Um convite a conhecer “Um Conto de Natal” de Charles Dickens

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Diz a sabedoria popular que angústia é o sofrimento pelo passado e ansiedade é o sofrimento pelo futuro. O que, de certa forma, é corroborado por Dalgalarrondo (2008): “angústia relaciona-se diretamente à sensação de aperto no peito e na garganta, de compressão e sufocamento. Tem conotação mais corporal e mais relacionada ao passado” e “ansiedade é definida como estado de humor desconfortável, apreensão negativa em relação ao futuro, inquietação interna desagradável. Inclui manifestações somáticas e fisiológicas e também psíquicas”.Em “Um Conto de Natal”, de 1843, parece que Charles Dickens utiliza a ideia de tirar o velho Scrooge da sua zona de conforto provocando-o com uma boa dose de ansiedade e angústia ao presenteá-lo com as visitas dos Espíritos dos Natais passados e dos Natais futuros, além do Espírito do Natal presente.

Ebenezer Scrooge é um velho avarento, egoísta e ranzinza que não vê graça alguma nas celebrações ligadas ao Natal.

Scrooge mostrava-se taciturno, arredio e isolado como uma ostra. Uma frieza interior enregelava-lhe os traços decrépitos, ressumbrava em seu nariz adunco, sulcava-lhe as faces, endurecia-lhe o andar, avermelhava-lhe os olhos, azulava-lhe os lábios finos e fazia sentir-se até mesmo em sua voz estridente. Uma espécie de neblina cobria-lhe a cabeça, os supercílios e o queixo pontiagudo. Esta frieza inóspita Scrooge a levava consigo aonde quer que fosse, de modo que seu escritório continuava gélido durante o mais intenso calor e não melhorava um grau nem mesmo pelo Natal.

Nem mesmo a visita do seu sobrinho para desejar-lhe um Feliz Natal comove-o. Afinal, que motivo há para ele ser feliz?

– Ora! Feliz Natal! Que direito tem você, diga lá, de estar alegre? Que razão tem você de estar alegre, pobre como é?”

Enfim, Scrooge acha tudo uma perda de tempo e, pior, de dinheiro, e por causa disso não alivia nada a vida de Bob Cratchit, seu funcionário, pobre e feliz, que anseia correr pra casa para passar o dia de Natal com sua esposa e seus quatros filhos, um dos quais tem um problema físico nas pernas.

Na véspera de Natal Jacob Marley, ex-sócio de Scrooge e que havia falecido há exatos sete anos, aparece para ele para alertá-lo de que não conseguia descansar em paz devido a sua própria mesquinharia e avareza e que, por causa disso, vinha presenteá-lo com as visitas dos espíritos dos Natais passados, presente e futuros para que ele tivesse a oportunidade de recuperar o tempo perdido e não cometer os mesmos erros. Para ele ainda havia tempo.

Cético quanto a essa aparição Scrooge vai se deitar e logo é surpreendido pela primeira visita, a do Espírito dos Natais Passados.  Assustado com a figura que lhe aparecia à frente Scrooge logo lhe pergunta o que o trazia ali, ao que o espírito responde prontamente: “ – Tua felicidade”.  Em seguida, o fantasma leva-o pela janela para um sem número de experiências que lhe tocam o coração e fazem tremer seus lábios de emoção bem como levam-lhe lágrimas aos olhos. O espírito leva-o a ver-se em felizes momentos de seus Natais passados, quando era uma criança solitária a ler um livro, ou um adolescente muito amado pela irmã, que lhe tratava com tanto amor e que ao morrer deixara um único filho, sim, aquele seu sobrinho que lhe desejara boas festas.

Também se viu jovem admirando o enorme coração de seu chefe que, juntamente com sua esposa, oferecia a ele e a outros jovens um alegre baile para comemorar a data. E quase ao fim de sua visita o espírito fez com que recordasse o Natal em que sua noiva libertava-o do seu compromisso, pois há muito já havia percebido que ele a havia substituído em seu coração por um novo ídolo: o dinheiro. Triste e amargurado Scrooge implora que o espírito leve-o de volta, ao que é respondido com uma nova visão: a de uma família feliz, pai e mãe, filhos, comemorando efusivamente a noite de Natal. A mãe, entretanto, era o motivo maior de sua dor neste momento de recordação. Estava ali Isabel, outrora sua noiva, externando com outro a felicidade que poderia ser dele.

“Confesso que me sentiria feliz, se pudesse gozar junto dela do mais pequeno privilégio de uma criança, mas sem deixar de ser um homem, para poder apreciar-lhe o valor”

E assim Scrooge retorna ao seu leito e cai em um sono profundo do qual é rapidamente despertado pela expectativa da chegada do Espírito do Natal Presente. E rapidamente este espírito o levou pelas ruas mais humildes de Londres a mostrar-lhe como as famílias humildes preparavam-se para comemorar aquele Natal. E ao passar por estas famílias o espírito por vezes inundava-los com a luz de seu facho que lhes restaurava o bom humor e a gratidão.

– Será que têm algum sabor particular estas gotículas que caem do vosso facho? – perguntou Scrooge.

– Sim, naturalmente. Têm o sabor do Natal.

– E este sabor pode transmitir-se no dia de hoje a qualquer prato?

– A qualquer prato dado de bom coração, especialmente aos mais pobres.

– Por que aos mais pobres?

– Porque são os que têm mais necessidade deles.

E o espírito leva-o a acompanhar como se dá a comemoração na casa de seu empregado Bob Cratchi, com sua esposa e seus quatro filhos, com especial atenção ao pequeno Tinzinho que mostra-se feliz e animado a despeito de sua doença que o faz necessitar de muletas e que ameaça roubar-lhe a vida.

– Espírito, – falou Scrooge com um interesse que jamais sentira, – dizei-me se Tinzinho viverá muito tempo.

– Vejo uma cadeira vazia neste pobre lar, e umas muletinhas sem dono, conservadas como uma dolorosa lembrança. Se estas sombras não forem modificadas no futuro, esta criança morrerá.

– Não, não, meu bom espírito! – exclamou Scrooge, – dizei-me que o pequeno será poupado.

– Se os destinos permanecerem estáveis nestas imagens, – respondeu o espírito, nenhum membro de minha raça o tornará a encontrar aqui. E por que deplorá-lo? Se é seu destino morrer, que morra já! Isso virá diminuir o excesso de população…

Ouvindo o espírito repetir suas próprias palavras, Scrooge baixou a cabeça, tomado de sentimento e de remorso.

Ainda de cabeça baixa Scrooge espanta-se ao ouvir seu nome. Era Bob que, nos brindes de Natal, e a despeito de tudo que o velho Scrooge lhe faz sofrer em seu dia a dia de labuta, não se esqueceu de seu patrão.

– À saúde do senhor Scrooge! – dizia Bob. À saúde de meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa.

Ao que o espírito segue mostrando comemorações de Natal das mais variadas matizes chegando mesmo a visitar a comemoração na casa de seu sobrinho, comemoração para a qual havia sido convidado e que ele tinha rudemente recusado.

Ao fim da visita Scrooge atreve-se a perguntar o que saia abaixo de suas vestes, pés que mais pareciam com uma garra e que não condiziam com sua imagem. Ao que o espírito responde mostrando o que havia ali.

Das dobras de seu manto, fez sair duas crianças, duas miseráveis criaturas, hediondas, abjetas e repugnantes, que se ajoelharam diante dele e se agarraram ao seu manto.

                                                  …

Eram um menino e uma menina. Pálidos, magros e esfarrapados, tinham uma expressão bravia e odiosa, mas ao mesmo tempo rastejante e humilde. Seus rostos, onde deveria ter desabrochado o frescor da juventude, eram macilentos, encarquilhados, desfeitos, como se a mão do tempo os tivesse tocado. Jamais a criação, em seus insondáveis mistérios, produzira mais feios monstros.

                                                     …

– São filhos do Homem, – disse o espírito, baixando o olhar sobre ele. Estão agarrados a mim para pedir justiça contra seus pais. Este é a Ignorância, e aquela, a Miséria. Toma cuidado contra um e outro, mas especialmente contra a Ignorância; pois vejo escrito em sua fronte a palavra “condenação” e se esta palavra não for apagada, a predição se cumprirá. – Negai-o, todos vós! – clamou o espírito com voz forte, estendendo a mão sobre a cidade. Caluniai aqueles que vos avisam! Tolerai e encorajai um flagelo que serve para os vossos negros desígnios!… Mas temei o fim!

Por fim, visita-o o Espírito dos Natais Futuros, espírito este que nada falava, mas que estava pronto a lhe mostrar os acontecimentos de um Natal que ainda viria a ocorrer. Foi desta forma, acompanhado por uma figura em um traje negro que lhe ocultava o rosto, que Scrooge defrontou-se com sua morte solitária.

E o morto jazia abandonado na enormidade daquela casa vazia, sem um homem, uma mulher ou uma criança que recordasse com mágoa alguma ação generosa sua. A porta miava um gato e debaixo do fogão ouvia-se um rumor de ratos. O que “eles” procuravam naquela casa de morte, Scrooge não ousou pensar.

O que Scrooge testemunhara foi tão grande e tão forte que mudanças operaram-se nele de forma tão intensa que somente lendo o conto e seu epílogo para entendermos e sentirmos o que Charles Dickens nos quis passar ao escrevê-lo. De forma simples e muito bonita Dickens consegue nos levar a sentir, mesmo aqueles que quando adultos tornaram-se céticos e frios, a intensidade de emoções que a data proporciona. E por alguns momentos, ou para sempre, dependendo do impacto das lições apreendidas, podemos, como Scrooge, viver um Conto de Natal.

Como curiosidade, é interessante saber que Walt Disney inspirou-se em Scrooge para criar o nosso conhecido Tio Patinhas, cujo nome, no original em inglês é Uncle Scrooge e que protagonizou com o ratinho Mickey a animação Mickey’s Christmas Carol, baseada no conto. Várias versões do conto podem ser encontradas em quadrinhos, em filmes e animações.

A propósito, a influência de Charles Dickens para a construção do clima de Natal em Londres se deu de tal forma que, conta a lenda, quando soube da morte do autor uma menina que vendia flores em frende de um teatro em Londres falou: “Morreu Dickens? E o Papai Noel, será que morreu também?”

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

UM CONTO DE NATAL

Título Original: A Christmas Carol
Autor: Charles Dickens
Ano da primeira publicação: 1843
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Castidade: a virtude da continuidade permanente

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“E tem certeza disso: é casta apenas aquela que nunca foi pedida
por ninguém, ou que, se pediu, não foi ouvida.”

Giovanni Boccacio

“A castidade é a mais anormal das perversões sexuais.”
Aldous Huxley

“A castidade é a sombra do amor.”
Paolo Mantegazza

No rol das virtudes, a castidade tem lugar como capacidade moral de resistir as tentações e ao pecado da luxúria, brevemente explicada, a virtude em questão é denotada em pessoas que conseguem, fazendo valer sua fé e fibra moral, resistir ao impulso da sexualidade e não sucumbir ao ato carnal não consagrado – fora do casamento e dos preceitos da igreja e da lei de Deus.

Essa explicação inicial da castidade pode – e deve – ser desfeita para garantir que a discussão sobre castidade não se retenha apenas a uma amplitude cristã, quando mais ocidental, e transpassar o mero conceito religioso para transversalmente ser objeto de discussão em outros ambientes e relações. A discussão sobre castidade se transforma, quando isolada de seu contexto religioso, na discussão sobre controle e persistência. É o dilema humano: irracional versus racional. É eterno e instantâneo, é mortal e essencial.

Resistência

Enquanto virtude, a castidade denota modelos de comportamento ou ações que sobressaem o indivíduo como alguém digno de nota por sua diferença em relação aos demais, um virtuoso. Em uma divisão da castidade em outras qualidades menores – mas componentes – podemos reunir três partes do todo: resistência, abnegação e perseverança. A primeira dessas partes traz a tona o primeiro ponto de cisão que demonstra que a castidade é uma virtude do choque, do embate.

Resistir é se encontrar com aquilo que fere, que é nocivo, que destrói, mas ainda assim permanecer. Resistência não é então fugir do conflito, do embate. A qualidade da resistência encontra-se nas situações onde mesmo posta a prova, a vontade não é dobrada ou vencida. Dizemos ser a pessoa resistente, muitas vezes como algo desqualificante, aquela que permanece atada ao que acredita mesmo quando tudo tem para não acreditar. Esse é o primeiro pilar da castidade.

Abnegação

A negação de si, segunda necessidade da castidade como virtude, tem razões balizadoras. A resistência, sozinha e sem limites, transforma o virtuoso em arrogante. Abnegar é perceber que o dilema das vontades (muitas vezes tomadas por crenças e valores, em uma confusão tipicamente nossa, humana), tem de ser vencido com exercícios diários de renúncia à soberba e a certeza.

Ser casto, neste sentido, também é perceber que considerar a mim como centro de referência e unidade de medida, é sucumbir ao egocentrismo, a adoração do eu e, portanto, da valorização hedonista e animalesca. Uma virtude como a castidade, mesmo entendida como exercício utópico e distante, é qualidade essencial da pessoa que deseja viver bem em sociedade. Ser casto é também ver o ‘outro’ antes do ‘eu’.

Perseverança

Não menos importante para a castidade é a capacidade resiliente e constante, de seguidamente se por a prova e permanecer casto. De inúmeras vezes ter sido induzido, mas não se deixar ser conduzido. Perseverar é a condição final, ou seja, a continuidade das ações de castidade é o objetivo, manter-se em movimento para não cair.

Não deixaremos de apresentar comportamentos, ideias ou desejos que vão ao encontro de nossas posições castas. Se mantida a castidade apesar de todo esse diálogo interno e dispendioso, ela se reforça e as bases para as ações e posicionamentos também são fortalecidos.

Se Mahatma Gandhi, ao resistir e abnegar-se contra a dominação inglesa, tivesse não perseverado, ou seja, tivesse desistido de sua opção casta pela não violência ao fim do primeiro, segundo ou terceiro momento de agressão, não só estaria em risco sua causa, mas também o tempo que passou acreditando que essa mesma causa tinha valor. A castidade, como posição pessoal de alguém que resiste a algo, requer que se continue, conscientemente, criticamente, acreditando.

Mesmo exemplo deram tantos outros, castos em diferentes aspectos, que mostraram que superar as limitações humanas, e suas fraquezas, é possível se encararmos as virtudes como realizações do dia a dia.  Atravessar o mar da incompreensão, sem transformar luta em relutância é o desafio.  Seguir casto talvez seja, continuar e castidade certamente é permanecer.

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Ela e o mar: um conto sobre a paciência

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Diante da vitrine, entrevendo seu reflexo distorcido pelas imagens das TVs de plasma em exposição, ela tragava o último cigarro enquanto esperava a hora de entrar.

De dia trabalhava no mercado Fast-Easy, esquina da XV de Novembro com a 7 de Setembro, como repositora. Empregada há 10 anos. Cotidiano & rotina.Tinha a vontade constante de conhecer o mar.

Após 10 horas de trabalho gostava de ir ao bar do Seo Arrigó tomar uma cerveja e ouvir os causos do Seo Vieira, botequeiro fiel e bom de prosa. Havia estudado o fundamental na mesma escola que a filha dele, Vanessa. Depois que se casou e mudou para outra cidade não se viram mais.  Estava na saidêra, não dava para se demorar muito porque a esperavam em casa.

Ela morava com o filho de 6 anos, Marco, com a irmã mais velha, Ana e com o pai, Mário, cego de um olho e um pouco surdo. Com 88 anos carregava o peso dos anos vividos e das perdas, o que o deixavam ainda mais magro, surdo e quieto. Vera cuidava da casa para Marta trabalhar fora. Marco gostava de ficar no quintal com o avô quando ele ouvia rádio.

Há sete anos atrás, no início do inverno, Marta, ao término do expediente, não foi ao bar e nem voltou para casa. A lua crescente no firmamento anunciava um clima romântico, pedindo roupa nova, perfume e coração disparado. Noite de maré alta.

Em frente ao posto de saúde 24 horas, ao lado do Fast-Easy, ela esperava roendo unhas a chegada dele. Marcaram às 9. Entre um cigarro e outro, ela distraía-se com o trânsito noturno. Seu colega de trabalho passou dizendo galanteios que se esfumaçaram na sua passagem. Mais um cigarro. Mais um retoque de batom. O relógio digital da praça marcava 9 e 22 quando ele chegou.

Era para ser algo sem importância de acordo com o que se espera de um encontro casual num bar de bairro, mas eles já se encontravam há 3 semanas, estendendo o tempo apostado e se conhecendo melhor. A saída do trabalho era aguardada com euforia silenciosa por Marta e com entusiasmo & arquitetura de seduções por Pedro. Ele era taxista e há 3 semanas fechava o expediente às 8 para não se atrasar e enfeitar com flores, as da banca da Alameda Virgínia, o esperado encontro. Pedro 28. Marta 17.

E na noite enluarada, de rosas e coração disparado, Marta engravidou. Passaram-se 3 luas quando ela sentiu os primeiros enjôos e foi quando soube e foi quando souberam que Pedro havia sofrido grave acidente no túnel Geisel, da Alameda Virgínia, e não tinha conseguido resistir. Pedro morria, enquanto seu filho crescia dentro dela. O mar arrebentando nas pedras.

Ele morreu na mesma data em que há 2 anos atrás havia morrido sua mãe, Estela. Marta perdeu a mãe e encontrou Pedro. Pedro encontrou Marta, mas se perdeu logo depois. Marta ganhou Marco e perdeu Pedro. O que o mar traz de volta?

Uma gestação em silêncio. As palavras não faziam sentido. As ditas, tampouco as ouvidas. A conversa mais íntima foi se fazendo. E do absurdo da vida, fios tangíveis foram sendo costurados.

Marta ouvia Marco e Marco compreendia Marta. Desvendavam-se, o gosto do vivo e era conhecer o mar.

Ao longo deste silêncio, esperando seu filho nascer, ela abria algumas exceções. Quando tirou a licença maternidade tinha mais tempo livre. Começou a caminhar mais pela cidade, observando as ruas, as casas, e algumas preciosidades um pouco escondidas, emergiam aos seus olhos.

E diante daquela vitrine, entrevendo seu reflexo distorcido pelas imagens da TV de plasma em exposição, Marta viu um pequeno cartaz na porta antiga ao lado da loja. Leu:

Heva
para conversar
toque a campainha

Instantaneamente instigada, Marta tocou a campainha e esperou. Ela com os pés enfiados na areia da praia. Ouviu os passos descendo a escada, a porta se abriu. Diante dela uma senhora de olhar manso e límpido a convidava para entrar. Subiram até o primeiro andar, conduzidas pelo som de Piaf vindo de uma sala mais ao fundo do corredor. Adentraram a casa de Heva – aroma alecrim – quando Marta se deparou com uma pintura na entrada:  um rosto de mulher com o terceiro olho luminoso, provocando uma atração incontrolável. Conhece? É Frida, Frida Kahlo…arranca o coração e pinta com o próprio sangue, interpôs-se Heva. Um banho de mar. Heva ofereceu-lhe um chá. Marta sentiu paz.

Este foi o primeiro encontro, de muitos outros, marcados e inesperados que acontecem até os dias de hoje.

Naquela tarde de Finados, Heva ofereceu à Marta, também, a leitura do I Ching – o livro das mutações. Em silêncio, ela perguntou e quando o pedido tornou-se claro jogou as moedas sagradas 6 vezes, perguntando a cada lance. A cada lance se desenhava uma linha.

Heva desvendava a figura formada. Este hexagrama representa um abismo perigoso adiante e uma montanha inacessível à retaguarda. Está-se cercado de obstáculos. Marta respirou profundamente.

Heva continuou…obstáculos que aparecem no decorrer do tempo, mas que podem e devem ser superados. Elas se olharam e por instantes, Marta desacreditou, tão cansada dos fatos desta vida.  E Heva afirmava: E isto requer capacidade de perseverar justo quando se tem de fazer algo, que aparentemente desvia da meta. As dificuldades provocam uma introspecção. Marta, veja só um impedimento externo torna-se uma boa oportunidade de aprendizagem.

Marta refletia relembrando os momentos de alegria misturados com as aflições, os enredos e desenredos. Emocionou-se com o que revia e ouvia ali…Heva interpretou, então, a linha da ação:Quando se encontra uma obstrução, o importante é refletir quanto ao melhor meio de lidar com ela. Para não desistir da luta, poder recuar temporariamente e esperar o momento próprio à ação parece ser mais sábio.

Marta estava deveras impressionada com a resposta a sua pergunta ao oráculo…Do que eu preciso para continuar? Um salva-vidas, uma barca de viajantes ou mais uma tempestade?

A vida em mutação, sempre. Marta precisava de força para viver, para agir, para aceitar, para não desistir, para esperar. Um pedido de não-sei-o-quê, a porta-voz de toda a humanidade. Não estamos sós. Mas, afinal, esta força já não pulsava nela?

E Heva arrematou, degustando o último gole de chá…E qual é a mãe das virtudes, Marta?

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39. Chien / Obstrução
(I Ching – O livro das mutações)

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Humildade: autoconhecimento e confiança em si mesmo

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“A humildade exprime uma das raras certezas de que estou certo,
a de que ninguém é superior a ninguém.”

Paulo Freire

A palavra Humildade vem do latim húmus que significa “filhos da terra”, ou de humilitas, de humilis= pequeno, modesto, nos trazendo a proximidade junto ao Criador, corroborando com a apropriação do livre arbítrio que intensifica as ações no ato das escolhas, não como atitudes externas a convivência e sim numa atitude do homem perante Deus. Todos somos filhos da terra, temos a mesma essência, e todos os corpos foram feitos da mesma massa. Os títulos e os nomes em nada a modificam; ficam no túmulo; não são eles que dão a felicidade prometida aos eleitos; a caridade e a humildade são os seus títulos de nobreza.

Os momentos que vivemos são de grandes transformações em todas as áreas e a humildade é confundida com a pobreza de espírito, ignorância, fraqueza e não como a “sujeição do homem a Deus” , como a adesão, o sim de assentimento a esta condição originária e essencial.  Quando Deus disse a Davi que Ele o tinha escolhido para ser rei, Davi prostrou-se diante de Deus e exclamou: “Nada fiz de merecedor, todas as minhas realizações foram inteiramente as Tuas ações”. Então o que dizer da humildade, senão o combate ao orgulho, o esquecimento de si mesmo para exaltar o Criador. Para os hebreus, a humildade é modéstia e reconhecimento, oriunda da palavra hebraica “hoda’a”, que significa dizer “muito obrigado” a Deus.

Mateus em seu Evangelho nos apresenta: “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois que deles é o reino dos céus”… (Mateus, 5:3.) Pobres de espíritos são os humildes, referindo-se às “almas simples e singelas, despidas do “espírito de ambição e de egoísmo”, trás em si a caridade, o amor ao próximo, a tolerância, as virtudes que engrandecem o homem perante Deus, não está ligada a nenhuma condição social.

Não são os títulos, a riqueza, a pobreza que nos tornam humildes e sim, o conhecimento de si mesmo, que nos transporta a uma viagem real pelos erros e acertos vividos cotidianamente no enfrentamento das diversidades humanas. Então as mudanças acontecem do interior ao exterior, o que nos torna humildes não são as conquistas materiais, mas as conquistas do próprio eu, estabelecendo mudanças e a base da humildade é o autoconhecimento.

Sem a humildade não se tem caridade, não se tem piedade, nos adornamos de falsas virtudes, nos encontramos mergulhados na hipocrisia, sem conhecer a alegria de se despir do orgulho que acrisola o homem em si mesmo em um sofrimento constante de sempre querer ser mais, em atitudes enganosas e contrárias a excelência do Criador. De todas as virtudes a “humildade se ignora a si mesma: como traz os olhos baixos, e fitos no abismo do seu nada, não reflete sobre o seu conhecimento, porque o verdadeiro humilde não presume que o seja.” Ter humildade é ser corajoso, atuante, perseverante, reconhecer-se como parte do universo, colaborar para que seja instalada a boa convivência, fazer a diferença onde estiver, se sentir filho do Criador, melhorar-se a cada dia.

São Tomás de Aquino se reporta a humildade dos homens para com os homens da seguinte maneira: “Observa-se nos homens uma dupla realidade: aquilo que é de Deus, e aquilo que é do homem…”

A humildade, no entanto, no sentido mais próprio, é a reverência do homem submetido a Deus. É por isso que o homem, olhando para aquilo que lhe é próprio, tem que submeter-se ao seu próximo, olhando para aquilo que esse tem de Deus em si. Mas a humildade não exige que alguém submeta aquilo que nele há de Deus, àquilo que parece haver de Deus no próximo… Do mesmo modo, a humildade não exige que alguém submeta aquilo que tem em si de próprio, ao que nos outros é próprio dos homens” . (PIEPER, 1960)

O humilde não se submete ao que é contrário as leis de amor, de paz, não se torna melhor que o outro, pois somos iguais perante a divindade, enche-se de alegria ao dever cumprido, é um aprendiz da vida, trazendo para se o que existe de melhor em sua volta, estabelecendo a si mesmo uma conduta que o eleve moralmente respeitando as leis do universo, sendo igual na criação e extremamente diferente na elevação e no contributo a harmonização das energias que envolve a humanidade.

A humildade faz que tenhamos consciência clara de que os nossos talentos e virtudes, tanto naturais como na ordem da graça, pertencem a Deus, porque da sua plenitude, todos recebemos. Humildade é reconhecer que valemos pouco – nada -, e ao mesmo tempo sabermo-nos “portadores de essências divinas de um valor inestimável”. (MONS. JOSÉ, 2011)

Em nossa sociedade a pessoa humilde não é bem vista, dela diz-se que não tem ambição nem garra, é fraca de personalidade, que não sabe se impor, é tida como boba, idiota, que não sabe aproveitar as oportunidades e chances que a vida lhe dá e se deixa ultrapassar pelos outros. Não se apega às conquistas conseguidas, não se agarra ao prestígio e ao poder dela emanados, mas deles se afasta, deixando o caminho livre para os adversários e concorrentes. (BINGEMER, 2013).

Tomemos aqui Jesus e Buda, eles contemplaram o caminho da humildade, anunciando a necessidade de nos colocarmos no lugar do outro, de abandonar a ilusão de superioridade, sendo honestos, verdadeiros, conquistando uma conduta harmoniosa consigo mesmo, irrompendo as barreiras do egocentrismo, transmutando ações negativas, pessimistas numa autoconfiança pautada na humildade.

Nos esbarramos no orgulho, na vaidade, nas relações de poder sobre o outro, na soberania, na arrogância, resvalando no lodo das relações doentes, improfícuas, sem respeito a si e aos outros, incapazes de amar e serem amados. Fecham os olhos a simplicidade engrandecendo o ar de superioridade alimentado pela hipocrisia do dia a dia, considerando a humildade como fraqueza, desconsiderando a real característica do humilde que se relaciona ao respeito, gentileza, sensibilidade, graciosidade, simplicidade e autoconhecimento. Quem é humilde valoriza as pequenas e grandes conquistas, são dignos e tratam os outros com dignidade.

A humildade não é passiva, exige confiança em si mesmo. Para ser humilde você precisa saber quem é e escolher servir os outros. Não se trata da modéstia causada pela insegurança. Dar importância à outra pessoa sem nos considerarmos diminuídos é a verdadeira humildade. (BAKER, 2001) Nos perdemos quando nos entregamos aos desvarios insanos do egocentrismo, nos tornamos reféns de nós mesmos, um barco sem porto em busca do nada.

Referências:

ÁVILA, F. B. de S.J. Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo. Rio de Janeiro: M.E.C., 1967.

BAKER, Mark W. Jesus, O maior psicólogo que já existiu. 2001. Editora Sextante

BINGEMER, Maria Clara. Humildade: uma virtude com má reputação.http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73369 . Acessado em 19/07/2013.

MONS. José Maria Pereira. A virtude da humildade.http://www.comshalom.org/formacao/exibir.php?form_id=5111#sthash.z12HM6pk.dpuf. Acessado dia 19/07/2013

Pieper, extraída de Virtudes Fundamentais, Lisboa Aster, 1960. Trad. de Narino e Silva & Beckert da Assumpção

XAVIER, Francisco Cândido. Pensamento e Vida. Pelo Espírito Emmanuel. FEB.

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A diligência – “Façamos, vamos amar”

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A diligência é um substantivo feminino oriundo da palavra latim diligere que significa amar. Na língua portuguesa essa palavra possui mais de um significado. A palavra diligência refere-se a atos realizados por trabalhadores do poder judiciário fora do estabelecimento público. Refere-se também a uma carruagem movida à força animal usada em conquistas territoriais como ocorreu na história norte-americana rumo ao oeste. O filme “Stagecoach” (traduzido como “No tempo das diligências”) de Jonh Ford (1939) retrata uma diligência que carrega um grupo de pessoas para o Novo México. O enredo do filme não é importante para o propósito deste texto, mas ressalta-se a colaboração do filme para associar a diligência à alta velocidade (para os padrões dos tempos do faroeste).

Além desses significados, a diligência é definida pelo dicionário Aurélio como a “presteza em fazer alguma coisa; zelo.” O fato de a palavra presteza significar rapidez colabora também para a associação existente entre a diligência e a rapidez.

Outro significado da palavra diligência é o de antídoto contra o pecado da acídia, conhecida, erroneamente por preguiça. De acordo com “Provérbios 20-27” “O preguiçoso não assará a sua caça, mas o bem precioso do homem é ser ele diligente.”

Significados à parte, a diligência é um significante do saber humano (mesmo que pouco usado) e, portanto, amplia-se sua compreensão quando associado a outros conceitos que vão além de seus próprios significados. Um primeiro conceito com o qual pretendo discutir acerca da diligência é o de sensibilidade.

O que é a nossa sensibilidade? Talvez não se possa dizer o que ela é exatamente, como, quando apontamos a uma cadeira, dizemos que cadeira aquilo é. Mas pode-se dizer como elas funcionam, a sensibilidade e a cadeira. Algo para funcionar não precisa ter a natureza de “ser” para além do que coloca em movimento enquanto funciona. Como a um sopro, carregado sim de sua natureza corpórea, com sua massa relativa e absoluta, nossa sensibilidade existe. Além disso, nossa sensibilidade, como o sopro, congrega e está congregada a tantas outras múltiplas sensibilidades. Assim, defini-la por sua corporeidade seria perda de tempo, como se tentássemos delimitar um sopro dentro de um tornado. Nossa criatividade se constitui por nosso conjunto de sentidos, ou seja, de nossos sistemas decaptação do mundo e da integração entre eles.

Somos extremamente frágeis e podemos façanhas grandiosas. Temos tamanha capacidade de destruição que 25 anos de educação para a vida social não são, em muitos casos, suficientes, para despertar o carinho, a alegria e a prontidão social (diferente da prontidão serviçal assistencialista) de pensarmos no bem e agirmos da melhor maneira, características constantes nos diversos significados da diligência. O “pensar no bem” e o “fazer da melhor forma possível” depende de uma ética e de uma moral (depende, pois, da organização dos ajuntamentos de pessoas no mundo). O exercício ético e moral fundamentam políticas públicas, de Estado, internacionais, privadas e de base, nos campos da educação, da saúde e outros vários; fundamenta também o que divide o mundo em “pecado” e “virtudes”.

As teorias sobre os sete pecados capitais, de acordo com Jean Lauand (2004), em suas notas para a conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, são cristãs por origem. São oriundas da reflexão dos padres e monges cristãos dos primeiros séculos depois do nascimento de Cristo, em suas práticas monaquistas. O termo “capital” deriva do latimcaput, que quer dizer “cabeça”, ou seja, o pecado que está no topo e que comanda. As virtudes são os antídotos dos pecados. São atos e coisas que funcionam no sentido de reverter os processos gerados pelos pecados.

Como já dito, a diligência é o antídoto da acídia. A acídia é o pecado maior que dá origem a pecados menores como a preguiça. A acídia não é o mesmo que o “perder de tempo” da preguiça. O pecado da acídia refere-se às práticas julgadas como moralmente e eticamente contrárias ao amor; o que se perde no exercício da acídia não é somente tempo, mas também as condições que atraem o amor; perde-se vida, perde-se sensibilidade.

A pressa sim encontra lugar em nosso estilo de vida. Ela nada tem a ver com a diligência. Isso é o que nos diz Paul Lafargue, em seu livro “O direito à preguiça”. A preguiça de Lafarque é o antídoto da pressa que nos bestializa, que nos aliena, que nos prende aos nossos erros, que faz de nossa sensibilidade um instrumento mal cuidado, esquecido nas carreiras, esteiras e escadas rolantes de nossa sociedade. Ao mesmo tempo, a preguiça defendida por Lafargue apresenta, em seus interstícios fundantes, em suas entranhas paradigmáticas, em seus veios de vida-saber, as condições para uma educação universal, plena e integral do ser humano, que contempla sua diversidade de maneira mais governante ao invés de mais governada. O nome do livro, com perdão pela audaciosa proposta, heurística apenas, poderia ser “Um convite à diligência”, uma vez que o autor realmente nos convida a analisarmos o porquê de fazermos o que fazemos, de pensarmos e repensarmos a forma como vivemos, exercício para a vida diligente.

Com isso, Lafargue e outros autores que refletem sobre os modos de vida que operam relações e subjetividades, nos comunica que o ser humano, independente de classe social ou etnia, é um manancial de potência de vida, é um manancial de sentir, perceber, conhecer, afetar-se, amar, emocionar-se, sofrer. Dizendo em outros termos, o convite é para olharmos o quanto de nossa vida é condição para o exercício da diligência e o quanto dessas condições nós próprios criamos. Podemos levantar a seguinte questão: como a nossa comunicação, trasvestida em seus afluentes educacionais, prisionais, sociais etc, ensina, compartilha, dissemina, cria e permite a diligência? Mais precisamente, a questão é: onde comunicamos diligência quando fazemos o que fazemos?

A vida, para comunicar a diligência, deve-se exercitar-se, às vezes a esmo, às vezes sistemática, nadando ainda na desintegração dos próprios sistemas e sentidos estabelecidos por nossos contratos sociais neuróticos, insensíveis à vida, burocráticos. Mas, se a olharmos em seus detalhes, naquilo que, imaginando nós, a vida nos queira comunicar (como se cada coisa tivesse a sua própria mensagem, a nossa vida inclusive) veremos que ela nos fala pela diligência espermatozoidal e ovular, pelos sistemas de percepção altamente qualificados no homem e pelo cuidado que tais sistemas devem receber para captarem a diversidade que o mundo nos oferece. O conjunto dessas coisas é a expressão diligente da própria vida, incluindo, ainda como exemplo, a diversidade da vida no planeta terra, ou mesmo no quintal de casa.

E tal expressão se compõe, dentre outras coisas, de exercícios que nada tem a ver com Ordem e muito menos com Progresso. A vida, para existir, supera os obstáculos que o meio lhe impõe, invariavelmente. O exercício é o elemento da diligência e é o que faz a vida. Sem exercícios nunca andaríamos e tão pouco falaríamos. E, se a vida nos fala para andarmos com seus exercícios, é que ela própria é uma diligência. E se somos feito de corpo, esses exercícios devem abarcá-lo também e, portanto, temos que fazer mais exercícios físicos, fazer mais sexo e usar mais princípios ativos; temos que andar mais, peripateticamente.

A diligência assume formas tão interessantes quanto desconhecidas; a diligência depende da sensibilidade e da vida. As formas de nossa sensibilidade e da nossa vida são orientadas pelo sistema social, em especial em suas manifestações educativas, legislativas e de controle. Tal sistema molda o sentir humano que é uma fonte de energia. Somos iguais pilhas, mas não necessariamente temos que estar “pilhados” com tanta frequência.

As formas de sensibilidade dependem do sistema de cultivo em que nos encontramos, não só das plantas, mas também de outras coisas cultiváveis, como filhos, afetos e conflitos. Os sistemas de cultivos dessas coisas todas influenciam-se e parecem ter a tendência de seguir o sistema de cultivo das plantas, no nosso caso o latifundiário. São as orientações relacionais que estão no sistema de cultivo que orientam, não sozinhas, nossa educação, nossas relações sociais, nossos exercícios de estímulo à sensibilidade, nossas concepções.

No sistema latifundiário, a aproximação entre o homem e aquilo que ele cultiva é a menor possível. O veneno e as máquinas medeiam tal relação. No caso dos filhos ocorre uma tendência parecida: os fármacos e as fichas de triagem de psicologia, medicina e outros profissionais são os instrumentos que medeiam a relação entre pais e filhos e entre professores e crianças educandas do ensino infantil. No caso dos afetos, a tendência, a mesma na relação com as crianças, é a do fármaco substituir a emoção produzida pelo nosso mundo. No caso dos conflitos, a burocracia cada vez mais entra em suas mediações, deixando-nos sem material para analisarmos nossas vidas – tudo é decidido por terceiros que decidem sobre nós.

Contrapondo ao esquema latifundiário, pode-se pensar a relação com o cultivo de outras maneiras. Pode-se num relação a partir de seus possíveis efeitos. Que efeitos teria na prática de cuidado com as crianças, com os afetos e com os conflitos uma prática de cultivo das plantas não latifundiária, pelo contrário disseminada entre a maioria? Qual seria o efeito no qual o cultivo das plantas seja criado ao costume de uma sociedade, inclusive como recurso para evitar as fomes que passam seus membros, como no caso do Brasil? O cuidado com as plantas requer o manejo da terra, das raízes e folhas. Para tal manejo se tornar capilarizado (não latifundiário), deve-se acrescer, dentre as técnicas todas oriundas do trabalho humano, um diálogo, ou seja, a comunicação, entre a planta e a pessoa, que substitua o veneno e as máquinas. Que efeito teria uma educação mais afetiva e menos adoentada no cuidado que temos com as plantas? Como lidar com a questão do controle das massas, na perspectiva de um grupo de cultivo capilarizado ao invés de latifundiário?

A prática de não aproveitar as coisas não causa problemas somente ao sistema ecológico, mas também ao nosso sentir, uma vez que não-aproveitar gera não-sensibilização, ou seja, os sentidos, a criatividade, a sensibilidade não recebem incentivos para serem usados, pois o descarte vai nos significando o eterno-retorno, e nunca um entrar-em-contato. No latifúndio, uma minoria cuida, uma maioria espera, não pratica o cultivo. As máquinas e os venenos entram em contato com a planta, nós não. Os psicólogos e médicos entram em contato com os filhos, os pais não. O trabalho que perde o sentido e a vida é aquele que se dá de forma latifundiária, onde muitos peões podem ser descartados para sustentar rainhas, torres e bispos.

Durante o trabalho de quem espera o eterno-retorno do industrializado na prateleira, o cultivo também deve ser bastante restrito: não temos tempo para cultivar as crianças e o Estado está se saindo mal com isso; não cultivamos o cuidado e a gentileza. Estamos, normalmente, estressados. Poetas vivendo a diligência da percepção humana de ser neste mundo, confundidos como loucos, dizem isso há muito tempo: “a gentileza gera gentileza”. É um saber de uma beleza incomparável! Mas isso não é importante, o sistema educacional mal consegue definir o que é gentileza!

A gentileza é uma vivência corporal, mas escutamos a todo o momento: “não entrem em contato com os corpos; não excedam no sexo, nem em quantidade e muito menos em qualidade! Não se exercitem! Trabalhem alienadamente e mantenham a Ordem e o Progresso!” Não tem nada mais patético que o lema da nossa bandeira – é anti-diligente. E o nosso afeto tão pouco é cultivado – vem em cápsulas.

Se há algo que podemos cultuar nesse mundo, como maneira de vivermos mais diligentemente, é a nossa sensibilidade, ou seja, nossa capacidade de sentir as coisas; da visão, da audição, do tato, do paladar, do olfato, passando pela raiva, pela paciência etc.

Podemos nos movimentar, mas não correr, com nossa sensibilidade e com nossa vida. Experimentando, reconhecemos a sensibilidade que se encontra no exercício da diligência e a diligência que opera no exercício da vida. O encontro dos gametas e o caminho seguido pela célula ovo até a morte do corpo, com um dia ou um século de existência, é a diligência que há na vida; é a vida sendo diligente, a diligência que, redundantemente, gera vida. O recheio disso, composto pelo incessante sentir, é a sensibilidade que mantém a vida e a diligência; depende das duas para se manter. São movimentos que se movimentam juntos.

Nota: a frase “Façamos, vamos amar” que aparece no título do texto é o nome de uma música do Chico Buarque.

Referências:

LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.

LAUAND, Jean. O Pecado Capital da Acídia na Análise de Tomás de Aquino (notas de conferência proferida no Seminário Internacional “Os Pecados Capitais na Idade Média”, disponível em http://www.pecapi.com.br/ – Univ. Fed. do Rio Grande do Sul, setembro de 2004).

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Generosidade: uma perspectiva judaica

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Este texto surgiu a partir de um convite feito por um amigo que está desenvolvendo um projeto junto a estudantes de psicologia que visa aprofundar o conhecimento sobre o psiquismo humano, explorando não apenas os chamados sete pecados capitais, mas abordando também o que poderíamos chamar de “sete virtudes capitais”. Tal iniciativa é interessante, dentro outros aspectos, por destacar para os estudantes que não podemos estudar a psiché humana somente por meio daqueles aspectos que poderíamos chamar de problemáticos ou patológicos. O homem é também, mas está além, digamos assim, de seus transtornos mentais.

Outro aspecto interessante do convite está relacionado ao fato de ter solicitado para mim, um psiquiatra judeu, para escrever sobre a temática da generosidade. Interessante, pois seu oposto, a avareza, tem sido ao longo dos séculos acintosamente associada ao povo judeu. A associação entre avareza e os judeus está presente tanto nas “inocentes” piadas de salão como nos mais ácidos e ferinos discursos que buscaram e buscam legitimar o anti-semitismo, em suas diferentes manifestações ao longo da história.

Com isto posto, gostaria de explicitar que neste texto teremos a seguinte questão norteadora: Como poderíamos compreender a noção de generosidade a partir de uma perspectiva judaica? De antemão esclareço que a expressão “uma perspectiva” não quer denotar a ideia de que haveria uma e apenas uma perspectiva judaica, mas de fato, justamente o inverso. Possivelmente devem existir várias perspectivas (não esqueçamos aquela velha máxima, “onde há dois judeus há no mínimo três ideias”), e aqui explorarei uma delas, bem particular, a minha.

A estratégia metodológica que vou utilizar aqui se inspira, por mais estranho que isso possa parecer, na experiência que adquiri durante o trabalho de campo de minha tese de doutorado, quando morei cerca de oito meses em uma comunidade indígena denominada Lauaretê, localizada na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, ocasião na qual eu estava estudando as relações entre juventude indígena, uso de álcool e violência. Em Lauaretê, a grande maioria das pessoas era pelo menos bilíngüe, falando português e tukano. Entretanto, de forma usual os indígenas ao falar português entremeavam seus discursos com palavras em tukano. Em muitas ocasiões, os indígenas conheciam termos correlatos em português, mas utilizam expressões em tukano. Manter termos em tukano parecia demarcar a diferença conceitual em relação a expressões similares em português, podendo ser entendida como uma estratégia para manter significados nativos mais refinados.

Quem observa judeus falando, nos mais diferentes idiomas, pode perceber, sem muitas dificuldades, a utilização recorrente de palavras em hebraico, como shalom. É claro que judeus americanos ou brasileiros conhecem as palavras peace ou paz. A utilização do shalom se deve não apenas pelo desejo de explicitar uma identidade coletiva, mas, sobretudo, porque shalom além destes sentidos tem outras significações, e a tradução faria perder um pouco, se não muito, da ideia que se queria expressar ao usar esta palavra no idioma nativo.

Devo confessar, não sem certo grau de mal estar, que meu domínio do hebraico talvez seja apenas um pouco melhor do que o meu ínfimo conhecimento do tukano. Tal como fiz em minha tese, tentarei explorar palavras-conceito e não fazer uma análise semântica mais aprofundada, exercício que declino em nome dos doutos conhecedores destas línguas.

Fazer uma transposição de conceitos não é um exercício fácil. Muitas vezes, para uma única palavra numa língua, precisaremos de várias em outra. Não sei dizer se haveria uma única palavra em hebraico que pudesse ser usada para traduzir a palavra generosidade. Aqui, tentarei fazer esta transposição (mais do que tradução) associando o termo generosidade a três expressões ou palavras-conceito em hebraico, bem como tentarei explicar para o leitor alguns aspectos mais sutis das mesmas, que entendo como centrais para compreensão de seu significado no universo judaico.

Uma primeira delas seria tsedakah. Muitas vezes esta palavra é traduzida de forma não muito adequada para o português como caridade. Dela se aproxima na medida em que está relacionada à ideia de doar algo a alguém que está necessitado. Mas dela se distancia, na medida em que se trata de uma obrigação/preceito religioso (mistvah). De modo simplificado, poderíamos dizer que uma pessoa que faz caridade é considerada uma pessoa boa, mas quem não faz, não se torna mal por isso. Já em relação a tsedakah, o judeu que não a pratica está sendo injusto e até mesmo ignorante. Simboliza este ponto de vista o fato de que toda vez que um judeu come algo ele deveria dizer uma benção mais ou menos assim: “Bendito seja tu Eterno nosso D-us reino do universo que criaste tal tipo de alimento”. Isto parte do entendimento de que tudo que há no mundo não é nosso, é de D-us. Se fomos aquinhoados com algo a mais devemos de algum modo partilhar. Não é a toa, que a palavra tsedakah compartilha o mesmo radical das palavras tsedeke(justo) e tsadik (sábio).

Assim, quem faz tsedakah não deve esperar nada, visto que está simplesmente cumprindo uma obrigação. Inclusive há uma tradição que uma das maiores tsedakot (plural de tsedakah) seria executar os cuidados funerais a partir da liturgia judaica para aquela pessoa que faleceu, pois o morto se foi desta vida e não poderá retribuir. Desta forma, tsedakah se associa a outra palavra-conceito, chessed, em geral traduzida por bondade, que é considerado um atributo divino. No universo judaico, quando se fala em chessed, logo vem à mente a figura do patriarca Abraham. A tradição ensina que Abraham mantinha as laterais de sua tenda sempre aberta no deserto, de modo que sempre poderia avistar viajantes no deserto, e neste caso poderia convidá-los para descansarem, beber e comer com ele. Inclusive quando ele fez sua própria circuncisão (em hebraico, brit milah, aliança da carne) aos 99 anos de idade, no seu, digamos assim, “pós-operatório imediato” ficou na sua tenda esperando viajantes. E não foi a toa, que neste dia recebeu viajantes na forma de homens, que seriam anjos, que dentre outras coisas lhe contaram que em breve sua idosa esposa, Sarah, iria lhe dar um filho.

Por outro lado, a tsedakah feita com chessed deve servir a um propósito. Conta uma anedota, que as vésperas do Iom Kipur (Dia do Perdão, dia em que, segundo a tradição, os homens são julgados por D-us) o rabino de uma sinagoga informou aos presentes que como os pecados deles eram muito grandes, eles precisariam fazer um tsedakah de um milhão de dólares. Dias depois o rabino disse: – “Consegui resolver metade dos nossos problemas”! Então alguém teria comentado: – “Então só precisamos fazer uma tsedakah de 500 mil?”. E o rabino respondeu: – “Não, eu já descobri para quem poderemos doar”! A ideia aqui implícita é que não é doar por doar, nem doar apenas porque se é (ou se quer ser) bom, mas para participar do tikum olam, algo como que poderia ser traduzido como concerto do universo. Para entendermos um pouco a intrínseca correlação que há entre tsedakah-chessed -tikum olam, penso que devemos recorrer a “exemplos” divinos. Por mais paradoxal que possa parecer, entendo que a expulsão do homem do paraíso seria um exemplo paradigmático desta interação.

A punição foi, antes de tudo, uma espécie de dádiva. Corrigir a desobediência do homem, um ato de doação da sabedoria divina, foi feito com chessed, na medida em que tirou o homem do paraíso e o colocou no nosso mundo imperfeito, dando a seres humanos a possibilidade de sermos parceiros de D-us no concerto/melhoramento deste mundo. Permanecendo para sempre no Paraíso, um lugar perfeito, onde nada precisava ser concertado, o homem não teria como participar do tikun olam. Para explicar esta questão, alguns fazem alusão a um diálogo que teria ocorrido entre um imperador e um sábio judeu. O imperador teria perguntado: – “O D-us de vocês é bom e sábio”? O judeu respondeu: – “Sim, claro”! E, continuou o imperador: – “Então ele criou um corpo humano perfeito. Então porque vocês judeus profanam esta obra, fazendo, a circuncisão”? Nisto o sábio teria respondido: – “Não, não! A questão é que você não entendeu. D-us é tão bom, tão perfeito e tão sábio, que nos fez com um pequeno defeito, para que nós, desde pequeninos, aprendamos que temos que participar junto com Ele do concerto do universo”!

Enfim, retornando a nossa pergunta norteadora. Penso que uma boa perspectiva judaica sobre generosidade seria aquela que fizesse uma articulação, mais ou menos assim, de certas palavras-conceito: doação sábia e justa (tsedakah), realizada com bondade “desinteressada” (chessed), com o propósito de participar do melhoramento/concerto do mundo (tikum olam).

Shabat Shalom!

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Caridade: Amor em sua forma mais nobre

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“Aquele que tem caridade no coração tem sempre
qualquer coisa para dar”

Santo Agostinho

“Caridade faz das mãos prato, do corpo cobertor e
de cada palavra um ato de amor”

Karl Marx

“Virtude sem caridade não passa de nome”.
Isaac Newton

Antes de iniciar uma discussão sobre a caridade, gostaria de trazer um texto com uma história centrada em dois personagens: o ladrão e o bispo.

O ladrão passou dezenove anos em uma prisão. Lá, após inúmeras violências percebeu que se existia um culpado pela sua situação: a sociedade. Ele sabe que é culpado por ter roubado, em seu ensaio mental sobre o crime ele percebe que roubar não é uma situação adequada para sair da situação em que se encontrava – a fome. Eis então que ele se considera culpado do primeiro crime, que lhe deu uma porção menor de sua sentença. Mas dos anos impostos por tentar fugir da prisão, maior parte da pena, a culpa recaia sobre a sociedade.

O pão que havia roubado poderia ter sido dado em uma ação caridosa do padeiro, caso ele tivesse pedido, roubar foi errado portanto. Mas a situação de fome, se nos permitimos pensá-la como ela realmente é, um crime, não é um crime pelo qual o ladrão se sentisse culpado, ele percebe então que criminosa é uma sociedade em que se depende da boa vontade do padeiro. Jean amaldiçoa a sociedade, e sai da prisão dedicado a devolver a ela o mal que sofreu.

Vagando pelas ruas como um proscrito, sem emprego por sua condição, sem dinheiro por não ter emprego e sem alimento por não ter dinheiro, o ladrão vê se repetir a condição inicial de sua penitência, a fome. Mas, diferente do passado de 19 anos, ele encontra a mão caridosa de um bispo, que o abriga, dá-lhe comida e permite que durma em uma cama depois de anos de sofrimento.

A noite, o ladrão furta a prataria do bispo e foge, voltando a cometer seu erro inicial, pecando novamente um pecado repetido.

Preso, levado pela polícia à presença do religioso, o ladrão vê na face do bispo não a repulsa, ou ódio, ou qualquer sentimento fácil que dirigimos a quem nos causou mal.

Mas sim a dúvida, que vem seguida da pergunta. “Ó amigo, tudo isso lhe dei, mas esqueceste do melhor.Não deseja levar também os castiçais que havia lhe dado?”. Eis a dádiva da caridade.

O texto acima resume, em uma síntese minha e livre de alguns rigores de reprodução, a parte inicial da trajetória de Jean Valjean, um dos personagens do romance Os Miseráveis do francês Victor Hugo, que, sendo uma das obras mais reproduzidas de toda a história, acabou por gerar adaptações para o teatro e cinema, como o filme Les Miserables (2013). A cena da caridade promovida pelo bispo, Dom Bievenu também. Aqui no Portal (En)Cena, pode-se encontrar na seção Em Cartaz, uma visão geral sobre o filme. Recomendo o filme, não só pela lição de caridade, mas por seu teor altamente humanista.

Deus caritas Est

A perspectiva da caridade como amor, completando a tríade junto a Eros e Agaphe, tem no cristianismo sua máxima “Amar ao próximo como a si mesmo”, esse ensinamento, atribuído a Jesus Cristo, serve para qualificar o ato de caridade como uma atitude antes de tudo, altruísta. O papa Bento XVI, em sua primeira encíclica, texto aberto a toda Igreja Católica pelo mundo, explicou que

O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.

Para o papa, a ação da caridade, não é, necessariamente, uma ação de entrega material. É antes disso a demonstração de que o amor entre pares, a irmandade, é uma condição sinequa non para a existência da própria humanidade, essa reconhecida não só como um ajuntamento de seres humanos, mas como a sublimação de nossa condição existencial, a nossa utopia de comunidade.

A elevação disso ao amor de Deus é um exercício de fé. Mas, a despeito da Teologia, a caridade é parte integrante do conjunto de ações humanas e merece ser observada também sob o prisma agnóstico e ateísta. Afinal de contas, não sendo Deus, ainda é possível amar ao próximo?

O Bom Samaritano

A caridade como elevação da condição humana

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotadas de razão  e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade.

– Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Frequentemente nos esquecemos da brevidade da vida, e de como nossas realizações pessoais são pequenas quando observadas seguindo a escala universal. Individualmente, cada um de nós representa um ser vivo, dentre os bilhões de seres vivos da mesma espécie, contidos no grande grupo de bilhões de bilhões de seres vivos do planeta Terra. Após isso, nos damos conta que nosso planeta é só um de um sistema estelar que se repete ad infinitum pelo cosmo.

Nos constituímos como sociedade, buscando a sobrevivência. Foi assim quando os humanos deixaram as cavernas e passaram a vagar pela Terra em busca de alimento, segurança e meios para perpetuar a espécie. Bem, o grande número populacional mostra que fomos bem sucedidos na tarefa, até demais, de acordo com algumas demonstrações populacionais que apontam para o colapso dos recursos naturais em menos de um século graças ao aumento desenfreado da população.

Mas, diferente de uma espécie puramente replicante, o ser humano buscou realizar seu desejo de expansão escorado por outros objetivos, digamos, mais humanísticos, como a necessidade de pertença local, que gerou as nações e posteriormente os países, e também a aspiração de permanência mesmo a após a morte, dando origem a história. O ser humano quis, portanto, ser, se reconhecer sendo e permanecer sendo.

Na perspectiva humana, de um ponto de vista alheio das muitas religiões, a vida é uma jornada, iniciada no nascimento e findada na morte. O meio do caminho, nossa existência, é o tempo que temos para demonstrar qual nossa missão, qual será nossa pegada e a que devemos nossa vida. A aventura humana é descobrir-se sendo.

Frente a isso, um dos fenômenos mais interessantes, e aí faço um juízo de valor dada à liberdade exclusiva deste texto, é perceber no outro as mesmas vicissitudes e características vividas por nós nessa trajetória. A beleza da vida é perceber que a dor, o amor, o sofrimento, a glória e todos os demais sentimentos abstratos só existem em uma perspectiva divida. Tudo isto é em mim aquilo que eu percebo nos outros.

Lembro me da primeira vez que quis ajudar alguém, entrando agora na seara da caridade, recordo-me que por volta da idade de cinco anos, passava de mãos dadas com minha mãe no regresso à nossa casa, quando um grupo de crianças, do lado de dentro de um muro gradeado, estenderam as mãos e pediram. “Moça, dá uma comida para gente”. Dizendo não ter nada para oferecer, minha mãe apertou um pouco mais minha mão a fim de me fazer desviar o olhar das crianças e seguimos andando.

Mais a frente eu perguntei a ela, porque as crianças não haviam pedido comida para a mãe delas na casa, que ficava no terreno cercado pelo muro gradeado. Minha mãe me disse então que ali existia um orfanato e que, as crianças que pediam comida eram órfãs, não tinham mãe nem pai.

A culpa, sentimento muitas vezes motor da caridade, agora em um julgamento desprovido de mérito, me assolou como uma flecha. Eu tinha uma mãe, eu tinha comida em casa, mas eu não sabia até aquele momento que existiam pessoas sem mãe ou sem comida em casa, eu me percebi humano, ser comunitário e ínfimo pela primeira vez. O tempo, e os mecanismos psíquicos que sejam, fizeram questão de apagar os rostos das crianças famintas de minha mente, mas eu ainda lembro do pedido por comida, e fantasio que depois de minha mãe e eu, alguém, voltando da padaria ofereceu às crianças um pão quente.

A caridade é mais que uma virtude, tal qual a disposição das outras seis nos faz acreditar. É mais do que uma medida da nossa capacidade de dar coisas.

Foto: Sebastião Salgado

É parte da natureza inata do ser humano, é a percepção de que o outro, sofrendo, reproduz a nossa miséria, e nosso ato ajuda a aplacar a nossa finitude.

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A temperança e a escravidão da vontade

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Enquanto escrevia este texto (parte dele), assistia também à apresentação do novo videogame da Microsoft, o XBOX One. A indústria do entretenimento (e não apenas esta) aprendeu a utilizar estratégias de marketing que demonstram algo fundamental: você não compra um produto, mas a possibilidade da experiência. Isso não é feito simplesmente por acaso. É uma estratégia muito eficiente, pois além de despertar no possível comprador a vontade de ter o produto, desperta a vontade de ter a experiência. É psicologicamente mais interessante, também, porque ao produto é atribuído preço, enquanto à experiência é atribuído valor. E enquanto o que se é obtido por preço pode ser proibitivo, por exemplo, por questões financeiras, o que se é obtido por valor, para agregar valor, justifica a aquisição, para o benefício da satisfação da vontade.

Foto: Sebastião Salgado, do livro Gênesis

Para início de conversa, qual o problema em satisfazer a (ou uma) vontade? Antes de responder a pergunta, é interessante uma compreensão dos temas que ela aborda. Como este é o primeiro de uma série de textos sobre as virtudes, é interessante retomar a origem do pensamento de Prudêncio (384 a 410, AD), quando, no poema Psychomachia, estabeleceu virtudes, pecados e relações entre eles [1]:

Tabela 1: Relação de combate entre as sete virtudes e os sete pecados no poema Psicomaquia, de Prudêncio

De certo modo, enquanto se pode pensar que é preciso 100% de cada uma das virtudes, isso é uma falsa verdade. Cada virtude, isoladamente, em excesso, poderia também configurar uma “falta”, um “pecado”:

a) Fé em excesso pode gerar atitudes que consideram apenas o espiritual e desconsideram que o ser, quanto matéria, vive em um mundo que é matéria e, como tal, possui suas necessidades. É humano, como tal;

b) Castidade (ou pureza) em excesso pode gerar um abandono total de todo e qualquer tipo de relacionamento, resultando em solidão completa para evitar qualquer tipo de ação ou pensamento considerado impuro;

c) Paciência em excesso pode gerar uma pessoa praticamente inativa, pois “há tempo para tudo”;

d) Humildade e Esperança em excesso podem gerar desapego de tudo que é considerado material, inclusive do que é criado para melhoria da qualidade de vida e da saúde;

e) Razão e Caridade em excesso podem gerar um entendimento cético em relação a tudo que não pode ser cientificamente demonstrado ou comprovado;

f) Unidade em excesso pode gerar ações extremamente direcionadas a um único ponto, fechadas e sem abertura para tudo aquilo que não for parte do todo que se considera como único e suficiente.

Não vou falar dos excessos dos pecados porque eles já foram abordados nos textos anteriores e não é difícil que até mesmo o leitor que acompanha este como o primeiro texto da série de “pecados e virtudes”, imaginar ou ter uma opinião própria sobre o resultado dos excessos dos pecados.

“A temperança é um dos maiores prazeres”.
Goethe

E a temperança? Não teria ela também um excesso? Conceitualmente, seria incorreto afirmar um excesso de temperança porque sua definição é justamente a de moderação. Logo, a existência de uma temperança destemperada seria uma absurda contradição. A temperança é o fiel da balança, ou a balança, em si, que não deixa pender para qualquer um dos extremos nem mesmo as virtudes.

Arte: “Temperantia”, de Luca Giordano

O tema da temperança, como virtude, está presente em várias denominações religiosas. Na China, Confúcio encorajava a modéstia e o autocontrole, que também está presente no Budismo e no Hinduísmo. No Cristianismo, representa um dos “frutos do Espírito”, semelhante ao alto-controle (o “L” é proposital). Um pensamento rápido pode sugerir: é óbvia para a religião a necessidade da temperança, uma vez que o pregado “autocontrole” nada mais seria do que mais uma forma de controle, propriamente dito. Entretanto, qualquer entidade que faça uso da temperança dos seus membros como uma forma de controle para si estaria, efetivamente, indo contra o que ela mesma prega, anulando o próprio princípio desta virtude.

É inerentemente difícil falar do assunto “autocontrole” considerando o rumo que toma nossa sociedade diariamente. Não sei você, que aqui lê, mas sou da geração que cresceu [“aprendendo” com a mídia]: “tudo que eu quiser o cara lá de cima vai me dar”, “escute seu coração” e “você pode ter tudo o que quiser, basta acreditar”. Pensamentos como estes bem que poderiam estar em livros de histórias para crianças e contos-de-fadas, nos quais, se você estiver do lado do “bem”, tudo dará certo e, para bem dizer, a história terminará bem antes de qualquer sinal de realidade pensar em começar a aparecer – mas não é para isso mesmo que se chama “fantasia”? Isso é assunto para outro momento.

Assim, chamo a atenção do leitor: no geral, quais as ideias de educação aceitas e aplicadas atualmente? Não é um exercício muito difícil de se fazer. Pais deixam cada vez mais seus filhos sob a responsabilidade da TV ou da internet porque precisam se dedicar ao sucesso profissional.

“O lar é o primeiro e mais eficiente lugar para aprender as lições da vida: verdade, honra, virtude, autocontrole, o valor da educação, trabalho honesto, e o propósito e privilégio da vida. Nada pode tomar o lugar do lar na criação e educação das crianças, e nenhum outro sucesso pode compensar o fracasso no lar.”
David O. McKay

Se você for a um supermercado e observar pais e filhos, você verá a dificuldade que pais enfrentam em dizer para seus filhos: não. “Não vou comprar isso para você agora”. Alguns dos que se atrevem a dizer isso são rapidamente dominados pela [poderosa] pequena e frágil pessoa que age, com as armas que lhe foram ensinadas, e luta ferozmente contra seu oponente (pai, mãe ou o sofrido responsável do momento) para conseguir o que quer. Observando outro aspecto, letras de músicas atuais estão repletas de referências a maneiras pouco racionais de lidar com situações em que não se consegue o que se quer: basta tomar “uma” para todos os seus problemas se afogarem e, no dia seguinte, você acordar, no máximo, com uma dor de cabeça e, se der muita sorte, com um lapso de memória. Programas de TV, há muito, assumiram o papel de ferramenta prática de alienação (difícil assistir à TV na tarde de domingo). Até os jornais e veículos de notícia estão entrando na “onda” (ou seria mera teoria da conspiração sobre manipulação da informação?).

A geração que está inserida neste cenário é a mesma que está nas ruas pedindo mudanças. Não vou cometer a estupidez de generalizar ou de afirmar que as manifestações são ineficientes. Entretanto, se você acompanhou notícias e redes sociais (que recebeu o título de “nova forma de democracia”, ou quase isso) deve ter visto sobre os que se aproveitam do alvoroço para cometer crimes e pode até ter visto manifestantes fazendo pose para foto, seguindo a moda e postando na rede social com o mesmo propósito de publicidade de quando alguém tira uma foto no quarto ou na praia. O ponto aqui é apenas este: qual a motivação da vontade?

Foto: Nair Benedicto

Cartazes e palavras de ordem ecoam: queremos mudança! E então, por onde se começa a mudança?

O estudo da temperança (que não tem espaço aqui para se prolongar, e nem é o objetivo) envolve, então, o questionamento quase que constante da motivação da vontade. É possível que neste ponto você já tenha começado a se questionar se aquele aparelho ultra-tecnológico comprado no ano passado já não tenha perdido o seu valor (que você pensou que ele tivesse no momento da compra ou o mesmo valor que lhe foi vendido como experiência). Ou se você realmente precisa daquele perfume tão caro. Ou se aquela pessoa com quem você quer estar realmente merece que você dê a ela tudo de si. Então, você ainda se acha senhor da sua vontade?

“Como a cidade com seus muros derrubados, assim é quem não sabe dominar-se.”
 Provérbios 25:28

Eu disse “questionamento constante” e você sorriu dentro de si. Questionar os outros é até fácil. Acompanhar a massa, a moda, e ir às ruas, tem lá sua dificuldade, mas não é tão difícil quanto questionar a si mesmo. E o que dizer do entendimento de que nossa juventude [pensante], universitária, estaria perdendo justamente a característica que mais a define: pensamento crítico, busca da ciência para benefício do todo? Olhar para a temperança é, figurativamente, olhar para dentro de si e se questionar de onde surgiram tantas correntes que te amarram, prendem, e ainda por cima, insistem em dizer que você pode fazer o que quiser. Aliás, é, antes, enxergar as correntes. Essa “liberdade” é ilusão, bem como a ilusão da perfeição de se ter, por completo, todas as virtudes.

A temperança é, então, um desafio a uma busca constante de equilíbrio. Isso, sim, é um pensamento que bem poderia estar em um cartaz em protesto por aí, pois a temperança:

a) não suporta a idolatria, pois esperar e confiar plenamente em uma pessoa, algo material ou no dinheiro é tão eficiente quanto seguir os conselhos de um tolo;

b) não aceita a luxúria, pois é uma entrega total ao instinto e às paixões, que são temporais, se inflamam e consomem num dia, e, no outro, já não são;

c) não tolera a ira, pois o amor ao próximo é a balança da resolução de conflitos;

d) não consente com a vaidade, porque tudo nesta Terra é passageiro;

e) não aprova a libertinagem, porque, sendo seu “alter-ego”, não tolera a máscara que oculta a impunidade;

f) não admite a avareza, pois não há quem consiga ter tudo e viver disso só para si, sozinho (que o diga o Robinson);

g) abomina a heresia, pois é difícil haver coisa pior do que o falso ensino.

Bastaria aos nossos governantes a leitura diária da palavra “temperança” impressa em letras garrafais no teto dos seus quartos para odiar o simples pensamento de agir incoerentemente com o voto de fazer o melhor para o outro. Bastaria à juventude que está nas ruas em protesto, (re)clamando por um Brasil melhor que não seja a mesma que se contenta em ser escrava da leve lembrança de autocontrole que se vende por aí. Por fim, não fique apenas nesse pensamento revolucionário de aplicar a necessidade da temperança ao outro, pois ela é um exercício diário e individual. A temperança diz: nenhum problema em satisfazer sua vontade, mas o que você quer [ter, fazer] é realmente necessário?

 

Nota:

[1] PSICOMAQUIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Psicomaquia&oldid=34990542>. Acesso em: 23 maio 2013.

 

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O tempero das virtudes

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Temperar é dar gosto a um alimento. Sem tempero, não há gosto. Sem tempero, diminui a atração. Sem tempero, sem sabor, sem graça. Um dos temperos básicos da gastronomia é o sal. Mas são milhares de temperos conforme a região, país, costume, cultura. Azeite de oliva, alho, açafrão, manteiga, vinho, azeite de dendê, leite de côco, pimentas, gengibre, gergelim, hortelã, absinto, louro, manjericão, erva cidreira, salsão, endro, cebola, canela, azeitona, Artemísia, alecrim, alcaparra. São alguns que podemos mencionar. Porque os temperos dão sabor. Os temperos fazem as misturas melhores, mais atraentes.

Foto: Flávia Kitty

E assim são as virtudes, rapidamente associadas à cultura cristã, equivocadamente. Antes mesmo do advento do Messias, Aristóteles, o pensador grego, já conceituava a virtude, como disposição adquirida de fazer o bem, que se aperfeiçoa com o hábito. Ou seja, como tempero, fazendo uma analogia aristotélica (à medida do possível) a virtude precisa ser aplicada, inserida no alimento que é a vida, testando, provando, consumindo. “Tudo é conhecimento, inclusive a justiça, a temperança e a coragem – o que tende a demonstrar que certamente é possível ensinar a virtude” (citado por Shattuck R. Conhecimento Proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998:20).

Foi na Grécia Antiga a origem da palavra arete, traduzida como excelência. No latim, Arete ganhou tradução de virtus. Na cultura oriental, dois mil anos antes de Cristo já se associava a virtude com a capacidade de realizar ou oferecer vida.

Disso, à vista inicial, depreende-se que as virtudes são úteis à essência da vida. Porque lhe dão tempero, sabor, utilidade. No Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville, ao conceituar virtude também exemplifica,

O que é uma virtude? É uma força que age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma planta e de um remédio, que é tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é querer e agir humanamente. Esses exemplos, que vêm dos gregos, dizem suficientemente o essencial: virtude é poder, mas poder específico. A virtude do heléboro não é a da cicuta, a virtude dafaca não é a da enxada, a virtude do homem não é a do tigre ou da cobra. A virtude de um ser é o que constitui seu valor, em outras palavras, sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata bem… (1999, p.2) 

Ironicamente, o mesmo autor, ainda no preâmbulo, indica que a utilidade do seu modesto Tratado seria maior para os que não detinham as virtudes, “público vastíssimo” segundo ele.  Daí, questiono, seremos nós, da atualidade, seres mais pecaminosos que virtuosos? E já respondo. Creio que não. Se não houvesse pessoas dispostas a fazer o bem, não mais existiríamos enquanto raça humana. Sem as luzes virtuosas da bondade, já seriamos classificados de ‘inumanos’, como menciona Comte-Sponville.

 

A virtude nos humaniza. Para Aristóteles, a virtude é uma maneira de ser. Desta forma, questiono: Um ser sem virtude é humano? Para alcançar esta humanidade, é imprescindível o tempero da virtude? Por fim, quais serão as virtudes que podemos habitualmente praticar e tornar a vida mais ‘humana’?

Interrogações que serão respondidas ao longo desta nova série de elocubrações. Como temperos que dão sabor à vida, as virtudes apresentadas nos levarão a percorrer culturas, costumes, reflexões, amores, como um pedaço da humanidade que cada um tem em si.

Dentro de nós, há castidade. Na pureza de raciocínio, que filtra, que preserva a própria intimidade, sem a necessidade narcisista de exibição, de divulgação nas redes sociais. Na caridade, na generosidade, temperos que podem mudar o século novo de indiferenças e egoísmo. Na diligência, não há indolência, nem negligência. Há preparação, cuidado. Como na elaboração de uma iguaria gastronômica.

Com humildade se mede a si mesmo. Tem-se a vasta noção de um grão de areia numa praia gigantesca. Somos parte de um todo, que é todo, mas é parte. Na paciência, a virtude da espera. Na temperança, a moderação.

Como temperos, devem ser usados com equilíbrio. Porque até nisso, há virtude.

 


Referências:

COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1999.

SHATTUCK R. Conhecimento Proíbido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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