Os efeitos da inteligência artificial (IA) para os artistas: concorrentes ou parceiros?

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Culturalmente, tendemos a ver a IA como uma ameaça potencial, enraizada em nosso imaginário por filmes de Hollywood desde os anos 80, que retratam guerras apocalípticas entre máquinas e humanos e a ideia de uma revolta robótica pela dominação mundial.

A inteligência artificial te permite criar imagens detalhistas em segundos.

O filósofo e ensaísta espanhol Daniel Innerarity, considerado “um dos 25 pensadores mais influentes do mundo” pela revista francesa “Le Nouvel Observateur”, tem explorado intensamente o tema da criação por inteligência artificial. Em seu artigo “O sonho da máquina de criar”, Innerarity aborda a fascinação que a ideia de uma sociedade de criação automatizada provoca em nós.

Os programas de inteligência artificial têm alcançado sucessos espetaculares, não apenas nos domínios do cálculo, previsão analítica ou diagnóstico, mas também na composição musical, na modelagem criativa de processos visuais, em séries de televisão, no design arquitetônico e na escrita de histórias. Esses avanços levaram muitos a especular que, em breve, o ser humano será substituído em muitos campos, incluindo a criatividade. A questão de saber se a inteligência artificial pode produzir arte é fascinante e incerta. A arte gerada por IA poderia tomar conta de nossa criatividade artística, automatizando ou mecanizando a criatividade, como já se prevê para o trabalho ou a democracia. Se a criatividade artística era um dos últimos domínios de distinção entre humanos e computadores, esse bastião parece agora estar sendo demolido, e estaríamos entrando numa era de criações sem autores humanos.

Contudo, há uma diferença fundamental entre produzir algo baseado na digestão de milhares de obras de arte e criar algo original. A criatividade humana não pode ser imitada ou repetida; implica sempre uma certa transgressão que não pode ser reduzida a regras ou algoritmos estatísticos. A criatividade envolve irregularidade. Na computação, o que aparenta ser associações livres é, na verdade, algoritmicamente determinado, sem romper com nada ou trazer novidades radicais. Assim, a criatividade gerada por IA é, no melhor dos casos, uma imitação fraca da criatividade verdadeira.

Fonte: Daniel Innerarity em maio, em Lisboa, durante a conferência internacional “Inteligência Artificial e Cultura — Do Medo à Descoberta”, promovida pela Sociedade Portuguesa de Autores (SPA)

As inovações tecnológicas da “arte gerada por inteligência artificial” não constituem necessariamente uma inovação artística. Computadores têm uma forma fraca de criatividade, que lhes permite reproduzir padrões de fala, sons ou formas, mas nada além disso. Não se pode esperar que um computador produza algo radicalmente imprevisível, como fizeram os criadores verdadeiramente disruptivos da história das artes.

A ideia de uma “imitação da criatividade” tem algum sentido? Essa interação entre arte e tecnologia já existia quando pintores utilizavam a fotografia como estudo preliminar. Artistas que trabalham com IA veem esses programas como ferramentas que os libertam de tarefas pouco criativas e abrem novas possibilidades. Esses programas democratizaram a criatividade, tornando-a mais acessível e permitindo que mais pessoas experimentem a arte em suas várias formas. Mesmo aqueles que não são particularmente dotados para a arte podem usar essas ferramentas para gerar resultados criativos.

Essa situação é semelhante ao embate que os pintores do realismo enfrentaram com a invenção da fotografia, temendo que esta extinguiria sua arte. Enquanto as máquinas imitam os criadores, estes últimos podem se dedicar ao que os caracteriza como tal, desafiando as fronteiras do inimitável. Ao contrário do pessimismo que diagnostica a mecanização do ser humano como o fim da criatividade, talvez se possa argumentar o contrário. “Quanto mais os seres humanos se mecanizam, mais reconfortante se torna a ideia de que as máquinas podem compreender alguma coisa de arte” (Rauterberg 2021, 195). A tentativa de gerar arte através das máquinas pode revelar precisamente o que elas não conseguem criar. Assim, a especificidade da criatividade humana é destacada quando as máquinas criam algo que se assemelha à criatividade, mas não o é.

Neste contexto, muitos criativos estão preocupados que a IA possa roubar seus empregos. A questão principal para os profissionais da criatividade não é regular as tecnologias de IA para proteger as formas como costumavam trabalhar. Devemos nos perguntar: “Como podemos usar essas tecnologias de IA para criar novas possibilidades de trabalho que agreguem mais valor ao nosso trabalho?” Profissionais que usam IA para criar no lugar deles terão resultados medíocres e parecidos globalmente. Já aqueles que usarem a IA como ferramenta para aprimorar suas próprias criações se tornarão mais relevantes e valorizados ao alcançarem resultados superiores. Há uma diferença abismal entre as duas abordagens.

É neste momento que a psicologia deve atuar, auxiliando na transição entre eras do trabalho, assim como ocorreu na revolução da internet. Esta trouxe novos cargos, evoluções na educação e saúde, e uma mudança estrutural completa. Inicialmente, a internet trouxe inseguranças para os trabalhadores, com a automação e digitalização substituindo muitos empregos manuais e operacionais. Muitas pequenas empresas lutaram para competir com grandes corporações que adotaram rapidamente novas tecnologias. Portanto, o papel do psicólogo é crucial para ajudar os trabalhadores a lidar com essas transformações, minimizando o sofrimento ou adoecimento possível.

Um psicólogo pode desempenhar um papel crucial no auxílio a indivíduos enfrentando mudanças drásticas no mercado de trabalho geradas pelo surgimento da inteligência artificial (IA). Essas transformações podem causar ansiedade, insegurança e desmotivação, e o psicólogo está bem posicionado para ajudar as pessoas a lidar com essas emoções e a se adaptarem a novas realidades.

Primeiramente, o psicólogo trabalha para identificar e abordar os medos e ansiedades associados às mudanças tecnológicas. Utilizando técnicas como a dialética, ele ajuda a reestruturar pensamentos negativos e a promover uma mentalidade mais positiva e resiliente. Isso é fundamental para que a pessoa veja as mudanças como oportunidades de crescimento e não como ameaças. O psicólogo também pode auxiliar no desenvolvimento de habilidades de enfrentamento e adaptação. Isso inclui o fortalecimento da autoestima e da autoconfiança, essenciais para que o indivíduo se sinta capaz de aprender novas competências e se adaptar a novas funções no contexto da IA. O psicólogo também pode ajudar a identificar os pontos fortes e interesses do indivíduo.

Outra área de atuação importante é o suporte no planejamento de carreira, campo ascendente no mercado da psicologia. O psicólogo pode colaborar na elaboração de um plano de ação, estabelecendo metas realistas e passos concretos para alcançá-las. Isso pode incluir a recomendação de cursos de capacitação em habilidades relacionadas à IA, estratégias de networking e métodos eficazes para a busca de emprego em setores emergentes. O psicólogo também oferece suporte emocional durante o processo de transição. As mudanças impulsionadas pela IA podem ser desafiadoras e solitárias, e ter um profissional para fornecer apoio e encorajamento pode fazer uma grande diferença. Além disso, o psicólogo pode mediar grupos de apoio, onde indivíduos em situações semelhantes compartilham experiências e soluções, promovendo um senso de comunidade e solidariedade.

Por fim, o psicólogo pode ajudar a pessoa a desenvolver uma visão de longo prazo sobre o impacto da IA no mercado de trabalho. Isso envolve entender as tendências futuras e preparar-se para elas, o que pode incluir a aprendizagem contínua e a flexibilidade para mudar de carreira ou funções conforme necessário.

 

Referências

União Brasileira de Compositores (UBC). Artigo sobre a inteligencia artificial “O sonho da máquina criativa” Disponível em :< https://www.ubc.org.br/publicacoes/noticia/21771/artigo-sobre-inteligencia-artificial-o-sonho-da-maquina-criativa >. Acesso em: 14, jun, 2024.

Escola Panamericana de Arte e Design. “Inteligencia artificial e criatividade: adversários ou aliados?” Disponível em :< https://www.escola-panamericana.com.br/inteligencia-artificial-e-criatividade-adversarios-ou-aliados/ >. Acesso em: 14, jun, 2024.

Disponível em :< https://industriall.ai/blog/a-ia-no-mercado-criativo-quais-os-impactos-dessa-tecnologia >. Acesso em: 14, jun, 2024.

Rauterberg, Hanno (2021), Die Kunst der Zukunft. Über den Traum der kreativen Maschine, Berlin: Suhrkamp.

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A Jornada de “Lady Bird”: a caminhada para a maturidade e os laços familiares

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Para cada adolescente que se torna independente, há um adulto lutando para desapegar.

Aos 17 anos, Christine “Lady Bird” MacPherson (Saoirse Ronan) está no último ano do colégio católico e enfrenta os dilemas da adolescência, como o primeiro amor, a descoberta do sexo, a tentativa de ser popular na escola e a relação tumultuosa com sua mãe, Marion (Laurie Metcalf). No filme “Lady Bird – A Hora de Voar”, Christine deseja fazer faculdade longe de Sacramento, Califórnia, uma ideia firmemente rejeitada por sua mãe. Lady Bird, como a jovem de forte personalidade exige ser chamada, não se dá por vencida e leva adiante o plano de ir embora. Enquanto sua hora não chega, ela se divide entre as obrigações estudantis, o primeiro namoro, os rituais de passagem para a vida adulta e inúmeros desentendimentos com a mãe.

O filme foi indicado a cinco Oscars: melhor filme, melhor atriz para Saoirse Ronan, melhor atriz coadjuvante para Laurie Metcalf, melhor roteiro original e melhor direção para Greta Gerwig, que se tornou a quinta mulher a ser indicada na categoria.

Em “Lady Bird”, as relações familiares desempenham um papel central, evidenciando a essência do gênero ‘coming of age’, que trata das inevitáveis mudanças da adolescência. A família, como primeira organização social, desempenha um papel crucial ao impor expectativas, cobranças e esperanças. Esse impacto é perceptível especialmente durante a adolescência, quando se espera que se apresente ao mundo a pessoa que se está escolhendo se tornar. Por isso, parece estranho que muitos filmes dessa fase tratem os pais como meros coadjuvantes.

“Lady Bird” ilustra magistralmente esse cenário ao focar na relação mãe-filha. Embora o título do filme seja o alter ego da protagonista, Christine, o título provisório era “Mães e Filhas”, reforçando que toda história de amadurecimento tem dois lados: o jovem que aprende a amadurecer e o pai que aprende a dizer adeus. Enquanto os adolescentes anseiam por sair da casa dos pais, estes enfrentam seus próprios conflitos internos ao aceitar a liberdade dos filhos. “Lady Bird” se destaca ao mostrar o protagonismo “escondido” de Marion, além de como a força de uma personagem exerce influência sobre a outra.

                                                                                                  fonte: A24

A cena após a discussão entre Lady Bird e sua mãe (que terminou com Lady Bird pulando do carro) mostra que ela escreveu “f*** you, mom” em seu próprio gesso imobilizador. Detalhe interessante que acrescenta à sua ,ainda infantil, rebeldia.

O filme intercala cenas de Christine com amigos, professores e namorados com cenas dela e sua mãe, mostrando como os acontecimentos de uma esfera desencadeiam os da outra. As interações entre Christine e Marion, explosivas ou discretas, são as que mais se destacam, dando substância ao que poderia ser apenas mais uma comédia adolescente sobre uma garota mimada se rebelando.

SEndo caracterizado pelo gênero ‘coming of age’, Lady Bird captura a transição turbulenta da adolescência para a vida adulta, explorando relacionamentos amorosos, pertencimento, desentendimentos familiares e a busca por novas experiências. Para Christine, a universidade distante representa a oportunidade de se libertar das imposições familiares, da situação econômica e da religião. Lady Bird busca um recomeço, experimentando a existência sem as correntes de sua origem. A cena inicial do filme destaca o conflito entre gerações, com Christine tentando se distanciar de tudo o que a família representa, adotando um alter ego que a define e a separa do passado.

O clímax ocorre quando Christine é levada ao aeroporto pelos pais para embarcar para Nova Iorque, onde cursará faculdade. A instabilidade da relação entre Christine e Marion é evidente. Há um momento desconcertante em que Christine pergunta se a mãe a acompanhará até o portão de embarque, e Marion responde que não, citando o custo do estacionamento. Quando Christine sai do carro, Marion começa a chorar enquanto dirige sozinha, tentando conter suas emoções. Ela retorna ao aeroporto, mas já é tarde demais; Christine havia alçado voo. E é nesse momento que fica claro o primeiro contato de Marion com o ninho vazio, visto que o irmão mais velho de Christine não tem o mesmo ímpeto de sair de casa o mais rápido possível.

Essa transição, conhecida como  ninho vazio, ocorre quando os filhos deixam a casa dos pais para seguirem seus objetivos de vida. Os pais perdem a função antes exercida na criação dos filhos, afetando diretamente o psicológico deles. A maturidade, embora desejada durante o processo de amadurecimento dos filhos, passa a ser motivo de solidão, e muitas vezes, sem perspectiva do que fazer para o futuro, perdendo até mesmo a visão do casamento depois dos filhos irem embora. Sentir saudades de filhos distantes não é incomum, e se preocupar também não. Porém, quando falamos da síndrome, esses sentimentos são de sofrimento e depressão, causando até mesmo reações físicas nos pais.

 fonte: A24: Universal Pictures Focus Features

Lady Bird é o raro filme que reconhece plenamente a complexidade do amor entre mãe e filha, bem como como as melhores intenções dos pais para com o filho podem ser obscurecidas ou confusas por má comunicação ou problemas pessoais.

Por outro lado, o sofrimento do jovem adulto é marcado por desafios emocionais, sociais e econômicos durante a transição para a vida adulta.  Portanto, a transição para a vida adulta é caracterizada por uma série de mudanças e eventos específicos, incluindo concluir a escolaridade, ingressar no mercado de trabalho, casar e tornar-se mãe ou pai. Em certa medida, a juventude é mais uma etapa de assumir grandes responsabilidades. No entanto, devido às diferenças de classe social, gênero e diversidade cultural e étnica, essas experiências emocionais variam em sociedades e histórias específicas.

Nas cenas finais do filme “Lady Bird”, é possível ver a protagonista se colocando em risco, bebendo com desconhecidos e andando sem rumo pela nova cidade onde se encontra. Ela liga para os pais: “Sou eu, Christine. É o nome que vocês me deram. É um bom nome” e fala com a mãe, demonstrando saudades de casa. O filme acaba com as falas de Christine: “Eu te amo. Obrigada.”Assim, é nítido que algumas das expectativas com o sonhado mundo de Lady Bird foram quebradas e ela está enfrentando as dificuldades da nova vida adulta.

Os jovens adultos também passam pelo luto de sua infância/adolescência, e a atuação do psicólogo pode ser um aliado nessa turbulenta fase. A psicoterapia para o jovem adulto é recomendada quando há sofrimento no momento em que o jovem passa a fazer escolhas de forma mais independente. O processo de amadurecimento pode acarretar ambivalências e angústias intensas frente ao desafio que é se tornar adulto na nossa sociedade. Aspectos como classe social, raça e gênero impactam e determinam as experiências emocionais do jovem.

Diante dessas demandas, a saída de casa de um dos filhos pode ser um período turbulento tanto para quem vai quanto para quem fica. Um psicólogo qualificado desempenha um papel crucial para os filhos que estão saindo e para os pais que estão ficando. A atuação do psicólogo oferece um espaço seguro para que os jovens e seus pais expressem suas preocupações, ajudando-os a desenvolver resiliência e estratégias de enfrentamento. O psicólogo trabalha para diminuir o estigma em torno da saúde mental, facilitando o acesso a tratamentos e promovendo a importância do bem-estar psicológico. Além disso, ele pode orientar na construção de identidade e autonomia, ajudando a navegar as pressões sociais e expectativas de futuro.

Lady Bird, 2017 – Estados Unidos

Direção: Greta Gerwig

Roteiro: Greta Gerwig

Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Lucas Hedges, Timothée Chalamet, Beanie Feldstein, Stephen McKinley Henderson & Lois Smith

Fotografia: Sam Levy

Trilha Sonora: Jon Brion

Montagem: Nick Houy

Design de Produção: Chris Jones

Referências

GERWIG, G., Lee, B., & McWilliams, J. (2017). Lady Bird. Universal Picture.

Hassan, Nuha. Lady bird: the complex love story of a mother and daughter. Disponível em <: https://medium.com/narrador-personagem/lady-bird-e-a-import%C3%A2ncia-das-rela%C3%A7%C3%B5es-familiares-na-narrativa-coming-of-age-439fc6b7784 >. Acesso em 20 de maio  2024.

Telavita. A forte saudade do filho e a síndrome do ninho vazio. Disponível em <: https://www.telavita.com.br/blog/sindrome-do-ninho-vazio/ >. Acesso em 20 de maio de 2024.

FERREIRA, T. L. Aspectos psicossociais do ninho vazio em mulheres: uma compreensão da psicologia analítica. 2012. Dissertação (Mestrado em psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: . Acesso em 22 mai. 2024.

HERDAYANTI, Kicki.; SATRIA, Robby. Psychological Conflict Of The Main Character Reflected In Lady Bird Movie . Ejournal Universitas Putera Batam  Vol. 8 No. 2 (2021): JOURNAL BASIS UPB  . DOI:  < https://doi.org/10.33884/basisupb.v8i2.3766> .

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The 90’s are back! a influência midiática e a perpetuação da pressão estética

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O ressurgimento dos “anos 2000” e o impacto biopsicossocial da obsessão pelo emagrecimento.

Nos últimos anos, os padrões de beleza têm se mostrado quase impossíveis de acompanhar devido à sua constante evolução, que ocorre quase na mesma velocidade que as mudanças nas coleções de moda rápida. Este fenômeno reflete uma era onde a estética é transitória e altamente influenciada por ícones da cultura pop, como a família Kardashian-Jenner. Desde meados dos anos 2010, as mulheres deste clã estabeleceram um novo padrão estético com corpos voluptuosos e lábios carnudos, que não apenas mantiveram a atenção do público sobre elas, mas também contribuíram significativamente para a construção de seus impérios comerciais (Smith, 2017).

Um exemplo notável é a Kylie Cosmetics, lançada por Kylie Jenner em 2015. Em dois anos, a empresa foi avaliada pela Forbes em US$ 800 milhões, ilustrando o poderoso impacto de sua influência estética (Forbes, 2017). A própria Kylie, desde os 15 anos, popularizou os lábios preenchidos, influenciando uma geração inteira. A Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (2016) relatou que os procedimentos de preenchimento labial saltaram de 1,8 milhão em 2010 para 2,6 milhões em 2016, destacando a ascensão dessa tendência estética.

Recentemente, no entanto, observou-se uma guinada das irmãs Kardashian-Jenner em direção a um físico mais esguio, alinhado com a reemergente estética dos anos 2000 e o aumento do uso de medicamentos para emagrecer, como o Ozempic. Este retorno ao padrão de magreza extrema, ou “size zero”, levantou preocupações entre especialistas em saúde e moda (Johnson, 2020).

As interações complexas entre os ideais de beleza disseminados pelas plataformas de mídias sociais e o contexto do gênero feminino resultam em um aumento substancial nas taxas de insegurança e no surgimento de transtornos associados a essa dinâmica. A proliferação de imagens e representações de padrões estéticos irrealistas e estereotipados, amplamente difundidos nas mídias, exerce uma influência considerável sobre a autoimagem e a autoestima das mulheres, impactando negativamente seu bem-estar psicológico e emocional (Lira, 2017).

                Fonte: Miu Miu Fashion Show por Victor Boyko/ Getty Images

A magreza extrema dos anos 2000 foi marcada como um período de tendência no mundo da moda. E está de volta nas passarelas e nas telas.

A preocupação dos especialistas não é infundada. No TikTok, a hashtag Y2K já acumulou mais de 18 bilhões de visualizações, demonstrando a popularidade preocupante deste retorno à magreza (TikTok, 2020). Segundo a psicóloga Vanessa Tomasini, especialista em transtornos alimentares, esse padrão sempre se situa no que é inatingível para a maioria, movimentando uma grande indústria que explora a busca pelo corpo magro e pela juventude eterna (Tomasini, 2021).

Os riscos associados a esse padrão são numerosos e incluem transtornos alimentares graves como anorexia e bulimia, além de problemas físicos decorrentes de dietas extremas e uso de medicamentos sem supervisão médica, como perda de massa muscular, alterações hormonais e desidratação (Bello, 2019). Além disso, essas práticas podem agravar problemas de saúde mental, como baixa autoestima e isolamento social, especialmente em jovens que se veem bombardeados por essas imagens nas redes sociais (Costa et al., 2019).

A mídia, por meio de seus instrumentos de marketing, transforma o corpo em um produto, promovendo um padrão de “corpo perfeito” associado a sucesso, prazer e realização pessoal, evidenciando o poder da mídia como influenciador da percepção corporal (Vargas, 2014; Silva, 2014). As consequências dessas influências podem ser duradouras e devastadoras, como demonstrado pelos estudos sobre o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), onde indivíduos desenvolvem uma obsessão por defeitos percebidos em sua aparência, muitas vezes resultando em comportamentos compulsivos e tratamentos estéticos repetitivos (DSM-5, 2014).

Portanto, é vital que continuemos a promover um entendimento mais saudável e inclusivo dos padrões de beleza, considerando a diversidade corporal e a saúde mental, como maneiras de mitigar os danos causados por essas percepções distorcidas que ainda dominam nossa cultura de consumo. As reflexões propostas por Tomasini e outros especialistas são cruciais para o desenvolvimento de uma sociedade mais consciente e menos focada em ideais inatingíveis de beleza (Tomasini, 2021; Costa et al., 2019).

 

Referências

LIU, B. A estética das Kardashian-Jenner e a busca do ‘corpo trend’: como essa equação afeta as mulheres? Disponível em :< https://revistamarieclaire.globo.com/comportamento/noticia/2024/04/a-estetica-das-kardashian-jenner-e-a-busca-do-corpo-trend-como-essa-equacao-afeta-as-mulheres.ghtml >. Acesso em: 1, mai, 2024.

MUNIZ, C. Magreza anos 2000: os perigos da retomada do padrão de moda. Disponível em: > https://gshow.globo.com/moda-e-beleza/noticia/magreza-anos-2000-os-perigos-da-retomada-do-padrao-de-moda.ghtml >

SANTOS DE OLIVEIRA BASTOS, A. P.; ALVES BENEVIDES, A. L.; FERREIRA DA SILVA, M.; URZÊDO RIBEIRO, L. A influência das mídias sociais no Transtorno Dismórfico Corporal: Uma doença da era digital?. Revista Científica do Tocantins, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 1–18, 2022. Disponível em: https://itpacporto.emnuvens.com.br/revista/article/view/48. Acesso em: 1 maio. 2024.

PAULINO, N. L.  Impactos Psicológicos Nas Mulheres Frente Aos Ideais De Beleza Determinados Nas Mídias Sociais. Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia  – Faculdade Fasipe Cuiabá.  Cuiabá, 2023.

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Rupi Kaur: Traz a cura pelas palavras

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Com 4,5 milhões de seguidores, Kaur fez de sua poesia sincera sobre amor, desgosto, feminilidade e traumas  uma sensação global.

A internet está saturada de fenômenos de popularidade, mas poucos são tão notáveis quanto Rupi Kaur, uma mulher de 31 anos, nascida na Índia e criada no Canadá. Rupi se destaca como escritora de conteúdos sérios em uma linguagem poética e acessível. Além disso, ela se dedica à poesia, um gênero não tão difundido na rede. 

Nascida em Punjab em 4 de outubro de 1992, é uma poetisa, escritora e artista da palavra falada contemporânea, com raízes indianas e canadenses. Reconhecida como uma “Instapoet”, ela ganhou popularidade online por meio de seus poemas compartilhados no Instagram, destacando-se como uma voz proeminente no movimento feminista. As poesias de Rupi abordam temas complexos, como abuso, violência, amor, sofrimento, maternidade, machismo e relacionamentos. Elas exploram o trauma e o desconforto de maneira direta e sem ironia, mostrando uma coragem notável, conforme observa a tradutora e poetisa Ana Guadalupe.

Rupi Kaur emergiu como um fenômeno literário, conquistando o título de autora best-seller número 1 do New York Times. Sua jornada começou com a publicação independente de sua primeira coleção de poesia, “leite e mel” (2014), seguida pelos seus irmãos artísticos, “o sol e suas flores” (2017) e “meu corpo, minha casa” (2020), ambos estreando no topo das listas de mais vendidos em todo o mundo. Essas coleções já venderam mais de 12 milhões de cópias e foram traduzidas para mais de 40 idiomas, com “leite e mel” se tornando um dos livros de poesia mais vendidos do século XXI. Além disso, Kaur foi reconhecida como a “escritora da década” pela New Republic e foi incluída na lista 30 under 30 da Forbes. Em 2022, lançou seu quarto livro, “Cura pelas palavras”.

No campo audiovisual, em 2021, Kaur produziu “Rupi Kaur Live”, um especial de poesia exclusivo para o Amazon Prime Video. Além disso, atuou como produtora executiva do filme “This Place”, que estreou no Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2022, e do filme indicado ao Oscar de 2024, “To Kill a Tiger”. Kaur tem sido uma presença marcante nos palcos de todo o mundo, culminando na conclusão bem-sucedida de sua terceira turnê global com ingressos esgotados em 2023. Seus espetáculos oferecem uma experiência teatral poética única, complementada pelo toque de comédia stand-up próprio de Kaur. Seu trabalho aborda temas como amor, perda, trauma, cura, feminilidade e muito mais.    

Em 2015, a autora publicou em suas redes sociais um ensaio sobre menstruação, incluindo uma foto dela deitada de costas, usando um pijama manchado de sangue menstrual. Essa imagem foi removida da plataforma duas vezes, alegadamente por violar as diretrizes da rede social. Em resposta, a autora protestou no Facebook e no Instagram. A repercussão de seu protesto foi tão intensa que a plataforma reconsiderou sua decisão e pediu desculpas, reconhecendo seu erro. No entanto, a relação de Rupi Kaur com o Instagram vai além desse episódio. Ela é reconhecida como uma “instapoet”, uma marca que a define devido à sua presença e popularidade na plataforma. O termo “instapoet”, originado do inglês pela combinação de “Instagram” e “poet”, descreve poetas que ganham destaque por publicar poemas curtos e acompanhá-los com ilustrações simples, mantendo esse formato mesmo ao serem compilados em livros.

                                                                                                               Fonte: Rupikaur / Photoalbum

“Antes do meu livro, o mercado editorial achava que não havia mercado para poesia sobre trauma, abuso e cura”, afirmou Rupi ao The Guardian em agosto de 2016. O trauma, uma constante na vida de tantas mulheres, é precisamente a matéria-prima de sua obra.

Quando Rupi nasceu, seu pai não estava presente, pois precisou fugir da perseguição religiosa, indo para o Canadá.  Assim, em seus primeiros anos de infância Rupi foi criada junto a mãe e a  família materna, o que, de acordo com Rupi em uma entrevista para o Girlboss Radio, foi algo muito rebelde e incomum para a cultura indiana. Normalmente o que acontece numa família indiana é que quando um homem e uma mulher se casam, a mulher deixa a família para viver com os sogros. Somente quando Kaur tinha seus 4 anos de idade, seu pai conseguiu a cidadania para o resto da família no Canadá. Por isso, em suas criações a poetisa traz em suas obras a barreira de linguagem, o contraste entre a língua materna e o inglês, o estranhamento com o pai nos primeiros anos, a saudade da família materna e muitas outras nuances presentes na vida de uma família de imigrantes.

“Quando eu nasci, já havia sobrevivido à primeira batalha da minha vida: o feticídio de meninas [prática comum em algumas culturas indianas]. Mas nós enfrentamos tudo. Minha poesia é uma das rotas para isso”, explica ela em seu site. “Milk and honey” (“leite e mel”), título original de “Outros jeitos de usar a boca”, faz menção ao genocídio do povo sikh na Índia – etnia do Estado de Punjab, à qual pertence a poeta e sua família. Segundo ela, os sikh, especialmente suas mulheres, saíram do massacre “suaves como o leite, mas fortes como o mel”. Seguindo a lógica da superação de um grande trauma, o livro tem quatro partes: a dor, o amor, a ruptura e a cura.

Uma das dificuldades na tradução dos poemas, segundo Guadalupe, foi justamente propor soluções que respeitassem a mistura que a autora faz de elementos da linguagem. Ao falar sobre Rupi Kaur, deve-se mencionar que uma característica única de sua escrita é que seu trabalho é escrito exclusivamente em letras minúsculas, para homenagear a escrita de sua língua materna, como explica a poetisa em seu site:

Quando comecei a escrever poesia, eu conseguia ler e entender minha língua materna (punjabi), mas ainda não tinha desenvolvido as habilidades necessárias para escrever poesia nela. Punjabi é escrito na escrita Shahmukhi ou Gurmukhi. Na escrita Gurmukhi, não há letras maiúsculas ou minúsculas. As letras são tratadas da mesma forma. Gosto dessa simplicidade. É simétrico e direto. Também sinto que há um nível de igualdade que essa visualidade traz ao trabalho. Uma representação visual do que quero ver mais no mundo: igualdade. A única pontuação que existe na escrita Gurmukhi é um ponto final – representado pelo seguinte símbolo: | Então, para simbolizar e preservar esses pequenos detalhes da minha língua materna, eu os inscrevo no meu trabalho. Sem distinção de casos e apenas períodos. Uma manifestação visual e uma ode à minha identidade como mulher diaspórica Punjabi Sikh. Trata-se menos de quebrar as regras do inglês (embora isso seja muito divertido), mas mais de vincular minha própria história e herança ao meu trabalho.” (2024, Rupi Kaur)

Poema da jovem poeta canadense Rupi Kaur: “Aos pais que têm filhas”, do bestseller Outros jeitos de usar a boca (Milk and Honey)

Referências

 

KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. Brasil : Editora Planeta, 2017.

KAUR, Rupi. O que o sol faz com as flores. Brasil : Editora Planeta, 2018.

KAUR, Rupi. Meu corpo, minha casa. Brasil : Editora Planeta, 2020.

KAUR, Rupi. Cura pelas palavras. Brasil : Editora Planeta, 2023.

KAUR, Rupi. Rupi Kaur é poetisa, artista e performer. Disponível em <: https://rupikaur.com/pages/about-me >. Acesso em 09 abril. 2024.

Guedes, Letícia. Rupi Kaur: é a resposta para as perguntas que não foram feitas. Disponível em <: https://gctinteiro.com.br/biografia-07-rupi-kaur/ >. Acesso em 09 abril. 2024.

D’Angelo. Helô. Fenômeno de vendas, Rupi Kaur faz do trauma a matéria prima de sua poesia. Disponível em <: https://revistacult.uol.com.br/home/rupi-kaur-faz-do-trauma-a-materia-prima-para-sua-poesia/ >. Acesso em 09 abril. 2024.

AMORUSO, Sophia. Rupi Kaur sobre o poder da empatia, da honestidade e da narrativa.  Disponível em <: https://girlboss.com/blogs/read/rupi-kaur >. Acesso em 09 abril. 2024.

Autor não definido. A história da famosa Rupi Kaur. Disponível em <:https://www.sikhnet.com/news/story-famous-rupi-kaur >. Acesso em 09 abril. 2024.

 

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É Assim que Acaba: rompendo com o ciclo de violência doméstica

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Em sua obra mais íntima, Colleen Hoover tece palavras com cuidado e empatia, explorando de maneira sensível a realidade vivenciada por muitas mulheres brasileiras.

O livro “É Assim que Acaba” de Colleen Hoover, publicado em 2018, ganhou destaque graças às tendências no aplicativo TikTok, tornando-o o livro mais vendido no Brasil em 2022. Essa popularidade renovada pode ser atribuída à maneira sensível e direta em que a autora aborda questões como violência doméstica e relacionamentos abusivos, temas que são muito presentes na realidade brasileira. De acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), 3 a cada 10 brasileiras já foram vítimas de violência doméstica

Na narrativa, somos apresentados a Lily Bloom, uma mulher que está lidando com a recente perda de seu pai. Ao contrário do sentimento de luto, Lily experimenta um sentimento de alívio. Isso se deve ao fato de que, ao longo de sua vida, ela testemunhou a relação violenta entre seu pai e sua mãe, presenciando gritos, golpes, tentativas de estupro e agressões. Por isso, Lily faz a si mesma uma promessa: nunca permitirá entrar em um relacionamento abusivo, nunca permitirá que sua vida siga o mesmo caminho que a de sua mãe.

Apesar de ter sido criada em um ambiente que a preparou para reconhecer comportamentos abusivos e ter a certeza de que não se tornaria vítima de violência doméstica, Lily começa a experimentar essa mesma violência. Os chamados “acidentes”, nos quais seu namorado perde o controle durante acessos de raiva, explodindo, mas alegando não ter a intenção de machucá-la, acontecem rapidamente e sem aviso prévio. Assim, Lily se vê testando seus próprios limites, convencendo-se de que ele é uma pessoa boa, mesmo sabendo que talvez esteja trilhando o mesmo caminho que sua mãe.

Porém, Lily tem apoio de diversas pessoas como sua cunhada e um amor de infância que a auxiliam a ter forças para sair desse cenário repleto de violência. E é neste ponto que se separa a ficção da realidade: muitas vezes a rede de apoio para as vítimas de violência doméstica é frágil, falha ou simplesmente inexistente. Neste sentido, urge-se um maior conhecimento acerca de como ocorre a violência doméstica e a quem recorrer.

Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga norte-americana Lenore Walker (1979) identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido. Ele é composto por três etapas: a fase da tensão (quando começam os momentos de raiva, insultos e ameaças, deixando o relacionamento instável), a fase da agressão (quando o agressor se descontrola e explode violentamente, liberando a tensão acumulada) e a fase da lua de mel (o agressor pede perdão e tenta mostrar arrependimento, prometendo mudar suas ações). Esse ciclo se repete, diminuindo o tempo entre as agressões e tornando-se torna sempre mais violento. E estas fases podem ser muito bem identificadas ao longo da obra desde o primeiro “acidente” com Ryle, conforme no trecho:

“- me desculpe mesmo. Foi só que… Eu queimei minha mão. Entrei em pânico. Você estava rindo e…me desculpe mesmo, Lily, aconteceu muito rápido. Eu não queria te empurrar, Lily, me desculpe.

Dessa vez, não escuto a voz de Riley. Tudo que ouço é a voz do meu pai.

‘Desculpe Jenny. Foi um acidente. Me desculpe mesmo.’

[…]

Estou morrendo de raiva, mas de algum modo ainda consigo ficar preocupada.” (P.186)

 

As razões pelas quais as mulheres vítimas de violência guardam silêncio sobre o abuso são diversas e complexas, incluindo sentimentos como vergonha, medo e constrangimento. Por outro lado, os agressores muitas vezes procuram construir uma imagem de si mesmos como parceiros ideais e pais exemplares, o que dificulta ainda mais para a mulher revelar a violência. Portanto, é absurdo sugerir que uma mulher permanece em um relacionamento abusivo por opção. À medida que o tempo avança, os períodos entre as fases diminuem, e as agressões podem ocorrer sem seguir uma ordem definida. Em certos casos, o ciclo de violência culmina no feminicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou 1.463 casos de mulheres que foram vítimas de feminicídio em 2023. Ou seja, cerca de 1 caso a cada 6 horas, sendo o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015.

No dia 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), uma peça fundamental no combate à violência contra a mulher. Elaborada com o intuito de responsabilizar os agressores no ambiente familiar e, consequentemente, dissuadir futuros atos violentos, esta legislação estabeleceu novos fundamentos jurídicos para enfrentar esse tipo de crime e aumentou a severidade das punições. Doze anos após sua promulgação, em 2018, apesar do aumento nas denúncias e condenações, a violência doméstica ainda era uma triste realidade para muitas mulheres no Brasil. Nesse contexto, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmaram um protocolo de intenções com o objetivo de facilitar o acesso a um atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar.

Ainda assim, dada a complexidade dos casos, há mulheres que não conseguem realizar a denúncia. Uma das razões que justifica essa relutância em fazer uma denúncia é a dependência econômica, como explicou a delegada e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Ione Barbosa. “Tal situação se agrava ainda mais quando o casal tem filhos menores, o que torna a mulher resistente a fazer a denúncia, já que, em tal circunstância, esse ato os colocaria em risco”, afirma. (2021) E é nesse viés que a autora retorna à realidade: Lily nunca chega a fazer nenhum tipo de denúncia de suas violências e, mesmo com testemunhas e inúmeras provas físicas das agressões que sofreu, Ryle nunca encara a justiça acerca de suas ações.

Ao menos, a personagem principal, Lily, consegue se desvencilhar dos ciclos de violência que permearam sua vida e se permite experienciar um relacionamento saudável com Atlas, seu amor de infância que a auxilia durante todo o processo de separação.

O cerne deste protocolo é garantir que as mulheres vítimas de violência sejam assistidas sob uma perspectiva psicológica, sem culpabilização, buscando promover sua autonomia e fortalecer seus laços sociais e comunitários. Para tanto, pretende-se estabelecer parcerias entre os tribunais de Justiça, os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e as universidades, a fim de viabilizar esse atendimento integral. Além disso, ao trabalhar na área da formação, o protocolo visa formar uma nova geração de profissionais familiarizados com essa temática, aproveitando a função dupla dos serviços-escola de Psicologia, que além de oferecer atendimento à população, também proporcionam condições para o treinamento dos estudantes de Psicologia.

Além disso, partir da Pesquisa sobre as Práticas da(o) Psicóloga(o) em Programas de Atenção às Mulheres em Situação de Violência, conduzida pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) em 2008, observou-se que, de maneira geral, os participantes dos grupos nas diferentes unidades regionais descreveram as intervenções da Psicologia como centradas principalmente no acolhimento, na avaliação, na elaboração de laudos e pareceres, nos atendimentos individuais e em grupo, e no encaminhamento das mulheres aos serviços complementares da rede. Esses profissionais prestam assistência a mulheres em diversas situações de violência, como violência sexual, doméstica, física e psicológica, por exemplo. Em alguns casos, também oferecem atendimento ao agressor, dependendo da especificidade dos serviços prestados no local onde atuam

.

 

Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia (anônima ou não) pela Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180): é um serviço gratuito, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. A denúncia será encaminhada aos órgãos competentes. A ligação não substitui a ida da vítima à delegacia, pois não abre um boletim de ocorrência.

 

Título: É assim que acaba
Autor: Colleen Hoover
Editora: GALERA RECORD
Número de Páginas:  368
Ano de Publicação: 2018

 

Referências

HOOVER, Colleen. É Assim que Acaba. 32 Edição. Galera, 2018

 Agencia Senado. DataSenado aponta que 3 a cada 10 brasileiras já sofreram violência doméstica. Disponível em<:https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/11/21/datasenado-aponta-que-3-a-cada-10-brasileiras-ja-sofreram-violencia-domestica>. Acessado em 12 mar. 2024.

 BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em <: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. >. Acessado em 12 mar. 2024.

WALKER, Lenore. The battered woman. New York: Harper and How, 1979.

PENHA, Maria da. Sobrevivi… posso contar. 2. ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012.

BRASIL. Lei Maria da Penha completa 12 anos <: https://site.cfp.org.br/tag/violencia-domestica/ >. Acessado em 12 mar. 2024.

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VOCIFER – Por dentro do heavy/power metal tocantinense

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Jurupary” foi lançado em 23 de junho de 2023 explorando as lendas por trás de uma controversa figura do folclore amazônico. Naturais do estado do Tocantins, com a proposta de levar a essência brasileira para além das fronteiras nacionais, a Vocifer entrega um som singular

Ana Júlia Labre Tavares (Acadêmica de Psicologia)  – anajulialabre@rede.ulbra.br

 

A riqueza mística que permeia as diversas culturas e lendas em um país tão vasto como o Brasil oferece inspiração para narrativas envolventes, sejam compartilhadas ao redor de uma fogueira, registradas em páginas de livros desgastadas pelo tempo, ou até mesmo ecoando através de acordes poderosos em discos de heavy metal. O que a banda de power/heavy metal tocantinense, Vocifer, demonstrou com maestria nos álbuns ‘Boiuna’ (2020) e ‘Jurupary’(2023).

A banda de Heavy/Power Metal originária do Tocantins mantém sua dedicação em difundir a rica cultura amazônica globalmente. Em seu mais recente feito, a banda oficializou parceria com a gravadora grega Alone Records, encarregada da distribuição internacional do álbum ‘Jurupary’ em formatos de CD e vinil. Fundada em 2016, a atual formação da Vocifer conta com João Noleto nos vocais, Lucas Lago no baixo, Pedro Scheid e Gustavo Oliveira nas guitarras e Alex Cristopher na bateria.

O Portal (En)Cena entrevista o guitarrista da banda, Pedro Scheid, de Palmas-TO, para melhor compreender o cenário atual da música no Tocantins e, também, como tem sido sua experiência como músico.

(En)cena – Considerando suas experiências até o momento, qual a tua percepção sobre o cenário da música no Tocantins?

Pedro Scheid – O Tocantins é um Estado que pouco explora a vastidão de sua cultura. Existem muitas manifestações artísticas e culturais que são pouco divulgadas, pouco difundidas, sequer faladas nos ambientes acadêmicos. Acredito que inicialmente, para que possamos fortalecer a nossa cultura, consequentemente o cenário musical, deve-se investir em locais de divulgação. Uma regularidade maior em apresentações no espaço cultural por exemplo, trazendo artistas de fora de todos os nichos para realizar apresentações no teatro Fernanda Montenegro, seria uma forma efetiva de criar uma cultura de consumo e propagação das manifestações artísticas do nosso estado. Existem vários artistas locais, desde a velha guarda como Dorivã, projetos musicais como Tambores do Tocantins, bandas que já apresentam relevância mundial como a Vocifer, enfim, vários estilos diferentes que respiram inspirações muito semelhantes presentes no cotidiano tocantinense. Portanto, com os incentivos e investimentos certos, as manifestações culturais serão difundidas e se tornarão um hábito para a população, contribuindo para seu desenvolvimento e evolução.

(En)cena – Pouco se fala sobre a temática que vocês têm levado mundo afora. Como vocês chegaram nessa ideia de abordar lendas e mitos da região Norte nos álbuns? 

Pedro Scheid – Como toda grande ideia de bandas famosas, tudo começou na mesa de um bar (risos). Através de conhecidos que tinham projetos e convivência com povos originários locais, suscitou-se a temática inicialmente em torno da Boiuna, a grande cobra que atormenta/acalenta os ribeirinhos e os povos originários que difundem suas histórias. O tema despertou muito interesse por nossa parte, uma vez que essa temática fantasiosa e mitológica é muito comum dentro das bandas de metal no mundo todo. Nada melhor, então, que contar histórias sobre a nossa região, onde nascemos, crescemos e fazemos parte e levar para o mundo uma história tão pouco conhecida entre os próprios tocantinenses. Tal temática foi muito bem recebida pela crítica, como pudemos perceber pelo feedback gerado no nosso primeiro disco (intitulado “BOIUNA”) sendo chamados de “os contadores de história do Tocantins”. Isso marcou tanto a banda que levamos a ideia para o segundo disco, trazendo a história por trás do “Jurupary”.

                                                                                                                Fonte: Acervo Pessoal

Foto retirada nas gravações do último álbum, Jurupary. Em sequência, da esquerda para a direita, Pedro scheid, Thiago Bianchi, João Noleto, Luis Fernando Ribeiro, Leandro Abrantes, Gustavo Noleto e Lucas Lago.

(En)cena – Com a grande quantidade de tribos presentes no Tocantins, e, consequentemente, uma grande diversidade de crenças e culturas, como vocês conseguiram elaborar uma única linha de narrativa para a composição dos álbuns? 

Pedro Scheid -Apesar de existirem, como eu posso dizer… muita difusão “boca-a-boca” dessas histórias, a nossa principal fonte de pesquisa foram as dissertações de acadêmicas na área, principalmente de faculdades como a UFAM. Através das referências, encontramos vários livros sobre as temáticas, livros estes que eram basicamente relatos dos historiadores que visitaram as tribos indígenas no século XIX. Fizemos um compilado de várias versões e várias histórias até chegar em uma linha que nos agradasse e fosse possível converter numa história desenvolvida com início, meio e fim, enfim, uma cronologia lógica. A ideia, na verdade, não é utilizar apenas uma versão narrativa, ou evidenciar alguma versão como sendo correta, na realidade, nós bebemos das várias versões e nos inspiramos para desenvolver algo nosso e que levasse a várias interpretações sobre a vida como um todo, para que quem lesse nossas letras e escutasse nossas músicas, trouxesse os acontecimentos narrados para sua própria vida.

(En)cena – Como você aborda o processo de composição de músicas? Você segue alguma rotina específica?

Pedro Scheid -Normalmente o processo de composição depende de vários fatores. Inicialmente é necessário definir uma temática e quais as referências que servirão como base para inspiração. Através da temática e do contexto de cada música, é possível inferir quais as interpretações instrumentais serão ideais para despertar nos ouvintes os sentimentos equivalentes ao que está sendo contado na música. Dessa forma, imerso nas referências e na temática, aguça-se a criatividade de forma orgânica e os arranjos passam a ser criados. É um processo demorado e volátil pois as composições vão se adaptando ao longo do tempo até chegar em sua versão final. A Vocifer sempre foi muito criteriosa, calculista e perfeccionista em suas composições e isso é exemplificado quando se escuta cada música nos álbuns já produzidos.

                                                                                                                                 Fonte: Acervo Pessoal

Pedro Scheid nas gravações do videoclipe de “Rain of Doubts”, uma das canções do segundo álbum. A composição é uma balada bastante introspectiva que emana uma sensação melancólica e angustiante de incerteza.

(En)cena – Quais são seus álbuns ou guitarristas favoritos?

Pedro Scheid – Hoje em dia meus guitarristas favoritos são: Kiko Loureiro, Andy James, Rick Graham, Timo Tolkki, John Petrucci, Steve Vai, Michael Romeo, Roberto Barros, Bastian Martines, enfim, a lista é grande. Álbuns é mais difícil de citar, acredito que é melhor citar bandas que vieram me inspirando ao longo dos anos em minhas composições como Iron Maiden, Angra, Shaman, Helloween, Edguy, Avantasia, Symphony x, Stratovarius, Kamelot, essas principalmente para a Vocifer, no entanto para o desenvolvimento como músico tenho consumido muito música clássica da escola barroco, metal moderno e instrumental como djent e também linhas de música brasileira como Toquinho, Djavan e Yamandu Costa.

(En)cena – Como lidar com imprevistos durante uma performance ao vivo?

Pedro Scheid – É muito difícil lidar com imprevistos, pois como o próprio nome sugere, é algo que você não consegue prever. Então a melhor forma de lidar é se preparar muito bem para a performance ao vivo, seja fisicamente, seja mentalmente, e lógico, se preparar musicalmente. Os imprevistos sempre acontecem, não existe ambiente musical sem imprevisto, mas aqueles que estão mais preparados e que possuem mais experiência sempre sabem como dar a volta por cima. Uma dica importante é estar acompanhado de profissionais habilitados, como bons técnicos de som, bons roadies, bons produtores e sempre se organizar e pensar em todos os backups. Por exemplo, para o meu caso, guitarrista, eu levo duas guitarras caso uma dê problema, dois jogos de encordoamento caso arrebente, várias palhetas caso eu perca ou caia durante a execução das músicas, cabos de instrumento extra, a possibilidade de tocar em linha caso dê problema nos amplificadores e caixas de ferramenta multiuso para qualquer recurso técnico – gambiarra – que seja necessário.

(En)cena – Quais tendências musicais você acha mais interessantes?

Pedro Scheid – Hoje em dia eu busco não rotular um nicho específico como mais interessante que outro. Eu busco encontrar as qualidades e aquilo que está por trás de uma manifestação artística. Todos os estilos musicais têm suas qualidades e, para um músico, quanto mais este conhecer os linguajares dentro de estilos musicais diferentes, maior a sua desenvoltura principalmente em aspectos criativos e nas composições. Infelizmente, hoje no Brasil nós vivemos um monopólio cultural por conta do alto investimento do agronegócio no estilo “sertanejo”, o que ofusca tantos outros estilos muito mais ricos culturalmente falando.

(En)cena – Por fim, que conselhos você daria a artistas aspirantes que estão começando suas jornadas?

Pedro Scheid – A dica de ouro que eu dou é encontrar o seu ídolo, é buscar referências, é escutar muita música, degustar música, assistir shows, ir em shows, ver o seu ídolo tocar, entender como seu ídolo chegou aonde está e buscar trilhar um caminho parecido. E principalmente, encontrar aquilo que você gosta e traçar um objetivo para se desenvolver cada vez mais, fazendo tudo com seriedade e buscando o profissionalismo.

 

 

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Outros jeitos de usar a boca: a(s) voz(es) de uma mulher

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É um livro de poemas sobre a sobrevivência. Sobre a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade. Obra poética de Rupi Kaur que leva os leitores numa jornada pelos momentos mais amargos da vida e encontra uma maneira de retirar doçura deles.

“Outros jeitos de usar a boca” (título original: “Milk and honey”) é uma obra poética que aborda o tema da sobrevivência, explorando experiências de violência, abuso, amor, perda e feminilidade. Dividido em quatro partes distintas, cada uma desempenha um papel único ao lidar com diferentes formas de dor e curar mágoas. O livro leva o leitor por uma jornada pelos momentos mais amargos da vida, transformando-os em delicadas expressões. Inicialmente publicado de maneira independente pela poeta, artista plástica e performer canadense de origem indiana, Rupi Kaur, que também é responsável pelas ilustrações presentes na obra, o livro emergiu como um fenômeno notável no gênero nos Estados Unidos, ultrapassando a marca de 1 milhão de cópias vendidas.

Assim, a escolha do título em português, nada parecido com o original, relaciona-se ao conteúdo dos versos, numa escrita feminista, que questiona o sistema patriarcal, os recortes de gênero e, assim, a urgência da voz feminina.

A obra é dividida em: “a dor”, “o amor”, “a ruptura” e “a cura”. Através de suas vivências e descobertas, Kaur transmite uma mensagem clara e objetiva sobre as diferentes formas de abusos sexuais que muitas mulheres continuam vivenciando no cotidiano. E, para além disso, seus poemas pensam em alternativas de enfrentamento desses abusos, uma ressignificação da narrativa e da construção de uma posição social fortalecida para a mulher. Essa divisão do livro apresenta etapas que o corpo sofre como se fosse algo necessário para se alcançar um nível de consciência sobre si, possibilitando formas libertadoras de expressar-se.

Outros jeitos de usar a boca é um livro que nasce na dor:

“toda vez que você

diz pra sua filha

que grita com ela

por amor

você a ensina a confundir

raiva com carinho

o que parece uma boa ideia

até que ela cresce

confiando em homens violentos

porque eles são tão parecidos

com você

– aos pais que têm filhas”

 

                                               Fonte: pinterest.com

Além da escrita propriamente dita, muitos dos poemas são acompanhados de ilustrações da própria autora, o que amplifica a experiência de leitura.

 

Como as poesias de Outros Jeitos de Usar a Boca são estruturadas em versos livres, há, mesmo numa temática dura, uma fluidez que os percorre. Ademais, como se pode observar no segmento acima, a autora raramente usa pontuações ou letras maiúsculas, o que ela explica:

Quando comecei a escrever poesia, eu conseguia ler e entender minha língua materna (punjabi), mas ainda não tinha desenvolvido as habilidades necessárias para escrever poesia nela. Punjabi é escrito na escrita Shahmukhi ou Gurmukhi. Na escrita Gurmukhi, não há letras maiúsculas ou minúsculas. As letras são tratadas da mesma forma. Gosto dessa simplicidade. É simétrico e direto. Também sinto que há um nível de igualdade que essa visualidade traz ao trabalho. Uma representação visual do que quero ver mais no mundo: igualdade. A única pontuação que existe na escrita Gurmukhi é um ponto final – representado pelo seguinte símbolo: | Então, para simbolizar e preservar esses pequenos detalhes da minha língua materna, eu os inscrevo no meu trabalho. Sem distinção de casos e apenas períodos. Uma manifestação visual e uma ode à minha identidade como mulher diaspórica Punjabi Sikh. Trata-se menos de quebrar as regras do inglês (embora isso seja muito divertido), mas mais de vincular minha própria história e herança ao meu trabalho.” (Kaur, Rupi)

A autora destaca a figura feminina questionando as disparidades de gênero não apenas no âmbito emocional, mas também no tratamento dispensado a homens e mulheres. A violência contra a mulher é abordada de maneira franca, enquanto muitos poemas exploram abertamente a sexualidade feminina, reivindicando o direito da mulher à sua sensualidade que não deve jamais existir para nos subjugar ou diminuir. Em essência, o livro é uma ode à resistência, realçando a força das mulheres. Como se pode contemplar no seguinte poema retirado da parte “O amor”:

“quando minha mãe estava grávida

do segundo filho eu tinha quatro anos

apontei para sua barriga inchada sem saber como

minha mãe tinha ficado tão grande em tão pouco tempo

meu pai me ergueu com braços de tronco de árvore e

disse que nesta terra a coisa mais próxima de deus

é o corpo de uma mulher é de onde a vida vem

e ouvir um homem adulto dizer algo

tão poderoso com tão pouca idade

fez com que eu visse o universo inteiro

repousando aos pés da minha mãe”

                                                                      Fonte: pinterest.com

Os traços de Kaur são leves e, muitas vezes, bastante simples, mas extremamente expressivos.

Já na terceira e penúltima parte do livro, Rupi habilmente passa ao leitor a sensação de ruptura: os altos e baixos, o ódio e amargura intrínsecos a um amor que ainda não se esvaiu. Expõe o que fica depois que o outro vai embora, assim como pode-se observar no trecho a seguir.

“eu não sei o que é viver uma vida equilibrada

quando fico triste

eu não choro eu derramo

quando eu fico feliz

eu não sorrio eu brilho

quando eu fico com raiva

eu não grito eu ardo

a vantagem de sentir os extremos é que

quando eu amo eu dou asas

mas isso talvez não seja

uma coisa tão boa porque

eles sempre vão embora

e você precisa ver

quando quebram meu coração

eu não sofro

eu estilhaço”

                                              Fonte: pinterest.com

 

Uma leitura em que se têm acesso ao íntimo da autora, e, por meio deste, aproxima quem lê de suas próprias emoções.

Por fim, em sua última parte, sendo muito bem intitulada “A cura”, traz um ar de fôlego para o leitor, com poemas voltados para busca pelo amor-próprio.

“se você vê beleza aqui

não significa

que há beleza em mim

significa que há beleza enraizada

tão fundo em você

que é impossível

não ver

beleza em tudo”

FICHA TÉCNICA

  • Título: Outros jeitos de usar a boca
  • Título Original: Milk and Honey
  • Autor(a): Rupi Kaur
  • Tradução: Ana Guadalupe
  • Editora: Planeta
  • Número de páginas: 208
  • Ano de publicação: 2017
  • Gênero: Poema;

Referências

 

KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. São Paulo: Plane

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“Eu não sou um homem fácil” – a inversão de papéis de gênero

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Damien (Vincent Elbaz) bate a cabeça e acorda em um mundo invertido onde o gênero masculino é o oprimido. A proposta francesa, inicialmente de comédia pastelão, subitamente nos imerge num mundo inverso onde as mulheres são o “sexo forte”, evidenciando a verdade do avesso. 

“Eu Não Sou um Homem Fácil” (título original: “Je ne suis pas un homme facile”) é um filme francês de comédia lançado em 2018. Dirigido por Eleonore Pourriat, o filme explora questões de gênero e igualdade através de uma premissa única. A história segue Damien (Vincent Elbaz), um mulherengo sexista que, após sofrer um acidente, acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos. Neste mundo, as mulheres ocupam as posições de poder e influência, enquanto os homens são frequentemente objetificados e subjugados. Damien precisa se adaptar a essa nova realidade, enfrentando desafios que as mulheres enfrentam cotidianamente, como o sexismo no trabalho e o assédio sexual.

A sociedade retratada no filme evoca distopias frequentemente encontradas em filmes de ficção científica, sendo criações imaginárias usadas para satirizar e evidenciar aspectos da nossa realidade que uma parte da população talvez nunca tenha identificado – geralmente, aquela que não é oprimida. Em obras como ‘1984’, de George Orwell, é o cidadão comum que ousa vislumbrar além das limitações impostas. Em ‘Fahrenheit 451’, livro de Ray Bradbury adaptado para o cinema por François Truffaut, esse indivíduo tenta acessar algo proibido. Em ‘Jogos Vorazes’, de Suzane Collins,  vemos a espiral de opressão sendo quebrada por uma jovem que provém do estrato mais pobre daquela sociedade. No filme de Pourriat, um homem de nossa sociedade patriarcalista é transportado para uma realidade onde o matriarcado é uma norma estabelecida. Nessa sociedade, são as mulheres que detêm o poder, invertendo completamente os tradicionais papéis de gênero.

É possível observar, então, uma temática profundamente conectada ao sexo e à política, áreas que, segundo o filósofo Michel Foucault, são particularmente afetadas pela dinâmica de exclusão de discursos. Foucault exemplifica esse fenômeno de exclusão no artigo ‘A Ordem do Discurso’ ao discutir o descrédito historicamente atribuído à loucura. Desde a Idade Média, o discurso dos indivíduos considerados loucos é descartado como algo destituído de verdade e relevância. Essa mesma dinâmica de exclusão permeia o discurso feminista, visto que, na ótica machista, as mulheres são rotuladas como psicologicamente instáveis. Isso explica por que as reivindicações do movimento feminista frequentemente são descredibilizadas.

O filme aborda essa questão de forma direta. Em uma cena, por exemplo, Damien, já imerso no mundo invertido, renuncia ao seu cargo como assistente pessoal de Alexandra (Marie-Sophie Ferdane), uma escritora renomada. A resistência dela em aceitar sua demissão é acompanhada de acusações de que ele está se excedendo, atribuindo seu comportamento a uma crise de estresse. Quando ela se vê sem argumentos, recorre à desculpa de que ele está adotando um discurso “masculinista” (equivalente, neste universo, ao feminismo) como forma de justificativa para ignorar sua decisão.

                                                                                                                                  Netflix Brasil/reprodução

Um mulherengo sexista acorda em um mundo onde os papéis de gênero foram invertidos.

O longa possui algumas falhas, como a falta de exploração do fato de que, nessa sociedade “matriarcal”, os homens são livres para expressar emoções, deixando de abordar adequadamente a forma como o machismo prejudica, também, os homens. De acordo com os dados obtidos pela OMS em 2019, homens apresentaram um risco 3,8 vezes maior de morte por suicídio que mulheres, além de figurarem em uma estatística dez vezes maior de morte por crimes violentos. De acordo com os dados, as expectativas sociais em relação aos homens são capazes de aumentar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, vícios, acidentes de trânsito e homicídios, além de contribuírem para o aumento das taxas de suicídio.

De tal forma que é possível apontar que o enredo dedica muito tempo ao relacionamento entre Damien e Alexandra. É compreensível que esse relacionamento sirva como pano de fundo para explorar a realidade invertida, oferecendo nuances às personalidades dos protagonistas, permitindo-lhes transcender os rótulos limitantes impostos pela sociedade. Porém, no universo criado há tantos pontos que poderiam ter sido mais explorados. A trama provoca temas como a religião em que, os personagens citam a divindade com pronomes femininos e como, historicamente, o matriarcado foi imposto a partir da visão de que as mulheres, por terem o poder de gerar uma vida em ventre, são o sexo mais forte.

Ademais, “Eu não sou um homem fácil” retoma um tema frequentemente debatido pelo feminismo, mas o faz de uma perspectiva única, desafiando até mesmo aqueles que não são militantes do movimento a sair de suas zonas de conforto. Apesar da abordagem muitas vezes leve, ele lança na tela uma realidade desconfortável para o espectador — uma realidade cruel de violência verbal e física que as mulheres passam diariamente.

Em última análise, embora o filme apresente exemplos tangíveis de assédio e padrões estéticos aos quais as mulheres são frequentemente submetidas, é crucial reconhecer que o machismo vai muito além do que é retratado. Estupro, feminicídio, violência doméstica e a negação do direito ao próprio corpo são questões extremamente urgentes que os movimentos feministas expõem e combatem incansavelmente. O que não é retratado tão fielmente no filme.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original: Je ne suis pas un homme facile
  • Duração: 98 minutos
  • Ano produção: 2018
  • Estreia: 13 de abril de 2018
  • Distribuidora: Netflix
  • Dirigido por: Éléonore Pourriat
  • Classificação: 14 anos
  • Gênero: Comédia; Romance; Drama;
  • Países de Origem: França

Referências:

COSTA, Juliana. “Eu não sou um homem fácil” traz ironia como arma. Palmas-TO. Disponível em <: https://www.folhape.com.br/cultura/critica-eu-nao-sou-um-homem-facil-traz-ironia-como-arma/68955/  >. Acessado em 27 out. 2023.

VIEIRA. Letícia. Feminismo de “Eu não sou um homem fácil” silencia seus próprios aliados. Palmas-TO. Disponível em <: https://medium.com/@mcarolinasoares_86413/feminismo-de-eu-n%C3%A3o-sou-um-homem-f%C3%A1cil-silencia-seus-pr%C3%B3prios-aliados-88c21c0dac95>. Acessado em 27 out. 2023.

(Sem autor definido) Os efeitos da masculinidade tóxica na saúde do homem. Disponível em <: https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/os-efeitos-da-masculinidade-toxica-na-saude-do-homem/ >

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A invisibilidade do autismo feminino

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Estudo aponta que revelaram índices proporcionais entre homens e mulheres significativamente menores do que se acreditava em relação ao TEA.

 O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento que afeta o comportamento, a interação social e padrões de interesses e atividades. O termo espectro é usado porque o TEA engloba uma ampla variedade de sintomas, habilidades e níveis de comprometimento. Comumente referido como autismo, tem sido relatado como algo prevalente em homens desde a série inicial de casos. Tradicionalmente, muitos estudos apresentaram uma proporção de 4 homens para cada mulher diagnosticados com o transtorno (Dworzynski et al. 2012). Porém, estudos epidemiológicos com uma apuração ativa de casos revelaram índices proporcionais entre homens e mulheres significativamente menores (e.g., 2.5:1; Kim et al. 2011). Numa recente análise (Loomes, 2017) concluiu-se que a proporção seja, na verdade, de 3:1.

Assim, numa análise qualitativa dos dados obtidos, é possível observar o movimento de subdiagnóstico de TEA em mulheres, e um número de razões podem ser propostos. Incluindo o predominante uso de amostras exclusivamente masculinas em pesquisas, o que provavelmente levou a uma compreensão tendenciosa de todo o espectro e de suas respectivas manifestações. Lai et al (2015) observaram no contexto clínico que há uma apuração com viés de gênero de até 15:1 em pesquisas de neuroimagem. Além disso, de acordo com os psiquiatras Kopp e Gillberg, o reconhecimento do autismo e os métodos utilizados para o diagnóstico são baseados no estereótipo do autismo como uma condição exclusivamente masculina.

Numa investigação de diferenças comportamentais entre os homens e mulheres autistas feita por Lai et al. (2011) foi possível observar que as mulheres relataram mais sintomas relacionados a questões sensoriais e menos questões relacionadas a dificuldades de socialização em comparação aos homens. Ademais, Gould e Ashton-Smith trouxeram a tona que as mulheres TEA conscientemente tentam copiar as neurotípicas, fenômeno comumente chamado de “Masking” ou “camuflagem”.  A estratégia conhecida como camuflagem ou mascaramento social é uma das teorias aceitas atualmente para explicar por que o diagnóstico de autismo em mulheres é feito mais tardiamente e com menor frequência do que em homens (Begeer et al., 2013; Giarelli et al., 2010).

Uma pesquisa qualitativa conduzida por Dean et al. revela que meninas e mulheres autistas muitas vezes relatam esforços para esconder ou tentar parecer não autistas. Esses relatos indicam que ao imitar o comportamento de pessoas não autistas e controlar suas próprias características, elas tentam lidar com algumas das dificuldades sociais e de comunicação que enfrentam. No entanto, essa pesquisa também evidenciou as graves consequências do uso da camuflagem. O ato de mascarar está associado a altos níveis de estresse, problemas de saúde mental como depressão e ansiedade, exaustão e falta de acesso a suporte ou serviços de saúde especializados, resultantes do esforço em esconder suas próprias dificuldades.

                                                                                                                                    Fonte: Freepik

Meninas e mulheres autistas muitas vezes relatam esforços para esconder ou tentar parecer neurotípicas.

Outro fator muito importante e que deve ser considerado é que historicamente, devido ao machismo, as meninas são socializadas de forma distinta dos meninos ainda na primeira infância. Assim, os papéis para os quais as mulheres são preparadas para exercer exigem mais socialização: cuidadoras, esposas, mães, enfermeiras, professoras etc. Pode-se, então, traçar uma correlação com a camuflagem do transtorno referida acima. Além da distinção do comportamento esperado a partir dos papeis sociais de gênero, por exemplo, a fixação por rotina, organização e arrumação (que pode ser um fenótipo do TEA) tende a ser normalizada quando apresentada em meninas e estranhada em meninos.

Todos esses fatores citados acima influenciam e evidenciam os motivos de o TEA ser visto como um transtorno predominantemente masculino, de maneira que mulheres muitas vezes não recebem os devidos diagnósticos e, por conseguinte, o necessário tratamento e/ou auxílio tão necessários.

Sendo assim, é importante estarmos atentos aos sinais de autismo em meninas e mulheres, que podem ser identificados ainda na infância. Alguns desses sinais incluem dificuldade em fazer amigos e manter relacionamentos sociais, hiperfoco em interesses específicos, como animais ou personagens de desenhos animados, comportamentos repetitivos ou rotineiros, como contar ou organizar objetos de maneira particular, um comportamento geralmente mais passivo e silencioso em comparação aos meninos com autismo, e dificuldade em interpretar ou expressar emoções e sentimentos.

Já na idade adulta, podem apresentar dificuldade em entender e interpretar as emoções dos outros, ansiedade social e dificuldade em fazer amigos ou manter relacionamentos, interesses intensos e específicos em áreas como história, música ou arte, hiperfoco em rotinas e rituais. Além da disso, foi relatado dificuldades em lidar com mudanças ou imprevistos, dificuldade em se adaptar a ambientes sociais, como festas ou reuniões, preferindo ambientes mais silenciosos e controlados, sensibilidade sensorial elevada, incluindo aversão a certos sons, texturas ou sabores, e dificuldade em entender metáforas e expressões idiomáticas comuns, bem como em compreender o sarcasmo e o humor sutil.

Diante disso, pesquisas indicam que mulheres autistas são mais propensas a desenvolver problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, bem como distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia. Portanto, se entre pessoas do mesmo sexo o autismo se manifesta de formas diferentes, é importante considerar que pode haver ainda mais particularidades em relação ao sexo oposto. Urge-se, então, que novas pesquisas e metodologias de diagnósticos sejam desenvolvidos para diminuir a invisibilidade do autismo feminino.

Referências

 

Milner, V., McIntosh, H., Colvert, E. et al. A Qualitative Exploration of the Female Experience of Autism Spectrum Disorder (ASD). J Autism Dev Disord 49 (2019). Palmas- TO. Disponível em <: https://rdcu.be/dnPId >. Acessado em 05 out. 2023.

LAI, M. C., Lombardo, M. V., Auyeung, B., Chakrabarti, B., & Baron-Cohen, S. (2015). Sex/gender differences and autism: setting the scene for future research. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry. Palmas-TO. Disponível em <:https://doi.org/10.1016/j.jaac.2014.10.0034>. Acessado em 11 out.2023.

BARRETO, Nathalia. Masking no Autismo – O que é . Palmas-TO. Disponível em <: https://br.academiadoautismo.com/masking-no-autismo-o-que-e/ >. Acessado em 11 out. 2023.

GAIATO, M. Mulheres autistas: elas existem e precisam de atenção! Palmas-TO. Disponível em <: https://institutosingular.org/mulheres-autistas/>. Acessado em 11 out. 2023.

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