Sacrifício e resiliência – (En)Cena entrevista a médica Susana Silva

Compartilhe este conteúdo:

“Acho que só outra mulher conseguiria entender o sofrimento de uma mulher que está na linha de frente contra o COVID, é o medo de perder a família medo de contaminar a família, e se identificar com os pacientes, com as famílias dos pacientes e de se esquecer toda a vaidade de ser mulher para garantir a segurança de não transmitir a doença”
Susana Bernardes da Silva

Como podemos pensar a saúde mental das mulheres que lideram a linha de frente contra a COVID 19? O Portal (En)Cena conversa com a médica Susana Bernardes da Silva, chefe da UTI COVID da Unimed de Palmas-TO, para entender sua perspectiva acerca dos desafios de ser mulher, no Brasil da pandemia.

Susana Bernardes da Silva – Foto: arquivo pessoal

A entrevistada apresenta os sacrifícios diários do bem-estar e da vaidade como parte da dura rotina na linha de frente do combate ao coronavírus. Além disso, retoma as dificuldades enfrentadas usualmente pelas mulheres para serem reconhecidas como sujeitos capazes pela família e pela sociedade. Por fim, a médica destaca como soluções para as mulheres no pós-pandemia: a importância de ter foco e de manter a capacidade de crescer; apesar das inegáveis marcas que o sofrimento psíquico causado pela atual situação de calamidade deixará em profissionais da linha de frente, pacientes e cuidadoras.

(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala de: mulher, médica, profissional da linha de frente na luta contra a COVID 19, líder de equipe e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID 19?

Dra Susana Bernardes da Silva – O que é ser mulher durante essa pandemia? Para mim, ser mulher sempre foi se desafiar, sempre foi tentar vencer uma luta todos os dias. Então nessa pandemia me sinto exercendo com mais vigor e com mais força aquilo que sempre vivenciei. Se desafiar a encontrar um lugar melhor para si e para todos que te cercam, mostrar para si e para os outros que você é capaz. Capaz de unir forças para vencer a dor, o medo, o pavor e cuidar e recuperar a vida das pessoas.

 (En)Cena – Na sua opinião, como podemos compreender o sofrimento emocional das mulheres que estão na linha de frente da luta conta a pandemia no Brasil?

Dra Susana Bernardes da Silva – Acho que só outra mulher conseguiria entender o sofrimento de uma mulher que está na linha de frente contra o COVID. Em resumo: é o medo! Medo de perder a família, medo de contaminar a família. É se identificar com os pacientes, com as famílias dos pacientes e se esquecer de toda a vaidade de ser mulher para garantir a segurança de não transmitir a doença. Eu tendo que tomar vários banhos por dia e lavar o cabelo duas ou três vezes ao dia, não posso usar maquiagem ou joias e preciso manter o uso de várias roupas que dificultam ir ao banheiro. É também anular a vaidade e até seu bem-estar para garantir a segurança de quem você ama. Sacrifícios que as mulheres são mais acostumadas a suportar.

Fonte: encurtador.com.br/prBPY

(En)Cena – Quais são os maiores desafios e quais são os maiores aprendizados da sua experiência como médica coordenadora da uti da Unimed-Palmas durante a pandemia?    

Dra Susana Bernardes da Silva – Acredito que o maior desafio e aprendizado nesta pandemia é a resiliência, é como se Deus estivesse testando nossa capacidade de resistir, enviando em forma de ondas de mortes o recado para continuarmos focados em ficarmos mais voltados para nossas próprias famílias. No entanto, nós da saúde precisamos nos dividir entre cuidar das nossas e das outras famílias.

Fonte: encurtador.com.br/acjJP

(En)Cena – Segundo seu conhecimento profissional, como a experiência da COVID pode afetar a saúde mental das mulheres enquanto pacientes? E enquanto cuidadoras?

Dra Susana Bernardes da Silva – Acho que todos ficaremos afetados pelo terror e pavor de estar muito próximos da morte. As pacientes que cuidamos na UTI, acredito que passam por uma sensação de ter renascido e uma eterna gratidão, muitos terão crises de ansiedade. As cuidadoras também sofrem com ansiedade por exaustão, tanto física como mental.

Fonte: encurtador.com.br/kuDNY

(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?

Dra Susana Bernardes da Silva – O caminho para as mulheres pós pandemia é manter a capacidade de crescer e manter o foco, mesmo em momentos de extrema adversidade. Não creio que seja algo novo para as mulheres. Como disse no início, sempre vivemos em adversidades e crescemos cada vez mais, dentro da sociedade e da família.

Compartilhe este conteúdo:

A vaidade é o pecado predileto do Diabo em “A Casa Que Jack Construiu”

Compartilhe este conteúdo:

Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História.

Fonte: encurtador.com.br/krtKQ

Jack é um engenheiro que sonha em ser arquiteto. Quer sair do anonimato dos cálculos matemáticos para o impacto público da produção de ícones. Arte e Morte andam juntas. E para comprovar sua tese Jack se transforma num cruel e paradoxal serial killer que faz de tudo para chamar a atenção da polícia e da imprensa para suas “obras-primas”. Esse é o filme “A Casa Que Jack Construiu” (2018), do controvertido, diretor Lars von Trier, que discute a atual “arte degenerada” que confunde a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral. Tipo de arte que vai encontrar no fenômeno do serial killer o seu paroxismo. Mas, da pior forma possível, Jack vai descobrir que a vaidade é o pecado mais admirado pelo Diabo.

“Criamos os verdadeiros ícones desse planeta. Somos considerados o mal derradeiro. Todos os ícones que tiveram ou terão impacto no mundo”. O protagonista Jack defende a sua tese, fazendo alusão à “arquitetura da destruição” do nazismo, os aviões de bombardeio da força aérea alemã com sirenes no trem de pouso para aterrorizar as cidades bombardeadas ou a famosa foto de crianças nuas queimadas por napalm na Guerra do Vietnã.

O detalhe é que Jack é um serial killer que compara seus assassinatos a “obras de arte”, cuja ápice é a produção de ícones, obras-primas perfeitas que impactam o mundo. Jacky denomina essa arte de “extravagante e nobre putrefação”.

Em A Casa que Jack Construiu (2018), de Lars von Trier, o Mal é frio e sistemático – ele não é oposto à Razão, mas figurado como o outro lado da racionalidade, assim como a Arte e a Morte andam juntas na História. No filme vemos as imagens de líderes totalitários como Hitler e Stalin enquanto Jack discorre sobre a produção de ícones à serviço da guerra. Era aquilo que o pensador francês Jean Baudrillard denominava como “reversibilidade simbólica” no qual a Razão se converte em irracionalidade, representada em filmes como Saló (Pasolini), A Centopeia Humana (Tom Six) ou O Clã (Pablo Trapero) – veja links no final da postagem.

Mas Lars von Trier acrescenta algo a mais. Para quê fazer grandes obras de arte sem conseguir a notoriedade? Quando surge a arte, senão apenas quando é elevada a condição de ícone para alcançar a fama, o sucesso e o reconhecimento? – o “impacto”. De que adianta matar de forma “artística” e sistemática, sem ter visibilidade e reconhecimento? 

Ao contrário de um “Jack, o Estripador”, jamais identificado pela polícia numa época vitoriana, Jack de Lars von Trier é o praroxismo do serial killer em busca de visibilidade e ostentação no mundo pós-moderno. E na atualidade, nada mais “icônico” do que ganhar visibilidade por meio da morte e da violência.

Fonte: encurtador.com.br/inGMQ

Assim como Razão e Irracionalidade, Arte e Morte são duas faces de um mesmo movimento, da mesma forma A Casa Que Jack Construiu sugere que o fenômeno do serial killer e a sociedade das imagens seriam os dois lados de uma mesma moeda.

O Filme

Jack (Matt Dillon) é um prodigioso assassino em série. Ele já matou dezenas de pessoas e está a caminho do Inferno literal, acompanhado de Virgílio (Bruno Ganz), numa referência direta ao guia de Dante através dos círculos infernais em “A Divina Comédia”. Na verdade, acompanhamos os diálogos em off dos dois, enquanto Jack descreve e comenta cinco dos seus mais brutais crimes, acompanhando a evolução da sua loucura.

 No primeiro “incidente” assistimos a um delicioso meta-humor negro quando Jack encontra na estrada uma mulher com o pneu do seu carro furado. Jack dá uma carona para a ela (Uma Thurman) até a oficina mais próxima, enquanto a mulher fala o tempo inteiro que ele se parece com um serial killer, em um furgão vermelho e sem janelas. Mas, parece fraco demais para ser um assassino. Quando Jack já teve o suficiente, dá um violento golpe no rosto da mulher com o macaco do seu carro. Esse meta-humor negro da primeira sequência vai ditar o tom de toda a narrativa.

Fonte: encurtador.com.br/ikqr9

Os crimes de Jack vão se tornando cada vez mais insanos e violentos, parecendo que não há limites para Lars von Trier – Jack mata uma aposentada na sala de estar; transforma crianças em alvo de tiros de caça esportiva; extirpa os seios de uma mulher a qual chama de “Simples” (Riley Keough) por considera-la muito burra. Isso não sem antes anunciar para “Simples” o que fará, enquanto a mulher acha tudo muito exótico para crer. 

Na verdade, Jack o tempo inteiro tenta chamar a atenção da polícia, da imprensa e dos vizinhos para os seus crimes – deixa-se ser visto com a mulher que será assassinada na primeira sequência, arrasta com o furgão pelas ruas o corpo ensanguentado da mulher aposentada, faz “Simples” gritar por socorro na varanda do seu apartamento, desce na rua com a vítima e grita para um policial que já matou 60 pessoas etc.

Jack descaradamente comete seus crimes, muitas vezes voltando à cena para levar de volta os corpos para produzir fotos perfeitas para enviá-las à mídia com a assinatura “Mr. Sophistication”. Jack empilha os corpos em um imenso freezer num frigorífico, ao lado de pilhas de caixas de pizza congelada. O que pretende Jack?

Fonte: encurtador.com.br/abmoQ

A crítica considera o filme como autobiográfico: do caráter obsessivo-compulsivo de Jack (ele sofre de TOC) à forma prazerosamente caprichosa como os movimenta os corpos no freezer de um lado para outro para fotografá-los, como um diretor cinematográfico posicionando os atores em um set de filmagem.

Porém essa leitura psicologizante, muito comum em críticas cinematográficas, acaba limitando o escopo real de Lars von Trier: fazer uma reflexão entre a Arte e a Morte. Principalmente na sociedade do espetáculo, no qual o conceito de “Arte” se iguala às noções de visibilidade e impacto.

Da “Era Trump” ao ascetismo mundano

Em entrevistas, o diretor associa o tema do filme à Era Trump e sua estratégia icônica de chamar a atenção com bravatas e provocações. Uma espécie de Arte, porém “degenerada”, ao confundir a produção “artística” com a capacidade de produção imagética viral.

Fonte: encurtador.com.br/fVX12

Jack, assim como a própria natureza do serial killer atual (atiradores, homens-bomba etc.), teria aquilo que o pesquisador Richard Sennett chamava paradoxalmente de “ascetismo mundano” dentro do quadro geral do “declínio do homem público”.

O “ascetismo mundano” seria derivado da ética protestante tal qual descrita por Weber. Enquanto na ética cristã o ascetismo de um monge é um impulso voltado para o interior (“um monge que se flagela a si mesmo diante de Deus, na privacidade da sua cela, não pensa na sua aparência diante dos outros” – SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 406.), ao contrário, na ética protestante há um componente mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus (ou ao Diabo, no caso de Jack) mas aos outros a sua renúncia e sacrifício, provando a todos ser um merecedor das graças divinas. Isso se insere na cultura narcísica atual como um impulso autoconfessional como uma performance do eu interior diante dos outros nas redes sociais.

Jack é um engenheiro que sonha em se transformar em arquiteto. O engenheiro, com seus cálculos matemáticos e precisão, é um asceta anônimo. Ele sonha em construir uma casa como um arquiteto. Vê a construção como um evento icônico (arte, estilo etc.) como promoção pública de impacto. O arquiteto é um asceta mundano.

Mas fracassa. Só resta conduzir seu narcisismo ferido às mortes espetacularmente cruéis de “Mr. Sophistication”.

Como diz o demônio All Pacino no filme O Advogado do Diabo (Devil’s Advocate, 1997), “a vaidade é o meu pecado favorito!”. E Jack descobrirá da pior maneira possível nos círculos infernais, guiado por Virgílio.

FICHA TÉCNICA DO FILME

A CASA QUE JACK CONSTRUIU

Título original: The House That Jack Built
Direção: Lars von Trier
Elenco:  Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman
Ano: 2018
País: Dinamarca
Gênero: Drama, Suspense

 

Compartilhe este conteúdo:

A vaidade e seus espelhos partidos

Compartilhe este conteúdo:

“Prefiro ser senhor do Inferno que escravo no Céu”
John Milton

Vaidade, definitivamente meu pecado predileto’, palavras do diabo, personificado em John Milton, personagem de Al Pacino no filme Advogado do Diabo. De fato, o pecado do orgulho é considerado o mais severo entre todos, mas divide com a inveja a classificação do mais maligno, conforme descreve Dante Alighieri, na Divina Comédia. Pecados que estão interligados e que são, nos dias de hoje, aqueles que entorpecem, narcotizam, embriagam e paralisam a sociedade, tornando os homens bestiais.

Orgulho que fez com que Lúcifer, o anjo portador da luz e mais belo dos arcanjos, pretensiosamente, quisesse o posto do Criador. Vaidade que sustentou a rivalidade a Deus e que teve como consequência sua expulsão e queda do céu. Queda tão brutal que fez das profundezas da terra seu refúgio, seu inferno, o oposto ao paraíso divino. O inferno, lugar de condenação e sofrimento.

A concepção do orgulho, atribuída a Lúcifer na tradição judaico cristã é evidenciada no poema de John Milton: ‘Prefiro ser senhor do Inferno que escravo no Céu’.

O pecado capital é aquele que nos leva a cometer outros. Capital derivado de ‘caput’, que significa cabeça. Cabeça que é a morada de nossos anjos e demônios. Por exemplo, o homicídio é o crime oriundo do pecado da ira. Mas de todos os pecados, o orgulho é o mais poderoso, pois somos constantemente envolvidos por nossa vaidade, tal qual Eva e Adão foram seduzidos pela serpente. Tentação da qual não nos desvencilhamos. Ao contrário das certezas e afirmações que insistimos em defender, das posturas e posicionamentos soberanos, convicções intransponíveis, somos pela vaidade escravizados, expondo nossas fraquezas e a contradição de nossos posicionamentos.

A vaidade surge na ideia de abdicar o ‘nós’ e tornar-se apenas ‘eu’, tal qual o Diabo em relação a Deus. Um ‘eu’ tão avolumado de ganância e cobiça que, pesado, cai em si. Se destrói. Motivo este da igreja coibir tal pecado. A beleza não poderia ser enaltecida, nem mesmo o amor próprio. Amor apenas a Deus e assim, o ascetismo religioso vigora entre os homens. Os prazeres mundanos devem ser aniquilados em prol da fidelidade e obediência ao Ser Supremo.

Loving Earth/Photopin – fonte: http://info.abril.com.br/

Narciso é a imagem mais emblemática da vaidade do ser humano. Permanecendo imóvel à contemplação ininterrupta de sua face, morreu diante de sua beleza e por sua vaidade sufocante e atormentadora.

São os altos preços que muitas pessoas pagam para satisfazer suas vidas. Buscam preencher-se com aquilo que o espelho revela faltar. Procuram, desesperadamente, curar o que não toleram na imagem refletida. Talvez a sociedade esteja vivenciando uma de suas maiores mazelas, a automutilação. A dismorfia corporal é o transtorno psíquico do momento, pautada por uma preocupação exagerada com um defeito real ou imaginado na aparência física. É o demônio que existe em cada espelho.

Para enquadrar-se aos padrões impostos, nos sacrificamos. Nos baseamos em modelos determinados e efêmeros, buscamos ser referência. A sociedade tornou-se onanista, que reivindica seu prazer, mas para tal, corrompe, distorce, maltrata, agride e açoita.

O historiador Leandro Karnal nos brinda com uma reflexão: ‘por trás de cada virtude existe uma exuberância que nos aproxima do vício’. A crença contemporânea de que a virtude é a vaidade. Eis o que ele denomina como o homem efêmero. Aquele que não suporta sua quietude, provavelmente porque assim terá que refletir sobre a própria vida e, portanto, está sempre atrás do outro. Prefere a falta de tempo, mesmo reclamando disso, do que o marasmo que possibilita as verdades inaceitáveis.

Solícitos, exigimos elogio e atenção. Nas redes sociais somos o retrato da perfeição. Um paraíso de sorrisos e harmonia. Preferimos monólogos a diálogos. Quando o outro fala, aproveitamos o ensejo para falar de nós mesmos. A vaidade é tamanha que facilmente nossa onipotência se revela e não admitimos mais falhar.

Karnal ainda insiste numa outra ideia, de que não consertamos as relações humanas, mas as trocamos porque assim ganhamos originalidade. Dessa maneira, na nova pessoa exploro o quanto sou interessante e instigante. Ele conclui: ‘E ao trocar sapatos, computadores e pessoas que amamos por outras, vamos substituindo a dor do desgaste, pela vaidade da novidade’.

Fonte: serfelizeserlivre.blogspot.com

Alimento novos espelhos, novos reflexos, porque para alimentar minha vaidade, desejo que o outro seja um reflexo meu, me admire e sustente meus caprichos.  A pessoa do passado me mostra o quanto sou desinteressante, desnecessário e irrelevante. Talvez por isso, expressar a própria opinião tenha se tornado um crime.

A opinião contrária a minha é condenável, pura e simplesmente, porque não está de acordo com meu espelho. O soberbo não divide espaço, apropriando-se dele e, para tal, torna-se maioria em detrimento à minoria, supostamente, ignorante e inadequada. O orgulho impossibilita que admitamos que as pessoas sejam diferentes de nós e que de fato elas podem não gostar da gente. Bem que Caetano já cantava, “Narciso acha feio o que não é espelho”.

Compartilhe este conteúdo:

Tudo é Vaidade

Compartilhe este conteúdo:

Era uma vez um Deus e seu Anjo. Um dia o Anjo também quis ser Deus. Eis o início da vaidade.

Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. […] Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e achei que tudo era vaidade e aflição de espírito. Os perversos dificultosamente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito.
(Bíblia Sagrada – Antigo Testamento. Livro do Eclesiastes)

 


Figura: Charles Allan Gilbert, All Is Vanity (1892)

 

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra ‘vaidade’ pode ser compreendida como “a qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória; a valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros”. No entanto, a análise conceitual de uma palavra vai além de um conjunto de significados que atribuímos a ela. Para Wittgenstein (1958), o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”. Isso dá ao conceito uma amplitude maior no que tange à sua análise, pois já não há um campo seguro de verdades finitas ou constantes.

Historicamente, a vaidade pode ser relacionada a uma categoria de pecado da qual ninguém está imune, ou seja, aquele pecado que permite ao indivíduo, por vezes ordinário, sentir e querer mostrar-se aos outros como alguém extraordinário. Há quem defende tal pecado como uma necessidade básica, pois a criação de personas em torno de sua “real” figura torna-se relevante para a definição e criação das mais infinitas obras e perfis, que vão desde a ascensão de impérios e estados até a imortalização de uma imagem (quando aquilo que a vaidade construiu se torna maior do que aquilo que a pessoa de fato é).

Em Os Irmãos Karamázov, vimos um dos personagens apresentar um questionamento que traz à tona a complexidade do conceito de liberdade, mesmo diante de um contexto que parece primar pelo pecado da vaidade, ou seja, pela possibilidade de recriar um “eu” segundo a sua imagem e semelhança.

“’Diante de quem se inclinar? Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar…” (Os irmãos Karamazov, Dostoiévski)

Parece que as palavras do Grande Inquisidor de Dostoiévski formam uma contradição à vontade de poder apresentada por Nietzsche em sua obra “Assim falou Zaratustra”, na qual ele diz que “onde encontrei vida, ali encontrei vontade de poder, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor”. Mas, para uma contradição vir à tona tem-se que ter um grau maior de entendimento da semântica dos enunciados. Assim, quando as frases ganham (talvez por vaidade) uma complexidade semântica, situá-las em polos extremos para entender conceitos como contradição torna-se, por vezes, uma tarefa não apenas incongruente, mas também sem sentido.  De certa forma, há a necessidade de ser senhor e, para tanto, a vaidade exerce um papel decisivo, mas, em contrapartida, há um desejo primitivo em ser guiado.

 

Foto: Hitler – Hulton Archive / Getty Images

 

A vaidade de Hitler, por exemplo, ajudou a criar a figura histórica responsável pelas maiores atrocidades do século XX. Sua vaidade foi estabelecida diante da fraqueza de um país em decadência econômica e publicamente humilhado depois da Primeira Grande Guerra. Assim, temos o início de uma espécie de vaidade gerada no indivíduo, mas defendida por toda uma população, sustentada por uma espécie de “loucura coletiva”. Essa passagem atribulada da história foi contada de forma crua (e polêmica) no livro do professor de Harvard Daniel Jonah intitulado “Os carrascos voluntários de Hitler”. Nele, o autor apresenta a corresponsabilidade do povo alemão nas ações que definiram o genocídio dos judeus. E, com isso, as palavras sombrias do Grande Inquisidor de Dostoiévski ecoam pelos séculos cada vez mais atuais:

Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. 

Marylin Monroe por Richard Avedon (1957)

“Nunca enganei ninguém, só deixei que as pessoas enganassem a si mesmas. Ninguém se preocupou em tentar descobrir quem eu era de verdade. Inventaram uma personagem para mim. Nunca desmenti”. Marilyn Monroe

 

Essas fotos da atriz americana Marylin Monroe feitas pelo fotógrafo Richard Avedon sintetizam a ideia da vaidade que reside em cada um de nós, mas especialmente apresentam o momento em que ela nos deixa a sós. Acostumar-se a vaidade não significa viver o tempo todo com ela. Parece que até a vaidade, o pecado que veio acompanhado pelo quantificador universal (todo) na Bíblia, às vezes afasta-se do seu hospedeiro. Avedon contou uma vez como aconteceu o momento decisivo para capturar uma imagem da Marylin sem a vaidade dos seus personagens. Ele disse que, depois de um tempo fazendo poses sensuais e luminosas, ela sentou-se em uma cadeira no canto do estúdio e pareceu se encolher, como uma criança assustada. Nesse instante, ele produziu a última foto do ensaio e, para o fotógrafo Vik Muniz, “o quadro final resultante está entre os retratos mais famosos de todos os tempos”. Roland Barthes, ao elogiar Avedon por captar esse momento, disse que essa foto “é a evidência de que, dentro da imagem, há sempre algo mais”. Talvez nem tudo seja vaidade.

 

Foto de Robert Doisneau, 1963

O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso.

Fernando Pessoa, in “Da Literatura Européia”

 

A última possibilidade apresentada por Pessoa (“ser vaidoso sem ser orgulhoso”), considerando sua definição de orgulho e vaidade, reflete a complexidade da natureza humana, que mesmo sem a consciência, de fato, dos seus méritos e virtudes, constrói um conjunto de disfarces para que possa ser exaltada, copiada e seguida. Na continuação desse texto, Pessoa diz que “o homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é”. Com essa última frase, ele apresenta um novo vislumbre dessa pessoa  vaidosa e sem orgulho, ou seja, esse indivíduo não é alguém que ignora seus méritos, mas apenas não os acha bons o suficiente para o tornar alvo de admiração dos outros, daí criam-se as máscaras.

 

Foto: Elizabeth Taylor em cena no filme ‘Ash Wednesday’ em 1973

 

Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Poesias de Álvaro de Campos, Tabacaria, Fernando Pessoa)

 

No livro “Os nus e os mortos” (publicado originalmente em 1948), Norman Mailer, ao apresentar sua visão dos campos de batalha na Segunda Guerra (a partir de sua vivência nas trincheiras), traz nas falas de seus personagens uma reflexão sobre a identidade humana: “Há aquele equívoco popular de considerar que o homem é uma coisa situada entre a besta e o anjo. Na realidade, o homem está em trânsito entre a besta e Deus”. E, novamente, tem-se o retorno ao início da vaidade, ao desejo da criatura em tornar-se o criador, mas com grande possibilidade de tornar-se o seu contrário, ao menos no que tange a representação dessas duas figuras no imaginário coletivo.

 

Charlie Chaplin por Richard Avedon (1952)

 

“Não é a religião, isso é óbvio, não é o amor, não é a espiritualidade. Todas essas coisas são engodos, propinas que inventamos para nós mesmos quando as limitações de nossa existência nos desviam do outro sonho: o de nos igualarmos a Deus. Quando entramos esperneando no mundo, somos Deus, o universo é o limite de nossos sentidos. E quando nos tornamos mais velhos, quando descobrimos que não somos o universo, sofremos o mais profundo trauma de nossa existência.”

(Os nus e os mortos, Norman Mailer)

 

A vaidade em seu aspecto mais conceitual é representada pelo vazio, pela inconsistência. No entanto, não há leveza nesse vazio, há uma luta constante em manter uma representação, em partir para o embate (seja com Deus ou com sua própria natureza), em refutar aquilo que É em nome daquilo que gostaria DE SER. Por que insistir em representar uma figura para os outros? Talvez porque Sartre tenha razão: “o inferno são os outros”. A vaidade existe porque há o outro. O anjo só se rebelou porque havia um Deus. Embora tenha iniciado esse texto buscando (internamente e, talvez, vaidosamente) refutar o axioma inicial (“Tudo é vaidade”), termino-o derrotada, isso porque há o outro.  Assim, se a existência do outro é condição suficiente e necessária para a concepção e base da vaidade, então que aprendamos a lidar com o pecado e, principalmente, a sobrevivermos a ele.

Referências:

A BÍBLIA SAGRADA, Velho Testamento, Eclesiastes.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. 2  volumes.

GOLDHAGEN, Daniel J. Os Carrascos Voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto. Tradução de Luís Sérgio Roizman. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

MAILER, Norman. Os nus e os mortos. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Silva. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos (Tabacaria). Disponível em:
http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

Compartilhe este conteúdo:

Nossa louca vontade de pecar: ensaiando conversas da presentividade

Compartilhe este conteúdo:

 

Nos tempos atuais Foucault (1978) já nos advertiu sobre o quanto nós passamos tentando enclausurar os considerados “loucos”. O que é ser louco? Ser louco é ser desarrazoado? A loucura é clínica? (PÉLBART, 2009). Diante de tantas experiências humanas, o contemporâneo nos interpela sobre tantos outros temas tradicionais: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”. (Romanos 7,19). Pecado original, pecado mortal, pecado venial são os pecados que conhecemos na tradição cristã que se popularizaram no século XIV entre artistas e que teve no século XVII a contribuição de Tomás de Aquino.

Ao falar de pecado e do ato de pecar nos levam à Lei: a Bíblia, livro no qual o pecado é recorrente, aliás, os considerados “sete pecados capitais” precedem o cristianismo, mas que são importantes na doutrina religiosa com o objetivo das igrejas controlarem, advertirem e exortarem seus seguidores sobre seus instintos, atos e práticas pecaminosos.

Para a Igreja existem pecados perdoáveis sem a necessidade de confissão. Porém os pecados capitais são condenáveis. “Já nascemos marcados pelo pecado e queremos satisfazer as suas vontades” (Romanos 8,7), uma transgressão, uma contravenção à Lei dada por Deus através do profeta Moisés consubstanciada nos Dez Mandamentos.

Fonte: vindeaosenhor.blogspot.com

O texto são falas esparsas, sem a preocupação acadêmica sistemática, de um ensaísta implicado pelos atos do contemporâneo. Considero ensaísta, aquela pessoa que escreve textos expondo suas opiniões, críticas e ideias acerca de determinados temas atuais sejam eles filosófico, religioso, político, moral, comportamental, literário, cultural… de forma livre e sem regras, sem estilo definido. Porém tratar de questões de costumes nunca deixa de ser provoca(ações), polêmicas do nosso tempo.

 

1. A constituição religiosa do pecar

O ato ou o desejo contrário à Lei Divina e que, portanto, ofende a doutrina cristã, é o que se convencionou chamar de pecado. A Lei Divina co-existe, uma existência dentro de outra existência,  nos “Dez Mandamentos” da Lei de Deus.

Para a Igreja, a gravidade do descumprimento dessa lei pelo pecado foi revelada pela paixão e morte de Cristo, ao mesmo tempo em que Ele demonstra, pela sua ressurreição, a possibilidade de vencê-lo assim como Ele mesmo o fez. Isso é doutrina: conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, militar, pedagógico etc.

Portanto, a partir desta catequese, esse tipo de ensinamento religioso cristão, podemos entender que pecamos contra Deus, contra o próximo e contra nós mesmos. E esse pecado pode ser por pensamentos, por palavras, por ações ou omissões. O ato de contrição, de arrependimento, do rito litúrgico religioso católico-apostólico-romano retrata essa condição do pecador: “Confesso a Deus todo poderoso e a vós irmãos e irmãs, que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões, por minha culpa, minha tão grande culpa. Peço a Virgem Maria, aos Anjos e aos Santos, e a vós irmão e irmãs, que roguei por mim a Deus nosso Senhor”.

Fonte: pnsfatimadeolaria.wordpress.com

 

A repetição do pecado gera vício, hábito. E o pecado ao se constituir assim obscurece a consciência e inclinam ao mal, pelo menos essa é a doutrina. Os vícios estão ligados aos sete pecados capitais: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça, que precisam, nessa tradição, constantemente ser confessados e arrependidos.

O pecar é uma desobediência à vontade de Deus. Constitui-se num erro, um desvio do padrão, do ideal cristão. “Todo aquele que pratica o pecado transgride a Lei; de fato, o pecado é a transgressão da Lei” (João 3,4), está posto.

 

2. A louca vontade de pecar.

Fonte: www.filhosdefatima.com.br

 

Conforme os escritos bloggeiros de Esdras Gregório “Não existe na natureza uma consciência de se desejar satisfazer as vontades da carne de forma direcionada e moral”. […] “O instinto não deseja a principio algo por ser errado, pois não é um ser pessoal que tem consciência moral, mas um impulso nato que visa o seu funcionamento normal e saudável”. “Portanto não existe o desejo de pecar, mas o desejo naturalmente cego e aleatório que deve sim ser direcionado a um modo de satisfação que não lese e prejudique o próximo” (Blog dos Esdras Gregório, 16/04/11).

Aqui introduzimos as polêmicas teses sobre os costumes e a moral que velam as questões do sagrado, profano, instinto, livre arbítrio, natureza humana, loucura. Na tradição judaico-cristã o pecado deve ser evitado, assim como a loucura. Para Sócrates existem diversas modalidades de loucura: a loucura humana e a loucura divina. A loucura humana explica as perturbações do espírito pelo desequilíbrio do corpo. A loucura divina nos tira dos hábitos cotidianos, ou até pecaminosos.

A loucura divina, diz Sócrates, subdividi-se nas quatro espécies seguintes, correspondentes, cada uma delas, a uma divindade específica: a loucura profética (Apolo), a ritual (Dionísio), a poética (as Musas) e a erótica (Afrodite). Desta série a mais bela é a última, pois leva, como se sabe, à filosofia (PELBART, 2009: 25).

Além dessas loucuras Platão fala da loucura telestática ou ritual, como culto dionisíaco. “Dionísioera o deus do vinho, da fecundidade, da caça, da música, da alegria ou da vida, mas, qualquer que fosse seu atributo, lá onde era celebrado seu culto tinha um caráter de exaltação e excesso” (PÉLBART, 2009: 32). Dionísio era considerado aquele que levava as pessoas a se comportarem como “loucos”.

Dionísio já era considerado, nessa época, o libertador (eleuthério), em dois sentidos. Libertava a terra das amarras do inverno (era também uma festa da primavera) e livrava os homens do peso das preocupações e das misérias da vida. Dionísio era o deus que trazia aos homens e à natureza a liberdade (PÉLBART, 2009: 33).

Se Dionísio é o deus da liberdade, a vaidade considerada irmã da beleza e a luxúria sua filha, estes pecados estão entranhados no nosso cotidiano e estão porque somos culturais. E por que pecamos? Porque o princípio corrupto da carne permanece em nós, ou seja, corroborando a tese: a carne é fraca, portanto, o pecado faz parte da nossa natureza, ou não, tomara que faça!

 

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Dionysos_Louvre_Ma87.jpg

 

3. Porque Pecamos: lúxuria e vaidade

Luxúria (luxuriae) é o desejo passional e egoísta por todo o prazer sensual e material. É o que comumente dizemos: “deixar-se dominar pelas paixões”. Considerada um pecado capital, a luxúria consiste no apego aos prazeres carnais, corrupção de costumes; sexualidade extrema, lascívia e sensualidade. É considerada o pecado mais abusivo por conduzir aos demais pecados. À luxúria são atribuídos também à prostituição, à sodomia, a pornografia, incesto, pedofilia, zoofilia, fetichismo, sadismo e masoquismo, tudo o quanto é considerado “desvio sexual” e parafilia na concepção médico-higienista.

Se buscarmos o termo “parafilias” encontraremos caracterizado na classificação internacional dos distúrbios mentais como sendo os anseios, as fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

A vaidade, orgulho e soberba por sua vez, é aquele desejo de atrair admiração de outras pessoas. É a vontade pessoal de ser sempre admirado. Pelo culto ao visual e à aparência estas questões estão associadas ao mito de Narciso, assim como à Afrodite: a deusa do amor, da luxúria, da beleza e do orgulho.

O Nascimento de Vênus, por Sandro Botticelli.Fonte: mithsofgreece.blogspot.com

 

Comumente no narcisismo está representada a vaidade, o egocentrismo, um indivíduo que toma consciência de si mesmo, em si mesmo e perante si mesmo. O mito de Narciso em suas várias nuances,

tem uma influência decidida na cultura grega homoerótica inglesa Vitoriana, por via da influência de André Gide no seu estudo do mito Traité du Narcisse (‘O tratado de Narciso’, 1891), e da influência de Oscar Wilde. Também, muitas personagens dos escritos de Fyodor Dostoevsky (escritor russo do século XIX) são tipos de Narcisos solitários, tal como Yakov Petrovich Golyadkin em “The Double” (Publicado em 1846). Ainda na literatura, Paulo Coelho, em O Alquimista, utilizou como prefácio o mito, usando também a emenda que Wilde escreveu sobre o que ocorreu depois da morte de Narciso (Wikipédia, 2013).

Narciso por Caravaggio. Fonte: www.ribeiraopretopsicologia.com.br

O mito chegou até nós também pela música “Sampa” de Caetano Veloso, na qual retoma o mito para dizer a sua sensação quando chegou a São Paulo pela primeira vez: “[…] Quando eu te encarei. Frente a frente. Não vi o meu rosto. Chamei de mal gosto o que vi de mal gosto o mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho. E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho. Nada do que não era antes quando não somos mutantes” … mas pecamos, por que mesmo?

 

4. Pecamos por prazer, ou qual o porquê de não pecarmos

Pecamos por prazer, porque nenhuma religião, nenhum deus consegue aprisionar o ser humano. E sentir uma sensação, uma emoção agradável, ligada à satisfação de uma tendência, de uma necessidade, do exercício harmonioso das atividades vitais, todo mundano quer pecar, quem não faz e evita tem muitos motivos e uma série de interdições que não o deixam pecar. Ser orgulhoso, por exemplo, é ter sentimento de satisfação, associa-se ao altruísmo. E por que não pecamos? Por que estamos infectados com o vírus da culpa?

Fonte: mithsofgreece.blogspot.com

Estamos infectados?!. “A mente é uma candidata plausível para infecção por algo como um vírus de computador” afirma Richard Dawkins em o “Vírus da Mente”.

Diz-se que um vírus de computador é um programa perigoso igual a um vírus biológico. Faz cópias de si mesmo, navega para outros computadores infectando o sistema e interferindo nas operações do computador, corrompendo e apagando dados e arquivos.

Para Dawkins “é intrigante imaginar como seria, do interior, se a mente de uma pessoa fosse vítima de um “vírus”. Este poderia ser um parasita deliberadamente projetado, como um vírus de computador atual. Ou poderia ser um parasita inadvertidamente transformado e inconscientemente evoluído”.

A infecção das mentes acontece por condicionamentos, alienações, alegorias, mitologias, idealizações e ideologismos. O The Da Vinci Code de 2003 dentre as suas polêmicas retrata as aventuras de desvendar códigos que deem respostas aos enigmas. Na trama há uma preocupação de entender os símbolos, sua representatividade e influências sobre os personagens.

A história da humanidade é representada por seus símbolos que expressam mitos, crenças, fatos, ideias, paradigmas e situações como formas de representação da realidade e de poder e do que se considera “loucura”.

Se é verdade que a Antiguidade grega manteve com o louco uma proximidade de fato e uma distância absoluta de direito, contrariamente à época moderna, em que a identidade com ele é de direito e a distancia é de fato, através da reclusão asilar, o mínimo que podemos dizer, a respeito dessa inversão, é que com ela alterou-se a geografia da loucura. Se antes ela era impensável por estar demasiado próxima e ao mesmo tempo excessivamente distante, tanto do homem como da razão, um pouco como o sagrado, e não sem relação com ele, como já observamos, a modernidade poderá pensar a loucura porque, ao subordiná-la antiteticamente à racionalidade, médica ou filosófica, terá consumado, no mesmo gesto, sua subjugação (Pelbart, 2009: 41).

Conforme Dawkins “como vírus de computador, vírus da mente de sucesso tenderão a ser difíceis para suas vítimas descobrirem. Se você for a vítima de um, as chances são de que você não saberá disto, e pode até mesmo negar vigorosamente isto”.

Nesse sentido é representativo um texto de Marina Colasanti (1996). “A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. […] A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. […] A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. […] A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”.

Você não está acostumado demais e até mesmo infectado por uma ideia, ideologia, doutrina, uma situação?! “Felizmente, os vírus não ganham sempre”, que venha uma nova onda de dentro de você!

 

Reiniciando, a provoca(ação)

Temos vivido nos preparando para o futuro e não saboreamos sequer os momentos do presente, sofrendo e nos torturando a cada dia com base no passado. Garantiram-nos recompensas após a morte e aceitamos ser maltratados, enlouquecemos, enlouquecem-nos para termos recompensa na vida pós-morte. E como dizia Woody Allen, “sexo alivia as tensões, o amor às causas”, pois o sexo “é a coisa mais divertida que se pode fazer sem rir”, entretanto, como nos dias atuais a diversidade sexual e de gênero está tão vigiada e punida.

Foto: Robert Mapplethorpe

 

Está na hora de fazermos uma loucura. Vamos deixar de viver no velho mundo das tradições, das antigas pregações, das antigas ideologias e viver a vida como ela é. Os pregadores da antiga lei e dos testamentos, os cavaleiros da má notícia, contrariando o anúncio da boa nova, nos ensinaram a abdicar do mundo terreno, das fraquezas da carne para nos salvar. Salvar de que? Da desrazão?

“Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos o que importa é deixar no passado os momentos que já se acabaram. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas pudessem ir embora. Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos. Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará. Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade. Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira” (Fernando Pessoa).

 


Foto: André Kertész

 

Faça uma loucura por mim!
Faça uma loucura por você!
Faça uma loucura por nós!

 

Referências:

COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

DAWKINS, R. O Virus da Mente. Tradutor: Marcelo Kunimoto. Disponível emhttp://www.ebah.com.br/content/ABAAAAQrUAB/richard-dawkins-virus-mente Acesso em 09 de abril de 2013.

FOUCAULT, M. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.

PÉLBART, P. P. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Editora Brasiliense, 2009.

Compartilhe este conteúdo:

Histérica e Magérrima

Compartilhe este conteúdo:

Outro dia fiquei abismado ao ver, por indicação de uma colega de faculdade, um blog destinado a fotos de mulheres que fogem a padrões pré-estabelecidos de beleza.

Trata-se do The Nu Project, mas não o indico pra quem não quer sair da posição de comodismo, e muito menos quem não quer contestar sua realidade. As imagens são curiosas, criativas e, em muitos casos, chocantes.

A primeira coisa que me veio à cabeça ao observar o ensaio no site foi: O que diz que estas mulheres não são bonitas? Por que a gordura é tão desprezada por nossa sociedade? Qual o crime em se estar acima do peso? Em nossa contemporaneidade a falsa liberdade moralista roubou dos seres humanos até o direito sobre o próprio corpo, imprimindo em nossa personalidade uma imagem que deve ser mantida, seguida e copilada. Mas, até que ponto meu corpo representa minha identidade? Sou o que ostento, ou o que ostento se corrompeu e assumiu a forma do que sou?

É fácil perceber esse movimento social em busca do corpo perfeito, basta nós nos atentarmos para o crescente número de pessoas, nas mais variadas faixas etárias, que frequentam as academias e se matam fazendo exercícios físicos, usam anabolizantes, tomam inibidores de apetite e mergulham em dietas milagrosas muitas vezes sem preparo algum, outras vezes, apoiados em dietas e na orientação profissional de pessoas que se justificam na ciência ao proclamar: Abaixo ao gordo!

Foto: arquivo http://thenuproject.com/

Mas quem foi disse que gordura não é sinônimo de felicidade?

A imagem pré-concebida e difundida pelas mídias atuais é a de que pessoas morbidamente gordas são/estão depressivas. Essa imagem está embutida em minha cabeça quando penso em x-burguer ou em uma porção de batatas fritas, por exemplo.

Não se pode mais sentir prazer em comer?

Não existe mais felicidade, beleza e nem saúde fora de um corpo magro?

Questões que nos provocam a (re)agir. Mas, diante das maravilhas calóricas que o mercado nos oferece, ficamos paralisados e muitos de nós não consegue alcançar o peso ideal e, cada vez mais, depositamos na comida a solução para a solidão demasiada, as frustrações.

“E dale guloseimas para para os gordinhos.” O mercado discrimina, mas o mercado estimula e sustenta produtos altamente calóricos que viciam e deprimem.

Por que corpos esculturais são tão ovacionados na atualidade?

É tudo culpa de nossa sociedade que prega uma saúde vinculada a um corpo magro, e moldado por horas e mais horas de dieta e academia. “Vamos lá, todo mundo, contabilizando calorias”.

Mas…

Até que ponto o belo é magro?

Não podemos esquecer o outro lado: o dos corpos esqueléticos de pessoas que, na privacidade de seu banheiro, buscam no vômito uma solução patológica para seus problemas com a balança, vomitando até o copo d’água, muitas vezes, a única coisa consumida ao longo do dia inteiro.

E viva à bulimia, à idiossincrasia, e ao ceticismo!

Agora, perdido em meio às imagens do site, fico pensando que a mulher, por natureza, é um ser belo. Suas formas divinas, mais arredondadas ou não, são agradáveis e extremamente sensuais. A própria Vênus de Milo, imagem por centenas de anos aclamada e tida como ícone de beleza, é cheia de formas curvilíneas.

O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, c. 1485.

E o que mudou?

Fomos, ao longo das décadas, nos prendendo a estereótipos e padrões de beleza. Culturalmente, o fora do comum tornou-se aversivo, ridicularizado e corrompido. A humanidade tem se perdido em acordos culturais mudos, que pregam a discriminação e retaliação de forma ativa e cientificamente estruturada. A condição humana é hoje, tudo aquilo que é moralmente aceito. O resto é esquisito, irritante, dispensável! Aprendemos desde o berço a não conviver com o diferente. É o neoegoísmo de nossa sociedade, e porque não dizer, narcisista?

Foi o homem quem se corrompeu, e se perdeu em sua bestialidade. Em muitas situações, somos mais parecidos que nossos parentes primatas, do que esperávamos. Por vezes, até menos racionais.

O site traz fotos de mulheres que carregam mais que um corpo fora de forma. São pessoas que carregam um rosto moldado por um sofrimento que não precisa de palavras para se manifestar. O nu artístico dessas mulheres é carregado de significado.

Elas não estão exibindo seus corpos em troca de pena, nem implorando pela misericórdia de uma sociedade vil e hipócrita. Ao contrário, elas estão gritando por dignidade, direito a liberdade e ainda igualdade, sendo apenas elas mesmas.

O que o site almeja buscar com essas fotos vai muito além de uma simples aceitação social dessas mulheres. As fotografias cobiçam despertar em cada mulher a (re)descoberta do amor por si mesma, pelo seu corpo, por sua autoimagem, seja ela como for.

Meu propósito aqui também não é o de defender a obesidade, nem o de levantar a bandeira a favor dos gordinhos, longe de mim. Também concordo que se é comprovada uma patologia, a pessoa tem sim direito de buscar ajuda. Tampouco quero é o de desacreditar a ciência, mas sim, alertar a todos para questões atuais, pertinentes e que precisam ser abertamente debatidas.

Para conhecer o The Nu Project acesse: http://www.thenuproject.com

Compartilhe este conteúdo: