passado. O tempo é outro. A vida é outra. Nesse momento, passava diante da escola que ficava na esquina que antecedia seu colégio. Já podia ouvir a algazarra das crianças preparando-se para a oração que era feita todas as manhãs ali.

6h55

Ela sentiu uma pontada forte nas costas. Não entendeu de onde veio, nem o que foi aquilo. A pontada foi tão aguda que a fez cair de joelhos no chão. Foi então que ela o viu e quando uma nova pontada fez-se presente em seu corpo teve noção do que acontecia, havia sangue. Muito sangue. E era seu sangue. Com as mãos tentou deter as diversas investidas daquela coisa pontiaguda em seu corpo. Mas nada impedia os cortes em suas mãos, em seus braços, em seu rosto, em seu peito. Caiu.

6h55

Ali, escondido na pilastra, parecia mais uma sombra. Sentiu o cheiro dela. Ergueu a faca. A primeira atingiu-lhe as costas, ela caiu. Não o viu. Mas quando ela estava se levantando, ele atingiu-lhe novamente, e mais uma vez, várias vezes, perdeu até a conta. Só tinha a necessidade de romper cada parte do seu corpo. Ela ainda tentou se proteger com as mãos, mas de nada adiantou. Atingiu-a nas mãos, no rosto, viu o sangue manchar sua pele perfeita. Ela caiu. Pouco se via de sua face, do seu corpo, era o resto do que fora alguém em uma poça de sangue. Ele correu.

6h55

A menina, já no colégio, observou um dos colegas sair da sala. Pensou em sua coragem em fazer isso sendo que a professora já devia estar se aproximando da porta. O menino sumiu, possivelmente tenha ido subir no muro, lá dava para ver uma escola menor do outro lado da rua. Ela ficou lá, sentada, quieta, mesmo com toda a algazarra das demais crianças à sua volta.

7h05

Enquanto corria, ele viu um menino o observar de cima de um muro do colégio. Criança estúpida. Mas, não pôde parar para pensar, precisava correr. E correu. Sentia-se imenso. Sentia-se quase um deus.

7h10

Alvoroço no colégio. Gritos. Algumas professoras choravam em desespero. Ela permaneceu quieta, sentada em sua carteira, à espera da sua professora. Mas, ela não veio naquela manhã. Nem na outra. Ela nunca mais voltou à sala de aula. A professora morreu.

 

Na outra manhã, não teve aula. Os alunos foram levados em fila para a Igreja que ficava próxima ao colégio. A menina ainda tentava entender o que representava tudo aquilo. Enquanto caminhava com as outras crianças em direção à igreja, lembrou-se que passou próximo ao local do crime e viu a terra molhada de sangue. Sangue não seca como água. Sangue fica.

Ao entrar na igreja, ouviu sons diversos: choro, gritos, música, sussurros. Teve medo. Todas as crianças da turma da professora assassinada iam prestar sua última homenagem, ao menos foi isso que lhes comunicaram na sala de aula. Cada criança aproximou-se do caixão. Ela foi a última, era uma criança muito alta, daí sempre ficava por último nas filas. Antes de alcançar o caixão, ouviu alguém dizer: “tão linda, parece que está dormindo”. Então, ela finalmente se aproximou. Mesmo com medo, ergueu os olhos devagar. Observou, primeiro, as mãos – tão brancas e com tantos cortes. Depois viu o rosto repleto de pequenas manchas. Ela pensou: “não parece que está dormindo, não há minha professora nesse corpo cheio de cortes e sem cor”.  Lembrou-se do dia da visita em sua casa, ela lhe ofereceu bolo e um copo de suco; da alegria nas aulas, quando não havia poça de sangue e às 7h ouvia-se o farfalhar dos cadernos. Sentou-se na primeira fileira da igreja. De lá, via o caixão. “Minha professora morreu”, pensou. E esse pensamento permaneceu em sua mente por muito tempo.

 

Minha professora, cujo nome iniciava-se com LUZ, foi assassinada de forma brutal. Lutou pela vida até o limite de suas forças. Talvez tenha sonhado, como muitos de nós, em ter um bom trabalho, filhos, uma casa, um amor. Talvez tenha sido feliz, como alguns de nós, em certos períodos da vida. Mas há uma certeza: não lhe foi permitido acompanhar os alunos da quinta série na aprendizagem das continhas com letras, nem constatar, depois de um dado tempo, que alguns deles tenham se tornado professores, como ela.

O homem que a matou, morreu há alguns dias.  Seu corpo foi velado perto de casa. Teve uma morte sem aviso prévio, mas sem brutalidade. Um ataque de coração fulminante o apagou.  Se ele sentiu remorso, dor, medo, sofrimento em todos esses anos que viveu em um mundo sem ela, não sei.

Ele não é um personagem de Dostoiévski. Talvez para a maioria dos crimes não haja redenção, pois se para cada crime deve haver um castigo, para o processo de redenção presume-se a existência do remorso.

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Início, Meio e um Longo Caminho

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Primeiro: vai dar tudo errado. Não porque você não é capaz, não por causa do sistema, não porque as pessoas desistem do atendimento antes mesmo de iniciar. Vai dar tudo errado porque é exatamente aí que você precisa olhar para ver onde vai acertar.

Segundo: vai ser de um extremo ao outro. Se no começo foi complicado, o meio será confuso. Você terá a opção de desistir e a opção de continuar, mesmo depois de receber alguns “nãos”, mesmo passando a maior parte do tempo debruçado sobre uma mesa ou tentando, de todas as formas, montar algum grupo terapêutico ou continuar com o atendimento do sujeito que já esperou tempo demais e agora sentencia: “Não, já tô bem”.

Terceiro: você vai se sentir finalmente na sua profissão. Poderá chegar à quase certeza de que é realmente naquela área que quer, ou não, trabalhar. “Quase” porque ainda tem muitas coisas para aprender e conhecer sobre o leque de oportunidades que a Psicologia oferece. Poderá entender alguns empecilhos do tal Sistema e quem sabe irá chegar à conclusão de que essa é a melhor profissão que você poderia ter escolhido.

Por último: vai ver que, mesmo arrastando alguns meses de frustração, mesmo achando que as coisas não estão indo para frente e tendo a sensação de que você só está ali dentro enrolando e passando o tempo – ainda que as 8 horas semanais pareçam sem sentido – no final, vai entender que o que você fez foi muito, mesmo parecendo pouco. E esse pouco valeu todo seu primeiro estágio em “Ênfase”. Sua primeira experiência na prática.

Então a gente começa a entender a fala de Rubem Alves, quando diz: “O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio”.

Primeiro aprendemos a arte de escutar, para depois então a maestria de falar.

 

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Os olhos de vidro pedem socorro

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Em uma dessas viagens que se faz por acaso e sem muita vontade, acompanhei meu pai até um povoado onde ele iria tratar de negócios. Enquanto ele resolvia seus interesses, fiquei na varanda da casa de seu sócio, sentado em uma daquelas cadeiras de madeira que deixam a coluna terrivelmente ereta. E tão logo sentei, saquei do bolso minha arma contra o tédio: palavras-cruzadas. É bom entretenimento que exercita a mente. E falando em mente, estava com a minha bem distante daquele local inerte, quando algo me arrastou para o não-mundo-das-palavras-cruzadas, o tal do mundo real: um homem com cerca de 35 anos, pele maltratada pelo sol, camisa do flamengo, “olhos de vidro” e algo mais que não estava ao alcance da minha percepção imediata.

Quando digo que tinha “olhos de vidro”, é a melhor qualidade que encontrei para adjetivar aquele olhar fixo que formava uma perpendicular à minha estrutura corpórea. Ficou parado, olhando por uns 5 minutos, mas meu desconforto me fez pensar que havia se passado 5 anos. Então, ele resolveu se mexer e foi quando pensei que voltaria de onde surgiu. Ingênuo engano. Como se tivesse sido convidado, sentou-se no pequeno muro de meio metro que fazia a fronteira da rua com a casa, que para mim tinha a conotação de uma fortaleza que ruiu. Mas antes de sentar-se, ele tratou de limpar cuidadosamente uma sujeira que eu não consegui enxergar. O olhar do moço se transformou; parecia um quadro bizantino com aquele típico olho que fita o infinito sem muita esperança.

Como se tivesse ouvido um chamado, saiu atônito para algum lugar que meus olhos não conseguiram acompanhar. Reconheço que senti alívio. Por quê? Ele não havia feito nada que atingisse minha integridade física ou moral. Por que reagi internamente daquela forma? Pouco me questionei no momento e logo voltei para o mundo perfeito das palavras-cruzadas.

Decorrido pouco tempo, meu pai saiu à porta, continuando sua extensa conversa como quem quisesse colocar ponto final na prosa. Mas da outra parte, ele recebia cada vez mais interrogações. Nesse mesmo momento, o homem de olhos cansados apareceu para limpar e sentar-se no mesmo local.

Dessa vez, sentou-se somente por alguns segundos e tornou a perder-se nas ruas. Então, meu pai questionou ao dono da casa quem era o indivíduo. A resposta veio com tom de tanto faz. “Ele já foi ‘normal’, mas quando era pequeno, a mãe fez uma ‘macumba’ pra matar o pai dele, por isso o menino bebeu tanto que ficou ‘doido’ assim”.

Sabe-se que existem ervas pouco estudadas cujas propriedades são desconhecidas, de modo que podem afetar o organismo humano de inúmeras formas. Ele teve a sorte de viver, pois afinal a bebida foi feita para matar. No entanto, por infelicidade, ficou com sequelas. O dono da casa continuou o relato, dizendo que ele estava “atacado” naquele dia e que era só falta de trabalho que o ocupasse.

A conversa acabou e seguimos viagem de volta para casa. No caminho, meu pai comentava algo sem muita importância, enquanto eu refletia sobre aquele homem. Uma criança havia sido vítima de um crime direcionado a outro. E eu, com meus pensamentos ridículos, acabara de matar essa criança adulta dentro de mim. Sim, terminei o serviço que a mãe dele havia começado, pois meu visível desconforto à presença daquele moço era o resultado do preconceito intrínseco à maioria das pessoas quando se trata de alguém com distúrbios ou doenças mentais. Ele não pediu para ser assim. Qual a vítima que pediu para ser vítima? Ainda que fosse vítima do acaso, da genética, das pressões sociais, da dor… ninguém pede para ser assim, visto como fora dos padrões.

Senti-me mal. Senti-me péssimo. Espero que minha reflexão, meu arrependimento e mudança de postura possam reviver aquele homem e tantas outras vítimas do descaso e preconceito. Além de repensar meus atos como ser humano, refiz minhas ideias como futuro profissional. Afinal, como ser bom profissional da saúde, trancafiado no meu mundo controlado com meus conhecimentos específicos e casos “rotineiros”? Agora que revi minhas ideias, posso atuar bem na minha profissão. Além disso, vou repassar essa simples experiência que mudou meu constructo para que outros mudem sua forma de pensar e agir. E, enfim, a saúde possa acontecer de forma plena, pois aquela criança gritou por ajuda. E vou jurar nunca negar socorro a ninguém.

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Aprendendo a conviver com desigualdades

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Para começar gostaria de confessar que até outro dia eu pensava que todo louco deveria ser internado e excluído do convívio com a sociedade. Grande engano o meu!

A minha parca experiência na área viaja por algumas fases da minha vida. Morador de uma pequena cidade do interior do Paraná, cresci “convivendo” com  Amarildo. Ainda criança, já o via vagando pelas ruas da cidade “dirigindo” seus mais incríveis e invisíveis, pelo menos aos olhos da grande maioria, automóveis. Ultrapassava, estacionava, dava marcha-a-ré, parava nas esquinas, buzinava, acelerava, dava “cavalo de pau”, parava para abastecer no Posto Amigão (e somente naquele posto, pois alegava que ali a gasolina era melhor), enfim, cresci vendo o Amarildo “conduzindo” seus veículos pelas ruas da cidade.

Para melhor ilustrar, um certo dia, estávamos reunidos, alguns amigos, quando chegou Amarildo, parou seu carro, “estacionou”, desceu e veio em nossa direção. Naquele instante um amigo chamou-o e perguntou: Amarildo, você não vai fechar a porta do seu carro? Eis que, para nossa surpresa e deleite ele respondeu: Não … Você não está vendo que eu estou de trator!

Este episódio ficou gravado na minha mente, não me recordo quantas vezes contei esta história!!! Amarildo frequentava a casa de muita gente. Alguns tinham medo, outros – como nós lá em casa – tínhamos afeição por aquele “louco”. Volta e meia, ele estacionava seu carro na frente de casa, na hora do almoço e filava uma bóia; outras vezes, nós é que o parávamos para forçá-lo, ou melhor, induzi-lo a tomar um banho: Amarildo! Você sujo deste jeito andando neste carro tão bonito, venha tomar um banho!

Ele andava o dia todo, incansável, só parava para dormir. De vez em quando, Amarildo desaparecia, passava algum tempo internado! Era internado porque alguns inconsequentes lhe ofertavam pinga, o que o fazia surtar, ficar agressivo! Mas, logo voltava e a sua ausência era sentida e comentada por todos.  Amarildo convivia em perfeita harmonia, era parte integrante da sociedade. Neste sentido, Amarildo fez parte da minha infância e adolescência e da de muitos amigos meus. A turma era grande…

Naquela época, Amarildo representava a figura do “louco bom”, inofensivo, e que, embora tivesse um comportamento totalmente atípico, não fazia mal a ninguém. Amarildo era sinônimo de liberdade! Uma sensação que muitos de nós procurávamos na época!

Hoje, depois de apresentado à história da psiquiatria, os modos e formas de tratamento  – que vão desde idade média, época em que pessoas como Amarildo, seguramente, seriam vistas como algo divino; passando pelo modo asilar, modo em que Amarildo seria, com toda certeza, recolhido e tirado do convívio da sociedade; chegando aos dias de hoje, com as formas alternativas de tratamento – sei que Amarildo poderia ser acompanhado com enfoque personalizado, tratado como um todo, como personagem da sua própria história.

Acredito que muitos tenham experiências semelhantes. Muitas cidades têm casos parecidos, em especial as de menor porte, onde a maioria se conhece e casos como este passam a fazer parte da sua crônica.

Partindo dos princípios da terapia alternativa, não manicomial, de inserção destes “loucos” no convívio com a sociedade, estas pequenas cidades costumam andar na frente, absorvem e convivem em harmonia com seus “loucos” e, olhando sobre este prisma, aquela pequena cidade, ou melhor, os seus moradores, mesmo que inconscientemente, desenvolviam um papel social importante de integração, absorção e aceitação das diferenças e dos diferentes.

O enfoque atual do tratamento psiquiátrico passa por uma verdadeira guerra, pois a Luta Antimanicomial é uma bandeira que incomoda muita gente e contraria muitos interesses. Grandes avanços já foram conquistados mais ainda falta muito. Histórias como a de Amarildo devem servir de exemplo e estímulo para se continuar mudando, aceitando, convivendo … com as desigualdades.

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Amores que Enlouquecem

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Cartas de amor amareladas, ruídas por traças, muitas delas sem qualquer lógica, contendo erros crassos, palavras afrancesadas e desenhos esquisitos… Isso era quase tudo o que havia sobrado na caixa de papelão empoeirada que pertencia à falecida moradora de uma Residência Terapêutica (lar para pacientes psiquiátricos crônicos). O nome era Helena e falecia aos 78 anos de infarto agudo do miocárdio. Um sobrinho distante veio cuidar do sepultamento e pegar os poucos pertences. Ao ver a caixa emocionou-se e contou uma história que corria na família, mas que ninguém sabia ao certo se era verdade até aquele momento. Ao ler parte das cartas, pôde constatar que tudo era de fato real…

Dona Helena na juventude foi famosa pela beleza e elegância, não menos que pela cabeça dura e as idéias de vanguarda. Morava no Rio de janeiro em plenos anos 50 onde a atmosfera cultural e charmosa da cidade vivia momentos de glória. Certa tarde foi passear com uma amiga e decidiram tomar café na famosa confeitaria Colombo, local de artistas, intelectuais e socialites do Rio. Quando entrou, uma multidão de repórteres veio ao seu encontro, frenética e afoita, tirando fotos e com microfones para entrevistá-la. Espantadas, ela e a amiga, não sabiam o que dizer, até que em meio à confusão compreendeu que havia sido confundida com a famosa miss Brasil – 1954, Marta Rocha, cuja semelhança não se duvidava. Helena era de fato uma jovem deslumbrante.

Desfeita a confusão, já sentada, um repórter francês vislumbrado com sua beleza insistiu em conhecê-la e acabou conquistando um longo tempo de conversa animada, parte em português, parte em francês. Daquele encontro brotou uma grande paixão! Ambos não pararam mais de se corresponder por carta ou telefone. Tiveram alguns encontros sob a reprovação severa da família de Helena. Voltou para a França, mas de lá continuaram a se comunicar. Decidido, pediu sua amada em noivado e disse que a intenção era mesmo se casarem. Ela prontamente aceitou. Os pais, de família tradicional da nata carioca, foram terminantemente contra e a proibiram de falar ou ver novamente aquele estrangeiro aventureiro sem pedigree. Ambos se desesperaram, mas o francês bateu o pé que viria ao Brasil, não medindo esforços para desposá-la.  A família em pânico a levou para uma propriedade na zona rural fluminense. Ele, sem titubear, veio ao Rio, pegou um táxi e foi ao tal local pedir a mão de Helena. Seu pai ameaçou chamar a polícia e a expectativa passou a ser enorme.

Desafortunadamente, já no trajeto da fazenda, o carro em que ia capotou, morrendo na hora ele e o motorista. Quando Helena soube, teve uma forte crise nervosa que para infelicidade dela e dos familiares desdobrou-se numa doença mental mais grave que nunca mais se remitiu. Passou a internar-se em sanatórios e tomar altas doses de medicamentos. Tinha delírios, alucinações e progressivamente se distanciou da realidade. O único elo que manteve, ao longo de décadas, foi escrevendo cartas e mais cartas de amor ao amado repórter francês que jamais esqueceu. Achava, porém, dentro de sua fraqueza mental, que escrevia e mandava as cartas, mas na realidade as guardava numa caixa de papelão bem escondida. Centenas delas, umas planejando a cerimônia do casamento, outras falando dos filhos que nunca tiveram e das viagens pelo mundo que jamais ocorreram. Em algumas, com certa lucidez, quando se dava conta que sua vida também tinha se acabado naquele acidente, expressava a dor imensa planejando o suicídio, fato que realmente tentou por três vezes. Helena, ao final, morre louca e esquecida aos 78 anos, enjaulada por toda vida num amor que nunca fora vivido… Jamais me esqueci desta triste história verídica.

Penso também em quantas pessoas se encarceram em amores e relacionamentos que já acabaram e levaram junto deles esperanças, sonhos e desejos… Amores existem para trazer vida, não morte, do contrário não vale à pena. Vida é movimento, e movimento é mutação, mudança, libertação. O engessamento de conceitos e afetos é a própria morte em vida, assim como dona Helena o fez. Pobre dela, pobre de quem se aprisiona em amores loucos que mortificam e aprisionam a existência num imenso e obscuro vazio.

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Tom_e_Jerry

Tom e Jerry?

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Preferiríamos lhes contar acontecimentos e história de vida de personagens fictícios ou “normais”, contudo relataremo-lhes a trajetória de duas figuras extremamente ilustres, famosas e reais de nossa cidade atual. Famosas, pois não há quem passe por esse pequeno interior chamado Porto Nacional e não os conheça. E se tem alguma coisa que aprendemos em psiquiatria é de que “normal é alguém que não foi devidamente observado, que de perto ninguém é normal” (segundo Paulo Amarante, em seu “Saúde Mental e Atenção Psicossocial”). Então iremos nos contradizer e, definitivamente, voltaremos atrás e diremos que não preferiríamos lhes contar história de personagens normais.

Contaremos sobre Tom e Jerry. Não aqueles da série de desenho animado americano Cartoon Network, mas sim de duas pessoas reais que nesta publicação os chamaremos de Tom e Jerry, como muitos costumam chamá-los nessa pacata cidade.

Estes são dois irmãos nascidos e criados na cidade, que moram com sua mãe atualmente, porém que vivem “perambulando” pelas ruas sempre juntos e nunca  separados. Existe toda uma ciência em torno dos dois. O mais velho (Tom) sempre anda na frente como se fosse uma espécie de líder, e o mais novo, menor, mais calado, (esse é o Jerry) anda sempre atrás, preocupado em nunca ultrapassar o irmão. O Jerry é sempre submisso a seu irmão; se vão almoçar ou lanchar, Jerry sempre espera pela autorização dele, até mesmo se resolver se sentar.

Um dia, sentados na pizzaria da cidade, tivemos o desprazer de presenciar uma ultrapassagem do Jerry, e afirmamos que não foi uma bela cena de se ver. O Jerry – que costuma contar os dedos, nunca perdendo a seqüência – desviou sua atenção e, quando percebeu, estava sendo mordido e apanhando de seu próprio irmão. E o motivo? Sua ultrapassagem. É claro que todos os presentes foram obrigados a separá-los.

Perguntamos a vocês caro leitores, esse comportamento do Tom é normal? Não é não. Logo, dizemos que é patológico. Mas o que vem a ser normal? Na verdade vivemos em uma sociedade na qual já existem padrões pré-estabelecidos de normalidade, portanto tudo que não se enquadra nesses padrões é patológico. A esse processo denomina-se medicalização.

Considerar Tom e Jerry como loucos só porque possuem o costume de um andar na frente do outro é correto? Julgar por esse simples fato está certo? O que vem a ser doença mental?

Bem, a doença mental é considerada como um distúrbio capaz de produzir desarmonia mental e fazer com que o individuo saia da percepção do que é real. Ao longo da história a doença mental foi percebida e interpretada de formas variadas, o hospital que antes era tido como local de hospedagem se torna uma instituição médica. Antigamente, os hospitais abrigavam todos aqueles que eram desabrigados, mendigos, pobres, aqueles considerados como doentes mentais eram tidos e tratados como loucos, agressivos, endeusados. Atualmente, sabemos que pessoas doentes mentais não merecem tal classificação, contudo isso ainda acontece.

Voltando a nossos personagens, percebemos que com o passar do tempo eles foram sendo mais incluídos na comunidade e esta de certa forma aprendeu a conviver com eles, embora eles ainda recebam denominações desagradáveis por parte daqueles que chegam à cidade e que não os conhecem.

Hoje, diante do conhecimento adquirido, percebemos que todo mundo compartilha de momentos de loucura, mas nem por isso somos tratados como loucos, endeusados, tão pouco demonizados.

Estamos vivenciando a reforma psiquiátrica. Esta mudança nos pensamentos e na maneira de conduzir o assunto: a transição de um modelo, no qual o problema era exclusivamente em cima do próprio paciente (modelo asilar), para um modelo que visa ao problema como um todo, a fatores externos e internos do individuo (modo psicossocial).

Portanto, podemos chegar à conclusão de que, segundo o modo asilar, Tom e Jerry seriam recolhidos do convívio social e, assim, esquecidos por essa sociedade inconseqüente, em algum lugar de onde talvez jamais retornassem. Porém, ambos estão inclusos socialmente e recebendo uma atenção psicossocial. E, embora ajam de maneira fora dos padrões, estão contribuindo e fazendo de certa forma seu papel na comunidade.

Todo domingo, quando eles entram na igreja, acompanham e até narram a missa e alguma mãe os usa como exemplo para ensinar seus filhos, isso é contribuição com o social; quando eles passam pelas ruas e recolhem alguma garrafa do chão, isso é desempenhar alguma função social.

E como retribuição da comunidade, esta se articula e se organiza para que  Tom e Jerry não sejam desamparados. Esses dias atrás, por exemplo, fez-se um mutirão para organizar a casa deles, pois ela estava praticamente inabitável. Quase todos os dias, eles estão jantando na pizzaria: os proprietários fazem arroz, feijão, carne e dão para os dois se alimentarem. Ou seja, existe uma integração e isso é ótimo para que eles não se sintam excluídos.

Concluímos essa publicação lhes informando que, na verdade, a nosso ver, os dois irmãos não têm quase nada em comum com o Tom e o Jerry, do seriado Cartoon Network, a não ser o fato de que um é grande e o outro é pequeno. Logo, tal apelido é de denominação errada, pois os personagens do seriado vivem num contexto em que  Tom quer destruir (comer) Jerry a qualquer custo, não demonstrando qualquer afeição pelo rato. O objetivo do gatinho é simplesmente completar a cadeia alimentar, perseguindo sempre o ratinho, ou seja, ambos são inimigos.

Então se é para dar apelidos que ao menos seja Bob Esponja e Patrick, pois estes estão sempre juntos, um se preocupando e defendendo o outro. E assim essa idéia de perseguição é esquecida, dando lugar a um aspecto de fraternidade, que é o contexto real.

PS: VALE RESSALTAR QUE TOM E JERRY FORAM NOMEADOS POR NÓS AUTORES, APENAS PARA PRESERVAÇÃO DOS PERSONAGENS REAIS, POIS ESTES RECEBEM OUTRO APELIDO TAMBÉM DE DESENHO ANIMADO.


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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