A Criança Sagrada no Superman de Zack Snyder

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O Superman, como é conhecido hoje, foi a público pela primeira vez na publicação Action Comics (1938) concebido por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Surge então da primeira leva de super heróis nos quadrinhos norte-americanos; o personagem é criado como um alienígena que haveria caído na terra vindo de um mundo distante, chamado Krypto.

Em sua terra natal, é conhecido como Kal-El, no planeta terra, ao ser adotado por um casal de idosos do Kansas recebe o nome de Clark Kent. Aqui este desenvolveria poderes sobre humanos e passaria a vestir as cores do país que o acolheu, combatendo o crime.

Outro fato importante acerca da criação de Superman é a origem étnica do mesmo, não aquela postulada nas páginas das histórias em quadrinhos; mas a origem de quem o concebeu e a carga cultural implícita na representação do personagem. O contexto histórico era o da ascensão do facismo e nazismo na Europa e as Américas eram por muitas vezes um refúgio para quem se movia para longe do caos europeu.

Siegel e Shuster, de batismo Jerome e Joseph respectivamente, eram judeus, e todo o contexto conturbado vivido por eles na década de 1940 iria influenciar imensamente na concepção das histórias e na visão de mundo dos personagens.

Superman no Cinema e a Visão de Heroísmo de Snyder

Ao longo das últimas décadas, diversas adaptações cinematográficas foram feitas da origem do Superman, ou mesmo tentativas de adaptação de novelas gráficas clássicas do herói. A filmografia se inicia na virada da década de 50 com Superman (1948), Atom Man vs. Superman (1950), Superman And The Mole Men (1951).

Na década de 70 surge o filme dirigido por Richard Donner e protagonizado por Christopher Reeves, Superman – O filme (1978), este que resultaria em três continuações com o mesmo ator, aclamado por fãs. Após longo hiato, somente em Superman – O Retorno (2006) é que o herói veria as telas cinematográficas novamente, através da visão do diretor Bryan Singer (Bohemian Rhapsody, 2018). Mas é em Man of Steel (2013), que o diretor Zack Snyder (Watchmen, 2009; 300, 2006) traz a adaptação mais recente do personagem e com ela algumas particularidades.

Acerca das adaptações cinematográficas de Snyder, vale salientar sua preferência por adaptar uma visão bem específica acerca do arquétipo do herói. Ao traduzir para as grandes telas o filme 300 (2006) – este derivado de uma graphic novel concebida pelo autor Frank Miller de nome “Os 300 de Esparta” (1998) – que é uma releitura da trajetória do mítico rei Leônidas, o diretor deixa mensagens claras acerca do lado humano do rei, seus erros e sua personalidade que em essência não eram divinas e imaculadas, mas humanas e passíveis de erro; Sua derradeira queda nas mãos do rei Persa Xerxes solidifica essa narrativa.

Em Watchmen (2006), o diretor já deixa pistas de como interpreta o papel dos super heróis perante a sociedade, adaptando mais uma obra de Miller e retratando um mundo onde os vigilantes são temidos de muitas maneiras, por sua imprevisibilidade e por serem não deuses, mas seres humanos usando máscaras. Essa mescla entre a visão de Frank Miller e a de Snyder pavimentaram uma estrada narrativa que o cineasta abordaria em seu filme que contaria a origem do herói, faria então um recorte quase pessoal de sua visão sobre o mito do Superman.

O desenvolvimento se dá ao longo de três filmes: Homem de Aço (2013), Batman V Superman (2016) e Liga da Justiça (2021). Nessa jornada você acompanha uma versão diferente da origem do Superman, muito semelhante a original dos quadrinhos porém com diferenças pontuais no que se diz respeito à personalidade do herói.

O Clark Kent mostrado no primeiro filme é um homem que desconhece seu potencial e mesmo ganhando habilidades especiais, toma atitude de herói tardiamente em sua vida, nesse caso após o conturbado final de Homem de Aço. Aquele final também guarda um fato que impõe diferença entre esse Superman do filme para o das histórias em quadrinhos, que é a despreocupação do personagem com a cidade a sua volta, sendo que este acaba por passionalmente destruir o ambiente a seu redor – a cidade inteira sucumbe desastrosamente, enquanto em uma cena de gosto duvidoso, Clark beija sua amada após quebrar o pescoço do antagonista.

É uma cena forte, e com certeza destoa do tom otimista geralmente adotado no retrato deste personagem. Snyder muda o status quo do Superman, o transfigura em um novo produto, diferente daquele já inserido na coletividade mudando o arquétipo pelo qual o ele era mais frequentemente apresentado ao público. A partir disso, diversas questões imperam acerca desta mudança e essa realocação arquetípica faz parte da narrativa desse novo personagem.

Fonte: encurtador.com.br/acG38

A Criança Sagrada

Primeiramente um breve apanhado acerca dos arquétipos. Para Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua publicação “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1957-2018), pode-se definir arquétipo como uma espécie de tendência instintiva que reside na psique dos seres humanos transmitida ao longo das gerações; como um instinto biológico que perpassa os ancestrais de uma espécie – o autor exemplifica com a tendência dos pássaros de fazerem ninhos ou viajarem para determinados locais em determinadas épocas do ano – assim também seria psicologicamente falando. Os humanos transmitem essas tendências a seus herdeiros e esses fenômenos são acessados através do inconsciente coletivo.  Um desses arquétipos é conhecido como a Criança Sagrada.

Como Jesus para os cristãos, ou o Imperador de Jade em algumas narrativas ancestrais chinesas, é a representação de uma criança que vem carregada de expectativas, imaculada, de futuro promissor. Jung, ao falar acerca desse arquétipo, nos diz:

Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isto, a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mesmo que pareça tratar-se à primeira vista de uma configuração retrospectiva. (…) Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a “criança” prepara uma futura transformação da personalidade. (JUNG, 1957-2018, p.165)

Logo, relacionar a Criança Sagrada com a narrativa do Superman, tendo como ponto de partida a cultura judaico-crisã, não é difícil e na verdade esse se demonstra um arquétipo recorrente. Como Moisés que é colocado em um cesto no Nilo – rio esse carregado de simbologias e mitos pelos Egípcios – e enviado a um futuro profético destinado a salvar os Hebreus, Kal-El é colocado por seus pais em uma nave e enviado a Terra a partir de seu planeta natal Krypton, com um destino heróico a sua frente. Esse paralelo deve ser aqui estabelecido para demonstrar o poder da simbologia judaica do Superman clássico e seus criadores fizeram ali impressão da ancestralidade de sua cultura.

Conclusão

A versão do Superman de Snyder trilha o começo do caminho da criança sagrada, mas por ser criado por seres humanos isso implica diretamente na maneira como este vê o mundo, ele está longe de ser o ser divino retratado em outras mídias onde ele paira sobre a humanidade como um ser protetor, muito pelo contrário.

Este Clark Kent voa longe para se isolar, pois se sente um pária, deslocado. E o peso do heroísmo cobra duras penas, pois no início de sua jornada, este se vê não aclamado por salvar o mundo dos invasores, mas temido por suas habilidades excepcionais e olhado com desconfiança por todos à sua volta. A promessa da criança sagrada não se cumpre, restando apenas um ser em meio a uma jornada heróica que passa pelo vale mais obscuro.

Fonte: encurtador.com.br/dgsvA

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.

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Batman V Superman: e o ciclo que não se fechou

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No início de 2016 chegou aos cinemas um dos filmes mais esperados da temporada de arrasa quarteirões: Batman v Superman: Dawn of Justice, traduzido como A Origem da Justiça no Brasil, dirigido pelo diretor Zack Snyder com roteiro de David Goyer e Chris Terrio, tendo nos papeis principais os atores Ben Affleck (Batman) e Henry Cavill (Superman) além de outros nomes como Gal Gadot, Amy Adams, Jesse Eisenberg, Diane Lane e Laurence Fishburne. A premissa do longa gira em torno dos desdobramentos e consequências ocorridas após os eventos de Man of Steel (Homem de Aço, de 2013), além de uma nova leitura e abordagem do universo superheroico da DC\Warner para os sétima arte.

A DC\Warner Bros. definiu o tom dos seus filmes do subgênero super-herói a mais de dez anos, com o lançamento de Batman Begins (2005) de Christopher Nolan. Após a consagração de The Dark Knight (O Cavaleiro das Trevas, de 2008) com a ajuda do malsucedido Green Lantern (2011), e, neste meio tempo, houve os resultados não tão expressivos atingidos pelo nostálgico Superman Returns (2006). Todas as investidas do estúdio em seus personagens deste estilo seriam definidas a partir da inclinação sombria, realista (ou, ao menos plausível) e inseridas nos longas do estúdio.

Mesmo com menor participação final do que no filme de 2013, Hans Zimmer (em parceria com Junkie XL) ficou no encargo da trilha sonora, um dos pontos altos do longa, nos entrega faixas como Beautiful Lie, Men Are Still Good e This is My World, fortalecendo ora o tom epopeico ora dramático da obra de 2016. Visualmente, temos a já conhecida acurácia de Zack Snyder em ambientar-nos às diferentes locações das filmagens, mesmo que tais detalhes aprecem somente na versão estendida. A fotografia e figurinos também se colocam com um ponto alto do filme, em comparação com o roteiro, que possui algumas falhas em seu desenvolvimento.

Num outro ponto da realização de Batman v Superman, a construção publicitária do longa já nos oferecia o que estava por vir, sempre frisando o conflito ideológico e psicológico entre os dois maiores heróis da DC Comics. Este embate já figurou em edições de diferentes revisas em quadrinhos, mas nunca tinha sido transplantado para a  sétima arte, justamente por envolver uma demanda simbólica e de investimentos maior do que os estúdios (estima-se que o filme tenha ultrapassado a casa dos 400 milhões de dólares em custos), neste caso a Warner Bros., estariam dispostos a suprir ou apostar.

Importante destacar, também, que a análise aqui apresentada se pautará na versão definitiva do filme, que não chegou aos cinemas em abril de 2016, mas sim em formato de DVD e Blu-Ray no meio daquele ano, adicionando 30 minutos a já extensa cópia original, em suas mais de duas horas de duração. Esta ressalva merece espaço por esta versão completa ser superior e, mais do que isso, suprimir muitos dos problemas encontrados na versão exposta ao grande público.

Esta diferenciação entre as duas versões agora existentes só reforça a ideia de que estava em mãos um material rico e com substrato suficiente para se igualar ou até mesmo superar incursões maiores do gênero como a trilogia Cavaleiro das Trevas (2005-2012) de Christopher Nolan ou nos, já longínquos, Superman I e II (1978 – 1980) do final do século passado, protagonizados por Christopher Reeve, isso nos atendo aos dois maiores ícones da DC Comics e da cultura pop superheroica em geral.

A presença da Mulher Maravilha não colocada em relevo nesta análise, por dois motivos específicos. O primeiro deles de ordem mais pertinente diz respeito a ausência de importância em suas falas e situações no roteiro em relação ao personagem principal deste artigo. Na outra vertente vem a questão mais complexa de que sua inserção na trama não representar um mote de grande impacto na mesma, principalmente levando em consideração o peso próprio que a personagem já possui isoladamente, ganhando até mesmo uma adaptação própria nos cinemas.

Além destas questões, houve um grande debate, e cisão, entre críticos e público em geral a respeito do filme, seus personagens, história, enredo e tonalidade. É importante salientar que Dawn of Justice é, mesmo que não nominalmente, uma continuação direta dos acontecimentos de Man of Steel. Esta ligação entre os filmes será utilizada em alguns momentos neste artigo, cujo foco é o Superman – a falta de menção à Mulher Maravilha provém desta circunstância e, também, pela presença da personagem (apesar de agradável) não acrescentar ou alterar os cursos do filme – e os desdobramentos que este personagem carrega nas mais de três horas de duração da versão definitiva.

A mitologia da nona para a sétima arte

Já faz alguns anos, duas décadas ou três décadas, ao menos, que os estúdios de hollywood passam por uma crise criativa. Recentemente esta situação se tornou ainda mais visível devido a imensa quantidade de reboots (refilmagens), adaptações de livros, contos, expansões de curtas-metragens e falta de roteiros originais em obras fílmicas. Batman v Superman: Dawn of Justice segue uma tendência forte nos cinemas atualmente, constituindo a onda de adaptações cinematográficas advindas das histórias em quadrinhos, as comics books.

O aproveitamento destas estórias pelo cinema é de longa data, e ocorre pelo fato de, muitas vezes, já terem em si um andamento e organização dos acontecimentos da trama que facilitam sua transposição da plataforma escrita para a filmada. (REBLIN, 1992; REYNOLDS, 2012; SILVA, 2010). Se levarmos em consideração que o modelo das graphic novels possuem uma plasticidade imagética superior, em comparação com suas contrapartes tradicionais, fica mais fácil compreender a busca por estas obras como possibilidade de adaptações para o cinema.

No caso de Dawn of Justice esta transposição foi facilitada pela premissa de conflito já seminal à ideação do filme, ou seja, a divergência de ideias entre os super-heróis que dão título à obra. Como dito por Comparato (2000), a existência de um conflito base melhor pavimenta o desenvolvimento de um roteiro ou narrativa: “Construir a story line é determinar o conflito; escrever uma sinopse é descobrir as personagens; estruturar é organizar uma ação dramática; elaborar o primeiro roteiro é chegar aos diálogos e ao tempo dramático; trabalhar o roteiro final é manejar as cenas, isto é, a unidade dramática.” (COMPARATO, 2000, p. 29).

Nesse contexto de importância do escopo narrativo, apesar de apresentar algumas falhas em aspectos de sua montagem e edição, há momentos-chave em Batman v Superman com relação ao seu texto, as palavras, valorizadas por Comparato (2000). E são estas passagens que serão utilizadas no decorrer deste artigo de modo a enriquecer a análise, costurando os argumentos expostos com colocações teóricas específicas. Esta opção de olhar para a obra fílmica seguindo estas diretrizes analíticas tem como objetivo o foco no conflito matriz de sua exposição:

Mas a ideia audiovisual e dramática deve ser definida através de um conflito essencial. A este primeiro conflito, que será a base do trabalho do roteirista, chamaremos conflito-matriz. Embora a ideia seja algo de abstrato, o conflito-matriz deve ser concretizado por meio de palavras. Começa aqui o trabalho de escrever: fazemos um esboço e começamos a imaginar a história, tendo como ponto de partida uma frase a que chamamos story line. Assim, a story line é a condensação do nosso conflito básico cristalizado em palavras. (COMPARATO, 2000, p. 23 – grifo meu).

Portanto, a ideia de uma estrutura matriz, chamada por Comparato de conflito-matriz está presente na amplamente utilizada jornada do herói trabalhada, por exemplo, por Vloger (2006) ou na morfologia do conto maravilho de Propp (1977), dentre outras proposições de apuramento narrativo, na literatura, cinema, teatro, etc. Em suma, temos diferentes etapas, nas quais e pelas quais, o herói irá desenvolver suas habilidades, negar, em alguns momentos, seus encargos e assumir sua condição como tal ao fim do caminho percorrido em sua história.

Figura: O atos (ou etapas) da jornada do herói
Fonte: (VLOGER, 2006, p. 159).

Assim, a organização das narrativas neste padrão de atos descrito por Vloger (2006) é visível em diferentes obras, não apenas no cinema. Em Batman v Superman, especificamente, tanto os limites, como as passagens entre os atos é bem visível, até porque com estas etapas do desenvolvimento da história e, levando em consideração a quantidade de temas e personagens, o caminho a ser seguido pela direção do filme se fortalece, no sentido de definição dos rumos a serem tomados, no desenrolar da obra. Estas funcionalidades presentes nos atos estoriais também são levantados por Propp (1977, 32-33), quando o autor disserta que:

Podemos decir, anticipando, que las funciones son extremadamente poco numerosas, mientras que los personajes son extremadamente· numerosos. Esto explica el doble aspecto del cuento maravilloso: por una parte, su extraordinária diversidad, su abigarrado pintoresquismo, y por otra, su uniformidad no menos extraordinaria, su monotonía. Las funciones de los personajes representan, pues, las partes fundamentales del cuento, y son ellas las que debemos aislar en primer lugar.

Este percurso clássico do heroi, com seus desafios, barreiras e superações, é um dos objetos de análise de Campbell (1997), quando este autor elucida uma visão mais histórica e antropológica do papel do heroísmo nas sociedades humanas. Nesta visão, há toda a carga mítica e mitológica de um ser excepcional em uma comunidade específica, daí a questão da diversidade modular do mito, por haver uma imensurável quantidade de adaptações dos passos a serem seguidos pelas figuras fantásticas destas histórias:

O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 1997, p. 13-14).

Por esta razão é que podemos dizer que estamos diante de grandes ritos, arcabouços mitológicos, criadouros de cânones e arquétipos passíveis de trânsito os diferentes tipos de manifestação simbólica e cultural ao redor do mundo. Em Batman v Superman, há uma tentativa de colocar em tela um exercício de lupa do micro situacional para o macro fenomênico, ou seja, a partir daquelas exposições cênicas, elaborar uma discussão maior alcance. Campbell (1997) também trabalha com esta ideia da mitologia como um reflexo do que a sociedade vê como caminho a ser seguido pelos seus pares, ou então numa amostragem das situações cotidianas e rotineiras das comunidades que cultuam ou reificam estes mitos e ritos ao longo do tempo.

No limite desta interpretação, a respeito do motor narrativo assegurado pelo conflito matriz da história\mito\fábula em questão, temos a dualidade entre o humano e o sobre-humano, o uso da moral individualista, mais figurativa em Batman, com os questionamentos de como não apenas enxergar, como colocar em prática uma moralidade universal e equilibrada para todos os viventes daquela sociedade, dilema vivido pelo Superman desde a sua criação no século passado:

A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta. (CAMPBELL, 1997, p. 9).

Seguindo as colocações de Campbell (1997), Flávio Kothe (1985), também lança um olhar analítico sobre o percurso tanto das narrativas fantásticas como do heroi, tendo como foco aspectos como o heroi– representado pelo Superman – e o anti-herói, aquele que enfrentará os deuses ou colossos para provar o seu valor diante do seu povo, como mostra da capacidade de contrariar o poderio das divindades – aqui a similaridade com Batman é mais clara.

Além da premissa básica do conflito entre Batman e Superman, há o aproveitamento e aumento das temáticas trabalhadas no primeiro filme do universo expandido da DC\Warner, Man of Steel, especialmente no que tange à chegada tanto de um ser de outro planeta como detentor de poderes inimagináveis à Terra. A fala de um dos personagens (ou melhor sai uma participação especial) do filme de 2016, o astrofísico Neil DeGrasse nos traz as reflexões sobre um alienígena com poderes de deus vivendo entre nós:

Neil deGrasse Tyson: We’re talking about a being whose very existence challenges our own sense of priority in the universe. And you go back to Copernicus where he restored the sun in the center of the known universe, displacing Earth, and you get to Darwinian evolution and you find out we’re not special on this earth; we’re just one among other lifeforms. And now we learn that we’re not even special in the entire universe because there is Superman. There he is, an alien among us. We’re not alone. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

E para fortalecer ainda mais os dois primeiros atos do filme, o diretor Zack Snyder faz uso de um recurso importante da história em quadrinhos de 1986 de Frank Miller – com alguns elementos também de sua versão cinematográfica de outro clássico: Watchman de 2009 –, na qual opiniões de especialistas, pessoas comuns e até mesmo de vilões a respeito do Batman são expostas. Em sua adaptação, os roteiristas, nos trazem a perenidade dos questionamentos a respeito da condição super-heróica do Superman na Terra, ou do modo de agir do homem morcego.

O peso destas obras é notado em várias passagens do longa, dando o tom de sua narrativa, desenvolvimento e consequências para os personagens envolvidos na trama. Esta carga das referências, inclusive, irá atrapalhar certos pontos de ligação e fluidez do filme, já que a grandiosidade e complexidade dos elementos envolvidos acarreta uma inevitável supressão na busca por uma forma coesa de contar a história que assistimos. No entanto, nota-se um tom de seriedade, dramaticidade e confronto com o real em um grau muito maior daquele visto em outros filmes do gênero.

Ponto e Contraponto: Batman

Superman e Batman, dificilmente, não serão listados entre os maiores super-heróis de todos os tempos. O último filho de Krypton foi criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, já o Cavaleiro das Trevas veio um ano depois, 1939, pelas mãos de Bill Finger e Bob Kane. Ao longo dos anos os dois personagens foram sendo distanciados em suas ideações, identidades, representações e interpretações, ao ponto de vivenciarem inúmeros conflitos entre eles, mesmo sendo dois dos maiores líderes das aventuras da Liga da Justiça, união de todos os super-heróis da DC Comics.

Parte desta diferenciação entre os personagens de Dawn of Justice se incrusta numa grande trilha de popularização das histórias em quadrinhos ao longo das décadas. De um lado há um dos mais célebres fenômenos de popularidade e identificação imediata com um arquétipo tão fácil de encontrar em nosso mundo real como de representação em diferentes realidades culturais: Batman.

Do outro, apesar da premissa estar rechegada do seu tom ficcional originário da escalada tecnológica de seu tempo – e também com um subtexto menos denso dos imigrante judeus na América –, temos o primeiro e maior super-herói, carregando em si ideais de época, cargas simbólicas nacionais e todo um fundamento de representatividade ideológica de difícil transposição para nossos tempos: Superman.

Com base nestes extremos da composição dos personagens centrais do filme, neste trecho do presente artigo serão utilizadas, falas que remetem ou são diretamente extraídas do personagem Bruce Wayne\Batman em Dawn of Justice apesar de, teoricamente, o filme tratar dos acontecimentos centrípetos ao homem de aço, e não o contrário, como ocorreu na versão exibida nos cinemas, amplamente questionada por sua visão equalizadora da escuridão psicológica muito mais canônica ao morcego que sua contraparte alienígena do filme.

O baixio idealístico dos encapuzados chegou em seu extremo na década de 1980, em obras seminais produzidas por nomes como Frank Miller e Alan Moore. Com quase três décadas de atraso, esta percepção chega aos cinemas na junção de duas principais obras desta fase da nona arte: O Cavaleiro das Trevas de 1986 e A Morte do Superman de 1993.

Nesta mesma toada argumentativa, em seu ensaio sobre a diferença entre o heroísmo e super-heroismo, intitulado De Odisseu a Batman, Felipe Morcelli do portal Terra Zero, traz a reflexão tanto da concepção como dos atos entre o homem de aço e cruzador encapuzado. No primeiro caso, temos a situação clássica do filho de dois mundos que, para chegar ao panteão do qual fez parte um dia, precisa passar por desafios e provações e, também a aceitação do povo que faz parte.

Já no caso do homem morcego a situação é diferente, pelo fato de ter nascido e crescido num mundo já deteriorado, mesmo tendo saído de uma família abastada, numa similaridade a grandes heróis gregos como Odisseu, Dédalo ou Ajax, precisando provar-se em meio à sua realidade posta. Na mesma direção, sobre a questão do heroísmo clássico, Kothe (1985) expõe algumas considerações sobre o tema:

O clássico herói trágico nunca é um membro do povo ou da camada média. Dentro da filosofia de que, quanto maior a altura, maior também o tombo, ele geralmente está no topo do poder. Parece pertencer por direito natural ao plano elevado, mas aos poucos vai-se descobrindo o quanto ele está chafurdando no charco. Ele descobre a mão-de-ferro do poder, do destino, da história: descobre que o seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o que fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora aparente ser o mais forte, ou ainda que tenha acreditado ser o mais forte. E é lá embaixo que ele redescobre a sua grandeza, não significando isto, porém, que ele necessariamente deixe de morrer ou que venha a recuperar o poder perdido. Ele como que perde o poder terreno para conquistar um poder espiritual; ele como que se despe do agora, para, lá debaixo, resplandecer elevada sabedoria, transcendendo todos os seus juízes e algozes. A custa do próprio sangue, torna-se mensageiro do passado para o futuro, como as almas dos mortos eram evocadas, convocadas a comparecerem ao presente. O sangue trágico do presente conclama o passado para superar pela sabedoria a tragédia. (KOTHE, 1985, p. 26).

Em Batman v Superman a visão do Batman gira em torno da necessidade de se ter em mãos um dissuasivo frente a um ser de grande poder, caso assim as coisas caminhem, algo parecido com o personagem Ozymandias em Watchman, de Alan Moore – naquele caso, o papel de superman é emulado pelo Dr. Manhatham. Essa condição de poderio extremo do Superman, é um dos pontos levantados por Umberto Eco, em seu ensaio Apocalípticos e Integrados, endossando ainda mais a realidade da postura de Bruce Wayne, frente ao super ser que agora caminha entre nós:

Superman es prácticamente omnipotente. Su capacidad operativa se ‘extiende a escala cósmica* Así pues, un ser dotado con tal capacidad, y dedicado al bien de la humanidad (planteándonos el problema con el máximo candor, pero también con la máxima responsabilidad, aceptándolo todo como verosímil, tendría ante sí un inmenso campo de acción. De un hombre que puede producir trabajo y riqueza en dimensiones astronómicas y en unos segundos, se podría esperar la más asombrosa alteración en el orden político, económico, tecnológico, del mundo. Desde la solución del problema del hambre, hasta la roturación de todas las zonas actualmente inhabitables del planeta o la destrucción de procedimientos inhumanos (leamos Superman conel “espíritu de Dallas”: ¿por qué no va a liberar a seiscientos millones de chinos del yugo de Mao?), Superman podría ejercer el bien a nivel cósmico, galáctico, y proporcionarnos una definición de sí mismo que, a través de la amplificación fantástica, aclarase al próprio tiempo su exacta línea ética. En vez de esto, Superman desarrolla su actividad a nivel de la pequeña comunidad en que vive (Smallville en su juventud, Metrópolis ya adulto) y —como sucedía con el lugareño medieval, que podía llegar a conocer Tierra Santa, pero no la ciudad, encerrada en sí misma y separada de todo lo demás, que tenía a cincuenta kilómetros de su residencia— si bien emprende con la mayor naturalidad viajes a otras galaxias, ignora, no digamos ya la dimensión “mundo”, sino la dimensión “Estados Unidos” (ECO, 1984, p. 292).

A obscuridade de um Bruce Wayne cansado da luta incessante, e aparentemente sem resultados longevos, em sua cidade natal aparece em fortes falas na interpretação de Ben Affleck: “There was a time above… a time before… there were perfect things… diamond absolutes. But things fall… things on earth. And what falls… is fallen. In the dream, it took me to the light. A beautiful lie.” Esta mentira lamentada pelo homem morcego ocorre também no tempo despendido em Gotham City: “Twenty years in Gotham. How many good guys are left? How many stayed that way? He has the power to wipe out the entire human race. I have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Já sobre o Superman, Wayne possui opiniões claras de contrariedade à sua presença e existência entre nós, principalmente após as milhares de mortes causadas na batalha de Man of Steel em Metrópoles: “ That son of a bitch brought the war to us two years ago. Jesus, Alfred, count the dead… thousands of people. What’s next? Millions?” a questão do uso e possibilidade de corrupção dos poderes pelo homem de aço recebem também ressalvas: “He has the power to wipe out the entire human race, and if we believe there’s even a one percent chance that he is our enemy we have to take it as an absolute certainty… and we have to destroy him.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)

Nota-se uma alegoria do Superman como o poderio bélico dos Estados Unidos perante o mundo, mesmo que suas intenções iniciais sejam as melhores possíveis. Este senso alarmismo – alçado à pânico nacional nos EUA após os episódios de setembro de 2001 – será uma das matrizes do conflito entre os super-heróis: “ You’re not brave… men are brave. You say that you want to help people, but you can’t feel their pain… their mortality… it’s time you learn what it means to be a man.”

Outra metáfora explorada tanto na publicidade como também no filme é a diferenciação entre Gotham City e Metrópoles, cidades nas quais atuam Batman e Superman, respectivamente, reforçando as dualidades entre o simbolismo do anjo e demônio, luz e escuridão, esperança e pessimismo transcendido de ambos para as ruas destes centros urbanos:

Gotham City […] concentra todos os aspectos negativos que se podem encontrar num aglomerado urbano: decadência, sujeira, criminalidade, corrupção policial e muitos antros (muquifos e esconderijos para os criminosos da pior espécie). Metrópolis, ao contrário, destaca-se pela imponência: ela lembra um cartão postal, ou uma foto retocada na qual se visualiza apenas a imponência dos arranha-céus que parecem obedecer a uma disposição ordenada. Em contraste com obscuridade e sujeira de Gotham, Metrópolis é lima e ordenada, todos os serviços públicos parecem funicionar, e se ela necessita de um guardião, é para conter ameaças de origem alienígena ou catástrofes naturais, já que os criminosos que desafiam o Superman já estão, de saída, derrotados. Para muitos, Gotham City é Nova Iorque à noite, em contraposição à reluzente Metrópolis que seria a versão diurna da cidade. (RAMA, 2006, p. 58)

Outros elementos retratados pela autora, no que diz respeito à dualidade Gotham\Metrópolis, estão nas cores, tonalidades, representações gráficas – como no caso da presença de pombos e pássaros em praças e parques da cidade do Superman, em contraposição aos corvos e estátuas gárgulas nos prédios neogóticos de Gotham City.

O preto e o azul, anjo e demônio, dia e noite, a esperança e o pessimismo podem ser encontradas na dualidade dos herois e suas cidades. Estas máximas conotam o que será visto ao longo de Batman v Superman. Aqui reside um dos pontos cruciais de exploração do longa, quando temos diante da tela representações das cidades fictícias dos heróis: Gotham e Metrópoles. Como dito por Rama (2006) é notável como estes dois centros urbanos refletem as ideias de Clark Kent e Bruce Wayne, ponto forte de um dos diálogos do filme:

Clark Kent: What’s your position on the bat vigilante in Gotham?Bruce Wayne: Daily Planet, wait, do I own this one, or is that the other guy?
Clark Kent: Civil Liberties are being trampled on in your city, good people living in fear.
Bruce Wayne: Don’t believe everything you hear, son.
Clark Kent: I’ve seen it, Mr Wayne, he thinks he’s above the law.
Bruce Wayne: The Daily Planet criticizing those who think they’re above the law is a little hypocritical, wouldn’t you say? Considering every time your hero saves a cat out of a tree, you write a buff piece editorial about an alien who if he wanted to can burn the place down, and there wouldn’t be a damn thing we can about it.
Clark Kent: Most of the world doesn’t share your opinion, Mr Wayne.
Bruce Wayne: Maybe it’s the Gotham City in me, we just have a bad history with freaks dressed like clowns. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n – grifo meu)

As falas destacadas neste diálogo expõem de forma direta os pontos de vista diferenciados entre os personagens: de um lado os ideias, ou a crença neles, das liberdades civis e do outro o ceticismo extremado de um habitante urbano desacreditado dos porvires do meio em que vive. Este é sem dúvida um dos pontos mais ricos entre os dois maiores heróis dos quadrinhos, principalmente por representarem direta e objetivamente a vida nas grandes cidades, um sinal de nossos tempos. Quando voltamos nosso olhar para Dawn of Justice há uma distância entre o que foi mostrado na material promocional, principalmente nas imagens de divulgação das cidades e suas representações no filme.

Explica-se, há uma possiblidade riquíssima de antagonizar Gotham e Metrópoles pelos aspectos urbanos que as unem em suas diferenças, assim como na forma como tanto Clark como Bruce enxergam suas vidas nestes centros urbanos. Os Waynes representam as classes altas presente em centros urbanos decadentes pela criminalidade, desigualdade social e falta de horizonte de desenvolvimento para suas populações. Já os Kents, na figura de seu filho adotivo, veem na grande cidade àquela imagem eidética do mundo de possiblidades, o lugar ao qual o futuro espera quem lutar por ele, no velho arquétipo do imigrante do interior para o capital, da zona rural para a urbanidade.

Na versão estendida do filme é possível observar com maior clareza esta diferenciação dos heróis. Enquanto Bruce Wayne\Batman aparece em tela normalmente em ambientes noturnos e planos mais fechados, Clark Kent\Superman surge em planos mais abertos, faltando à direção de fotografia dar à estas cenas uma luminosidade mais condizente com a linguagem simbólica mais próxima do personagem, situação vista com maior vigor nos trailers, pôsteres e demais materiais de divulgação do filme, ótima ideia não aproveitadas no encontro destes titãs dos quadrinhos no cinema.

O (falso) deus?

Neste ponto, entramos no aspecto mais controverso e inquietante de Batman v Superman, ou seja, a representação do homem de aço no longa. A crueza e visceralidade desta adaptação de 2016 dificilmente será vista novamente, até mesmo pelas críticas abusivas ao filme, muitas vezes embasadas na aversão dos analistas do diretor da obra, mais do que sua criação em si.

Se uma tonalidade e panorama foram estabelecidos brilhantemente – ao menos até o porn destruction do terceiro ato, comum em filmes de heróis atualmente – em Man of Steel, ao final o mesmo soava incompleto pelas indecisões finais de Snyder. Três anos depois o diretor desperdiça uma oportunidade inigualável de superar o ciclo aberto em 2013. Esta perda de conclusão explica-se em um círculo narrativo clássico, mas eficaz: a tão estudada e desmembrada jornada do herói. Todos os passos de Clark Kent\Kal-El foram muito bem desenvolvidos no filme anterior, e cabia à esta continuação nos mostrar a maturação do ícone em que se tornou, mesmo que sem unanimidade.

Para facilitar o percurso mítico do Superman dos quadrinhos para o imaginário popular, como trabalhado por Reblin (2012) e Reynolds (1992), podemos traçar um breve retrospecto das “eras” do personagem ao longo do século XX e XXI, com auxílio de Silva (2010) nesta tarefa de síntese temporal. Começando então pelos anos dourados dos super-heróis temos o nascedouro de uma reificação titânica do kriptoniano em suas primeiras estórias, até mesmo com suas características humanais mais reduzidas:

Era de Ouro: O que importa não é como essa força se desenvolveu, mas a sua presença divinal na sociedade de agora. A própria faceta humana, a personalidade de Clark Kent, é mais apagada, pois sua utilidade na narrativa de aproximar a personagem divinal da humanidade tem menor importância. O Superman é quase um titã mitológico, uma força da natureza, que não reconhece as leis humanas nem o status quo social, tampouco se preocupa com gentilezas ou amabilidades. Ele é comprometido com a sua definição pessoal de justiça e não se prende a barreiras legais ou sociais. (SILVA, p. 27 – grifo meu).

Na chamada “Era de Prata”, superando parte do trauma das grandes guerras mundiais, houve um grande aumentos dos superpoderes super-heróis, aproximando-os ainda mais das referências gregas. O ponto de inflexão deste período foi a influência da obra Seduction of the Inocent [1]publicada em 1954 por Max Collins e Fredric Wertham, condenando a “má-influência” dos personagens dos quadrinhos nos jovens, em resposta vários códigos de edição e elaboração foram efetuados pelas editoras, em resposta a este movimento criado em torno de seus personagens. Superman sintetizou bem esta época, na qual ganhou boa parte de seus poderes mais conhecidos como o voo e aumentando para si o arquétipo altruísta em sua composição de personalidade:

Ao Superman ainda cabe a criação de outro conceito importante nos comic books: o arquétipo do super-herói paragon (original). Essa atribuição é dada por dois motivos principais: primeiro, pois a personagem é o super-herói original, o primeiro, e, em segundo plano, porque Superman é um personagem único, sendo ele o último e o melhor dos kryptonianos. O paragon como conceito, além de se referir ao melhor exemplar de um povo, é, nos comic books, representado por um conjunto de poderes específicos como: super-força, invulnerabilidade e vôo, cuja origem é curiosamente atribuída aos estúdios de Max Fleischer. O poder do vôo foi um acréscimo necessário para os animadores, pois a concretização das cenas de movimentação do herói por saltos demandaria a produção de várias cenas de corrida de impulso. A solução mais simples foi fazer com que a personagem voasse. (SILVA, 2010, p. 45).

A Era de Bronze foi marcada pela revisão de vários parâmetros e conceitos dos super-heróis. Muitos heróis mais jovens e urbanos foram criados neste período, de modo a buscar uma aproximação com a sociedade em geral, a editora Marvel nos trouxe exemplos como Demolidor, Homem-Aranha e os X-Men, criados ainda na alvorada dos anos 60.

Na outra vertente, do Superman, há o aumento do simbolismo cristão entorno do homem de aço, efeito aumentado pelo sucesso dos filmes protagonizados por Christopher Reeve: “O Pai e o Filho são pares do mesmo ciclo e, assim como Deus envia seu único filho, que é parte de seu ser, para purgar os pecados da humanidade, Superman chega das estrelas em sua manjedoura celeste, enviado por Jor-El, para se tornar futuramente o salvador diário de Metrópolis e do mundo.” (SILVA, 2010, p. 53).

Esta sobrecarga sobre o último filho de Krypton acabará na Era Moderna dos quadrinhos, ou também chamada de fase de Ferro, com a sua morte em 1993. Durante mais de cinco décadas as camadas simbólicas do homem de aço abraçaram elementos como o sonho americano juntamente com belicismo imperialista, emulações explícitas com deuses e semideuses gregos e Jesus Cristo, além, é claro, da adoção da jornada do herói como padrão para os demais encapuzados criados a partir de sua concepção ainda na década de 30.

A morte do Superman representou a queda do último dos grande heróis contemporâneos, já com inscritos no imaginário coletivo, e ainda hoje buscam uma nova abordagem ao personagem para nosso cético século XXI. Todos estes elementos, juntos, contribuem para este afastamento dos autores em oferece novas e construtivas histórias sobre o primeiro super-herói. A dificuldade em se trabalhar com o Superman vem na esteira destes óbices, já que tratar de uma entidade praticamente divina envolta nas mais idealizadas visões morais e ideológicas de nossa sociedade, é algo difícil de se propor.

Este paradoxo criativo ganha ainda maior peso, pressão e rico quando há adaptações do personagem em mídias como cinema e televisão, sempre havendo um temor pela frustração nestas representações: “Se e algo marca tudo que ganha o “S” é a “frustração”, […] A ideia é a seguinte, a marca “Superman” é tão grande, tão forte, tão vendável que qualquer coisa que contenha seu nome produz de imediato uma expectativa imensa em qualquer um.” o editor de um dos mais respeitados portais de quadrinhos brasileiros completa ainda: “Não necessariamente uma expectativa boa ou ruim, mas sempre uma grande expectativa.” (PENHA, 2016, p. s\n)

Mas, a pergunta principal de Batman v Superman: Dawn of Justice reside na questão sobre a vinda e existência de um alienígena super-poderoso entre nós e, em maior profundidade, quais seriam nossas reações diante deste cenário fictício. Nos últimos anos apenas dois outros filmes trouxeram uma reflexão com este nível de complexidade: Corpo Fechado de e Poder Sem Limites lançados em 2000 e 2012, respectivamente, filmes nos quais a máxima das consequências perante os atos de indivíduos com habildiades especiais é levado a desdobramentos máximos diante de seus mundos.

A visão extremada e pessimista com relação ao kriptoniano ganha força nas falas de Lex Luthor Jr. (numa interpretação exagerada e, por vezes, sem direcionamento adequado de Eisenberg). Fazendo uso de referências no paradoxo de Epicuro o personagem nos apresenta suas visões: “See, what we call God depends upon our tribe, Clark Joe, ‘cause God is tribal; God takes sides! No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from daddy’s fist and abominations.” E o bilionário reforça este questionamento sobre a divindidade do Superman quando afirma que: “I figured out way back if God is all-powerful, He cannot be all good. And if He is all good, then He cannot be all-powerful. And neither can you be.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Esta questão do aspecto divino dos super-heróis é definido por Reblin (2012) quando o autor diz que a marca teológica é indelével e inescapável ao Superman, independente da versão que se tenha do personagem quase octogenário. E, novamente, a inerência do referencial divino é trazido por Lex Luthor no filme, seguindo estes parâmetros teóricos:

The problem of you on top of everything else. You above all. Ah. ‘Cause that’s what God is. Horus. Apollo. Jehovah. Kal-El. Clark Joseph Kent. See. What we call God depends upon our tribe, Clark Jo. Because God is tribal. God take sides. No man in the sky intervened when I was a boy to deliver me from Daddy’s fist and abominations. Mm mm. I’ve figured it out way back, if God is all powerful, he cannot be all good. And if he’s all good then he cannot be all powerful. And neither can you be. They need to see the fraud you are. With their eyes. The blood on your hands. (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n)

No filme há uma contraposição clara entre estes extremos de visão sobre seres super-poderosos. O próprio Superman questiona sua posição diante da humanidade, lembrando da projeção feita por seu pai adotivo Jonathan Kent: “All this time I’ve been living my life the way my father saw it. Righting wrongs for a ghost, thinking I’m here to do good. Superman was never real. Just the dream of a farmer from Kansas. Superman: No one stays good in this world.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Questionar-se sobre a presença ou auto-representação de falso heroísmo é um dos pontos levantados por Propp (1977) como passíveis de exploração nas etapas da jornada do herói, especialmente nos dias de hoje, em um campo tão mais cheio de camadas e possibilidades de interpretações a respeito de um fato ou fenômeno, como a chegada de um extraterrestre com super poderes ao nosso mundo:

Una cuestión que concierne a los esquemas típicos… los esquemas transmitidos de generación en generación como fórmulas ya dispuestas, capaces de animarse con un nuevo sentido, de hacer nacer nuevas formaciones? ‘La literatura narrativa contemporánea, con la complejidad de sus argumentos y su representación fotográfica de la realidad, parece descartar la posibilidad de esta cuestión; pero cuando se encuentre ante los ojos de las futuras generaciones, en una perspectiva tan lejana como para nosotros lo está la Edad Media, cuando la sínteses del tiempo, ese gran simplificador, haya pasado sobre la· complejidad de los fenómenos y los haya reducido al tamaño de um punto que se pierde en las profundidades, sus líneas se fundirán con aquellas que ahora descubriremos nosotros, cuando nos volvemos para contemplar esa lejana creación poética -y el esquematismo y la repetición se instalarán por todo el recarrido” (PROPP, 1977, p. 134).

Essa nova complexidade do heroísmo pode ser observado, no caso do Superman, tanto em Man of Steel como em Batman v Superman. No primeiro caso, as falas de Jonathan Kent, a respeito de como a sociedade reagiria ao saber da existência de um ser com poderes de um deus, entre nós. Já no filme de 2016, esse papel é deixado para a mãe adotiva de Clark, Martha – além de Bruce Wayne e Lex Luthor, em tons mais pessimistas, deixando ao filho o arbítrio do que ele queira ou não ser para o povo da Terra.

Tentando dar um suporte ao seu filho nesta crise existencial e de identidade, Martha Kent sentencia seu posicionamento, muito próximo ao do que foi visto no primeiro filme do herói neste universo: “People hate what they don’t understand. Be their hero, Clark, be their angel, be their monument, be anything they need you to be… or be none of it! You don’t owe this world a thing, you never did.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

A colocação da mãe do super-herói não contesta o julgamento público, mas adverte seu filho perante a nocividade de tais juízos sobre a relação que o mesmo terá com a humanidade, mesmo que haja um porta-voz nomeando-o como um demônio entre nós, e não um deus enviado dos elísios, como entoado por Luthor em outro momento do longa: “We know better now, don’t we? Devils don’t come from hell beneath us. They come from the sky.” (BATMANVSUPERMAN, 2016, p. s\n).

Esta crítica exacerbada vinda das falas de Luthor é refletida em momentos chave – poucos, infelizmente na versão dos cinemas do filme – em que vemos um Superman com profundos problemas em relação à sua identidade, em uma mistura do falso herói proposto por Propp (1977), a relação entre sua condição sublime ou monstruosa como trabalhada por Hugo (1990)[2] ou, até mesmo, enxengando em si mesmo um aspecto muito mais grotesco que divino, como suporia seu pai Jor-El ao enviar-lhe à Terra. Não há, por parte de Clark Kent uma indecisão à lá Hamlet entre o ser ou não ser o herói, mas sim, o porque de não haver a possibilidade de excluir este juízo, pois não há lugar para ele neste mundo, e sua terra natal sequer existe.

A inserção destes temas de maior camada sociológica e até mesmo filosófica são marcas das HQs nas quais o filme se embasa, principalmente em Cavaleiro das Trevas, A Morte do Superman e o Reino do Amanhã (esta última marcada por seu luto e reclusão perante os seres humanos), obras nas quais o Superman possuiu seu maiores abalos psicológicos até hoje, em conjunto com as otimistas histórias presentes em Superman: As Quatro Estações (de 1998) e Superman: Grandes Astros (de 2006).

Conclui-se que, por não ter o seu caminho de retorno exposto adequadamente em Man of Steel, a provação máxima existente no terceiro arto de Batman v Superman se mostra muito mais em potencial do que em execução profícua e eficiente, para a trama em geral, e ao Superman especificamente, por não haver uma construção empática suficiente para provocar o efeito emocional desejado, em sua morte, como ocorrido na banda desenhada em 1993:

Esse sacrifício é reforçado como o motivo da perda no próprio leitor, pela perda do herói da narrativa que fecha um ciclo narracional e estabelece um ponto final para a história. Esse final ultrapassa as características normais da narrativa quando pensada fora da diegese. Porque a morte do Superman se torna uma edição multimilionária, dado o caráter mítico que a personagem possui. A morte do mito industrial atraiu milhares de leitores e vendeu muitas cópias para aqueles que não acompanhavam a narrativa da personagem, relacionando a morte da personagem na narrativa como o fim da história desta e, dessa forma, o fim do ícone que ela representa. (SILVA, 2010, p. 64).

Na jornada do heroi de Vloger (2006) este passo final é representado pelo sacrifício, retorno e catarse do protagonista, trazendo consigo o amadurecimento, aceitação, ao menos da maioria, e um novo estágio de sua condição para com seus iguais. A opção de Batman v Superman: Dawn of Justice se dá pelo círculo original da caminhada, principalmente na referência ao salvador cristão, a partir do qual o enviado dos céus retornará em sua glória após o sacrifício pelos humanos:

 A Provação nos mitos significa a morte do ego. Agora o herói se torna, plenamente, uma parte do Cosmos, morrendo para a velha visão limitada das coisas e renascendo para uma nova consciência de conexões. Os antigos limites do “Eu” foram ultrapassados ou aniquilados. De certa maneira, o herói torna-se um deus, possuidor da capacidade divina de pairar acima dos limites normais da morte, e é alguém capaz de ter aquela visão mais ampla que revela como todas as coisas estão ligadas. Os gregos chamam esse momento de apoteose — um degrau acima do entusiasmo, quando meramente se tem o deus dentro de si. No estado de apoteose, somos o deus. Ter experimentado o gosto da morte permite que nos sentemos na cadeira de  Deus por algum tempo. O herói que enfrenta a Provação mudou-se do ego para o self, mudou-se para sua parte mais semelhante ao deus. Pode haver também um deslocamento do self para o grupo, na medida em que o herói aceitar maior responsabilidade, em vez de ficar apenas cuidando de si. Um herói arrisca sua vida individual por amor à vida coletiva maior e conquista o direito de ser chamado Herói. (VLOGER, 2006, p. 174).

 Este é o estágio final e derradeiro, necessário para a completude do ciclo do herói em sua jornada: “Os heróis precisam passar por uma purgação final, uma purificação, antes de ingressar de volta no Mundo Comum. Mais uma vez, devem mudar. O truque do escritor, nessa ocasião, deve ser explicitar a mudança em seus personagens, no comportamento e na aparência, e não apenas falar sobre ela.” (VLOGER, 2006, p. 195).

Este é ponto de maior destaque para Umberto Eco (1984) em relação ao Superman, que é a melhor maneira, e muitas vezes a mais complexa, de trazê-lo para nossa era, com toda suas nuanças morais, políticas e culturais, já que a égide social na qual o personagem nasceu, diluiu-se há muitos anos, transformando esta transmutação ainda mais difícil para os nossos dias:

Es curioso observar cómo, entregándose al bien, Superman dedica enormes energías a organizar espectáculos benéficos, donde se recaudan fondos destinados a huérfanos e indigentes. El paradójico despliegue de medios (ta misma energía podría ser empleada en producir directamente riqueza o en modificar radicalmente situaciones más vastas), no deja de asombrar al lector, que ve a Superman perennemente dedicado al montaje de espectáculos de tipo parroquial. Si el mal asume el único aspecto de atentado a la propiedad privada, el bien se configura únicamente como caridad (25). Esta simple equivalencia bastaría para caracterizar el mundo moral de Superman. Pero, en realidad, nos damos cuenta de que Superman se ve obligado a mantener sus operaciones dentro del ámbito de las mínimas e infinitesimales modificaciones de su actuación, por los mismos motivos mencionados a propósito de la estaticidad de su trama: cualquier modificación general empujaría al mundo, y al propio Superman, hacia la consumación. Por otra parte, sería inexacto afirmar que la juiciosa y dosificada virtud de Superman depende, únicamente, de la estructura de la trama, y con ello de la exigencia de no hacer derivar de ella excesivos e irrecuperables desarrollos. Lo contrario es también cierto: que la metafísica inmóvilista contenida en esta concepción de la trama es la directa, y no deseada, consecuencia de un mecanismo estructural complejo, el cual se nos aparece como el único idóneo para comunicar, a través de una temática individualizada, una determinada enseñanza. La trama debe ser estática y eludir cualquier clase de desarrollo, porque Superman debe hacer consistir la virtud en varios actos parciales, nunca en una toma de conciencia total. Y la virtud, por su parte, debe de estar caracterizada por el cumplimiento de actos únicamente parciales, para que la trama resulte estática. Una vez más, el relato depende, no de la voluntad de los autores, sino de su posibilidad de adaptarse a un concepto del “orden” que insinúa el modelo cultural en que viven, y del cual fabrican, a escala reducida, maquetas “análogas”, con funciones de representación. (ECO, 1984, p. 294-295)

Esta dificuldade mencionada por Eco é suscitada em dado momento por Perry White em Batman v Superman, questionando os posionamentos de Kent, sobre a figura do justiceiro da Gotham City. A questão posta é justamente em que tempo e lugar não apenas o Superman, mas também o Batman, conseguirão se adaptar aos novos tempos, os conflitos desse movimento se tornam tanto inevitáveis quanto maiores, a medida que o caminho dos dois personagens começam a se cruzar no filme de 2016 e em quaisquer obras que venham a trabalhar com esta temática do embate de ideias e posturas que fundam seus pensamentos e ações.

A imagem ultrarrealista de Alex Ross parece colocar o próprio personagem no dilema de sua criação e falta de ajuste temporal ao nosso mundo contemporâneo. É difícil trazer um personagem criado a quase um século para nosso tempos sem que o mesmo não pareça anacrônico ou deslocado da realidade. Outros exemplos deste cenário são vistos em outros ícones do início da cruzada super-heróica como Zorro, Conan, Tarzan, Fantasma, Spirit, e John Carter, todos com sofríveis adaptações cinematográficas.

No caso do Superman o que surpreende é o completo subaproveitamento do personagem, mesmo como aporte crítico de traços sociais em que vivemos. Há poucas, mas ótimas incursões de arcos em que o personagem se sai bem, ironicamente quando seus poderes ficam em segundo plano, dando lugar aos seus dramas existências, psicológicos e questionamentos de seu lugar em nosso mundo, ou não.

A fala do homem de aço no clássico Reino do Amanhã aparece, ao mesmo tempo, como um apelo e pedido ao povo de toda a Terra, pois já que não o deixaram descansar em paz após sua morte – artifício utilizado para salvar o próprio mercado de histórias em quadrinhos, diga-se de passagem – que ao menos reconheçam sua relevância numa possível união de contrários entre o que se quer como herói e o personagem tem a oferecer àqueles que o criaram:

Quero esquecer os erros do passado. Quero que pensemos no amanhã… juntos. Os problemas ainda existem. Nós não vamos resolvê-los pra vocês… vamos resolvê-los com vocês. Não governando acima da humanidade… mas vivendo entre ela. Não iremos mais impor nosso poder… vamos conquistar sua confiança usando a sabedoria que um homem nos deixou. Eu lhe pedi que escolhesse entre os humanos e os super-humanos, mas ele sabia que essa era uma divisão falsa, e fez a única escolha que realmente importa, a vida. Para que o seu mundo e o nosso pudessem ser um só novamente. (WAID; ROSS, 2010, p. 59).

E, com essa fala do próprio personagem, reside o ponto de maior debate, e críticas, a este filme de Zack Snyder – mesmo com a coragem narrativa, política e estética apresentada – já que, novamente, o ciclo do Superman não é fechado, algo semelhante ao ocorrido em seu filme de origem de 2013, do mesmo diretor e, ao que tudo indica, dificilmente será finalizado adequadamente neste universo cinematográfico vigente, já que uma continuação de Man of Steel não parece estar no horizonte próximo de prioridades dos estúdios Warner Bros.

O peso da primogenia e alcance do ícone criado por Siegel e Shuster é a sua maior riqueza e fardo, afinal de contas caso assim não fosse o mesmo não teria resistido por tanto tempo no pico do panteão super-heróico. Esta ressalva sobre a importância deste signo inegável da cultura pop é importante por sua marca na jornada do herói, mesmo quando não aceita, e não uma subversão de sua existência numa jornada do vilão, caminho trilhado até pelo universo cinematográfico da DC comics.

O ídolo crepuscular

Figura: cenas de Batman v Superman: Dawn of Justice

Há quase 80 anos um mito moderno foi criado, uma síntese simbólica, social e ideológica de uma era que hoje se mostra tão distante quanto apartada demais de nosso mundo contemporâneo. Não chegamos, ainda, aos cenários pós-apocalípticos entoados por livros e filmes das últimas décadas, mas é evidente que um portento moral e cívico, fundamentos basais da criação do Superman, estremeceriam ou simplesmente ruiriam diante de nossos extremos céticos, alienistas ou niilistas.

Estamos em um cenário muito mais complexo e cheio de camadas interpretativas e representativas do que foi visualizado por Wertham em seu A sedução dos inocentes de 1954, não sendo mais possível utilizarmos visões unilaterais ou social e culturalmente apartadas a respeito da nona arte e seus derivados, como é o caso dos filmes inspirados nestas obras.

Quando Diego Penha elucida sua rica visão do ciclo sisífico inerente às adaptações de Kal-El podemos compreender o seu debate proposto, temos referências a mitos greco-ocidentais como Prometeu, Atlas e Hérculos, traduzidos nos feitos fantásticos do homem de aço. O peso carregado pelo personagem ficou maior à medida que suas cores escureciam, seus incessantes reboots ocorriam ou sua atemporalidade incomodava àqueles cuja a invenção de um nêmesis qualquer (como ocorrido em 1993) resolvesse a incompreensão de sua existência em nossa era apenas torturando-o e matando-o.

Infelizmente, esta última alternativa foi utilizada em Batman v Superman: Dawn of Justice de diferentes maneiras. Mesmo que haja o conflito, incompreensão ou não-aceitação da existência de um alienígena superpoderoso entre nós, é preciso que sejam respeitadas suas características canônicas, neste caso, o otimismo, esperança e brilho inerentes a concepção do ícone que se tornou o alter ego de Clark Kent. No fundo temos um, juntando as duas peças fílmicas de 2013 e 2016, o ciclo que não se fecha, prometendo um ápice dramático jamais alcançado, em uma escalada cada vez maior de espessura entre os protagonistas envolvidos, alcance da narrativa e peso dos símbolos que carrega nos heróis que entremeiam seu desenvolvimento.

No entanto, como dito na abertura desta conclusão, mesmo não intencionalmente, o Superman se tornou uma síntese de nossa era, e assim o será até que, o modo de produção estabelecido se mantenha como tal, que seus contrapontos super-heroicos persistam ou simplesmente corajosas e inesperadas estórias a seu respeito continuem sendo contadas, apesar de tudo, tais como Superman Grandes Astros, Identidade Secreta, ou o mais recente e elogiado Alienígena Americano. A força de um mito persiste mesmo quando a razão de sua existência resida, ainda, na negação de sua concepção ou encaixe nos parâmetros espaço-temporal que o circundam, assim continuará sendo com a história de Kal-El\Superman.

Referências

BATMAN V SUPERMAN: DAWN OF JUSTICE. (Ultimate Edtion) Zack Snyder (Direção), David Goyer, Chris Terrio (Roteiro) Warner Bros. 181 min. 2016.

CAMPBELL. Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

DINI, Paul; ROSS, Alex. Superman: paz na Terra. São Paulo: ed. Abril, 1999.

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Trad. Andrés Boglar. Editorial Lumen, Madrid, 1984.

HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Trad. Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1990.

JURGENS, Dan. A Morte do Superman. (Edição Definitiva). São Paulo: Panini, 2016.

KOTHE, Flávio. O Herói. São Paulo: Ática, 1985.

MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra; SILVA, Luíza Helena Oliveira; BATISTA, Dimas José. Do herói ficcional ao herói político. In: Ciências & Cognição; Vol 12.  Rio de Janeiro, 2007. p. 18-33.

MAN OF STEEL. Direção: Zack Snyder. David S. Goyer , Jonathan Nolan (Roteiro),Warner Bros., 143 min. 2013.

MILLER, Frank. et al. Batman: O Cavaleiro das Trevas. São Paulo: Panini, 2015.

MORCELLI, Felipe. De Odisseu a Batman. In: <http://www.terrazero.com.br/2013/06/de-odisseu-ate-batman/>Acesso: 28\05\2017.

PENHA, Diego. O Frustrante Superman Crítica In: < https://pipocaenanquim.com.br/cinema/ofrustrantesupermancritica/> Acesso: 20.06.2016.

PROPP, Vladimir. Morfologia  del conto maravilhoso. Madrid: Fundamentos, 1977.

RAMA, Maria Angela Gomez. A representação do espaço nas histórias em quadrinhos do gênero super-herois: a metrópole        nas aventuras de Batman. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana. São Paulo: USP, 2006.

REBLIN, Iuri Andréas. A superaventura: da narratividade e sua expressividade à sua potencialidade teológica. Tese de Doutorado em Teologia. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2012.

REYNOLDS, Richard. Superheroes: a modern mythology. University Press of Mississippi, 1992.

SILVA, Guilherme Mariano Martins da. A descentralização do conceito de superherói paladino e a crise de identidade pós-moderna. Dissertação de Mestrado em Letras pelo UNESP campus de São José do Rio Preto. São José do Rio Preto: IBILCE, 2010.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. – 2.ed. -Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006

WAID, Mark; ROSS, Alex. O Reino do Amanhã. São Paulo: Panini, 2010.

[1] Nesta obra uma das preocupações do autor era a da incitação das histórias em quadrinhos à subversão dos jovens à ordem e costumes. A relação entre Batman e Robin, por exemplo, é atacada como sugestão à orientação homosexual.

[2] Há, com grande esforço e alguns deslizes, essa discussão no âmbito do filme, focando na figura do Superman, já que por um detalhe do arbítrio ao qual Clark Lente está sujeito, o mesmo ser visto em seus trajes super-heroicos como um enviado dos céus ou nêmesis da humanidade.

FICHA TÉCNICA

BATMAN V SUPERMAN: A ORIGEM DA JUSTIÇA

Diretor: Zack Snyder 
Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Ben Affleck, Diane Lane, Jesse Eisenberg, Jeremy Irons, Holly Hunter, Laurence Fishburne
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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Batman v Superman: os heróis lidando com o trauma e a melancolia

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Em 2014, quando foi anunciado pela primeira vez o título oficial do filme Batman v Superman: A Origem da Justiça, previa-se um sucesso impactante na indústria de adaptações das histórias em quadrinhos. O filme é dirigido por Zack Snyder (de 300, Watchman e de seu antecessor Man of Steel) e chegou às telas do cinema mundial em março de 2016, tendo um elenco de peso com nomes como Ben Affleck, Henry Cavill, Gal Gadot e uma responsabilidade gigantesca quanto aos fãs de histórias em quadrinhos: retratar a Trindade Sagrada da DC Comics de um modo inovador e avassalador, além de apresentar a trama de toda uma sequência de filmes que se seguira até 2020.

No longa, Batman questiona a índole de Superman, e vê o Homem de Aço como uma ameaça a toda humanidade devido a seu poder demasiado grande; no meio do conflito dos dois heróis, o antagonista Lex Luthor manipula as peças para que tudo ocorra a seu favor e vontade. Com aproximadamente 151 minutos de duração em sua versão para as telonas, o filme ainda está em cartaz, por isso, se ainda não viu, corra para os cinemas, pois o texto contém Spoilers de alguns pontos cruciais para a trama.

A película foi um sucesso para muitos fãs e gerou polêmica nas mídias. A crítica ficou extremamente dividida entre ódio e amor profundo, notas boas ou extremamente ruins, mas esse texto não se trata de uma crítica e, sim, uma espécie de análise dos muitos pontos viáveis às mesmas que estão presentes no filme.

Superman

Ao analisar separadamente os protagonistas, destacar primeiramente o caso de Superman se faz necessário, levando-se em consideração o fato de Batman v Superman dar sequência a Man of Steel, filme que como mencionado antes também tem como diretor Snyder e busca nos recontar as origens do Homem de Aço. Para o entendimento completo da trama contada em Batman v Superman se faz necessário assistir Man of Steel.

Grande parte da humanidade admira Superman

Superman (Henry Cavill), ou para os mais fanáticos Kal-El, está a dezoito meses agindo como super-herói e vivendo sua vida dupla humana, usando a identidade do repórter Clark Kent, logo após a tentativa de invasão ao planeta Terra no filme anterior (Man of Steel). Ele voa por aí salvando vidas, apagando incêndios e tirando gatos de cima das árvores enquanto lá embaixo, em terra firme, o mundo lida com as consequências do salvamento do mundo, que com toda a certeza foi no mínimo conturbado – afinal, a cidade de Metrópoles foi praticamente dizimada por inteiro na luta entre Superman e Zod (o vilão de Man of Steel).

O Homem de Aço é uma figura controversa, em alguns momentos do filme ouvimos a frase: “Realmente precisamos do Superman? ”; A humanidade teme os poderes de Clark, teme sua capacidade e é aí que os conflitos se iniciam em sua mente. Ele se vê sozinho no universo, pois foi forçado a dizimar o que restava de sua espécie em detrimento do bem para a humanidade. Agora, sendo membro de uma raça em extinção, Clark se encontra em meio a um dilema entre seus poderes, a responsabilidade (ou a não responsabilidade) de usá-los para fazer o bem, a discordância quanto à ação do misterioso Morcego de Gotham e as pessoas que o rejeitam por medo dos ocorridos em Metrópoles – realmente não é todo dia que alguém destrói uma cidade com as próprias mãos.

Batman

As cenas iniciais de Batman v Superman nos mostram um velório, logo após isso vemos que uma criança está assistindo ao enterro dos pais – nesse momento decorre uma cena interessantíssima onde essa mesma criança cai em um buraco cheio de morcegos, guarde essa informação; em sequência há um salto no tempo e o espectador é lavado há alguns meses (dezoito meses) antes do tempo presente no filme, ali é possível observar a batalha ocorrida em Metrópoles por outra ótica.

Dessa vez o evento é mostrado pelos olhos das pessoas que estavam na cidade durante o embate, assistindo de perto a destruição causada pela luta entre Superman e Zod, e é nesse instante – cena que de certa forma chega a ser assustadora, pois da perspectiva de quem está nas ruas, os destruidores o fazem sem piedade – que nos é apresentado de fato o outro protagonista do filme, Bruce Wayne, o Batman (Ben Affleck). Bruce estava na cidade indo para uma das sedes de sua companhia, viu toda a destruição e o impacto negativo da salvação que o Homem de Aço estava trazendo.

Bruce durante a Batalha de Metrópoles

Bruce Wayne agiu em segredo por quase duas décadas como vigilante em Gotham no passado e para ele, mesmo Clark salvando o mundo, ele é o “miserável que trouxe a guerra a nós”. Bruce simplesmente não consegue confiar em Superman, pois para ele seu poder imensurável é instável e em sua mente ele tem o dever de combater esse ser que pode vir a se tornar uma ameaça. É nesse ponto que o filme se fundamenta, se enganando quem pensa que é uma luta injustificada, com muita computação gráfica e ação. Não, com toda certeza não: Batman v Superman retrata um conflito de ideais entre os protagonistas, conflito que visa colocar em xeque a opinião de quem está assistindo e percorre o filme de ponta a ponta.

Trauma e Melancolia

Para falar de fatos que marcariam a vida do Cavaleiro das Trevas é interessante analisar não só as cenas do filme, mas também olhar para a fonte de inspiração delas: as histórias em quadrinhos. Dependendo do autor ou no caso de filmes, o roteirista, existem diferenças tênues quanto ao passado de Bruce e a sua gênese como Batman. Porém, um fato é sempre recorrente: os pais dele morrem quando o mesmo era uma criança; Bruce a partir desse ponto passa a ser criado por seu mordomo Alfred, este que ocupa a função de mentor, guiando-o à medida que se desenvolve.

Bruce e Alfred 

Após a morte de seus genitores, ele fica obcecado por vingança. Com a ajuda desse novo mentor, treina durante o resto de sua infância e adolescência para poder combater o crime no futuro. Quando se torna adulto, começa então a agir como Batman, adota o símbolo do morcego, este se tratando de outro trauma – como dito anteriormente ele cai em uma espécie de buraco quando ainda era criança, lá é atacado por morcegos e esse episódio marca o jovem Bruce profundamente, fazendo-o levar esse medo consigo daí em diante.

Sigmund Freud, ao escrever sobre a melancolia, explica que ela

se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. (Freud, 1917)

Bruce Wayne do filme atuou como Batman secretamente por muitos anos e nos é mostrado como um sujeito melancólico e perturbado por todo o passado e as marcas em sua personalidade. Ele sofre de pesadelos com o túmulo dos pais, morcegos carnívoros gigantes, possíveis futuros apocalípticos como consequência da realização de suas paranoias, entre outras coisas que algumas vezes o fazem titubear na hora de pensar com clareza. Somando isso ao fato de ele rememorar constantemente a cena de seus pais morrendo – guarde essa informação também – tem-se como resultado um indivíduo que sofre psicologicamente com toda essa carga de conteúdos traumáticos em sua mente.

Um dos sonhos de Batman durante o filme, esse porém, tem um tom profético aos fãs

Agora tratando do Superman, em um panorama geral das mídias (quadrinhos e filmes), pode ser até uma surpresa para alguns, mas a história de Kal-El é tão pesarosa quanto a de Batman. Clark é o último filho de seu planeta, Krypton, que foi dizimado devido a um desastre natural. Antes de o planeta entrar em colapso seus pais o colocaram em uma espécie de espaçonave feita para viajar milhares de anos-luz, com o objetivo de chegar a Terra, onde foi achado por Jonathan e Martha Kent e batizado como Clark Kent. Aqui o jovem Clark cresceu, descobriu seus poderes e começa a agir como super-herói. Ele perde os pais terráqueos alguns anos depois; na versão mais recente das HQs em um acidente de carro e no filme Man of Steel, o Sr. Kent morre durante um tornado.

Momento da morte de Jonathan Kent, pai de Clark. Cena de “Man of Steel”

Em Bartman v Superman a origem dessa carga traumática na mente de Clark vem do filme anterior, pois ele foi forçado a dizimar os membros remanescentes de sua raça, em vista de que eles desejavam dominar o planeta e escravizar os humanos. A partir dali, quando a trama do filme atual se desenrola, ele se viu sozinho no Universo, mas ainda assim com um planeta inteiro de pessoas para ajudar, pessoas que passaram a depositar adoração messiânica nele, outras também que questionaram seus atos de boa-fé e o atacaram com palavras, chegando a despreza-lo e tentar o expulsar do planeta. O Superman desse filme é com toda a certeza o mais humano já retratado: ele sente angústia por ser injustiçado, sente raiva por falaram mal dele, sente amor por sua companheira Lois e por sua mãe de modo descomunal – e o que mais revoltou algumas pessoas – ele está sim sujeito a ser manipulado.

Clark e o vilão Zod, ao fim da Batalha de Metrópolis. Cena de Man of Steel

“Martha? Porque disse esse nome!?”

Bum, clímax do filme. O vilão Lex Luthor – não anteriormente citado, porém parte crucial da trama – capturou Martha Kent (Diane Lane) e atraiu Superman para sua armadilha, usando a vida de sua mãe como barganha. Lex força Clark a escolher entre a vida dela e a de Bruce Wayne. O tempo começa a correr para Clark, que só tem uma hora para resolver seu problema; em uma cena deletada do filme, que estará presente no Blu-ray estendido do mesmo, ele parte a procura de sua mãe antes do confronto e ouve todo o clamor, os gritos desesperados e qualquer possível sinal de crime ocorrendo na cidade naquele exato momento, porém o lado egoísta e humano pesa em sua escolha, o lado que faz com que decisões difíceis sejam tomadas e ele escolhe por confrontar Batman para assim salvar sua mãe.

Lex Luthor, subjugando Superman

Após uma tentativa de diálogo e os primeiros golpes desferidos por Batman, a luta se inicia e sem muita descrição sobre a mesma, Clark se contém durante a luta. Para não matar seu adversário que é um humano, Batman se utiliza de gás feito com Kryptonita, um mineral Kryptoniano nocivo para os seres do mundo de Clark e derrota seu adversário se aproveitando desta fraqueza. Do mesmo pedaço de mineral que usou para fazer o gás Bruce fez uma lança, único objeto capaz de matar Superman naquele momento.

Eis que nesse instante surge a frase que dividiu a opinião dos espectadores: “Salve a Martha”. Nesse momento Bruce hesita e começa a questionar sobre o que Clark queria dizer e o porquê de ter dito aquele nome. Lois chega e explica tudo a Bruce que em um lampejo de consciência entende a loucura que era essa briga entre os dois; entende que o real inimigo está lá fora. Eles unem forças para combater o verdadeiro mal por trás de tudo.

“Salve a Martha…”

Então o espectador se pergunta: é isso? Um diz o nome da mãe do outro e fica tudo na paz? – Bom, na verdade as coisas vão um pouco além disso. Se voltarmos na história de Batman, veremos que há algo em comum nos dois heróis, pois o nome da mãe de Bruce também é Martha – (Risos) Ah, melhor ainda? As mães deles têm o mesmo nome e a coisa se resolve assim, fácil? – Não exatamente, de novo.

Tente pensar como Bruce Wayne por um instante: Você é um homem que cresceu assombrado pelos fantasmas de seu passado, vive completamente atormentado pela morte de seus pais, e um estranho de repente fala um nome familiar, que você tem evitado por anos, um nome que relembra todo o seu sofrimento, te faz reviver toda a dor e o trauma de ver seus pais morrerem em sua frente. Até o mais sombrio dos heróis hesitou nessa hora e com uma solução aparentemente simples, mas com uma profundidade e um apelo sentimental tão grandes é que o antagonismo dos dois heróis tem seu desfecho.

Após outros diálogos e a aparição da Mulher Maravilha (Gal Gadot), um dos protagonistas tem sua trama concluída de certa forma ali. E baseado no famoso arco de histórias, “A Morte do Superman”, a terceira e última parte do filme se inicia. Após uma luta exaustiva entre a Trindade e o monstro Doomsday, o fim chega para Superman, que como nas HQs se sacrifica para derrotar o vilão indestrutível – mais uma pequena referência a toda a coisa messiânica que envolve o Homem de Aço.

O sacrifício final. Cena retirada de “A Morte do Superman”, por Dan Jurgens

Em conclusão, para Superman, o conceito de melancolia que melhor se aplicaria é o da filósofa brasileira Marcia Tiburi. Ela que trata da Melancolia como sinônimo de criação. A partir de um episódio melancólico desencadeado por todos os acontecimentos de sua vida até aquele momento, Clark vê iniciar-se um processo de destruição para que depois haja a criação. O filme se encaminha para o fim com Superman se entregando a destruição, após todo o desenrolar de fatos da película. É possível ver o ser inseguro, frágil e indócil, partir em direção a criatura que seria seu fim, para que um novo começo pudesse existir e no lugar dele, o Superman que todos conhecem – o estereótipo de herói, bondoso, certo de si e imparável – pudesse nascer das cinzas de um antigo eu.

REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund, 1917. Luto e Melancolia. p.172-173.

TIBURI, Marcia, 2008. Saber e Sofrer. Disponível em <http://www.marciatiburi.com.br/textos/saberesofrer.htm>

Café Filosófico: Tristeza, por Márcia Tiburi. Programa disponível em <http://www.cpflcultura.com.br/wp/2013/07/29/tristeza-marcia-tiburi/ > – Acessado em 08/01/2015;

FICHA TÉCNICA DO FILME:

BATMAN VS SUPERMAN: A ORIGEM DA JUSTIÇA

Direção: Zack Snyder
Elenco: Ben Affleck, Henry Cavill, Jesse Eisenberg, Gal Gadot;
Ano: 2016
País: EUA
Classificação: 12

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O desvelamento monomítico em “Man of Steel”

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My father believed that if the world found out who I really was, they’d reject me… out of fear. […]Because he was convinced that I had to wait. That the world was not ready. What do you think?
Kal-El

Prólogo

“O coração do novo ser bate eloquentemente. Num lugar onde a existência se tornou algo controlado e previamente estabelecido, sua chegada sela o fim de um ciclo e irrompe início de outro. A perfeição de um mundo pleno decai com seu colapso, levando consigo todos que o construíam, habitavam,  prosperaram e corromperam. Caberá a esta nova vida buscar seu propósito, cravar no tempo os traços de sua trajetória e escolhas. Seu futuro será marcado, a partir deste momento, em ter em si a incumbência de pertencer, ao mesmo tempo, à laços fraternais distintos e padrões morais, estruturas sociais, histórias e destinações, de igual modo, diversas.  A anos-luz de distância a esperança de um recomeço é lançada, desta vez, num prospecto diferente, cercado por uma sociedade consciente de seu arbítrio, falhas e questionamentos, apesar da potencialidade para a compleição de maravilhadas jamais imaginadas. Neste novo lar, o filho das estrelas deverá, por conta própria, encontrar a razão que definirá seu estado de existência entre estes dois mundos.”

Introitos elucidativos

Antes de se iniciar a análise do filme Man of Steel (2013), traduzido como O Homem de Aço no Brasil, é preciso apresentar algumas das escolhas efetuadas para a produção do longa, da filmagem à direção de arte. Em seus 143 minutos de duração há uma roupagem nova para o mais conhecido dos heróis, as ideologias e simbologias da sua existência são exploradas, o peso das suas decisões é colocado em potência de impacto jamais visto no cinema, e uma nova leitura do ícone (pós?) moderno do monomito para o século XXI – o conceito será tratado posteriormente om maiores detalhes, pois sua estrutura é a base não apenas deste filme, mas para toda uma concepção heroica e fantástica do Ocidente.

Há uma sugestão realista, sombria e existencial do homem de aço neste filme de 2013, um sinal dos temos do questionamento do público em relação aos heróis, iniciado nos quadrinhos na década de 1980 em clássicos como V de Vingança (1982), Wacthman (1986) e O Cavaleiro das Trevas (1986). A escuridão e a luz, as virtudes e as fraquezas, as dúvidas e as certezas, todos estes extremos são colocados em picos e vales de composição da jornada dos heróis de nossos tempos. Após a bem sucedida experiência de Christopher Nolan e seu Batman pautado num mundo real e palpável, o mesmo caminho seria seguido pelo maior ícone heroico da DC/Warner Bros. nos cinemas.

Henri Cavill, o novo Superman
Fonte: www.imdb.com

Os efeitos dos eventos pós 11 de setembro de 2001ainda recaem e influenciarão muitas obras fílmicas, literárias e artísticas, não apenas norte-americanas. A dubiedade presente em cada diálogo do filme de 2013 de Zack Snyder, com roteiro de David Goyer, nos remete ao tempo que vivemos envolto em ceticismo e transvalorizações morais, e não mais em lados definidos de um longínquo pós-guerra, já em desgaste, e suas ideologias monocromáticas da era de Reeve e Donner à frente dos filmes do homem de aço. Os editores dos estúdios Warner preparam o ambiente para esta nova visão: “não é o filme que merecemos, mas é o filme que precisávamos” calculando o impacto que a mesma traria ao público e crítica.

De início, o epicentro do todo, o homem por trás do símbolo. A escolha do ator Henri Cavill vai ao encontro da proposta de Snyder para a humanização da personagem. Com seus 1.85m, o ator britânico – o primeiro não americano a representar Superman em grandes mídias – é o mais baixo para o posto do super-heroi (Christopher Reeve, 1.93m; Tom Welling, 1.90; Brandon Routh, 1.89). O corpo, apesar de apresentar o montante de músculos comuns ao papel, mostra sutilizas humanizantes, como os cabelos desgrenhados, o sorriso imperfeito, o dorso ao natural e uma postura menos divina e mais grega do rebento em relação aos seus poderes. Se no início o ator se mostra não tão à vontade no papel, principalmente em sua versão humana, ao vestir o icônico traje, assume para si todo o peso desta nova interpretação da mitologia do heroi.

O restante do elenco do filme pode ser dividido em dois grupos distintos, os atores que conseguem colocar o seu papel em pé de igualdade, e, em alguns momentos, até superar o foco de atenção com o protagonista, casos como Russel Crowe em sua personificação de Jor-El e Michael Shannon com a efusiva psicopatia do novo General Zod, e o pessimismo e preocupação do Jonathan Kent de Kevin Costner. Os destaques femininos ficam por conta da gélida assecla Faora-Ul de Antje Traure e a mãe kryptoniana de Kal-El, Lara Lor-Van de Ayelet Zurer, em seus breves minutos em tela. O ponto baixo das atuações ficam com os atores subaproveitados pela trama, especialmente Laurence Fishburne e seu deslocado Perry White, a Martha Kent de Diane Lane podendo ser muito mais impactante como vinculo fraternal de Clark, e o excesso de ajustes no arco do enredo para inserção, por vezes desnecessárias, da Lois Lane de Amy Adams durante o filme.

Sobre a técnica de filmagem destacam-se os filtros cinza e sépia nos cenários, assim como paisagens nebulosas que reforçam este tom mais introspectivo desta versão do Superman. Os planos abertos, principalmente em focos individuais de personagens-chave, são frequentes assim como os flares ao longo de todo o filme. Por se tratar de uma história de origem das mais conhecidas pelo público em geral, foi optado uma maneira não linear de contá-la no primeiro ato da obra, fazendo-se uso de flashbacks para tanto, por vezes com auxílio de cores quentes para denotar a atemporalidade das memórias expostas no momento.

A trilha sonora é formada por belas composições de Hanz Zimmer, colaborador frequente doe estúdios do filme, como Flight, I Will Find Him e An Ideal of Hope, que misturam elementos militares, passagens metálicas e ficcionais com uma tonalidade épica exigida pela narrativa. Novamente, com o intuito de se afastar das representações pregressas do herói nos cinemas – e quadrinhos –, não há menção às notas clássicas de John Willians, acompanhando a mudança da tonalidade aventuresca de outrora para a épica e científica ficcional desta roupagem contemporânea.

No entanto, apesar da banda sonora se afastar das referências clássicas, em diferentes passagens do filme existem falas, imagens ou algum sinal da base original do Superman. Assim, em diferentes momentos, obras clássicas dos quadrinhos são utilizadas como referência, principalmente aquelas voltadas ao estudo do personagem, algo presente em quase dois terços do filme. Alguns exemplos destas inspirações vindas da nona arte são: Action Comics (1938), Return to Krypton (1960), O Legado das Estrelas (2003), O Reino do Amanhã (1996), Para o homem que tem tudo (1985), O Homem de Aço (1986), A Morte do Superman (1990), Superman, Paz na Terra (1998), Entre a Foice e o Martelo (2003) e Grandes Astros, Superman (2006).

Dos quadrinhos o personagem alçou voos mais longínquos, em mídias diversas, do rádio ao cinema, dos livros à tiras de jornais, também com alguns pinceladas de easter eggs em Man of Steel. Em forma de estudo, romance ou crônica fictícia há Os Últimos dias de Krypton (2007), de Kevin Anderson, Fazendo  o Homem Acreditar (2014) de Felipe Morcelli, e Superman e a Filosofia (2013) de Willian Irwin. Séries como Superboy (1988-1992), Louis and Clark: The New Adventures of Superman (1993-1997) e Smallville (2001-2011), e filmes como os clássicos de Richard Donner, com Christopher Reeve à frente do heroi. E além destas plataformas de representação, ainda computam-se diversas séries animadas durante décadas de exposição midiática da personagem.

E, além, destas referências, o diretor Zack Snyder é conhecido por ser um esteta da sétima arte, com grande apuro no engendramento dos constructos artísticos de seus longas-metragens. Mas, apesar de ter havido erros de percurso como Sucker Punch (2011), predomina em sua filmografia acertos como Dawn of the Dead (2004), 300 (2006) e Watchmen (2009), sempre primando por um cuidado com a cenografia, direção de arte, figurinos, linguagens gráficas e efeitos especiais. A partir destes introitos é possível passarmos para uma análise mais detalhada de Man of Steel, como sugerido na capitulação do texto.

Krypton

A representação de Krypton em Man of Steel é a mais ousada já vista. O ambiente é hostil, entrelaçado a uma tecnologia anos-luz mais avançada do que conhecemos. O brilho de Rao, o sol vermelho do seu sistema solar encobre seu horizonte em várias passagens dos primeiros minutos do longa. O início da história do Superman ocorre com o fim do mundo em que este nascera, condenado por uma iminente explosão do seu núcleo. E, neste ponto há até mesmo uma mensagem ambiental na deflagração do fatídico fim do planeta Krypton, pois, Jor-El explana, nos poucos minutos em cena, que, a ambição tecnológica e questões políticas destruíram sua terra natal, e o fim não mais poderia ser evitado a partir daquele ponto.

O termo Krypton vem do grego crípton, que significa oculto, talvez pelo mistério que este lugar carregaria na mitologia do primeiro super-heroi dos quadrinhos. Na releitura de Man of Steel ainda persiste uma elevação da sociedade kryptoniana, em comparação com os terráqueos. A textura de deuses olimpianos, normalmente encontrada em outras linguagens da mitologia do Superman dá lugar um visual mais hipertecnológico. E, se no original de 1938, em inferência ao monomito grego, a organização social lembrava uma sociedade pacifista e de zelo ao saber, com seus cristais e candura, nesta versão de Man of Steel o planeta e sua civilização lembram mais a Esparta da antiga Grécia, com seus brasões, expansionismo (neste caso estelar, mesmo que abandonado, como lembrado por Jor-El) e inclinação militar.

Krypton (Cidadela da casa de El, lua de Wegthor e um ser nativo)
Fonte: Man of Steel

Outra referência narrativa sobre os kryptonianos se dá por indícios das lendas humanas dos deuses astronautas. Já que, neste processo de expansão interestelar de Krypton, a Terra já teria sido visitada há milênios, como posteriormente seu último sobrevivente iria descobrir. Gnosiologicamente pode-se interpretar então que nós, humanos, seríamos um projeto abandonado dos “deuses” kryptonianos, e, muitas eras depois um deles encontraria aqui, neste mundo, sua nova morada.

A proposta de oferecer um filme de ficção científica, além da forma como a obra foi elaborada e apresentada ao público, se evidencia por algumas opções cenográficas presentes no decorrer da projeção deste novo Krypton. Destas influências nas escolhas da direção de arte, uma das mais claras é à clássica obra Alien, o 8º passageiro (1979) de Ridley Scott. Dois exemplos podem ser utilizados para esta inferência de representação e homenagem, a primeira delas é o (novo) visual do planeta, muito mais orgânico, alienígena e até mesmo distópico que algumas de suas concepções clássicas; a outra, mais frequente durante todo Man of Steel são as armaduras de combate dos kryptonianos, suas naves e equipamentos, fazendo alusão ao space jockey também do clássico de horror de 1979.

Além desta homenagem, no que se refere à estética extraterrena dos elementos kryptonianos trazem à tona muitas das linhas e imagens do artista plástico suíço Hans Rudolf Giger – conceituador original do visual da franquia Alien –, com uso de luzes opacas, objetos e formas fálicas, tons no espectro cinzento em grande quantidade, formas tentaculares etc.

Faora-Ul e Nam-Ek
Fonte: Man of Steel

Um ponto positivo a ser ressaltado nesta visualidade estética kryptoniana – e também terráquea – de Man of Steel é a não misoginia em relação às representantes femininas. Faora-Ul, Martha Kent, Lara Lor-Van e Lois Lane possuem força considerável no decorrer do filme, esta última em certos momentos excessivamente. Esta é digna de nota pois as jornadas (super)heroicas são normalmente recheadas de sexualização ou vitimização do gênero feminino, e se Snyder acerta ao colocar Faora em pé de igualdade com Superman, novamente, falha ao não equalizar a posição de Lane da mesma maneira, recorrendo à demasiados arquétipos seiscentistas à personagem, não mais coerentes com o fortalecimento do gênero feminino nas últimas décadas.

De todo modo, esta visão de Krypton é, sem dúvida, algo que o personagem necessitava para se desprender dos seus arquétipos anteriores no cinema e banda desenhada. O aproveitamento desta estética é de fundamental importância para a composição de todo o desenvolvimento deste novo Superman.

A gênese e o apocalipse

General Zod e Jor-el
Fonte: Man of Steel

Se pensarmos com apoio da gnosiologia, Zod e Jor-El representam deuses com pontos de vista diferentes. Ao admitirmos, a partir das referências do próprio filme, que a humanidade é um projeto há muito esquecido pelos kryptonianos, então a maneira como estes veem nosso planeta é um destaque no desenvolvimento do enredo de Man of Steel, fundamental para os rumos da história.

De início há a criação, esperança e aposta no potencial humano, exemplificados nas ações e falas do pai biológico do Superman (Jor-El), quando a projeção virtual deste, já na Fortaleza da Solidão, diz para o filho, em dúvida sobre seu propósito na Terra: “You will give the people of Earth an ideal to strive towards. They will race behind you, they will stumble, they will fall. But in time, they will join you in the sun, Kal. In time, you will help them accomplish wonders.” (Jor-El). Ou seja, há o depósito de total crença no devir e existir humano, tendo seu filho Kal-El com ponte para o alcance de tal grandeza e destino da humanidade.

Já para Zod, também em falas para o último filho de Krypton, torna clara sua posição de demolição do lar no qual vive Kal-El, para que enfim o planeta do sistema Rao possa reviver, deixando abaixo as cinzas de um mundo não digno da superioridade kryptoniana: “A foundation has to be built on something. Even your father recognized that.”. E coaduna a este pensamento sua forma de pensar, e o motivo pelo qual toma as decisões perante aqueles que não aceitem as consequências da não obediência do seu poder: “Look at this. We could have built a new Krypton in this squalor, but you chose the humans over us. I exist only to protect Krypton. That is the sole purpose for which I was born” (General Zod).

Esta narrativa dual acompanha a vida de Kal-El/Clark Kent/Superman em todo o desenvolvimento do filme: A Terra e Krypton; pais humanos e kryptonianos; poder capaz de garantir a salvação ou provocar a destruição, etc. em sua um constante ser ou não ser, que enriquece a personagem desde a sua criação. Nas figuras de Jor-El e General Zod, esta dualidade chega ao seu ápice, pois elabora do primeiro ao último ato, a essência de dúvida na consciência do homem de aço sobre o significado, importância e impacto de sua presença no planeta dos humanos.

O Filho de Dois Mundos

O nome Kal-El, criado por Jerry Siegel e Joe Shuster em 1938, tem duas origens aceitas para seu significado: a junção de vocábulos havaianos ou hebraicos; nos dois casos há uma confluência de sentido para a voz, o chamado ou o escolhido; argumento recorrente em bases mitológicas de outros heróis e super-herois. Ainda como fortalecimento da mitologia do herói, há o símbolo da casa à qual pertence, o “S” do seu peito deixa o significado literal para um mais icônico: esperança. Esta mudança faz parte da remodelagem do herói na década de 1980, de modo a distanciá-lo de sua base ideológica inicial, americanzada e demasiada salvacionista para os padrões céticos do novo século.

Outro contraponto reincidente sobre o Superman diz respeito aos seus pais com posições diferentes, de um lado a proteção, e de outro, a motivação máxima do seu heroísmo. Em Man of Steel esta diferença é colocada nos limites mais altos da dialética que a conforma. Para os Kent, seu filho Clark, herdeiro de sua pequena fazenda no interior do Kansas, deve ser preservado, protegido e alertado sobre o impacto que seus poderes podem causar no mundo. O pai Jonathan é o maior apoiador desta opinião: “You just have to decide what kind of a man you want to grow up to be, Clark; because whoever that man is, good character or bad, he’s… He’s gonna change the world” (Jonathan Kent).

Seus pais da Terra são incumbidos de fazer do jovem com poderes divinos adaptar-se a esta condição, consigo próprio e com seu dia-a-dia. Martha Kent demonstra bem esta preocupação, ao socorrer sua prole na escola em dado momento de lembrança do jovem Clark/Kal-El no filme:

Martha Kent: Sweetie. How can I help you if you won’t let me in?
Clark Kent – age 9: The world’s too big, Mom.
Martha Kent: Then make it small. Just, um, focus on my voice. Pretend it’s an island out in the ocean. Can  you see it?
Clark Kent – age 9: I see it.

Estes temores com seu filho alienígena é evidenciado em rimas imagéticas e discursivas, principalmente do pai adotivo: “People are afraid of what they don’t understand. […] Clark, you have to keep this side of yourself a secret.” (Jonathan Kent). Mas, no limiar desta inclinação até mesmo pessimista dos pais humanos, reside a crença nos grandes feitos possíveis de serem realizados pelo futuro Superman: “He always believed you were meant for greater things, and that when the day came, your shoulders would be able to bear the weight.” (Martha Kent, sobre Jonathan).

Jonathan e Clark Kent
Fonte: Man of Steel

Clark e Martha Kent
Fonte: Man of Steel

Jor-El e Lara Lor-Van visualizaram, profeticamente, o que seu filho encontraria no mundo dos homens: a solidão, o desencontro, a desconexão, ostracismo, estranhamento, para só depois, a depender do arbítrio concedido por eles ao bebê de Krypton, este abraçar sua causa heroica para com o povo que o acolhera.

Lara Lor-Van: Goodbye, my son. Our hopes and dreams travel with you. Lara Lor-Van: He will be an outcast. They’ll kill him.
Jor-El: How? He’ll be a god to them.

O medo da mãe biológica é rapidamente suplantado pelo pai, que escolheu o destino da nave para a Terra, não apenas como uma projeção incerta sobre o futuro que aguardava o jovem Kal-El, mas a certeza, de que, mesmo se este não quisesse, teria de se submeter a uma trilha – a jornada monomítica – para então decidir-se protetor dos humanos.

O fardo do herói

A jornada do heroi é mais que um modelo antropológico e histórico da humanidade, é um padrão social dos contos maravilhosos que resiste à diversidade cultural, tempo e espaço. Estudiosos como Joseph Cambell e Carl Jung perscrutaram os padrões culturais humanos em busca de explanações que correspondessem a uma unidade passível de seleção analítica das culturas ao redor do mundo.

O panteão super-heroico de nossa era, aumentado em grandiosidade pelos mass media já é considerado uma nova suplantação de nossos anseios épicos, assim como ocorria com os antigos gregos, egípcios, vikings ou sumérios. Muitos são os estudos, em diferentes áreas, que estão registrando o fenômeno da escalada dos super-herois ao longo dos últimos 100 anos, dos pulp do início do século XX, como Conan e Zorro, às superproduções do século XXI, e, ao que parece, esta escalada ainda não dá sinais de enfraquecimento, já que, cada vez mais, aumenta o alcance do seu simbolismo e impacto em diferentes gerações ao redor do globo.

E aliado a este movimento do monomito nas bandas desenhada e cinematográfica, a sétima arte tem reservado releituras ao monomito de maneira competente e diversificada, em diferentes gêneros de enredo, heroísmo ou anti-heroísmo. Exemplos clássicos podem ser vistos em O Rei Leão (1994), O Poderoso Chefão I e II (1972 e 1975), Oldboy (2003) e 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), Star Wars IV (1977), A Idade da Idade da Terra (1980), Abril Despedaçado (2001), Tropa de Elite I e II (2007 e 2010). Com protagonistas femininas podem ser citados Alien: O 8º Passageiro (1979), O Fabuloso Destino de Amalie Poulain (2001), Thelma & Louise (1991), Valente (2012), O exterminador do futuro II (1991), Mudança de Hábito (1992), A Liberdade é Azul (1993), Central do Brasil (1998), O Labirinto do Fauno (2006), O Silêncio dos Inocentes (1991) e muitos outros.

A partir deste esforço, e em combinação à evolução histórica do conhecimento, foram elaboradas teorias que são aplicadas às diferentes sociedades, e que demonstram padrões, nem sempre exatos, do ciclo do personagem heroico, o monomito de Campbell, ou os arquétipos de Jung, por exemplo.

Em suma há passos, etapas pelas quais o heroi (ou heroína) precisa passar que sua nova condição singularizante seja alcançada. Campbell dividiu estas fases em seu clássico O herói de mil faces, mas foi com Christopher Vogler (2006) que as conceituações do estudioso culturalista americano voltaram à tona. Vogler  se preocupa em demonstrar para novos escritores e roteiristas que é possível contar a mesma e maior história da humanidade, quantas vezes for necessária, garantindo o sucesso de seu enredo pelos degraus de desenvolvimento dos protagonistas:

(VLOGER, 2006, p. 50).

Ao longo de séculos de diversidade e proposições imaginárias para os mais incríveis contos possíveis, a humanidade tem reinventado este ciclo heroico, a jornada do outro dentre os iguais. O que estes autores fizeram foi padronizar estes passos na forma de teorias explicativas para o inconsciente coletivo da rota do herói.

Em um campo de maior introspeção reflexiva sobre tal jornada de elevação do herói diante de um mundo no qual este vê em situação de elevação, mesmo que em processo, há o ubermensh nietzschiano, corretamente traduzido como além-homem, mas adaptado por Siegel e Shuster como Super-homem, o Superman. Por esta razão, não é por acaso que este personagem seja não a mais recente, mas, certamente, a mais marcante releitura da jornada do herói de nossos tempos.

Na mitologia existem referências diversas à jornada do indivíduo elevado, que após um ciclo, aquele descrito por Campbell (1997) e resumido por Vloger (2006), alcança um novo estágio de compreensão consigo próprio e de alocação social diante do mundo que faz parte: Beowulf, Thor, Jesus Cristo, Hamlet, Hércules, Osíris. Pois assim descreve enfaticamente Campbell: “A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1997, p. 9). E complementa o autor que:

A Jornada do Herói é uma armação, um esqueleto, que deve ser preenchido com os detalhes e surpresas de cada história individual. A estrutura não deve chamar a atenção, nem deve ser seguida com rigidez demais. A ordem dos estágios que citamos aqui é apenas uma das variações possíveis. Alguns podem ser eliminados, outros podem ser acrescentados. Podem ser embaralhados. Nada disso faz com que percam seu poder. Os valores da Jornada do Herói é que são importantes. As imagens da versão básica — jovens heróis em busca de espadas mágicas de velhos magos, donzelas arriscando a vida para salvar entes queridos, cavaleiros partindo para combater dragões cruéis em cavernas profundas etc. — são apenas símbolos das experiências universais da vida. Os símbolos podem ser mudados ao infinito, para se adaptarem à história em questão ou às necessidades de cada sociedade. A Jornada do Herói se traduz facilmente para os dramas contemporâneos, comédias, romances ou aventuras de ação, bastando substituir as figuras simbólicas e os adereços da história heróica por equivalentes modernos. O velho ou a velha sábia pode ser um feiticeiro ou mago, mas também qualquer tipo de mentor ou mestre, médico ou terapeuta, um chefe “rabugento, mas benigno”, um sargento durão, mas justo, um pai, avô ou qualquer figura que guie e socorra. Os heróis modernos podem não estar entrando em cavernas e labirintos para lutar contra animais mitológicos, mas não deixam de entrar num Mundo Especial e numa Caverna Oculta quando se aventuram pelo espaço, pelo fundo do mar, pelos subterrâneos de uma cidade moderna, ou quando mergulham em seus próprios corações (VLOGER, 206, p. 47).

A fase eremítica acaba por ser a principal fase, ou de maior impacto, na composição da jornada do heroi. A similitude com outros eremitas da cultura ocidental não são mera coincidência na caminhada de Kal-El na Terra: seus 33 anos, a demora em aceitar-se como detentor de poderes de um deus e salvador da humanidade, a temeridade diante do poder de destruição em suas mãos, a dificuldade em se identificar com seus “iguais” naquele mundo deslocado de seu ser. Todos estes aspectos narrativos são elementos que fortalecem, e muito, um quase estudo de personagem em Man of Steel, parafraseando o crítico Pablo Villaça, como jamais fora arriscado antes nas representações da mitologia do Superman nos cinemas.

Clark Kent/Kal-El
Fonte: Man of Steel


Superman e Lois Lane
Fonte: Man of Steel

Na proposta narrativa do herói em Man of Steel vemos a inclinação mais realista, e muitas vezes pessimista, de como nosso mundo realmente se depararia com uma figura em tais condições perante nossa espécie. A condição de outro, alienígena, estrangeiro, deslocado é realçado no filme em diferentes passagens.

O elo do protagonista com seu novo mundo é estabelecido na figura de Lois Lane, em conjunto com seus pais adotivos. Infelizmente, esta é uma ponta enfraquecida do roteiro de David Goyer e direção de Zack Snyder, pois o papel de Lois poderia, ou deveria, ser melhor explorado na estruturação da jornada do herói, já rica pelos incrementos dramáticos e existenciais durante quase dois terços do longa.

Chave da Casa de El
Fonte: Man of Steel

Outros passos da jornada do herói, ou arquétipos heroicizantes podem ser destacados, tais como: o ancião conselheiro (Jonathan Kent, Jor-El), aliados (Lois Lane, General Swanwick), defensor de limiar (Faora-Ul e Nam-Ek), artefatos “mágicos” de ajuda (chave de kryptoniana, uniforme), a sombra (General Zod). Como pode ser observado, nestas constatações do monomito em Man of Steel, alguns elementos não estão presentes de forma obrigatória, como o pícaro, o mensageiro (dividido com a posição do mentor ancião) e o camaleão ou metamorfo. Caracterizações recorrentes e diversificadas para personagens reincidentes em diferentes moldes culturais:

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito. O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir — da mesma forma como o sabor do oceano se manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte (CAMPBELL, 1997, p. 6).

Clark Kent/Kal-El precisará encarar, ultrapassar e adaptar-se a todos estes passos, empecilhos e degraus em sua caminhada para se tornar o além-homem, ou super em nossa interpretação fantasiada do mesmo. A missão, fardo ou dádiva desta condição é colocada em seus ombros por seu pai biológico, Jor-El, que, como já afirmado, é o elo principal do Superman com sua ascendência superior: “Your mother and I believed Krypton lost something precious, the element of choice, of chance. What if a child dreamed of becoming something other than what society had intended? What if a child aspired to something greater? You were the embodiment of that belief Kal” (Jor-El).

Resistindo ao crepúsculo dos ídolos


Superman
Fonte: Man of Steel


Corpo de Zod e Superman
Fonte: Man of Steel

Se seguirmos os passos do monomito de Campbell podemos estabelecer que há a falta de dois passos importantes para a consolidação deste Superman de Snyder como novo herói: a limpeza de suas mãos, manchadas pelo sangue (mortes) da batalha, e o retorno para seu mundo, agora modificado pela sua nova condição heroica, mas aceito e glorificado pela sociedade que faz parte.

As imagens de Man of Steel denotam mais que as palavras retiradas das mesmas. Se o último filho de Krypton, o enviado das estrelas contempla a sensação plena dos poderes à luz do sol amarelo e paisagem etérea do ártico, nos minutos finais da projeção o que resta é o corpo do seu reverso heroico, em meio à destruição que o poder de ambos deixou atrás de si durante a colossal batalha, da qual os humanos no máximo poderiam correr ou acumular-se nos escombros.

Ao final do Man of Steel fica claro que os objetivos de reflexão de uma nova roupagem ao monomito pelo personagem Superman foram altos, e poderiam ter sido alcançados com uma dose menor de megalomania em seu terceiro ato. O tom realista do produtor Christopher Nolan – diretor da trilogia Dark Knight – foi bem aceita pelo público, revitalizando a mitologia de Kal-El nos cinemas.

O patamar de obra-prima não foi alcançado por Snyder, mas, fica o impacto de se colocar o mito no seu tempo correspondente, Superman Returns de 2006 fracassara pifiamente em tentar ajustar o ícone a uma sociedade que não mais o via naquele molde. Man of Steel talvez traga não o Superman que desejamos ou imaginamos, mas o que precisamos, um legítimo, trágico e falho heroi grego para nosso século. E este debate não parece estar próximo de seu fim, tendo em vista os vislumbres da vindoura sequência Baman v Superman: Dawn of Justice em 2016.

E, para o porvir há a esperança, sem trocadilhos, de que a seja inaugurada voos mais seguros ao mais antigo e revisitado dos super-herois, pois, por mais controverso que o personagem seja, sem dúvida é um dos pontos de inflexão com  maior alcance aos interstícios arquetípicos, culturais e imaginativos de nossa era.

“Summer nights and long warm days
Are stolen as the old moon falls
And the mirror shows another face
Another place to hide it all
And I’m lost behind
The words I’ll never find
And I’m left behind
As seasons roll on by”

(Seasons, Chris Cornell)

Epílogo

Folder do filme Batman v Superman: Dawn of Justice
Fonte: www.imdb.com

“Após a jornada, descansa em suas mãos os feitos e efeitos das escolhas tomadas. Ter consigo um poder para além de uma mensurabilidade humana traria sua consequências. Há outros lá fora, com menos, igual ou maior ímpeto (anti)heroico, ou capazes de propor uma equidade simbólica perante o novo herói. Lidar com a nova realidade de entrepor-se nestes extremos se caracterizar-se-á como nova jornada, em escala ainda maior que a predecessora. Saber-se consciente desta condição definirá o alvorecer dos novos limites a serem ascendidos”.

REFERÊNCIAS:

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

MAN OF STEEL. Diretor Zack Snyder. Roteiro David Goyer. Warner Bros Pictures. 143 min.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trad. Ana Maria Machado. – 2.ed. -Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O HOMEM DE AÇO

Direção: Zack Snyder
Criadores do Superman: Jerry Siegel & Joe Shuste
Elenco: Henry Cavill, Amy Adams, Russell Crowe, Michael Shannon.
Ano: 2013
País: EUA
Classificação: 12

 

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Nota do Autor: Dedico este texto a Fabio Graciute da Rocha, remanescente d’Os Nove, e ao meu irmão Binho, por fazer o pretérito não apagar sua incandescência.

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O Homem de Aço: a face obscura do Superman

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O novo filme do Superman, intitulado O Homem de Aço, mescla cenas de ações com imagens eloquentes que deslizam lentamente sobre a tela dando ao contexto uma conotação quase espiritual.

Nesse filme, o Superman é um ser angustiado, em fuga, que não sabe o que ou quem é, nem de onde veio, e que está em constante retorno às suas memórias da infância, da adolescência e até daquelas que ele nem consegue identificar em qual tempo ou espaço existiram. Assim, o que diferencia esse Superman de tantos outros que já assistimos talvez sejam os sentimentos (tão humanos) de raiva, frustração e insegurança que o acompanham desde a infância.

Enquanto filmes como “Os vingadores” tinham nos elementos cômicos alguns dos seus melhores momentos, um recurso até mesmo usado no sombrio Batman (seja na comicidade mórbida do Coringa, ou no tom engraçado e paternal do seu fiel mordomo Alfred), em o Homem de Aço, a ausência desse tipo de recurso dá ao filme um diferencial ousado.

Nos outros filmes do Superman, aqueles em que o herói-alienígena ainda usava uma cueca sobre a calça colante, o personagem tinha um ar mais ingênuo, politicamente correto, com um senso moral irrepreensível, alguém que parecia ser um ideal humano. Talvez bem diferente do Super-Homem imaginado por Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra”, um conceito que surgiu na medida em que “o homem se tornou uma coisa que tinha de ser superada”, pois este “é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo”.  Mas, do que estava falando mesmo? Ah, sim… dos outros filmes do Superman.

Pois bem, o novo filme tem lá suas mudanças, mas ainda assim é um filme do Superman. Logo, mesmo que ele já consiga admitir que tenha vontade de esmurrar os moleques que o tornaram o adolescente de Kansas que mais sofreu bullying, ou, em um dado momento, tenha estraçalhado – de fato – um pobre objeto inanimado (não estou nomeando-o aqui para não estragar a surpresa) evitando, com isso, machucar um bêbado insolente, ainda assim, é um jovem íntegro, com vários preceitos morais, criado por uma pacata família do Kansas.

Já tivemos uma apresentação magnífica do Jor-El, feita por Marlon Brando, em Superman – O filme (de 1978), mas nunca tivemos (já estou esperando um comentário dizendo: você esqueceu de…. ) uma reconstituição tão surpreendente do planeta Krypton. Um planeta mais avançado tecnologicamente que a Terra e que, por isso mesmo, sofreu algumas das nefastas consequências que acompanham determinadas inovações. A destruição de Krypton teve relação com duas situações: o excesso da extração de seus recursos naturais e a degeneração do meio social devido ao uso da engenharia genética para a criação de um novo modelo de vida.

Em Krypton, cada pessoa nasce com UM PROPÓSITO. E isso poderia ser uma coisa positiva, dado o fato de que a maioria de nós passa toda uma vida a procura de um propósito, de um sentido. Mas por que em Krypton, Jor-El (o eterno gladiador Russel Crowe) e sua esposa vão de encontro a essa premissa e dão ao seu filho, literalmente, um mundo de dúvidas? Sendo bem ingênua, diria que talvez seja porque não há ser humano (ou kryptoniano) que suporte viver num ambiente totalmente programado,  direcionado pelos preceitos de uma lógica que tem apenas doisstatus: zero ou um (verdadeiro ou falso, bom ou mau, professor ou médico etc ).

Então, nesse mundo de dúvidas que é a Terra, o Clark adulto, além da sua mãe Martha, pode contar com a Lois, que é apresentada nesse filme como uma mulher com a inquietação  e curiosidade peculiares desse personagem, porém mais proativa e independente.

Estamos no século XXI, logo seria complicado nos depararmos com uma Lois que não reconhecesse o Clark por causa dos óculos, ou que gritasse a cada cinco minutos para que ele viesse salvá-la do perigo (ops.. isso é o Super Mouse, mas está valendo). Lois, nesse filme, consegue interagir com um programa de computador com consciência (sem detalhes rs), guardar em sua memória fantástica um plano extraordinário e… Enfim, é um filme de superheróis, e isso não pode ser esquecido. Você só pode aceitar um alienígena que voa, que tenha visão de raio-x e entorta aço ou qualquer coisa que ele queira, se estiver embuído de um espírito imaginativo e permeado por licença poética rs.

Há no filme uma tentativa de aproximar a figura do Superman (cujo S significa Esperança no dialeto de Krypton) ao Messias do Cristianismo. O que é comum em muitas histórias de heróis da ficção científica. Talvez em O Homem de Aço essa proximidade ficou ainda mais evidente, pois há uma série de elementos na tela que remete a isso, seja nas constantes apresentações do Superman de braços abertos (como se estivesse na cruz), seja no fato de ter um pai que existe além desse universo.

Inclusive, em um dos momentos de decisão de Clark, no qual ele precisa ir contra o seu pai da Terra e atender a sua consciência, que é uma mescla da consciência de seu pai de Krypton, é mostrada na tela a clássica imagem de Jesus no Jardim de Getsêmani na noite que antecedeu a traição que ele sofreu por um dos seus discípulos.


Talvez, metaforicamente, o diretor quisesse transmitir a ideia de que ao colocar-se como um defensor da humanidade, o Superman também pudesse ser traído por ela. E é esse o embate principal do filme, o Clark que é tão humano, mas paradoxalmente, tão deus, para salvar a Terra, teria que ir contra aquele que era, de certa forma, seu semelhante, apresentado na figura do General Zod (um homem com um propósito).

O conjunto de elementos que permeia a personalidade do Superman fez nascer uma expressão, que parece ter sido introduzida em 1954 pelo Dr. Fredric Wertham em seu livro Seduction oft he Innocent: complexo de Superman. Tal complexo advém de um “sentimento doentio de responsabilidade, ou na crença de que todos os outros não têm a capacidade para executar com êxito uma ou mais tarefas” 1 . É como se a pessoa tivesse a necessidade constante de “salvar” os outros, já que tem os meios mais concretos para isso (ao menos, em sua concepção).

Um dos pontos mais bonitos do filme é a imagem do Superman a partir do olhar de Jonathan Kent (Kevin Costner). Como um pai amoroso, ele quis proteger seu filho da complexidade que seria revelar sua natureza tão diferente e, de certa forma, tão superior fisicamente à humana. Pela primeira vez em um filme do Superman, essa situação estranha de ter um homem em nosso meio que voa e que tem uma força descomunal é apresentada de forma tão sensível.  A existência de alguém assim poderia representar a ruptura dos mais profundos conceitos que sustentam e definem a humanidade.

Ao ver seu filho brincando de ser um herói, uma brincadeira que faz parte do universo de tantas crianças, ele começa a temer o inevitável, ou seja, parece que aquele indivíduo já nasceu com um propósito. Logo, não haveria meios capazes de provocar uma mudança em sua natureza, pois os poderes que ele possui não existem a partir de uma escolha, mas de uma condição. Não sei se essa conclusão é assustadora ou libertadora, mas, acredito que seja, ao menos, inquietante.

Nota:

1 http://en.wikipedia.org/wiki/Superman_complex


FICHA TÉCNICA DO FILME

O HOMEM DE AÇO

Título Original: “Man of Steel”
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David S. Goyer, Kurt Johnstad
Criadores do Superman:Jerry Siegel& Joe Shuste
Elenco Principal: Henry Cavill, Amy Adams, Russell Crowe, Michael Shannon, Diane Lane, Kevin Costner, Laurence Fishburne.
Produção: Charles Roven, Christopher Nolan, Deborah Snyder, Emma Thomas
Fotografia: Amir M. Mokri
Ano: 2013

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