A nova She-Ra: mudanças bem-vindas para nossa realidade

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A série de animação She-Ra: A Princesa do Poder, criada por Larry DiTilio e J. Michael Straczynski durante os anos de 1985 a 1986, conta a história da princesa Adora, sua descoberta do poder de She-Ra e sua luta contra os vilões da Horda para libertar o platerna Ethernia do ditador Hordak. O desenho dos anos 80 é um spin-off com a mesma proposta da animação He-Man e os Mestres do Universo, também exibido na televisão durante os anos 70 a 80. A ligação entre as duas séries é que Adora (She-Ra) e Adam (He-Man) são irmãos gêmeos.

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O design dos personagens dos anos 80 seguem um padrão corporal, heteronormativo e étnico, com apenas UMA personagem negra, que possui pouquíssimo tempo de tela em comparação com os outros, mas a série não deixou de fazer sucesso por causa desses detalhes.

No ano de 2019, uma nova versão de She-Ra foi lançada na plataforma Netflix, tendo como produtora e criadora Noelle Stevenson, chamada de She-Ra e as Princesas do Poder. Essa nova versão da princesa dos anos 80 tem uma proposta totalmente inovadora e inclusiva, dando visibilidade para diversos outros grupos étnicos, orientação sexual e até mesmo gênero, saindo de um olhar nada dentro da caixa. A nova She-Ra expandiu seus horizontes com mudanças quentinhas, bem-vindas e muito importantes para nossa atual realidade. Uma realidade de subjetividades abertas.

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Até mesmo a protagonista, Adora, se mostra, inicialmente, seguir totalmente os padrões impostos pela sociedade, sendo uma mulher segura de si, bonita e sem defeitos, como mostra nos desenhos dos anos 80. No entanto, a Adora de 2019, é uma adolescente, com suas inseguranças, expondo seus ideais, se revoltando com injustiças, mudando de opinião e descobrindo sua sexualidade. Resumindo, é uma personagem imperfeita e isso é lindo, pois se aproxima do que é real e de situações que muitas meninas e adolescentes passam ou que mulheres adultas já passaram.

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Muito se discutiu em fóruns na internet que a nova She-Ra não era uma boa personagem por simplesmente não ter o “sex-appeal” muito esperado e desejado por homens. O que as pessoas se esqueceram simplesmente foi que a Adora de 2019 é uma adolescente de 16 anos, criada não para satisfazer vontades sexuais. E até mesmo a Adora dos anos 80, apesar de ter o ar de “perfeição”, nos mostra uma personagem forte e dona de si mesma. A sexualização das mulheres em desenhos animados, programas em live-action e games é um problema mundial que deve ser debatido e problematizado adequadamente.

A Princesa Cintilante também alterou seu design, deixando a personagem mais real. A etnia do personagem Arqueiro também se modificou. Agora ele é negro e tem dois pais.

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A Princesa Serena também mudou sua etnia, sendo uma mulher negra.

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A Princesa Perfuma, é uma mulher trans. Essa informação foi confirmada pela criadora e produtora da série Noelle Stevenson, no entanto, isso não foi abordado na série pois ainda existem muitos tabus e preconceito envolvidos diante de personagens transsexuais.

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Temos mais presença de personagens homoafetivos como Spinerella e Netossa. O casal é interacial e Spin é uma mulher gorda.

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Temos também a presença de personagens não binários como Double Trouble.

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A Princesa Gélida, diferente das outras, foi representada por uma criança.

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A Princesa Scorpia é uma mulher lésbica e apesar de seu design ameaçador, é meiga, empática e super preocupada com seus amigos.

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A rival de Adora, Felina, teve suas modificações em comparação com o desenho antigo, mas o principal é que esta tem sentimentos de ódio e de amor com a protagonista, motivados por sentimentos de abandono, já que Adora deserda da Horda para se juntar à Aliança das Princesas e ser a She-Ra.

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Até mesmo Hordak, vilão da animação, foi bem desenvolvido, mostrando suas inseguranças em relação ao “Mestre da Horda”, seu irmão, por ser uma falha.

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A motivação de Hordak a conquistar o povo e o planeta Ethéria, além de fazer isso para ter a confiança de seu irmão e se mostrar “merecedor” de respeito, pode ser analisado de forma que Hordak é considerado uma falha, um mero erro, e a dominação deste planeta, onde sua população é fora do comum e onde possui a “magia”, é uma forma de mostrar como ditaduras funcionam. Como algo que é diferente não é bem aceito pela sociedade, mas isso foi feito de modo sutil para que ficasse subentendido pelos espectadores.

Esse desenho me fez lembrar de uma infância onde Princesas não eram negras, e que muito menos podiam ser fortes. Que meninos não choram. Que casais homoafetivos não existiam. Sou grata por essas modificações terem acontecido, pois imagino crianças, adolescentes e até mesmo adultos como eu, vendo esse desenho e pensando “Que bom que isso está sendo abordado. Agora me sinto representada(o) por X personagem” e isso é maravilhoso.

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She-Ra e as Princesas do Poder é uma animação que ultrapassou as barreiras do preconceito e mostrou que o poder da amizade e principalmente do amor são armas poderosas para transformar as pessoas e nações. É um desenho necessário e indicado para todas as idades, sem restrições. Não é apenas mais uma animação sobre Garotas Mágicas. É muito mais.

FICHA TÉCNICA

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Título Original: She-Ra and the Princesses of Power
Direção: Adam Henry, Jen Bennett, Lianne Hughes, Roy Burdine e Stephanie Stine
Duração: 24 minutos por episódio (5 Temporadas)
Classificação: Livre
Ano: 2018 – 2020
Gênero: Animação, Aventura
País: Estados Unidos da América
Onde assistir: Netflix

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Racismo Estrutural no Brasil: (En)Cena entrevista o ativista Mauro Baracho

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O (En)Cena reproduziu a entrevista com o ativista e mestrando em Antropologia pela UFMG, Mauro Baracho, para o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra, sobre o tema Racismo Estrutural no Brasil, que dentre outros aspectos abordou sobre as consequências do racismo e machismo na sociedade, suicídio entre grupos negros e seus estudos com homens negros.

(En)Cena – Poderia falar sobre a ideia da existência de uma democracia racial no Brasil, da ideia que foi vendida, que foi feita dentro da estrutura estatal a partir de livros didáticos no passado, através de grandes esquemas ideológicos que tentam vender essa imagem  de que as coisas são iguais para todos, de que não há preconceitos, não há racismo, não há discriminação.

Mauro Baracho – Por conta das manifestações nos Estados Unidos, as pessoas se questionam por que os negros brasileiros não se revoltam como os negros americanos. Nessa questão, entra uma série de apagamentos de revoltas negras ao longo da história, mas também entra o processo histórico de pós abolição do Brasil e dos Estados Unidos. E no Brasil, optou-se em maquiar as diferenças sobre ideia de democracia racial.

Vem dessa ideia do exterior que o Brasil é essa mistura de povos, e de fato é, que o Brasil é uma mistura de africanos, de europeus, de indígenas. Mas que na prática, no dia a dia isso não significa muita coisa, porque a discriminação está na aparência, na cor de pele. E ninguém leva isso em conta na hora de contratar na vaga de emprego.

O Brasil optou em criar uma ideia de que é um país mestiço, como de fato era, ela vai ser reforçada principalmente por obras. Para que isso funcione precisa de intelectuais pensando, produzindo obras para criar esse aspecto positivo, principalmente na obra de Gilberto Freire em “Casa-grande e senzala”, que eram muito fortes as ideias do racismo científico onde os mestiços eram considerados como raça degenerada, era a pior raça. Os brancos, os amarelos, os negros e depois os mestiços. Então, essa obra vem para dar um aspecto positivo na identidade mestiça do Brasil. Vem consolidar essa ideia de democracia racial no país, dizer que a escravidão não foi tão cruel, que era branda porque os senhores de engenho e as escravas se relacionam e em que circunstâncias aconteciam essas relações. Na abertura do livro, descreve que nasce uma nova nação, que é a mistura do branco, negro e indígena. Que o racismo não é institucionalizado, no sentido de não ter lei de segregação, mas sabemos que a segregação se deu por costume; nos Estados Unidos se deu por lei e aqui no Brasil se deu por costume. Isso foi um artifício para não se discutir racismo no Brasil, para dizer tem gente misturada, existe branco,  negro e não precisa se falar em racismo.

A ditadura militar perseguiu vários blacks no Rio de Janeiro, por medo do pessoal se inspirar nos movimentos norte americanos, porque não queriam transparecer que existiam diferenças raciais no Brasil. O filme do Simonal mostra isso, quando ele é chamado pelos militares, e interpelam ele por uma letra, afirmando que não existe racismo no Brasil e pregar a ideia de que somos todos uma mistura.

(En)Cena – O antropólogo Munanga, fala em uma das suas obras que o racismo no Brasil, muito mais que qualquer parte no mundo, se dá numa lógica de crime perfeito. Porque dificilmente a gente conhece por vias institucionais, pela grande imprensa, quem são as vítimas, o rosto, a história de fato, e muito menos quem são os algozes. Porque isso cria a falsa sensação de que os crimes de racismo não ocorrem, porque eles também não são noticiados na mesma proporção.

Mauro Baracho – Eles até são noticiados, a gente vê muitos crimes de injúria. Mas é tudo pensado para não punir os agressores, principalmente na separação do que é injúria racial e racismo. Porque racismo é quando ofende um povo, e a injúria é uma questão individual […]. Ao pensarmos como povo, e se uma pessoa me ofende  me faz uma injúria racial, o que impede dela cometer o mesmo crime com outra pessoa negra? Não é comigo, porque eu não tenho uma característica da cor da pele que ela vai fazer isso, ela pode fazer isso com qualquer outra pessoa. É um crime perfeito porque nesse sentido de quem comete, além de sair impune, quem denuncia sai como chato, o extremista. E ao longo da história, percebemos que a galera vai criando mecanismos para abafar essas injúrias raciais. Eu lembro da minha mãe, que é preta, ao chegar e contar para ela sobre episódios de racismo, ela dizer que isso tudo era cisma.

O jornalista Carlos Medeiros fala dessa questão da cisma, que as pessoas falam que racismo é cisma, ele fala que é ‘complexo de cor’ que é a ideia de que os pretos já são cismados, veem racismo em tudo. Então, essa questão de crime perfeito, a pessoa que sofre o racismo é vista como chata, extremista e ‘mimizenta’, e a pessoa branca, como liberdade de expressão, ou são brincadeiras.

(En)Cena – Vejo muito nas universidade um movimento crescente de descolonização das subjetividades, como eles chamam, principalmente os filósofos, sociólogos, e alguns psicólogos  no sentido de fazer com que a gente repense a nossa linguagem. Que a nossa linguagem foi construída também em cima de uma lógica bastante excludente, de uma lógica de separação, de uma dualidade. Um exemplo, a casa onde mora o presidente dos Estados Unidos é a casa branca, nos contos de fadas vemos a Branca de Neve. Então, tudo que está relacionado a brancura, a branquitude coloca-se como aspectos positivos e tudo que está relacionado a negritude, normalmente eram associados a aspectos negativos.

Percebo que muitas pessoas se incomodam quando essas questões são levantadas, e o cuidado que deveríamos ter, eu imagino, é justamente nessa dimensão mais elementar que é na linguagem. Por isso, que talvez as piadas racistas, de fato, elas têm que ser confrontadas, mas tem um grupo crescente  de pessoas que atacam o politicamente correto, elas querem ter o direito de rirem das outras pelas suas particularidades, inclusive são pessoas que consideram que o mundo está mais chato porque elas não conseguem, por exemplo fazer uma piada com um negro, um homossexual, um judeu. Como você vê isso? Pois, o tempo inteiro eu como professor escuto isso, de vez em quando, “eu não posso mais me expressar agora”. É como se a liberdade de pensamento e de fala estivesse acima de qualquer coisa, inclusive da integridade do outro, parece que há uma distorção.

Mauro Baracho – Sim. Tem até um documentário chamado ‘O riso do outro’, que fala exatamente disso. As pessoas falam que não podem se expressar, e quando você aponta algumas piadas racistas, elas se sentem cerceadas, então ela quer ter o direito de ser racista, direito de ser homofóbica, direito de ser machista.

Os Trapalhões, cresci nos anos 90 vendo o Didi fazer piadas racistas com o Mussum, e eu ia para a escola e os meninos reproduziam as piadas em mim e em outros meninos negros, e era brincadeira, era piada. E eu não gostava daquilo, e  duvido que uma pessoa preta vai curtir esse tipo de piada. E se a gente reclamasse, seria o cara excluído, o cara chato; então, isso tem uma questão de socialização.

Quando a gente começa a falar que as coisas não são legais, as piadas racistas, homofóbicas, a galera começa a se sentir ofendida por não poder fazer mais.

Ouvi um comentário que estão acabando com a alegria do brasileiro, aí a gente vê que a alegria do brasileiro é diminuir mesmo, diminuir gente preta, diminuir pessoas gays, mulheres. Porque para eles, o humor é isso, é fazer piada com pessoas que já passam por um processo muito difícil por serem gays, por serem negras, por serem mulheres.

Tiveram pessoas defendendo as manifestações ‘charlotte’s view’ nos Estados Unidos em 2015, que defendia o ato como liberdade de expressão. Eles partem da ideia de que liberdade de expressão é falar o que quiser doa a quem doer, e o humor tem essa ideia deliberal também, que não pode ter tabu ou barreiras. E os meios que defendem isso são sempre os mesmos, Danilo Gentili, essa galera que nunca teve a menor graça mas só chegou onde chegou porque o Brasil é um país muito racista, muito homofóbico, muito machista e sádico. Que sente prazer em ver pessoas como Danilo Gentili, Léo Lins, Sílvio Santos humilhando pessoas. Sílvio Santos levava travestis no seu programa para fazer piadas da cara delas, em pleno domingo a noite no horário nobre. E essas pessoas só são permitidas a espaço na mídia se forem caricaturas, como Vera Verão, o Jorge Lafond. Porém, só era aceitável quando era pra fazer rir. Relação de poder é isso, você se afirma, diminuindo o outro.

(En)Cena – Sobre a questão da apropriação cultural. Acaba surgindo na imprensa alguns grupos que aderem a artigos que são da cultura negra, começam a ser colocados como moda, ou um estilo, tirando inclusive, as características iniciais que tem até uma conotação política … Fazem uma mistura geral para relativizar a ação. Achei interessante o seu post sobre o alisamento de cabelos.

Mauro Baracho – As pessoas usam isso quando a gente fala de apropriação cultural, primeiro que começam a achar que apropriação cultural é quem pode ou não pode usar turbante, quem pode ou não pude usar tranças. Porém, estamos discutindo processos históricos, de culturas que foram marginalizadas, dita como atrasadas, que tiveram seus processos culturais marginalizados no ocidente e hoje elas são legais desde que sejam em corpos brancos. Quando apareceram três atrizes brancas, Mariana Ximenes, na capa de uma revista usando turbantes. Então quando uma pessoa negra usa um turbante na rua é apedrejada, chamada de macumbeira, mas quando uma pessoa branca usa um turbante é a coisa mais descolada do mundo. As pessoas vem fazer essa falsa simetria de que se for por esse lado, pessoas pretas se apropriam da cultura branca quando alisam o cabelo, já partem para uma premissa totalmente errada, o cabelo é um traço genético.

E a questão das tranças é um elemento cultural no sentido que ela já foi usada para transmitir significados além do tempo, dizem que na época de escravidão as tranças eram usadas para desenhar rotas de fugas, e estamos falando de penteados e não de textura de cabelo. E as pessoas pretas não alisam os cabelos para apropriação da cultura branca, mas para serem aceitas, pois crescem tendo vários padrões de nariz fino, cabelo liso. Ninguém que alisa o cabelo toma o lugar de uma pessoa branca.

(En)Cena – Você que está dentro da universidade, eu percebo que dentro do cientificismo, que é aquela ciência mais dura, dentro daquelas ideias de pessoas que acreditam que a ciência é a única forma de explicar os fenômenos, há uma ciência patriarcal, de origem branca, muito influenciada pela língua inglesa, bastante liberal do ponto de vista econômico. Essa ciência tem uma tendência a se colocar como uma espécie de universalizante, no sentido de desconsiderar os outros saberes. A gente vê isso muito claramente no Brasil quando os saberes populares relacionados a medicina e a linguística, a dinâmica dos cuidados dos povos indígenas e povos negros foram totalmente excluídas dos debates públicos e também não foram considerados como ciência no sentido mais amplo. E isso eu ainda percebo no meio acadêmico, não sei se você também percebe isso no meio acadêmico, uma supervalorização do que seria o científico, mas sem entender de forma mais profunda de onde vem esse científico; se esse científico inclui esses saberes tradicionais ou se ele exclui os saberes tradicionais. Os estudos do francês Edgar Morin, apontam que não é mais possível explicar o ser humano a partir de um pressuposto, de um paradigma, por exemplo, o paradigma científico positivista; ou a gente se abre para outras formas de interpretar esse sujeito e entender esse sujeito ou a gente está fadado ao fracasso.

Mauro Baracho – Se tem uma falsa ideia de que a ciência é neutra, e a academia também não é. Ainda se tem essa resistência, principalmente pessoas pretas e indígenas quererem produzir outras narrativas. Eles gostam de pesquisar o negro, os indígenas, mas quando entra uma pesquisa de branquitude, as pessoas ficam receosas. A minha pesquisa é sobre masculinidade negra, pesquiso o primeiro grupo de masculinidade negra de Belo Horizonte, onde homens pretos se reúnem para discutir masculinidade negra, as questões que atravessam os homens pretos, porque até então a gente só via discussão de meninas pretas. E em Belo horizonte, já deve ter em torno de um ano e meio que eu pesquiso sobre o assunto, e fui muito guiado a pesquisar sobre isso por conta das minhas leituras de autoras negras. Quando eu entrei no mestrado, o grupo estava surgindo com dois homens pretos que foram em um encontro de masculinidade que só tinham homens brancos […]. O interessante foi que depois de um tempo, começaram a levar os pais, os filhos para debaterem.

(En)Cena – Você chama atenção para a construção de quilombos por parte da população negra. Quilombos que podem voltar a replicar estruturas hierárquicas. Do que você estava falando exatamente?

Mauro Baracho – Está na moda falar em construção de espaços, mas não se pode construir um espaço exclusivo para gente preta sem considerar uma série de coisas. Enquanto estiver replicando lá dentro estruturas hierárquicas, no sentido de por ter um título acadêmico, uma visibilidade maior, você tem mais prestígio que outras pessoas pretas. E isso é um cuidado que a gente deve ter nessas estruturas e várias áreas da nossa vida.

A gente tem que considerar uma série de coisas, por exemplo questões de autoestima, saúde mental. Eu criar um quilombo, um grupo de pessoas pretas para reunirem, ou criar uma roda de conversa para reproduzir hierarquias no sentido de que eu posso falar porque tenho um título acadêmico, como se eu tivesse mais prestígio, sem fazer violência psicológica, afinal a maior parte dos suicídios é em população negra.

(En)Cena –  Você falou de uma questão que ocorre no Brasil que é a quantidade de ideação suicida seguida de suicídio da população negra, principalmente os jovens, algumas pesquisas mostram que são de 2 a 3 vezes maior a ocorrência nessa população. Me fez lembrar também de alguns dados que são levantados, de vez em quando, sobre a solidão entre as mulheres negras, principalmente entre as mulheres a partir da meia idade. Esse é um fenômeno que aliado ao próprio fenômeno do racismo estrutural, acaba ceifando vidas, pelo menos do ponto de vista psicológico, afetando muito a saúde mental dessas mulheres. Você conhece algum projeto em Belo Horizonte, ou no Brasil, ou algum autor que trabalha essa questão da solidão entre a população negra em especial as mulheres ou a população em geral?

Mauro Baracho – Sim. Essa questão da solidão é pautada pelas mulheres pretas na década de 80, Laura Moutinho, Sueli Carneiro, Claudete Alves, Ana Cláudia Pacheco; são todas autoras que produziram sobre a solidão da mulher negra. Que não se dá somente na área afetiva ou sexual, a solidão no sentido também mais geral. A medida que tem aquela pirâmide que coloca a mulher preta como a base da pirâmide, e outra, não acredito que em quilombos não se discuta a solidão da mulher preta. De fato, existiu a solidão da população negra no ocidente como eles gostam de colocar, e a solidão da mulher preta implica em todo o estado da pirâmide. E é um assunto que todos nós deveríamos refletir, e não deve ficar só restrito nas meninas pretas debatendo as mulheres pretas. Então, quando eu comecei a falar sobre isso, a galera curtiu porque tinham poucos homens falando sobre isso, tocando nesse assunto. De fato, isso não é um assunto fácil de ser falado, é um constrangimento, isso toca em algumas coisas, vai nas feridas. No livro da Claudete Alves, vai discutir essa questão de os homens negros que ascendem porque casaram com mulheres brancas. Ela quem traz essa implicância com os homens negros. Então, a solidão da mulher negra é um mix de machismo e racismo.

(En)Cena –  Você fez um post que me chamou atenção falando sobre as pessoas que são vítimas de racismo, como elas paralisam diante do racismo. Como isso ocorre? Já que você relatou que já foi vítima de racismo.

Mauro Baracho – Eu fiz aquela reflexão baseada em um livro. A gente estuda o racismo mas não espera por ele. Essa paralisia se dá por conta do encontro que temos entre a ideia de nós mesmos com a percepção das pessoas em relação a nós, você se vê objetificado e isso nos paralisa.

(En)Cena – Qual sua opinião pessoal sobre o futuro do nosso país em relação a um debate como esse, quais são suas perspectivas? Você acha que a gente está trilhando um caminho onde a gente vai amplificar essas vozes, muitas pessoas ficaram decepcionadas com os rumos políticos que tomamos nos últimos quatro ou cinco anos com uma virada para a extrema direita. Onde conquistas sociais que foram alcançadas nos últimos 20 anos foram postas em xeque, foram desafiadas, e a gente vê muitas pessoas desanimadas, são militantes e outros que veem esse cenário todo como um combustível para continuarem mais militantes ainda.

Mauro Baracho – Eu também estou um pouco pessimista, mas também não é algo que me faz desistir. Porque essa ascensão da extrema direita é uma tendência mundial, também não tenho perspectivas boas no Brasil, de que as coisas vão melhorar. Acho que tendem a se manterem. Independente de quem seja, vai continuar difícil. Talvez a gente ache que um governo mais progressista  ajuda para que caminhem melhor. O genocídio da população negra se intensificou nos 13 anos de PT, enquanto não se colocar o debate racial como centro do racismo e da escravidão as coisas vão continuar, não vão mudar muito. Então, para gente vai continuar difícil.

(En)Cena –  Agradecemos por sua participação.

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Queda Livre: qual a sua nota?

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O primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror, chamado de Queda Livre (Nosedive) foi dirigido por Joe Wright, o roteiro foi produzido por Rashida Jones, Michael Schur, Charlie Brooker, possui duração aproximada de 57min. O episódio aborda a avaliação online por meio de um aplicativo que classifica as pessoas com notas, tais notas são atribuídas de acordo com as avaliações recebidas ao longo do dia e em todas as esferas sociais.

O tema central corresponde com o período que vivemos atualmente, onde a vida online recebe hipervalorização trazendo em contrapartida toda essa engenhosidade de números e olhares, onde quanto mais números, mais visibilidade. De acordo com Maria Rita Kehl (2004), na sociedade que estamos inseridos, o que determina a existência do homem é a sua imagem, e ao decorrer do processo sócio-histórico onde por meio da globalização a imagem se tornou um componente indispensável, o homem se tornou um ser de aparências, e somente através da visibilidade é que a existência do indivíduo é legitimada.

A personagem central se chama Lacie (Bryce Dallas Howard), uma usuária que leva o aplicativo de avaliação muito a sério e empenha-se ao máximo para conseguir aumentar sua pontuação. Lacie está tão submersa no universo do aplicativo, que chega ao ponto de ensaiar sorrisos e falas na frente do espelho com a finalidade de aumentar sua simpatia, e por meio disto, alcançar avaliações mais altas.

Fonte: goo.gl/9BMpbW

Para Sartre,”o homem se reconhece a partir de como o outro o enxerga” (SARTRE, 2003, p. 276), a citação de Sartre pode ser elada diretamente com o esforço de Lacie ao decorrer do episódio inteiro para ser reconhecida, para ter sua existência validada. Ela começa o dia distribuindo sorrisos e derramando gentileza a todos que cruzam seu caminho, avaliando um a um e sendo avaliada por cada um deles, até mesmo o café da manhã de Lacie é registrado e legendado de forma apetitosa e positiva, em contrapeso a mesma detestou o sabor do produto, recusando-se a comer.

Na empresa onde ela trabalha, ocorre um fato interessante onde um funcionário rompeu com seu par romântico e todos os colegas ficaram do lado do seu ex-parceiro, Lacie não sabia do rompimento e esbanjou sua simpatia ensaiada a Chester, mas logo foi repreendida por outro colega de trabalho ao ser alertada que eles estavam do lado do outro e que a pontuação do Chester estava caindo desesperadamente, já se encontrando em 3,1, o que é considerado inferior para os usuários. Ela se recompôs ligeiramente e afastou-se de Chester, evitando inclusive contato visual para que sua imagem não fosse associada a dele, evitando assim o risco de ser avaliada de maneira negativa.

Debord (1998) dividiu a sociedade em duas fases distintas, tal que: na primeira fase, para Ser é necessário Ter, e na segunda fase, é preciso Ter para Parecer. Trata-se então de uma forma de dominação da economia capitalista predominante. Traduzindo para a nossa realidade midiática, onde a mídia é a soma dos poderes políticos e econômicos, que acaba por ordenar e ditar o que deve ser feito e a maneira como deve ser feito, classificando assim o que for destoante como antiquado, primitivo e descartável.

Fonte: goo.gl/PB182w

Lacie faz uso de um objeto de sua infância para manipular a reação das pessoas e a partir disso, obter maiores pontuações. Ela fotografa um urso da sua infância juntamente com palavras saudosas sobre uma amiga de infância que atualmente encontra-se no alto escalão do aplicativo, possuindo a nota 4,8. Naomie (Alice Eve), é a amiga marcada na publicação de Lacie que rapidamente responde e faz um convite inusitado a ela, o convite só acontece após Naomie fazer uma avaliação prévia do perfil de Lacie, verificando sua pontuação 4,2.

Naomie a convida para a festa de seu casamento com Paul (Alan Ritchson) que também possui a pontuação 4,8, e Lacie vê nessa cerimônia de casamento a oportunidade ideal para ser avaliada por pessoas que fazem parte do topo do ranking das melhores notas, visto que de acordo com a nota do seu avaliador, a nota atribuída por ele possui maior valor e maior peso. Lacie estava sendo acompanhada por um profissional que orienta usuários do programa a como obter maiores pontuações, e ele vê uma oportunidade de enorme de crescimento para Lacie nesta festa. Ela então passa a dedicar-se a produzir seu discurso, forjar lágrimas e comportamentos que mobilizarão os convidados durante sua performance. Vale lembrar que ela está ainda mais desesperada por pontos por precisar comprar um apartamento novo, e o apartamento desejado só pode ser obtido por clientes que ocupem posições elevadas no ranking.

Ela se dedica incessantemente a ensaiar e a criar uma performance impecável que possa levá-la ao nível almejado, passando a ignorar pessoas com notas baixas, inclusive seu ex-colega de trabalho que foi demitido por estar com a pontuação 2,8. Lacie exala ternura e apreço por tudo e todos que a cercam, tornando sua vida uma eterna performance onde ela reprime sentimentos e reações de cunho negativo para que não seja punida com notas baixas.

Fonte: goo.gl/UQ2Lb3

Ao deslocar-se para o casamento, acontecem inúmeros imprevistos onde ela recebe sua primeira avaliação negativa do próprio irmão, que condena sua atitude fajuta e mercenária de querer aproveitar-se da situação apenas para obter status, ele a avalia negativamente, e a partir daí as coisas começam a correr de outra forma.
Lacie perde o voo, é punida por passageiros na fila que discordam do comportamento grosseiro dela junto a atendente, é punida pelo guarda recebendo punição dobrada para avaliações negativas, resolvendo então ir de carro. Entretanto o mesmo descarrega no meio do caminho, e ela não consegue encontrar um carregador adaptado por causa do modelo de carro antigo que ela pôde alugar com sua pontuação baixa.

Lacie fica desolada, anda pelas ruas arrastando sua mala e não recebe carona por estar com uma nota extremamente baixa, porém recebe ajuda de uma caminhoneira chamada Driver (Cherry Jones), que após perder seu esposo por falta de tratamento por causa da sua pontuação insuficiente, passou a ignorar o aplicativo e a viver de forma livre, sem seguir nenhum script ou performar algo contrário ao que ela de fato desejava expressar.

No início, Lacie recusa a carona ao ver que Driver possui uma pontuação extremamente baixa, mas logo se convence e entra no caminhão, pois precisa chegar a tempo ao casamento. Após muitos imprevistos e sufocos, ela finalmente chega com os trajes sujos e rasgados, e entra pelos fundos, pois Naomi havia desconvidado-a após verificar que sua nota caiu.

Fonte: goo.gl/fZe19G

Lacie rouba o microfone e faz seu discurso que foi repetidamente ensaiado enquanto foge dos seguranças do local, Naomi sente-se constrangida, mas mantém seu semblante simpático e sua performance feliz, enquanto Paul tenta tirar Lacie a força. Nos minutos finais, ela é presa e ao chegar à prisão tem sua lente digital do aplicativo retirada e seu celular retirado, e como diz Calligaris (2007), “a invisibilidade é mais intolerável do que a prisão”.

REFERÊNCIAS:

Adoro Cinema; Black Mirror. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/series/serie-10855/temporada-27038/elenco/episode-559695/#Screenplay> Acesso em: 01/09/2017 de junho de 2017

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro, Elfos, 1995.

CALLIGARIS,C. Fama e narcisismo. Publicado em 15/3/2007.<www.verdestrigos.org/sitenovo/…/cronica_ver.asp?> Acesso em 31/08/2017

DEBORD, G.: A Sociedade do Espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.

KEHL, M. R. : Visibilidade e espetáculo. In: BUCCI, E. –Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo, 2004

SARTRE, Jean-Paul. Sursis. São Paulo: Nova Fronteira, 2003.

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