O Auto da Compadecida: um paralelo acerca da realidade no Brasil

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Difícil um brasileiro não conhecer essa maravilhosa obra cinematográfica, carregada de cultura, saberes, emoção e várias críticas sociais, que demonstram muito a realidade do Nordeste e também do Brasil, que conta com uma das características mais marcantes do país, a comédia que envolve toda uma trama e se faz interessante do começo ao fim da obra.

O Auto da Compadecida é um filme dirigido por Guel Arraes e é baseado na obra de Ariano Suassuna, oriundo de sua peça teatral de mesmo nome. Sua obra começa em 1955 sendo escrita e posteriormente adaptada para a televisão em 1999 como minissérie e para o cinema em 2000, tendo uma duração de 1 hora e 44 minutos, com versão estendida de 2 horas e 38 minutos.

O enredo do filme se passa na época do cangaço brasileiro, nos arredores da cidade de Taperoá no sertão da Paraíba, onde os protagonistas Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) mostram as dificuldades de um cenário de pobreza e miséria, sendo os mesmos obrigados a arrumarem serviços que pagam pouco e que em sua maioria são exploratórios.

Fonte: encurtador.com.br/dCQSV

No filme podemos verificar que Chicó e João Grilo vivem então em extrema pobreza, sendo assim com os impactos citados nas condições de vida e estão constantemente em busca de satisfação das necessidades de alimentação, como por exemplo na cena em que João Grilo e Chicó trocam seus pratos de comida ruim pelo bife da cadelinha de seus patrões Seu Eurico (Diogo Vilela) e dona Dora (Denise Fraga), que são donos de uma padaria, os quais nas palavras de João Grilo não deram nem um copo d’água quando ele esteve doente e acamado por três dias.

Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010) nos trazem que a condição de pobreza está relacionada aqueles que não tem renda suficiente para o mantimento de roupas, alimentos, despesas pessoais, educação, habitação entre outros. Enquanto que aqueles abaixo da linha de pobreza são considerados indigentes, que vivem em busca da satisfação de necessidades vitais, como alimentação por exemplo.

Segundo Silveira (2020) com base nos dados do IBGE (2019) a atualidade brasileira conta com 13,5 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza. O dados apontam ainda que um em cada quatro brasileiros sobreviveram com menos de 436,00 R$ por mês no ano de 2019. Estes dados em 2020 podem ter tido uma redução por conta do auxílio emergencial em decorrência da Pandemia.

Fonte: encurtador.com.br/SVZ47

Ao relacionar tal situação, podemos falar acerca do atual cenário brasileiro, que ainda possui mão de obra de forma exploratória, ou comumente chamado de trabalho escravo, com péssimas condições. Acerca disso Sakamoto (2005, p. 11) explica que:

O sistema que garante a manutenção do trabalho escravo no Brasil contemporâneo é ancorado em duas vertentes: de um lado, a impunidade de crimes contra direitos humanos fundamentais aproveitando-se da vulnerabilidade de milhares de brasileiros que, para garantir sua sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas em busca de um trabalho decente. De outro, a ganância de empregadores, que exploram essa mão-de-obra, com a intermediação de “gatos” e capangas.

No Brasil há também um forte índice de violência e de pobreza, que se mostram como um fator de risco, pois, geralmente trazem um déficit na educação das comunidades pobres, altos índices de evasão escolar, condições de trabalho exploratórios e situações que levam muitos à criminalidade, bem como situações de conflitos nas favelas que muitas vezes envolvem pessoas inocentes. Nesse contexto, Borges e Alencar (2015) nos revelam que os processos de democratização não se mostram satisfatórios para mudar o quadro de violência arraigada historicamente em que injustiças sociais e violações de direitos humanos sempre foram frequentes, sendo assim a ausência do Estado culmina em mais crescimento da exclusão social e da pobreza, a partir daí Dornelles (2006, p.220) completa que:

Assim, na prática a democracia, para uma grande maioria da população brasileira, restringe-se ao ritual das eleições. Uma pratica onde a democracia é limitada e se restringe à formalidade institucional de um Estado de Direito que pune, controla e violenta as classes subalternas, os setores em situação de precariedade, excluídas dos benefícios e dos direitos efetivos de uma sociedade moderna.

Fonte: encurtador.com.br/owSV6

Vemos na trama um dos personagens que em decorrência das consequências da violência torna-se o cangaceiro Severino de Aracajú (Marco Nanini), que aos oito anos de idade teve os pais brutalmente assassinados por militares e presenciou toda a cena, tal evento traumático levou Severino a se tornar um grande criminoso no filme demonstrando sua turbulência psíquica, onde o mesmo realizava atrocidades e fazia também duras críticas ao povo da cidade, que não lhe deu comida e nem esmola, destratando-o fortemente enquanto disfarçava-se de andarilho pela cidade.

Dentre as críticas feitas, vale ressaltar também a corrupção envolvendo dinheiro e poder, nesse aspecto praticamente todos os personagens se envolvem, como por exemplo a relação do Padre João (Rogério Cardoso) e do Bispo (Lima Duarte) que se mostram mais em prol dos ricos do que dos pobres, e que conseguem realizar certos favores em troca de dinheiro. Dentre as cenas, uma demonstra João Grilo e Chicó indo pedir que o padre João “benza” a cadela (de dona Dora) que estaria doente, o mesmo se recusa a benzer pautado em normas religiosas e então João Grilo começa a dizer em alto e bom tom que a cadela seria do Major Antônio Moraes (Paulo Goulart), um rico fazendeiro da região, após isso o padre aceita fazer tal ação por achar que a cadelinha seria do Major, porém antes do padre realizar a benção, o animal morre, e o mesmo se recusa a fazer um enterro, sugerido pela dona, em latim, mas o faz após João Grilo criar uma história em que a cadelinha teria deixado um testamento para a igreja deixando uma quantia em dinheiro (Dez contos de Réis) que logo depois é aceito também por parte do Bispo.

Fonte: encurtador.com.br/gAMY9

Apesar de ser um assunto delicado, vemos constantemente corrupções no país, não só políticas como comumente aparecem nos jornais, mas também de autoridades religiosas. Um fator que também chama atenção e que acontece bastante são as alianças entre igrejas e candidatos/políticos, sendo assim há uma grande influência social ligada à igreja relacionada com as decisões democráticas. Dentro dessa perspectiva De Souza e Simioni (2017, p.468) fomentam tal relação da seguinte forma:

Essa apropriação de preleção política por grupos religiosos é bastante alarmante, já que eles não apenas selecionam o discurso estatal e apoiam candidatos, mas, muitas vezes, participam diretamente na legitimação democrática, ancorando seus discursos, abertamente, no código religioso, sendo espantoso o número de cadeiras ocupadas pela bancada religiosa, além da sua atuação em processos judiciais importantes.

O filme traz bastante essa relação social de controle, tanto da igreja, como das figuras importantes sobre os menos afortunados, sendo o impacto maior voltado àqueles com menos condições. Por outro lado, também mostra a religiosidade de forma vantajosa em algumas cenas, como por exemplo, na cena em que João Grilo se diz um portador da mensagem de Padre Cícero (Considerado santo católico por muitos fiéis), pedindo que o Capitão Severino de Aracajú, que é grande devoto, não faça mal às pessoas de Taperoá e cancele o ataque à cidade por pedido do “Padim padre Cícero”.

Fonte: encurtador.com.br/lmH24

 

No filme também se fala no aspecto religioso, no qual podemos interpretar como um fator de proteção, quando a Compadecida (Fernanda Montenegro), diz que o pobre passa por muitas dificuldades e em específico na seca do Nordeste oram pedindo por chuva como forma de contornar o sofrimento. Sabemos aqui que a religiosidade tem também influências positivas, principalmente em relação a enfrentamentos de doenças e sofrimentos psíquicos (como fator estruturante da psique), sendo assim pode contribuir na geração de pertencimento, vínculo e bem-estar aos que costumam frequentar espaços religiosos (FARIA E SEIDL, 2006).

Vale ressaltar aqui também a presença de uma figura religiosa, o Cristo (Maurício Gonçalves), de cor negra, onde comumente a figura de Jesus é retratada em obras como alguém de olhos claros e pele branca, e aqui ao aparecer gera até mesmo comentários racistas por parte do Protagonista João Grilo ao dizer: “O senhor pode não ter a cor das melhores, mas fala bem que faz gosto” e também em outra cena ao final, onde João discorda que o personagem poderia ser cristo disfarçado de mendigo e diz “Jesus Pretinho daquele jeito?”.

Fonte: encurtador.com.br/mGS29

Ao falar então de preconceito racial, vale citar um estudo realizado por Turra (1995) onde a mesma revela que os brasileiros sabem que há racismo no Brasil, porém em sua grande maioria negam ter preconceito racial, mas demonstram racismo de diversas formas, ao pronunciar ou concordar com enunciados preconceituosos ou ao admitir comportamentos de conteúdo racista em relação a negros.

O filme é carregado de muitas críticas, mas traz tudo com um humor ímpar que faz o espectador dar muitas risadas, mas que também é capaz de trazer muitas emoções e reflexões do nosso cenário Brasileiro, que necessita muito das ações promovidas pela psicologia, mas também de efetividade em quesito de amparo e cumprimento das pautas governamentais destinadas às pessoas que vivem de forma precária, que necessitam muito de necessidades básicas. São importantes também as reflexões acerca do valores éticos e desconstrução de valores negativos que se formaram ao longo dos séculos como racismo e formas de preconceito no país.

Em resumo o filme traz um reflexo de preconceitos, situações de exploração, estigmas, mas também nos mostra muitos aspectos enriquecedores acerca de aspectos da realidade no Nordeste do país e características desse povo, suas crenças e sua alegria, sendo o filme aclamado com vários prêmios e críticas positivas tanto de profissionais da área como do público geral deixando ainda o gosto de “quero mais”.

FICHA TÉCNICA 

Fonte: encurtador.com.br/ctDV2

Título: O Auto da Compadecida
Direção: Guel Arraes
Elenco:  Matheus Nachtergale, Selton Mello, Rogério Cardoso, Lima Duarte 
Ano: 2000
País: Brasil
Gênero: Comédia, Drama

REFERÊNCIAS

BORGES, Luciana Souza; DE ALENCAR, Heloisa Moulin. VIOLÊNCIAS NO CENÁRIO BRASILEIRO: FATORES DE RISCO DOS ADOLESCENTES PERANTE UMA REALIDADE CONTEMPORÂNEA. Revista brasileira de crescimento e desenvolvimento Humano, v. 25, n. 2, 2015.

DANTAS, Candida Maria Bezerra; OLIVEIRA, Isabel Fernandes de; YAMAMOTO, Oswaldo Hajime. Psicologia e pobreza no Brasil: produção de conhecimento e atuação do psicólogo. Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 1, p. 104-111, 2010.

DE SOUZA, Ana Paula Lemes; SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O Congresso Nacional entre o “mýthos” e o “lógos”: religião e corrupção sistêmica no cenário político brasileiro. Anamorphosis: Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 2, p. 465-487, 2017.

DORNELLES, João Ricardo W. O desafio da violência, a questão democrática e os direitos humanos no Brasil. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 29, 2006.

FARIA, Juliana Bernardes de; SEIDL, Eliane Maria Fleury. Religiosidade, enfrentamento e bem-estar subjetivo em pessoas vivendo com HIV/AIDS. Psicologia em estudo, v. 11, n. 1, p. 155-164, 2006.

O AUTO da Compadecida. Direção de Guel Arraes. Brasil: Globo Filmes, 2000. 1 DVD (104 min.)

SILVEIRA, Daniel. Extrema pobreza se manteve estável em 2019, enquanto a pobreza teve ligeira queda no Brasil, aponta IBGE. G1.Globo.com, rio de Janeiro, 12, novembro de 2020. ECONOMIA. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/11/12/extrema-pobreza-se-manteve-estavel-em-2019-enquanto-a-pobreza-teve-ligeira-queda-no-brasil-aponta-ibge.ghtml>. Acesso em: 20, novembro de 2020.

SAKAMOTO, Leonardo. Trabalho escravo no Brasil do século XXI. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2006.

TURRA, Cleusa; VENTURI, Gustavo. Racismo cordial. São Paulo: Ática, 1995.

 

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O Auto da Compadecida: a resiliência do sertanejo em meio às tribulações

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Provavelmente você já assistiu ou pelo menos ouviu falar do filme “O Auto da Compadecida”. Também não é de se surpreender que você tenha dado gargalhadas e se emocionado ao mesmo tempo com a trama. Isso porquê a obra traz aspectos de uma vida rodeada pela miséria e pobreza de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), que exige de ambos o uso da esperteza para conseguirem sobreviver, o que acaba os colocando sempre em algumas confusões, dando o tom de comédia ao filme.

O filme (dirigido por Guel Arraes, em 2000) é baseado na obra teatral de Ariano Suassuna, escrito em 1955. De forma fiel à peça, o filme mostra a marca indelével do autor, que consiste em apresentar de forma satírica o cenário nordestino e seus desafios. Prova disso se dá na forma como João Grilo, com a ajuda do atrapalhado Chicó, provoca seus superiores, como seus patrões Dora (Denise Fraga) e Eurico (Diogo Vilela), o Major Antônio Morais (Paulo Goulart), o clero, representado pelo Padre João (Rogério Cardoso) e pelo Bispo (Lima Duarte), o capitão do cangaço Severino de Aracaju (Marco Nanini), o valentão Vicentão (Bruno Garcia), o cabo Setenta (Aramis Trindade) e até mesmo o diabo (Luís Melo).

Fonte: https://goo.gl/cs4Rkt

As peripécias feitas por esses dois matreiros, no sertão da Paraíba, consistem em enganar todos aqueles que podem lhes servir de alguma forma. Há de perceber-se que seus planos sempre envolvem a avareza dos enganados, cujos representam a minoria que possui algum bem material no Nordeste. Essa forma de agir mostra uma realidade presente no sertão nordestino, profundamente marcada pela seca, pela fome, por diversos problemas sociais, como falta de educação, saúde e saneamento básico, caracterizando, assim, uma região pouco desenvolvida. Logo, a falta de oportunidades e até mesmo outras habilidades e faculdades, levam João Grilo e Chicó a colocarem em prática suas artimanhas.

Segundo Angst (2009), a resiliência pode ser definida como uma capacidade universal que possibilita a pessoa, grupo ou comunidade prevenir, minimizar ou superar os efeitos nocivos das adversidades, inclusive saindo dessas situações fortalecida ou até mesmo transformada, porém não ilesa. Essa capacidade se apresenta claramente em João Grilo e Chicó, uma vez que sempre ao serem frustrados com os resultados de seus planos, não conseguindo sair da pobreza que assola suas vidas, conseguem se recuperar rapidamente, já com novas ideias para o próximo “ataque”. Essa capacidade se evidencia em uma das falas de João Grilo:

—- Eu estive pensando se não é melhor assim. Quem sabe se eu ficando rico não terminava como o padeiro? E depois com a desgraça, a gente tá acostumado!

Fonte: https://goo.gl/XunfzS

De fato, com a desgraça eles já estavam acostumados. Em uma cena marcante do filme, a compadecida (Fernanda Montenegro) começa a falar das mazelas enfrentadas por João Grilo desde sua infância, enquanto, genialmente, surgem imagens reais de sertanejos nordestinos enfrentando os desafios a eles impostos. Juntamente com a narrativa da compadecida, a emoção se torna iminente:

—- João acostumou-se a pouco pão e muito suor. Passava fome e quando não podia mais rezar, quando a reza não dava jeito, ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral, humilhado, derrotado, cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva, pegava o caminho de volta, animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra, dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé.

Fonte: https://goo.gl/9hG63U

Assim, em meio a tantas tribulações, a vida do sertanejo nordestino vai se formando, moldando figuras tão resilientes que a dor e o sofrimento já quase não são mais pedras no caminho, mas um aprender de novo, um levantar-se de novo, um impulso para seguir tentando sobreviver nesse cenário em tons pasteis, mas com corações regrado da cor verde, de esperança e de vermelho, do amor sentido pela terra onde nasceu e floresceu.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O AUTO DA COMPADECIDA

Diretor: Guel Arraes
Elenco: Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Melo
País: Brasil
Ano: 2000
Classificação: Livre

REFERÊNCIAS:

ANGST, R. (2009). Psicologia e Resiliência: uma revisão de literatura. Psicologia argumento. Curitiba: v. 27, n. 58, p. 253-260, jul./set.

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Deus e o Diabo na Terra do Sol: um Brasil guardado na memória

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Produzido por Glauber Rocha e lançado em uma época de difícil realidade no Brasil (entre 1963-1964), Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que, com excelência, aborda temáticas espinhosas acerca do país e, sobretudo, da cultura sertaneja e nordestina, compondo o segundo período do Cinema Novo Brasileiro, em que

“Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, essa nova geração de cineastas propôs deixar os obstáculos causados pela falta de recursos técnicos e financeiros em segundo plano. A partir de então, seus interesses centrais eram realizar um cinema de apelo popular, capaz de discutir os problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e o uso de uma linguagem inspirada em traços da nossa própria cultura (SOUSA, Brasil Escola, 2017).

O longa conta a saga do casal Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), vitimados pela pobreza e pela seca do sertão da época. Em uma tentativa de mudar de vida, Manuel oferece a venda do seu gado para o coronel Morais (Mílton Roda). No caminho de ida para a fazenda do coronel, alguns animais morrem, devido à seca do local. Esse último, dizendo que a sua palavra é lei, fala que os animais mortos faziam parte do gado de Manuel, portanto o prejuízo seria dele. Manuel, revoltado com isso, acaba por matar Morais, dando fim à exploração e coronelismo desse.

Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães).

 

Perseguidos pelos jagunços de Morais, Manuel e Rosa adentram em uma jornada interminável de fuga da morte, da seca, da pobreza, da exploração. Pelo caminho, deparam-se com um grupo religioso, seguidor de São Sebastião (Lídio Silva) que promete que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”, e que todos os envolvidos no grupo alcançariam glória e sairiam da miséria atual. Isso é marca forte dos movimentos messiânicos, em que

Se organizam com seguidores que se consideram ‘eleitos’ para combaterem o mal que os aflige, contra o Anticristo que os persegue, e encontram entre si o refúgio para essa luta contra o mal. Existe harmonia e sintonia com o contexto deste povo ou comunidade e a mensagem messiânica os transforma em movimentos organizados (SILVESTRE, Info Escola, 2006).

Manuel se alia ao grupo, acreditando que ali encontraria saída para todos os seus problemas. Fica clara a forma como ele e as outras pessoas se agarram ao misticismo, no afã e no desespero de não mais sofrerem em suas miseráveis vidas, de modo a executarem qualquer coisa que lhes é pedido por seu líder, inclusive sacrifícios humanos. Porém, Rosa não se contenta com o grupo e, tomando a mesma atitude de seu marido, ela esfaqueia o líder quando esse mata um bebê em sua frente. O casal retoma a sua jornada de fuga, agora dos messiânicos revoltados e sem líder.

Logo, Manuel e Rosa passam a fazer parte de outro grupo que surge em seus caminhos: o do cangaceiro Corisco (Othon Bastos), amigo de Lampião. Diferente do grupo anterior, Corisco e seus parceiros não aguardavam uma intervenção divina para apaziguar seus problemas. Eles buscavam a sua glória pelas próprias mãos. A política fundiária, somada aos inúmeros problemas sociais vigentes neste contexto, principalmente a má qualidade de vida da população, contribuiu para o nascimento do cangaço. Grupos violentos surgiam aqui e ali, matando, roubando, destruindo, raptando os proprietários dos latifúndios, quando não se encontravam percorrendo o sertão e se refugiando dos executores da lei; eram nômades, pois não podiam permanecer em um único lugar (SANTANA, Info Escola, 2006).

Com um grupo messiânico e com um grupo cangaceiro, em uma terra marcada pela seca e pela miséria, o nome do filme começa a fazer sentido. O longa mostra claramente dois extremos em que pode chegar um povo sofrido e sem esperanças, seja se agarrando à uma religiosidade ou à “lei da selva”, em que o mais forte vence, no caso do cangaço, o que mais saqueia e mata à sangue frio. Produzido na época da ditadura militar brasileira, o filme não aborda diretamente o tema, mas há um aspecto que, analogicamente falando, pode-se dizer que o retratou. Como a censura era característica forte do regime, tudo era produzido de forma camuflada, e o filme em questão não foi diferente.

Contratado pela Igreja Católica, Antônio das Mortes (Maurício do Valle) tem a missão de matar e acabar tanto com o grupo messiânico quanto com o grupo cangaceiro. Esse personagem representa o próprio regime militar, uma vez que esse último tinha como características: repressão aos movimentos sociais e manifestações de oposição, uso de métodos violentos, inclusive tortura, contra os opositores ao regime e apoio da Igreja Católica (SILVA, 2005).

Antônio das Mortes (Maurício do Valle).

 

Dessa forma, “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, Glauber Rocha produziu um filme que retratou um Brasil duro e difícil de se viver, mostrando a vida de seu povo na profundeza de seu sofrimento. Lançado em meio à ditadura militar, o filme precisou sair escondido do Brasil. Foi indicado a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964 e seu emblemático cartaz, criado por Rogério Duarte, saiu na capa da revista francesa de cinema “Positif (Uol, 2014). Enfim, um roteiro instigante e que desnuda o Brasil, mostrando características por muito veladas e até mesmo ignoradas. Ainda bem que Glauber Rocha não queria esconder a realidade.

REFERÊNCIAS:

Portal Uol, 09/07/2014. 50 anos de Deus e o Diabo: Glauber Rocha adorava polêmica, diz Othon Bastos. Disponível em: <https://goo.gl/LH3C3D>. Acesso em: 13 mar. 17.

SANTANA, A. L. Cangaceiros. Info Escola. Disponível em: <https://goo.gl/HefsIJ>. Acesso em: 13 mar. 17.

Portal História do Brasil.Net. Ditadura Militar no Brasil – Resumo. Disponível em: <https://goo.gl/ieOpFt>. Acesso em: 13 mar. 17.

SOUSA, R. G. Cinema Novo. Brasil Escola. Disponível em < https://goo.gl/cWSCnd >. Acesso em: 13 mar. 17.

SILVESTE, A. A. Messianismo. Info Escola. Disponível em: <https://goo.gl/HFvWAw>. Acesso em: 13 mar. 17.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Diretor: Glauber Rocha
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos
País: Brasil
Ano: 1964
Classificação: 14

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O Sol de Luiza

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Era o início da tarde, logo no pingo de uma hora, quando o sol tinia na rodagem do povoado Baichão Grande, quando a menina Luiza calça sua chinela com o cabresto costurado, pelas repetidas vezes em que o danado insistia em quebrar, mas a Velha Doca com sua astúcia manual, sempre boa de remendo, fazia a velha e surrada chinela prorrogar o seu batido uso, para tristeza da sonhadora Luiza, no alto de seus seis anos.

– Ande Luiza! Deixe de moleza, a labuta no cocal nos espera – se apresse menina!

Luiza sem poder fugir de sua incumbência, tratava logo de atender ao chamado de sua avó, pois com ela não se cozinha o galo, o passar da hora é rápido.

Assim, Luiza parte na gigante estrada, que a deixava com a visão trêmula, escaldada pelo arder do sol, que cozinhava sua cabeça, escorrendo fileiras de gota de suor pelo seu rosto, enquanto sua avó avançava no caminho, com a pequena cabaça d’água a tiracolo, tocando o velho jumento, com suas indumentárias, próprias para a execução da tarefa de todo dia: uma cangalha e dois jacas de taboca, além do cofo e um amolado facão. Assim, no cambalear de suas patas, parecia sentir na pele o que Luiza procurava não demonstrar, pois a Velha Doca era a sua avó forte e valente, qualidades que ela também almeja. Não sabendo o jumento, o que lhe aguardava, o limiar da empreitada daquele dia, assim, iam engolindo caminho, levados pela força remendadora da Velha Doca.

A missão de catar coco no Baichão – exigia que fosse feita naquela hora, depois do pingo do meio dia, hora da sesta do Seu Gonçalo, um rico fazendeiro, de muitas terras, dono de uma D-10, que estava sempre limpa. Suas terras eram cercadas, e por trás dessas cercas tinha muito coco, amêndoa de muitas utilidades por aqui. Enquanto que na terra da Velha Doca, tinha mesmo, era muita areia, escaldada do sol, herança do seu falecido marido, o que lhe restou, depois de muitas questões na divisão dos bens com o outro herdeiro, que contam as línguas, foi muito esperto no espólio.

Entrar na fazenda de Seu Gonçalo, para catar coco, exigia fazer isso, às escondidas, porque Seu Gonçalo, embora não precisasse usufruir dos cocos, não aceitava que os precisados os aproveitassem, porque quem manda é quem tem. Mas a Velha Doca por precisão – sujeitava-se àquela tarefa, que fugia aos seus princípios, fato esse que não fora esclarecido à menina Luiza, o que a fazia encher a velha de questionamentos, próprio daquela idade, coisa que a velha encerrava logo.

 – Menina! Sossega, e caminha logo, que o sol tá quente.

Dessa ação, que não bem vista pela Velha Doca, dela dependia para o sustento de sua humilde casa de adobe vermelho e chão de barro, pois além de cozinhar com azeite de coco, fazia sabão e vendia o remanescente para o Seu Raimundo José, rico comerciante da Vila Franca. Da fortuna dessa venda, Luiza sempre tinha a esperança de ganhar um chinelo novo, o que era logo superado pelo pirulito de açúcar queimado, enrolado em papel almaço, com palito de palha de coco, habilmente confeccionado pela D. Ana de Seu Leó.

Mulher por essas bandas – sempre é de algum Dono, quando é solteira é do pai, quando casa, passa a ser conhecida como sendo do marido, quando o marido morre, ganha o título de viúva do finado tal. Com a D. Ana e muitas outras de sua iguala não era diferente.

Quando chegamos à fazenda do Seu Gonçalo, encontramos o primeiro obstáculo, essa forte e imponente cancela, feita de aroeira, madeira resistente dessa região, emoldurada pelo fruto do pensamento de que, manda quem tem,  também meticulosamente, amarrada com uma não menos forte, corrente e um cadeado, mas, para a Velha Doca, o obstáculo era superado logo.

Para a felicidade do seu velho jumento, amarrou-o em uma frondosa sombra de um pé de jatobá dos vaqueiros. Luiza, no entanto, não podia dizer o mesmo, pois a missão ficava cada vez mais difícil, só restava agora, passarem por baixo da cerca de arame farpado, e entrar de mata a dentro, carregando o cofo de palha cheio de coco, travando ai, uma violenta guerra entre o afiado facão e o mato fechado contra a força pungente do braço firme da Velha Doca.

Depois do jacá, encontrar-se pelo meio, o sangue já estava rente nas bochechas de Luiza, mas a missão ainda não estava completa, pois para tanto risco, de ser a Velha Doca pega com a boca na botija e ser desmoralizada na região, desfeita grande para uma velha viúva, tinham que completar o feito.

Quando finalmente, a última cofada vem para completar a bendita carga do jacá, que irá se repetir por muitas vezes, sempre no tinir daquela hora, enquanto não for descoberta nessa estripulia, aparece o que não queríamos imaginar na cena, que faz com que saiam correndo, a perder as pernas, segurando o coração na boca, a ponto de perdê-lo.

 – Corre Luiza!, gritou a Velha Doca. E sem rumo, na ligeireza de suas pequenas pernas, passa pela avó, que nem a velocidade de um relâmpago, fugindo daquela figura, que representava a visão não muito menor que o terror de serem pegas em flagrante delito, por um gigante, com chifres reluzindo, e ventanas ofegantes, já muito conhecido por sua fama de garrote valente de fúria incontrolável, com seus sedentos olhos descomunais, armado para o desfecho, que parecia a própria figura travestida de Seu Gonçalo.

 

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Em busca do caminho das nuvens

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A vida cotidiana sempre foi repleta de desafios, principalmente quando o assunto é sair em busca de um ideal, um objetivo de vida ou uma meta. A trajetória que alguns indivíduos percorrem em busca seus ideais poderia até mesmo virar roteiro de cinema. Tanto na vida real quanto na ficção tem sempre alguém percorrendo algum caminho em busca de algo que mude sua vida.

As produções cinematográficas brasileiras estão repletas de boas histórias e personagens que contam casos que até poderiam ser verdade na vida real, tirando claro um aspecto aqui e outro ali que acabam dando um ar de mera ficção. Um bom exemplo disso é o filme O Caminho das Nuvens (2003) estrelado pelos atores Wagner Moura e Claúdia Abreu que traz uma narrativa cheia de drama e leva ao seguinte questionamento: o que você faria em busca de um ideal?

O longa metragem narra a história de Romão (Wagner Moura), caminhoneiro que está desempregado e precisa sustentar a mulher Rose (Cláudia Abreu) e cinco filhos. Para isso, ele  decide partir em busca de um local onde possa conseguir o sonhado emprego com salário de R$ 1 mil , no Rio de Janeiro. Romão e a família partem então numa jornada de 3,2 mil km, saindo de Santa Rita, no sertão da Paraíba, até a cidade maravilhosa. Detalhe: de bicicleta.

A saga dramática da família paraibana é repleta de situações capazes de levar o espectador às lágrimas, porém em nenhum momento o pai da família desvia do objetivo e vai com esposa e filhos percorrer o caminho das nuvens na certeza de que chegando ao Rio, o desejado trabalho estará à sua espera.

Romão, o caminhoneiro, talvez não seja o único que decide mudar o rumo de vida em busca de um ideal. Mudar nem sempre é fácil, mas em alguns momentos o desejo de sair em busca por novos objetivos faz com que algumas pessoas abram mão de seu conforto, estabilidade, família e amigos em busca de seus ideais.

André Limberger, inovador tecnológico, é um bom exemplo disso. À reportagem, André conta sua trajetória e em busca de seus “mil reais”:

“Características da minha personalidade e que resultam diretamente na profissão que escolhi é a CONSTANTE MUDANÇA e a VONTADE DO NOVO.

Sou migrante por natureza… Vindo do Rio Grande do Sul aos 13 anos, estabelecido em Gurupi, Tocantins, já aos 17 anos fui emancipado para abrir uma empresa de informática, onde iniciei a vida profissional com desenvolvimento de softwares para a área comercial, venda de computadores e cursos.

Com sede em Gurupi, casa própria e clientes sólidos, mantive a vida durante 12 anos, quando senti o mercado pequeno e sem desafios, momento em que ocorreu a mudança com a empresa para a capital, Palmas.

Em Palmas estabelecido na área de Cursos e Serviços de Tecnologia durante 13 anos, comecei a sentir a necessidade de inovação, que me empurraram para a criação de um produto tecnológico próprio, onde criei  a CASA INTELIGENTE, totalmente automatizada que rendeu reportagens em jornais televisivos locais, abrindo visibilidade para os meus conhecimentos.

 Apesar de possuir uma vida estável em Palmas, com casa própria, proprietário de uma empresa conhecida e vida financeira estável… sentia que precisava me REINVENTAR, INOVAR e sair da rotina abrindo perspectivas de novos horizontes. Foi quando surgiu outro bem sucedido empresário da área de educação à distância, propondo uma parceria para a criação e inovação de tecnologias para a área de educação.

Este empresário possuía empresa com sede em Maceió, Alagoas, com estúdios, central de satélite e equipe administrativa, além de pólos espalhados por todo o país.

Previamente conhecedor de meu potencial tecnológico, propôs inovação na área de educação, além da possibilidade de morar a beira mar… Maceió.

Hoje resido em Maceió, capital de Alagoas e trabalho com INOVAÇÃO TECNOLÓGICA para a área de educação, produzindo softwares e hardwares, desenvolvendo salas de aulas virtuais, simuladores, jogos educativos, gameficação da educação e novas formas de ensinar.

Hoje tenho uma certeza que nunca irá mudar… A MINHA VONTADE DE INOVAR…”

Meu nome é ANDRÉ LIMBERGER, sou casado com a Nieli Martins Borges Limberger, tenho 43 anos, sou INOVADOR TECNOLÓGICO e feliz”.

Sandra Machado, empresária do ramo da beleza também não ficou atrás e resolveu, assim como o personagem do filme, percorrer o seu caminho das nuvens em busca do seu objetivo.

Tem um momento na vida em que você recebe um “estalo”. É bom, e é importante que isso aconteça. Eu fui empregada por muitos anos sem intervalos, trabalhava como uma formiguinha, incansável e disciplinada, mas nunca satisfeita. Tinha algo que constantemente me incomodava, era o desejo de melhoria, e eu não acreditava que aquilo era tudo que a vida tinha pra mim, e muito menos acreditava que aquilo era tudo que eu era capaz de conseguir. Um dia eu tive que recomeçar, e foi aí que eu decidi que seria de uma forma totalmente diferente. E seria rápido, imediatamente! Era a minha oportunidade e eu não tinha dúvida nenhuma de que esse era o caminho certo. Decidi abrir minha própria empresa e fiz isso logo, no calor da emoção, para que o medo não me alcançasse; por que o medo vem! A incerteza também, as responsabilidades e riscos existem, são reais e enormes! Mas isso é normal, eu sabia. Não houve dúvida de que eu estava certa no caminho que tinha escolhido, mas foi preciso ser forte, ter coragem, equilíbrio emocional e principalmente controle psicológico, sem isso colocaria tudo a perder. Tem coisas que só a gente entende, tem coragens que não dá pra explicar, tem uma luz que só a gente vê (cada um tem sua luz). Eu continuo caminhando, continuo na estrada enfrentando as adversidades, elas já foram maiores, meu objetivo já esteve mais longe. Uma coisa é certa e absoluta; Eu não vou ficar no mesmo lugar, nem mesmo por 1 minuto sequer.

Meu nome é Sandra Machado, sou empresária e mãe.”

Para Jonatan Ornellas, consultor de empresas, a trajetória do personagem lembra um pouco a sua corrida. Para tanto ele não mede esforços e enfrenta todas as mudanças que possam surgir pelo caminho.

“Iniciei minha trajetória como trainee de uma renomada e respeitada empresa de consultoria e auditoria de porte internacional. Após um criterioso, processo seletivo fui convocado para a mesma, tendo sido promovido, até me tornar auditor sênior.

Posteriormente, migrei para uma empresa congênere com o objetivo de ter acesso a uma maior autonomia na coordenação dos trabalhos e maior ganho nos resultados. Durante esse período, passei bastante tempo em São Paulo, atendendo aos clientes da empresa. No momento em que percebi, que as expectativas de crescimento desaceleraram, busquei um outro rumo.

Em outra nova etapa, fui trabalhar em uma empresa de energia elétrica, a qual me proporcionou a oportunidade de residir em outra cidade. Natal – RN. Com essa nova circunstância, houve um afastamento físico dos meus amigos e familiares que continuarem vivendo em Salvador. Contudo, eu já tinha experiência em mudanças e esta circunstância não trouxe nenhum tipo de dano. O objetivo nesta mudança era o crescimento profissional e financeiro, os quais aconteceram durante três anos. Porém, após este período, percebi que era a hora de desenvolver novas oportunidades.

Sendo assim, retornei para Salvador, por ser um pólo comercial relevante, e investi na estruturação de produtos de consultoria empresarial, com foco na geração de resultados financeiros e prevenção de perdas. Atualmente têm sido obtidos excelentes resultados. O cenário mercadológico tem expressado tendências de crescimento para serviços de alto padrão qualidade com foco na geração de efetivo valor agregado. Sendo assim, do ponto de vista profissional e pessoal, me sinto realizado, porém, nunca satisfeito. Sempre podemos fazer mais. Sempre podemos fazer melhor.

Meu nome é Jonatan Ornellas e sou consultor de empresas.”

O caminho das nuvens talvez não seja a chave para o sucesso, mas é sem sombra de dúvidas uma porta para aqueles que saem do estado de inércia e partem em busca da realização de seus objetivos, seja para conquistar um cargo de chefia ou tão somente um emprego com a singela remuneração de mil reais.

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A história de mais uma Maria

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Maria, Maria
É um dom, uma certa magia,
Uma força que nos alerta.
Uma mulher que merece
Viver e amar
Como outra qualquer
Do planeta.
Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que rí
Quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta.
Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
(Maria, Maria)
Mistura a dor e a alegria
(…)
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida….

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Certamente pouquíssimas pessoas ouviram falar dessa mulher de nome comum, tão comum que quase caiu no esquecimento não fossem seus legados – concretos e simbólicos – como os escapes de uma vivência fervilhada de intensidades.

Legado é tudo aquilo deixado oficialmente (ou não) aos que sucedem quem o deixou. A Maria da qual tratarei neste texto deixou frases e pinturas que dizem de algo maior, ou dizem esse algo maior que foi sua vida.

Retirante nordestina, só de isso ser, ou assim ser rotulada, sofreu as primeiras durezas que alguém que sai de seu torrão natal (e bota torrão nisso!) em busca de melhores condições de vida sofre. Nessa empreitada, que vale quase tudo, alguns desfazem até de sua dignidade, o que não é o caso dessa Maria, adianto.


Maria do Socorro Santos retirou-se para o Rio de Janeiro muito nova, para ser doméstica. Teve uma filha de 4 anos atropelada e morta nas ruas da cidade maravilhosa. A Hora da Estrela (deClarice Lispector) serviria muito bem de roteiro pra dizer dessa vida que só durou quatro aninhos ou da vida dessa mãe que durou 52 anos. De qualquer forma, diria desse anonimato que a maioria de nós está fadada a viver… (nesses momentos me alegro com a possibilidade que a virtualidade nos dá de partilhar certas histórias).

E nisso de procurar jeito para vida ou se ajeitar do jeito que ela nos permite, Maria do Socorro Santos se ajeitou com a bebida como companheira fiel (porém não eterna) com quem dividia todos anseios, prazeres, medos, covardias, fraquezas, indignação e coragem. Mas há quem não veja (ou via) assim. Talvez ela pudesse ser uma vagabunda preguiçosa que não queria nada com a vida. De quê importa? Antes de tudo, a vida parecia não querer nada com ela… Ou quase nada. Preta, pobre, retirante, sem família e com pouco estudo. Parecia difícil, mas nunca esqueçamos que entre a impotência e a onipotência, há (e sempre haverá) a potência! Continuemos.

Maria foi internada 20 vezes em hospitais psiquiátricos e sofreu todos aqueles tratos (prefiro não colocar um prefixo numa palavra que, nesse caso, já designa como os tratos sucederam) que estamos carecas de saber e tentar combater com o nome de Luta Antimanicomial. Mas embora ela tenha passado por essas experiências, ou justamente por tê-las vivido, Maria do Socorro (mais conhecida como Socorro, mas preferi me referir aqui como Maria) aprendeu olhar a vida de outras formas. Em minha mera opinião, ela se descobriu e essa é, certamente, a maior fortuna que alguém pode ganhar na vida.

Maria começou o tratamento para suas crises psíquicas num Centro de Atenção Psicossocial. Acompanhou de perto o nascimento da proposta da Atenção Psicossocial e foi acolhida por esta proposta não mais do que ela à proposta acolheu. Só para constar, hoje o CAPS III da Rocinha, no Rio de Janeiro, recebe seu nome.

Em seu tratamento, Maria teve o primeiro encontro com aquilo que mudaria (e mudou) a sua vida: a pintura. Quando eu disse no início do texto sobre sua vivência fervilhada de intensidades, queria de fato chegar a esse ponto em que contaria do seu encontro com a pintura e de sua descoberta na vida, através da arte. Extrapolando o que comumente conceituamos como arteterapia, as palavras de Maria dizem melhor sobre esse encontro:

“Não devemos abrir mão daquilo que mais gostamos de fazer, seja o que for. Ao passar pelos sonhos mais difíceis, não devemos desistir de nada. Pois acredito muito no que cada um de nós escolheu para fazer e ter prazer, sem que nada nos impeça, não importa a idade. Não sei se posso chamar de terapia, mas uma coisa eu garanto: fazer um trabalho que a gente gosta é como se estivesse realizando cada minuto dos seus momentos mais felizes. Pois é assim que me sinto em cada uma das pinturas que faço.” (Maria do Socorro Santos)

Maria projetava-se em sua arte e, embora pintasse num quadro a sua dor, o ato de pintar lhe aprazia além da dor que estava pintando. É a coexistência dos afetos e as formas de lidar e con-viver com eles.

Nem tanto por sorte, mas sim por merecimento, Maria do Socorro Santos pôde ter, em vida, algum reconhecimento por aquilo que fez. Mas ela não só pintava. Quase me esquecia de dizer sobre como ela acolheu a proposta da Atenção Psicossocial (como disse acima). Maria promovia oficinas, palestras e conversas a respeito da inclusão social. O viés de sua militância foi o de dizer da riqueza que há em incluir o outro ao invés de excluí-lo. Maria dizia da riqueza que chega à uma pessoa quando esta está disposta a ver as coisas, como aconteceu com ela quando ela viu e sentiu o papel das cores em sua vida. Pintou sua vida da cor que quis, quando quis, porque quis…

Adotada pelo Instituto Franco Basaglia, Maria pôde desfrutar dos recursos afetivos e, por vezes, materiais para a sua militância. Acreditava que se pudesse despertar nas pessoas o sentimento de que elas também podiam se descobrir na vida, o sofrimento lacerante e cego que tanto rondava seus colegas usuários, podia ceder espaço à processos criativos vitalizantes. Maria teve algumas obras expostas, recebeu críticas e foi comparada à pintores renomados. Em vida empenhou-se à sua descoberta através da arte, ao seu prazer e à sua vocação. Aprimorou-se. Esforçou-se. Lutou. Por ela e pelos outros. Faleceu aos 52 anos, de enfarte. Mas disso tudo ficou um legado muito bonito e interessante. Hoje existe o projeto Maria do Socorro Santos, que a partir da venda de cópias das suas obras, angaria recursos para incentivar oficinas artísticas às pessoas portadoras de sofrimento psíquico, usuários de serviços de Saúde Mental. Além disso (ou inclusive), o projeto divulga a vida e obra dessa artista e lutadora que não só por ser Maria, e louca, nunca perdeu sua estranha mania de ter fé na vida.

Aos interessados no Projeto Maria do Socorro Santos, acessar:http://www.rubedo.psc.br/socorro.htm

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