Alienação Parental: considerações sobre o aspecto jurídico e psicológico

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O presente trabalho busca refletir sobre as ponderações realizadas em três artigos de autores diferentes a respeito do tema de alienação parental. Inicialmente, considera-se o exposto no artigo A Alienação Parental, publicado pelos autores Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e César Leandro de Almeida Rabelo em 2011.

A alienação parental, também conhecida em seus sintomas vistos na criança como Síndrome de Alienação Parental (SAP), é caracterizada pela situação “em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro cônjuge, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor” (VIEGAS; RABELO, 2011, p. 2). Promulgada no Brasil através da Lei 12.318, de 26 de agosto de 2010, busca-se tipificar as ações de alienação e indicar as aplicações cabíveis. Considera, em seu Art. 2º o ato de alienação parental como

a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.

Fonte: encurtador.com.br/LOUX9

O termo Síndrome de Alienação Parental (SAP) foi proposto por Richard Gardner em 1985 e refere-se a uma programação cerebral realizada por um dos genitores no objetivo de caluniar o outro genitor, fazendo com que a criança ou adolescente rivalize ou tenha afetos negativos com o genitor-alvo sem que haja fundamentação. Viegas e Rabelo (2011) pontuam  que na SAP podem ser utilizadas diversas estratégias pelo genitor alienador para desqualificar e injuriar o outro genitor e refletem sobre a falta de responsabilidade que perpetua o cuidador que realiza tal ato, salientando as diferenças culturais que estão envolvidas na relação parental, que podem gerar “divergências quanto à percepção do que seja a melhor educação e o melhor trato com os filhos, o que de forma fundamental, acirram os conflitos do ex casal e desencadeiam sérios problemas à saúde mental do menor” (VIEGAS; RABELO, 2011, p. 5).

Viegas e Rabelo (2011) apontam que a SAP pode ser graduada em três estágios diferentes, a saber: leve, no qual existe um constrangimento sentido pela criança mas que não afeta a relação quando o genitor alienador não está por perto; moderada, em que existe uma ambiguidade de sentimentos pela criança com relação ao genitor-alvo demonstrando desapego, e por fim o estágio grave em que a criança encontra-se perturbada e compartilha da mesma opinião sobre o genitor-alvo daquela perpetrada pelo genitor alienador.

Aproveitando-se das considerações últimas, abordaremos o exposto por Juliana Ferla Guilhermano no artigo Alienação parental: aspectos jurídicos e psíquicos publicado em 2012. Neste texto, a autora realiza uma diferenciação entre Alienação Parental e a Síndrome da Alienação Parental, de forma que na primeira (GUILHERMANO, 2012, p. 4)

a campanha denegritória feita pelo alienador com intuito de afastar os filhos do alienado, e a segunda consiste nos problemas comportamentais, emocionais e em toda desordem psicológica que surge na criança após o afastamento e a desmoralização do genitor alienado

Tendo em vista os problemas comportamentais mencionados por Guilhermano (2012), Viegas e Rabelo (2011) esclarecem que as consequências da SAP na vida das crianças e adolescentes podem provocar distúrbios no desenvolvimento psíquico, como: “ansiedade, depressão crônica, nervosismo, agressão, transtorno de identidade e incapacidade de adaptação à ambiente normal” (VIEGAS; RABELO, 2011, p. 6).

Fonte: encurtador.com.br/dkmxH

Nos casos suspeitos de alienação parental, existe a intervenção dos profissionais da Psicologia atuando como peritos para avaliar os casos fora do olhar do senso comum. Esse trabalho pode ser feito através de avaliação psicológica, testes e entrevistas e é de essencial importância para que o juiz encarregado possa decidir sobre o caso.

Em última análise, levantamos as contribuições de João Pedro Fahrion Nüske e Alexandra Garcia Grigorieff no artigo Alienação Parental: Complexidades Despertadas no Âmbito Familiar publicado em 2015. Os autores trazem o abalo emocional dos envolvidos nos processos em que existe muita litigiosidade, o que torna o rompimento das relações mais complicados. Há de se levar em conta que o fim de um relacionamento não significa o fim de uma família, mas sim uma reconfiguração da família nuclear e que os pais devem tratar esse processo de forma a preservar o relacionamento familiar do filho em comum (NUSKE; GRIGORIEFF, 2015).

Resultado de um diálogo e cooperação entre as partes está exemplificado na guarda compartilhada, que assegura ao filho o direito do convívio familiar e firma uma relação de responsabilidade partilhada entre ambos os pais. A busca por um acordo deve considerar sempre o melhor para a criança, como previsto pela Lei.

Muito tempo se passou no Direito da Família sem que houvesse uma Lei basilar para tratar do tema, mesmo que esses casos já viessem acontecendo. No intuito de respeitar a dignidade da criança, faz-se necessário ela seja auxiliada constatada a alienação parental, por meio de medidas protetivas, de cuidado e atenção para que não haja uma fragmentação do sujeito (NUSKE; GRIGORIEFF, 2015). É importante que pensemos os afetos envolvidos no processo, o impacto da família e dos diálogos promovidos neste seio.

REFERÊNCIAS

GUILHERMANO, Juliana Ferla. Alienação parental: aspectos jurídicos e psíquicos. [S. l.], 2012. Disponível em: https://www.pucrs.br/direito/wp-content/uploads/sites/11/2018/09/juliana_guilhermano.pdf. Acesso em: 24 set. 2020.

NUSKE, João Pedro Fahrion; GRIGORIEFF, Alexandra Garcia. Alienação parental: complexidades despertadas no âmbito familiar. Pensando fam., Porto Alegre,  v. 19, n. 1, p. 77-87, jun.  2015.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2015000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:  24  set.  2020.

VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; RABELO, César Leandro de Almeida. A alienação parental. In: A alienação parental. [S. l.], 2011. Disponível em: http://conteudojuridico.com.br/open-pdf/cj031843.pdf/consult/cj031843.pdf. Acesso em: 24 set. 2020.

 

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Compêndio da Psicanálise: considerações sobre a obra não finalizada de Freud

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O Compêndio da Psicanálise foi iniciado por Freud em 1938 e não finalizado devido a sua morte. A partir desses escritos, realizaremos considerações sobre os três primeiros capítulos do livro.

No primeiro capítulo, o Aparelho Psíquico, somos apresentados à uma introdução que faz menção à metapsicologia e à justificação do inconsciente, conteúdos presentes no livro Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) que servem de embasamento para os estudos da personalidade sob uma perspectiva psicanalítica. O aparelho psíquico diz respeito ao id, ego e superego. A mais antiga dessas instâncias é o ego, aquele que serve como intermediário entre o id e superego, herdado e estabelecido desde nossa infância.

Em algum momento no desenvolvimento, essa instância se transforma e então se estabelece uma nova, o id, que é o mediador entre o ego e o mundo externo. Vale ressaltar que essa transformação se deu diante da recepção de estímulos e a proteção contra eles e aí reside umas das primeiras funções do id, que é a de autoconservação. Ele experimenta desprazer quando alguma tensão não é solucionada e prazer quando encontra evasão à essa tensão. Quando existe este desprazer, ele pode sinalizá-lo como medo motivado pelo perigo sentido na situação. Como características da autoconservação podemos citar a fuga, adaptação, armazenamento de experiências e a modificação do mundo exterior ao seu favor, o que vem a ser atividade.

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Para a introdução do superego no aparelho psíquico, Freud se utiliza da teoria econômica de distribuição da energia psíquica. Durante o desenvolvimento na dependência dos pais, se cria no indivíduo uma nova instância em que “essa influência parental tem continuidade” (FREUD, 2015, p. 50). Por sua vez, ela diverge do id e lida com suas demandas, do ego e da realidade, conciliando essas forças. No superego estarão presentes os discursos da família, da cultura, da sociedade, educadores e seus substitutos. Assim como afirma Freud, existem influências do passado presentes no ego e no superego, que apesar de sua diferença elementar, compartilham, no ego: de algo herdado e no superego de um passado que lhe é introduzido pela família e os demais.

Em Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) muito é falado sobre as pulsões do eu e do objeto, bem como a dinâmica dessas e seus deslocamentos. No segundo capítulo, a Teoria dos Impulsos, sintetiza essas duas pulsões como aquelas presentes em eros, que é a pulsão de vida, de criação, autoconservação e o seu contrário é a pulsão de morte, também conhecida como tânatos, que busca o estado inorgânico das coisas. À energia presente em eros, se dá o nome de libido, que cumpre o papel de neutralizar as tendências destrutivas existentes no id-ego e que podem ter destinos variados, como vimos no livro citado anteriormente, que poderá 1) fazer com que o afeto continue no todo ou em parte, 2) se transformar e tornar-se angustia ou 3) ser suprimido. Ainda sobre a libido, devemos ressaltar a sua mobilidade e fixação. Na primeira, existe uma função desejada do dinamismo da libido, em que passa de um objeto para o outro e na segunda um estado que pode perdurar por toda a vida e que leva à um empobrecimento psíquico.

encurtador.com.br/uDW69

No terceiro capítulo, o Desenvolvimento da Função Sexual, aponta-se que há quatro fases, a oral, anal, fálica e genital. Primeiramente, é falado sobre o escândalo que a psicanálise causou em sua época quando formulou que a sexualidade está presente desde a infância e influencia os indivíduos de forma pontual, mas procura esclarecer que a genitalidade é diferente de sexualidade e que na vida sexual o ganho de prazer existente num primeiro momento nada tem a ver com reprodução.

O primeiro órgão que faz solicitações libidinosas é a boca, que busca satisfação biológica e que aspira pelo ganho de prazer. Por esta razão, se faz sexual. Neste capítulo, Freud adentra na questão edípica de que na mulher falta o pênis e que o processo de finalização do édipo não se dá como no menino, pois ela se percebe sem o falo e vive uma frustração, se distanciando por algum tempo da vida sexual. Esta teoria teve contribuições posteriores e novas perspectivas através dos estudos psicodinâmicos.

As três primeiras fases não acontecem quando uma finaliza, mas se justapõem e uma se acrescenta à outra. A organização completa se dá na fase genital, em que alguns processos são finalizados com sucesso e outros são recalcados, salientando que nem sempre essa organização se dá de forma impecável. A construção desse pensamento finaliza-se na importância de estudar esses fenômenos pelo ponto de vista dinâmico e econômico e que a etiologia das perturbações deve ser estudadas no primeiro período de vida do indivíduo.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Compêndio da Psicanálise. Porto Alegre: L&PM, 2015.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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O absurdismo de Camus em O Estrangeiro

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O Estrangeiro, escrito por Albert Camus, foi lançado em 1942 e configura-se como um dos livros que traça a ‘tríade do absurdo’, além de seu outro romance O mito de Sísifo (1941) e a peça de teatro Calígula (1944).

O absurdismo é uma filosofia fundamentada por Albert Camus que vê na vida a impossibilidade de um sentido. Assim, o mundo é absurdo uma vez que o significado das coisas é humanamente inacessível. Quando admitimos esse vazio, reconhecemos a liberdade que nos é dada por não estarmos presos a um sentido (ARAÚJO; SOUZA; RUFINO, 2018).

O indivíduo que se revolta, tendo para si a noção do absurdo da vida, pode então reconhecer que não existe uma resposta verdadeira (CAMUS, 2017) e seguir um caminho de liberdade sem procurar respostas em algo transcendental. A revolta, nesse sentido, corresponde ao agir frente à indiferença do mundo, num sentimento que “nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível” (CAMUS, 1999, p. 21). Já que apenas o sentimento do absurdo, “esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e o cenário” (CAMUS, 2017, p. 21), não promove transformações, é necessário que o indivíduo revolte-se e aja. Seu sofrimento pelo absurdo que antes era individual passa a ser coletivo, pela consciência de que o distanciamento de si mesmo e do mundo é um sentimento partilhado por todos (CAMUS, 1999).

Albert Camus –  Fonte: http://bit.ly/2OO8ec3

É do sentimento de absurdo e da revolta que trata o livro O Estrangeiro, que conta a história de Meursault, um funcionário que leva uma vida sem ambições e que, certo dia, recebe um telegrama informando sobre a morte de sua mãe. Desde o primeiro momento, o narrador-personagem parece estar indiferente à tudo, observando os fatos se desenrolarem como se dele nada tivesse que ver. Além do distanciamento afetivo de tudo ao seu redor, parece estar confuso, sem poder dizer ao menos em que dia sua mãe morreu e que idade tinha ela até então.

Meursault vai até o asilo que sua mãe residia e passa o funeral e o enterro sem muito dialogar com quem lhe dirigia a palavra, conduzindo todo o momento com uma indiferença ímpar que parece incomodar quem lhe observa. Voltando à Argélia, descansa por horas e ao se levantar observa as pessoas na rua buscando suas motivações e destinos sem deles nada opinar, quando o crepúsculo o relembra que no dia seguinte a rotina voltará. Para isso, apenas aponta que “passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho e que, afinal, nada mudara.” (CAMUS, 2001, p. 27).

Meursault trata os assuntos da própria vida e das pessoas ao seu redor como coisas sem importância, ao que tudo responde que não espera absolutamente nada, que tudo tanto faz e que nada tem importância alguma. Tem, além disso, a ideia de que nunca se muda de vida e desde que não haja infelicidade, não existem motivos para que se almeje mudança. O sentir estagnado de Meursault aparenta que ele observa sua vida de fora, como se fosse um estrangeiro para si mesmo. Sua tentativa de reverter a opinião das pessoas a seu respeito logo é minada pela preguiça, o que mais uma vez demonstra sua apatia. Nesse sentido, é elogiável a narrativa escrita por Camus, nos fazendo adentrar tanto na realidade do personagem que também sentimos sua apatia.

Certa vez, seu vizinho Raymond o convida para passar um domingo na casa de praia de um amigo, ao que Meursault aceita e leva também sua companheira, Marie. O casal os recebem e tudo parece correr bem, até que em uma caminhada pela beira da praia, Raymond reconhece um homem do qual tem desavenças acompanhado de outro indivíduo, que parecem ter seguido eles até lá. O combinado era de que se houvesse briga, Meursault ficasse responsável para o caso de surgir outro, mas não contavam com o fato de um dos árabes estar munido de faca, que acerta Raymond antes que ele pudesse se defender. Depois do socorro prestado, Raymond insiste em voltar à praia e lá encontra novamente os árabes. Por dissuasão de Meursault, Raymond nada faz e os dois retornam à casa.

Durante todo esse período e o momento seguinte que mudaria a vida de Meursault, a presença impetuosa do sol e o vento que corria quente o deixava inquieto.

Todo este calor me apertava, opondo-se a meus passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto, trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar sobre o sol e essa embriaguez opaca que ele despejava sobre mim. A cada espada de luz que jorrava da areia, de uma concha esbranquiçada ou de um caco de vidro, meus maxilares se crispavam. Andei durante muito tempo. (CAMUS, 2001, p. 61)

Surge-lhe o desejo de ir ao encontro da fonte onde há pouco estivera com Raymond e estando lá reencontra o árabe. Meursault identifica a intensidade do sol com a mesma que fazia no enterro de sua mãe e, sem poder dizer porque motivo o fizera, além do “mar [que] trouxe um sopro espesso e ardente” (CAMUS, 2001, p. 63, adição nossa), aperta o gatilho da arma que trazia e mata o árabe. A partir de então, surge na narrativa uma sutil mudança na forma com que o personagem percebe as coisas, expresso pelo seu súbito identificar de ter destruído o equilíbrio do dia.

Ilustração de Meursault – http://bit.ly/2Dp2cfO

No tribunal, a acusação utilizava as situações mais triviais para imbuir frieza e premeditação ao crime de Meursault, como o fato dele não saber a idade da mãe ou ter ido ao cinema depois de sua morte. Para isso, outro sinal de ter-se atinado, o personagem diz: “Tudo de desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando, tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: “Mas afinal quem é o acusado? É importante ser o acusado.” (CAMUS, 2001, p. 102). É importante ser alguém e Meursault parece trilhar os primeiros caminhos para reconhecer o absurdo, além de toda aquela acusação fundamentada não no crime em si, mas em coisas secundárias, para depois o absurdo atingir o mundo. Diante de todos os argumentos utilizados e da decisão do júri, Meursault deveria ser degolado em praça pública.

Preso e aguardando o resultado de seu recurso, o personagem começa a identificar a injustiça pela qual fora sentenciado e nas circunstâncias que tornavam ilegítimas sua acusação. Além do absurdismo trazer ao indivíduo um questionamento sobre as condições injustas a que está submetido, traz também a noção de que a vida vale a pena ser vivida. Meursault, durante a prisão, tenta racionalizar que, afinal, todos nós morreremos e que não fazia diferença a que tempo. Contudo, começa a se angustiar pelo tempo que não teria, um tempo interrompido por uma condição injusta que fora-lhe posta.

Na filosofia do absurdo, quando tomamos conta da impossibilidade de um sentido na vida, também nossa noção de morte é modificada, uma vez que não se agarra à conceitos transcendentais que nos tragam algum tipo de segurança, fazendo com que aceitemos a vida em seu absurdo, decidindo-nos por assim mesmo viver. É o “atingir o sentido na vida sem buscar esse sentido.” (SILVA, 2016). À respeito da natureza da morte, única certeza para todos, Meursault aponta que “achava isso normal, assim como compreendia muito bem que as pessoas me esquecessem depois da minha morte. Já não tinham nada a fazer comigo. Nem sequer podia dizer que me era penoso pensar nisso.” (CAMUS, 2001, p. 119). Isto é, o personagem dá-se conta do absurdo a que estava sendo submetido, visualiza a única certeza que tem em sua vida e ainda assim, apesar dessa consciência clara à respeito da morte, tem a esperança, febril e avassaladora, de que seu recurso seja aceito, de que seja ele um homem livre. Suas tentativas de racionalizar tudo para que não sofresse eram logo minadas por ele próprio em suas declarações de que “não se pode ser sempre racional.” (CAMUS, 2001, p. 114).

Ilustração de Meursault – Fonte: http://bit.ly/2Dqkpd2

O momento da revolta de Meursault se dá numa conversa com um padre que periodicamente vai à sua cela e insiste que ele se arrependa, desejando a todo custo manter uma conversação com ele. Existe um momento em que o personagem já não consegue ouvir tudo aquilo com apatia e então explode, descrevendo o que sente como “qualquer coisa se partiu dentro de mim.” (CAMUS, 2001, p. 124).

Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia. (CAMUS, 2001, p. 124)

Estando ciente do absurdo da vida, Meursault tem o entendimento de nosso privilégio: o de estarmos vivos, independente de quem somos ou do que fazemos. Para isso, entende que sua nova consciência da morte permite que ele esteja apto a viver toda sua vida e que morrer, nesse sentido, é reviver.

Camus elabora nesse livro fundamentos básicos de sua filosofia do absurdo e com o passar da narrativa faz com que cresçamos com o personagem, passando de uma aparente apatia para o desespero pela chance de permanecer vivo. Quando Camus elaborou esses conceitos, apontou que só existia um problema filosófico realmente sério: “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida” (CAMUS, 2017, p.19). Apesar de todo processo para entender o absurdo da vida e independente do que aconteceu à Meursault no final, podemos dizer que ele soube a resposta para essa pergunta.

 

FICHA TÉCNICA


Nome do livro: O Estrangeiro
Editora: Record
Gênero:  Romance
Autor: Albert Camus
Ano de lançamento: 1942
Idioma: Português
Ano: 2001
Páginas: 128

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Larissa Silva de; SOUZA, Vinicius Morais de; RUFINO, Emmanoel de Almeida. A poesia de Carlos Drummond de Andrade à luz do absurdismo de Albert Camus. Disponível em: <https://www.editorarealize.com.br/revistas/joinbr/trabalhos/TRABALHO_EV081_MD1_SA63_ID103_15092017201522.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2018.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. 128 p.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. 352 p.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 9°ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017.

SILVA, André Rodrigues da. Uma contextualização filosófica sobre a filosofia do absurdo de Albert Camus e a sua contribuição para a literatura. 2016. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Enciclopedia/article/view/9346/6463>. Acesso em: 05 nov. 2018.

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Pedra no Céu: o encarar de um mundo desconhecido

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Pedra no Céu, publicado em 1950 por Isaac Asimov, configura mais um de seus romances intergalácticos com reflexões pertinentes que ultrapassam as fronteiras de tempo e espaço. Temos aqui preconceito, ganância, intolerância, bondade, ódio e tantos outros sentimentos que permeiam a experiência humana.

O primeiro momento do livro se passa em Chicago, no mundo que conhecemos hoje. O alfaiate Joseph Schwartz passeia por uma ruela, concomitantemente é realizado um experimento num laboratório de pesquisas nucleares na cidade. Por algum incidente não compreendido relacionado à radioatividade no experimento, Schwartz é transportado de um passo para o outro, literalmente, para um mundo desconhecido.

A partir desse momento, somos apresentados a este novo mundo. Nele, Schwartz começa a questionar sua própria sanidade, uma vez que um segundo antes estava a caminho de sua casa. No intuito de procurar e reconhecer algo ou alguém, sai à procura pela vasta floresta até que encontra uma casa. Seu primeiro contato aturdido com aquelas pessoas o deixa devastado: ninguém fala sua língua, todos se vestem de maneira diferente, a própria casa parece ser feita de porcelana.

As pessoas nessa Terra vivem sob a tutela do Império, o qual dita os Costumes que as pessoas devem seguir e para qual todos devem prestar contas. Um dos Costumes é o Sexagésimo. Nele, quando qualquer pessoa completa 60 anos de idade, têm de ser morta, pois é considerado um peso que não pode produzir, devendo dar espaço no mundo aos jovens. A família que recebe Schwartz oculta do Império a existência de um idoso cadeirante em sua casa e, necessitando de um membro a mais para ajudar na produção, se aproveita do surgimento misterioso de Schwartz. Com esse objetivo em mente, eles o levam ao Dr. Shekt na cidade de Chica, capital da Terra, para se submeter ao Sinapsificador, um aparelho que diz poder aumentar as habilidades intelectuais das pessoas. As consequências dessa modificação mudarão o curso da galáxia.

Um dos problemas notáveis na Terra é a superlotação e Asimov se apropria dessa preocupação de forma muito inteligente. Considerando-se que o medo da morte é um dos temas centrais da existência humana, cabe esperar que as pessoas encarassem o Sexagésimo com temor, ansiedade, quem sabe horror. No entanto, a perspectiva é amplamente aceita por todos com certa apatia: entendem que morrer aos 60 anos é extremamente necessário para o mundo.

Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/qDmqG6

O Império presente neste livro é o mesmo da Trilogia da Fundação do autor e Asimov escreveu e editou seus livros posteriormente para que as linhas temporais e as referências pudessem estar presentes. Fruto de um Império ainda novo, vivendo no ano 827 da Era Galáctica, Bel Arvardan nos é apresentado como um arqueólogo e pesquisador imperial interessado em estudar a Terra e sua radioatividade, pois acredita que toda a humanidade se originara de um único planeta e que a radioatividade presente na superfície da Terra nem sempre estivera ali, mas fora fruto de atividade humana. É interessante a descrença que Asimov promove nas pessoas da Terra: é inconcebível que nós, que vivemos nesse mundo, utilizássemos de armas nucleares para com os nossos. A referência é clara, uma vez que em 1945, cinco anos antes da publicação do livro, os EUA atacam Hiroshima e Nagasaki e deixam milhares de mortos e afetados pela radiação. É de fato inacreditável para as pessoas da Terra que seja possível tamanha abominação contra a raça humana, mas a história nos diz o contrário.

Bel Arvardan, um personagem que vive suas próprias contradições durante o livro, tenta resolver o conflito de preconceito que vê em si mesmo e nos outros. Em Pedra no Céu, as pessoas são classificadas como terráqueos ou forasteiros e lidera um forte sentimento antiterrestrialista por parte desses últimos, pois a Terra agora é um lugar altamente radioativo, ridicularizado e seus descendentes sinônimos de perigo. Um dos objetivos de Arvardan é demonstrar a possibilidade de que, apesar de todo ódio e desdém com que os forasteiros tratam os terráqueos, todos tenham descendido de um único planeta e que as pessoas podem se tratar não por uma relação de medo e ódio, mas de cordialidade.

Ilustração de Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/kTNooa

O personagem de Arvardan é claramente identificado com o Eterno Andrew Harlan descrito por Asimov no livro O fim da Eternidade, publicado cinco anos mais tarde. Os dois personagens vivem os próprios conflitos na sua personalidade austera, focada no trabalho e buscando a todo custo ignorar os seus sentimentos. Assim como o fracasso de Harlan se deu com o surgimento de Noÿs Lambent, uma não-Eterna, o de Arvardan se dá quando conhece Pola Shekt, uma terráquea, filha do inventor do Sinapsificador. A vida do Dr. Shekt, Pola, Arvardan e Schwartz se interligam de uma maneira surpreendente e cada superação de um obstáculo pessoal, seja de Arvardan a se entregar aquilo que sente, seja de Schwartz a processar o luto pela vida que vivia, converge para que o futuro da humanidade seja salvo.

Vivendo o eminente perigo de um vírus relacionado à radioatividade, Schwartz começa a desenvolver os vetores presentes nas contribuições de Pichón-Rivière sobre os grupos operativos, aqueles centrados na resolução de uma tarefa. Para que a tarefa seja realizada, devem ser elaborados dois medos básicos que surgem no processo de mudança: o medo da perda (quando existe o temor de perda pelo o que já se tem) e o medo do ataque (temor do desconhecido). Enfrentando a incerteza sobre tudo o que viveu e o que haveria de viver, com a esperança de rever sua família e angustiado pela perspectiva de que isso poderia não acontecer, Schwartz lida com o medo do ataque estando frente a situações radicalmente diferentes em sua vida, com pessoas das quais não conhece e em um mundo estranho para ele. Motivado pela tarefa de combater esse vírus, Schwartz passa pelo primeiro vetor de afiliação num processo mais demorado, pois implica o envolvimento do sujeito com a tarefa e com as demais pessoas do grupo. Guiado por tamanha desolação pela perda da família e seu mundo, um forte sentimento de raiva se apodera dele, o que dificulta tal envolvimento. Num processo mais rápido passa para o segundo vetor, chamado pertenência, em que pondera sobre sua participação, chegando então à pertinência e cooperação.

Nesse livro podemos observar aspectos mais cômicos se comparado aos livros posteriores do autor, o que torna a leitura muito agradável, além de reflexiva pelos pontos já citados. É comum nos surpreendermos rindo de algumas situações ou ficarmos apreensivos de tamanha imersão na psiquê dos personagens, fazendo com que repensemos conceitos que aplicamos à nossa vida cotidiana de maneira tão natural, sem nos questionarmos sobre. Uma obra que demonstra mais uma vez o talento de Asimov em nos fazer adentrar num mundo tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo de nós.

 

FICHA TÉCNICA

Nome do livro: PEDRA NO CÉU

Editora: Aleph
Gênero:  Romance, Ficção Científica
Autor: Isaac Asimov
Ano de lançamento: 1950
Idioma: Português
Ano: 2016
Páginas: 312

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Galveston: a vida após o diagnóstico do câncer

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Galveston foi o primeiro romance de Nic Pizzolatto publicado pela editora Intrínseca em 2015. A história gira em torno de um matador de aluguel com câncer terminal e nas implicações em sua vida após o diagnóstico e no encontro com uma garota no local em que foi enviado para morrer.

Roy Cady recebe a notícia sobre seus pulmões de forma paralisante; mal termina de ouvir o médico e se retira do consultório. Este é um momento de reavaliação de sua vida, mas só o que consegue pensar no momento é nos seus relacionamentos fracassados e em vista disso fumar um cigarro ali mesmo, afinal de contas, não tinha mais nada a perder. Seu chefe, Stan, o envia para uma missão e orienta ele e o seu colega a não levarem armas. Stan namora Carmen, que já havia se relacionado com Roy e com seu parceiro, isto é, Roy encara a situação como um problema pessoal de Stan.

Roy é um homem escrupuloso, mas preso à situações do passado pelas quais teve de abrir mão de pessoas importantes em sua vida. Um pai morto, mãe suicida, vida num orfanato. Tais lembranças o permeiam constantemente, como um lembrete da pessoa que é e porque faz o que faz. Parado fora do escritório, Roy ruminava sobre tais questões e começa a orientar seus pensamentos de forma diferente daqueles que tinha antes de saber da doença. Segundo Helman (2003), citado por Silva (2005, p. 141), temos que:

(…) a revelação do diagnóstico de câncer gera reformulações e mudanças nesta nova fase de sua vida. Essas mudanças (…) são tentativas de enfrentar as novas circunstâncias e de tentar se adaptar a elas. Nestas mudanças, os pressupostos básicos das pessoas sobre o seu mundo são quebrados mediante a interferência do diagnóstico de câncer, assim deixam de contar com um mundo certo e se redirecionam dentro desta nova perspectiva de vida. (grifo nosso)

Em vista da mudança de alguns hábitos para uma vida mais saudável após o diagnóstico da doença, Roy toma o caminho oposto e começa a abusar do álcool e do cigarro. Não tem família nem amigos que forneçam apoio nesse momento e isso o leva à um estado de resignação. Por outro lado, mesmo negando a vida, ele passa a olhar o outro de forma diferente.

É sob a imagem desse “outro” que Rocky surge: enviado para missão, Roy e seu parceiro são surpreendidos numa emboscada onde matadores altamente treinados o aguardam, e naquela cena, como um plano de fundo, uma garota no canto da sala assiste tudo, Rocky. Mesmo sabendo que iria morrer pela doença, Roy utiliza de todas as suas forças e experiência para sair vivo e todos aqueles que o queriam morto, morreram. Roy não sabe muito bem o que fazer com aquela garota, mas sabe que não pode deixá-la ali; ela vira seu rosto. E então, sem estabelecer um plano concreto, eles vão para fora da cidade, percorrendo no caminho bares soturnos e discretos, em direção à Galveston.

Rocky é uma prostituta de 18 anos que estava naquela casa fornecendo serviços quando foi surpreendida. Seu histórico de vida é perturbador e ela vive na constante insegurança sobre se Roy a abandonará, ainda mais naquele momento, em que tirou sua irmã mais nova da casa de seu padrasto sórdido. Do outro lado, Roy pondera se ficará com as meninas, tentando lidar com o dualismo de se sentir atraído por Rocky e pela vontade de ir embora.

Algumas mudanças se configuram na vida de um paciente oncológico, uma delas é a mudança corporal. Sob esse aspecto, temos que, “o câncer produz a modificação da imagem e ameaça a identidade corporal e  a  própria  existência  do  indivíduo.” (SILVA, 2005, p. 137). Roy começa a emagrecer, seu cabelo começa a cair. Para muitos, o cabelo é um sinal de virilidade, e nos homens os efeitos são mais específicos no que tange ao medo de serem estigmatizados (GRAY et al,. 2000; HELMAN, 2003). A respeito disso, Roy refletia: “Confrontei meu rosto. Meu reflexo sempre fora o que eu sabia que seria e nunca exatamente o que eu esperava, mas desta vez foi brutal (…) parecia que meu verdadeiro rosto sempre permanecera oculto, que havia dentro de mim outro rosto, com características mais puras e elegantes (…)” (p. 91, com modificações).

“Você está aqui porque isto aqui é um lugar. Cães ficam ofegantes nas ruas. A cerveja não continua gelada por muito tempo. A última música nova que você gostou saiu há muito, muito tempo, e o rádio nunca mais a tocou.” (p.93).

Roy tem de lidar com sua imagem que se modifica continuamente, ainda mais por não recorrer ao tratamento e por abusar de substâncias químicas. Nesse aspecto, parece se desenvolver uma clareza sobre a efemeridade da vida. Ele vai para Galveston no entendimento de que precisa eliminar todos os seus rastros e de alguma forma dar um rumo à vida daquelas meninas, mas sente o peso de estar fora da vida que vivia, de não ter laços com alguém e da ironia de ainda estar vivo.

Inicialmente, ele evita conversar com Rocky sobre sua doença e lhe persegue a sensação de falta de algo, “alguma coisa difícil de definir, mas notável pela sua ausência” (p.99). É possível que esse sentimento seja dado pela falta de vínculos afetivos, tão importantes nesse momento para o processo de enfrentamento da doença. Quando finalmente ele conta sobre sua vida à Rocky, sente que traiu a si mesmo, isto é, estava tão habituado a não compartilhar suas experiências pessoais com outra pessoa que quando o faz sente tamanho estranhamento.

Com o tempo, a sua aparente resignação toma outra forma. É descoberto no estar vivo e poder fazer os outros bem um prazer que desconhecia. A percepção sobre sua personalidade agora lhe parece uma mentira que sustentara por anos, mas que não tinha mais motivos para manter.

“O que acontece de fato é que o passado coagula como uma catarata ou uma casca, uma casca de lembranças sobre seus olhos. E, um dia, a luz a atravessa” (p. 228).

O livro é intercalado entre presente e futuro, geralmente pela visão de Roy, numa escrita em primeira pessoa. A respeito da percepção de outros leitores sobre o ar carregado e sombrio da história, experimentei a sensação de liberdade e contentamento naquelas descrições sobre os campos de algodão que Roy tinha de ir todas as manhãs, sobre o céu negro, as trilhas pantanosas, as lutas, a vida e a morte. A escrita de Nic Pizzolatto é poética, envolvente, muito bem estruturada e detalhista, de tal forma que nos inserimos completamente nos traumas e vivências dos personagens. Por fim, uma obra apurada e um tanto perturbadora.

FICHA TÉCNICA:

GALVESTON

Título Original: Galveston
Autor: Nic Pizzolatto
Tradução: Alexandre Raposo
Editora: Intrínseca
Páginas: 240
Ano: 2015

REFERÊNCIAS:

GRAY, R. E. et al. To tell or not to tell: patterns of disclosure among men with prostate cancer. Psycho-Oncology, Chichester, v. 9, n. 4, p. 273-282, aug. 2000.

SILVA, V. C. E. O impacto da revelação do diagnóstico de câncer na percepção dos pacientes. 2005. 218 p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005. Acesso em: 10 de fev. 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22132/tde-11052005-112949/pt-br.php>.

 

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Ela tem sabor do que é real

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ELA TEM

TRE, 09:30h AM, dia 10.
Estou entediada de você. Foi o que ela me disse. Eu não podia pensar em outra coisa naquela sala, acordando assuntos trabalhísticos com a cara de quem estava entendendo tudo. Jo tinha me deixado, pela primeira vez, num dissabor inesperado.

Alguma esquina com a Carlos Drumond, 08:15h AM, dia 01.
Penso nisso todo dia, é inevitável. Entrei, por livre e espontânea vontade numa barafunda e não entendo por que tenho permitido que as coisas contrárias aos meus conceitos e raízes tenham um espaço tão grande na minha vida, na minha mente. É difícil de dizer, mas não sei porque estou com ele. Alguém tão sujo e tão distante de mim. Distante da minha realidade, me provocando questionamentos, me causando dor e às vezes, muito casualmente, um pouco de alegria. Eu me perguntara isso diariamente e ainda assim, nada.

Apartamento Nº 24, 3º piso, dia 11.
Depois de tudo aquilo que aconteceu, eu imaginei que a última imagem que teria de mim seria de alguém que entediasse você. Não tem fundamento.

Barzinho na quinta avenida, dia 12.
Observei o teu olhar, disperso, fora de mim. Ao mesmo tempo, eu desejava estar naqueles braços e me envolver por aquele olhar. Cobicei. Deixei um espaço entre nós dois, o espaço pelo qual você deveria preencher, mas não preenche. Então eu corri, fui buscar um lugar onde tivesse colo.

Eu estava hipnoticamente olhando pra TV, pensando em nada, danificando meus olhos com a claridade das imagens que projetavam na parede sombras que dançavam ao meu redor. Algo ao fundo fazia um tinir, baixo, fino e estridente que gradualmente me trazia pra realidade. Era a campainha que, pelo o que eu contara, já tocava pela quarta vez. Era Jo, a suposta mulher da minha vida.

— Oi, precisamos conversar.
— É, eu acho que sim. Entra – Entrou e sentou no sofá com aquela postura de quem vai te contar que sua mãe morreu.
— E aí, tudo bem?- E na mesma hora foi se retratando, olhando de um jeito contrariado pro chão pra pergunta idiota que tinha feito – Ok… Acho que não muito bem, nem eu.
— Me conta o que tá acontecendo, vai – Jo fez que negativo, tentando olhar nos meus olhos e com um semblante resignado. Se recostou no sofá com um suspiro.
— Olha… Sei que a gente já passou por muita coisa junto e que durante esse tempo todo nunca pensei que uma coisa dessa pudesse acontecer logo comigo -“Logo comigo”? A gente nunca sabe o que se espera de alguém tão instável – Eu já me sentia muito cansada pelas coisas que vinham acontecendo, por você se mostrar sempre tão desinteressado nos meus questionamentos sobre o nosso futuro e sobre meu próprio futuro. Enfim – suspirou pesadamente – eu me sentia muito só.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que eu não consigo mais. Não consigo te olhar e enxergar o que eu enxergava antes, não consigo te ver como o homem da minha vida, não consigo imaginar o meu futuro com você. Eu… estou apaixonada por outra pessoa.

Eu sabia por quem era, não precisava perguntar.

Houve uma vez durante o sexo que Jo olhou pro teto e pareceu vagar, me senti desconfortável pra caralho, mas continuei. Gozei, deitei do lado dela e perguntei se estava tudo bem, se estava com dor ou algo do tipo e ela disse que não era nada, só teve um dia cheio. Então a gente foi dormir e não me lembro de ter sentido um abraço tão frio quanto o que ela me deu. Isso só podia significar que os mundos estavam se distanciando e uma angústia me tomou por estar vendo a pessoa que eu amava fugir das minhas mãos, assim como foge a água quando se tenta junta-la em concha nas palmas.

— Você não vai falar nada? – Não podia imaginar algo que poderia ser dito, se alguma coisa que dissesse pudesse apagar aquilo tudo, a imagem que já se instalara na minha mente. Era inútil. Percebi que toda a raiva e incompreensão com que eu tinha recebido Jo agora se transformara em um limbo na minha mente, eu não podia sequer organizar os pensamentos com ela ali na minha frente, sentindo seu cheiro doce próximo de mim. Olhei pro seu rosto de desalento e…

— Eu preciso ficar sozinho, Jo. Eu te ligo. Não consigo falar contigo agora.

— Tá bom – Se levantou, pegou sua bolsa de couro preto e hesitou ao fechar a porta. Imaginei que estivesse olhando pra mim com pena, como se visse um animal ferido e não pudesse ajudar.

Me lembrei de uma ocasião na minha infância em que estava no parque, com toda a minha dificuldade em fazer amizades e me aproximei de uns guris para alguma brincadeira. Acontece que a brincadeira funcionava de um jeito que tinha que ser em pares e eu era o quinto elemento. Eu não podia entrar, eles disseram, estragaria o jogo, não teria graça. Me ocorreu naquela sala, com o barulho de fundo do contar das horas do relógio, que talvez eu fosse o elemento ímpar na vida de Jo, aquilo que não casa, não junta, não soma. Mas pensei, que se foda, o errado não sou eu.

Não consegui dormir ontem à noite. Estava entre o alívio de saber que havia sido clara todo o tempo e entre o sentimento de sufoco. Chorei sozinha pra não ter que fazer isso na sua frente e mostrar fraqueza, fragilidade. Dependência. Estou no meio da pior das situações, nem lá nem cá. Afinal, não sabia como resolveria isso, se você pensaria sobre a grande mentira que foi esse tempo todo e como eu não precisava daquilo. Estar num relacionamento abusivo, não ter apoio, ficar com dúvida sobre o que realmente se quer, ser a objetificação do seu prazer. Alguém pra você foder. Entre a cruz e a espada. Ou eu ou você. A felicidade de quem realmente importava?

O celular vibra, aperto os olhos e tomo fôlego. “Estive lendo um texto que falava sobre o quanto a gente com o passar do tempo fica nulo num relacionamento e se isola nas próprias questões. Vem pra cá, não precisa dizer nada. Não precisa se isolar mais.” Podia sentir uma espécie de paz velada sobre a minha cabeça ao terminar de ler a mensagem, não saberia explicar.

Nem lá nem cá.

Toca Radiohead. O som reverberado penetra cada parte do meu corpo, me sobe um arrepio pelas pernas. Certa noite, Jo me disse que meu amor por ela era o perfeito a ser alcançado, o ideal. Estava estudando muito filosofia e vinha trazendo isso pro nosso relacionamento, o que pra mim era puro enchimento de linguiça, apesar de não dizer. A mulher da minha vida. Desconcertada pelo pensamento do mundo.

Do segundo andar sentia a umidade do ar entrando pela janela, tocando no meu rosto, no limiar absoluto do que se sente. A faixa muda e vagarosamente sinto o ardor na bochecha, descendo.

She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My fake plastic love*

Eu nunca fiz aquela ligação.

— Não entendo o que as mulheres veem em outras mulheres — eu disse à dra. Nolan na consulta daquela tarde. 
— O que uma mulher vê em outra que ela não vê num homem? A dra. Nolan ficou em silêncio, então disse: — Ternura.
Aquilo calou a minha boca.¹

*Ela parece ser real
Ela tem sabor do que é real
Meu amor artificial de plástico
Fake Plastic Trees, Radiohead.

ELA TEM QUE

¹ A redoma de vidro de Sylvia Plath.

Publicado originalmente em: https://medium.com/@gilstefany/ela-tem-sabor-do-que-%C3%A9-real-3ac321474433#.madjmiy0j

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O Colecionador: um apanhado sobre a repressão

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Em 1980 a editora Abril Cultural lança em sua coletânea de Grandes Sucessos o primeiro romance de John Fowles, O Colecionador. A coletânea conta com obras muito conhecidas, como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e Carrie de Stephen King. O Colecionador conta a história Frederick Clegg e Miranda, seu objeto de amor e contemplação, que observou incansavelmente e pelo qual sente uma avassaladora paixão.

O livro é dividido em quatro partes e é iniciado pela narrativa do próprio Frederick, que conta sobre sua família devastada, o seu trabalho e seu amor por Miranda. Frederick é um entomólogo e para tanto, possui em sua coleção borboletas raras. Para com Miranda, segue o mesmo ritual daquele com as borboletas, pois fica a observa-la calmamente, aguardando pelo momento em que terá a chance de captura-la, valendo-se deste para admirar sua beleza.

Miranda é uma estudante de artes, inteligente e distinta e essas são razões pelas quais Frederick se vê apaixonado por ela, pois nutre um ódio às mulheres vulgares e busca se afastar de tudo o que seja indecente. Estes discursos de certo e errado, decente e indecente lhe foram herdadas de sua tia, que o criou após ser abandonado pela mãe e ter pedido o pai. O histórico de coibições pelo qual Frederick foi exposto é longo e diante disso, sua visão sobre o mundo e as coisas é distorcido a tal ponto em que ele captura Miranda e a considera como uma “hóspede”.

A repressão introduzida por Freud em 1915, salienta que “a sua essência consiste apenas em rejeitar e manter algo afastado da consciência.” (FREUD, p. 85) Frederick, com seu ego já enfraquecido por não receber narrativas paternas e maternas construtivas, possuía uma criação baseada em normas rígidas e severas que iam de encontro aos seus desejos, isto é, desejos que ele tinha de manter afastados.

Fonte: http://zip.net/bptFVw
Fonte: http://zip.net/bptFVw

Os discursos recebidos de sua tia com relação às mulheres é que elas constantemente se ofereceriam a ele, mas que ele teria de ser forte e se afastar disso. Não conseguindo lidar com esse conteúdo, Frederick toma o caminho oposto. Miranda não oferecer-se-ia a ele, mas sim ele a teria como sua hóspede. Os discursos que recebeu em sua infância foram tão introjetadas por Frederick que ele já não consegue distinguir o que é dele e o que é de sua criação e isso fica claro durante a narrativa.

O autor, durante a primeira parte do livro, faz um trabalho prodigioso em não nos dar detalhes físicos de Frederick, mas apenas os de Miranda. Cria-se então um ambiente livre para fantasias, pois o autor deixa alguns aspectos de Frederick à nossa imaginação. A captura e aprisionamento de Miranda se fizeram possíveis graças a uma grande quantidade de dinheiro que Frederick recebeu num sorteio.

A partir de então, todas as suas fantasias de poder estar com Miranda poderiam ser postas em prática. Comprou uma casa antiga afastada da cidade e a colocou no quarto no porão que decorou minuciosamente com o que era do agrado dela. Livros de arte, quadros, música clássica. Frederick tinha para si mesmo que era um homem muito forte e respeitoso pois sabia controlar seus instintos e nada fazer à Miranda, por outro lado, afirma em outro momento que lhe faltam instintos, demonstrando assim sua incoerência.

“Vê-la fazia-me sempre sentir como se estivesse capturando uma verdadeira raridade, como se me aproximasse com todos os cuidados, silenciosamente, de uma borboleta de cores difusas e muito belas.” (p. 5)

Maculinea alcon, a borboleta azul que Frederick almejava possuir em sua coleção. Fonte: http://zip.net/bxtF6s
Maculinea Alcon, a borboleta azul que Frederick almejava possuir em sua coleção. Fonte: http://zip.net/bxtF6s

Com a convivência, Frederick começa a dissipar sua ideia primordial de que Miranda é um ser puro e maravilhoso. O ódio e desdém com que ela o recebe o afetam a tal ponto em que diz que “Miranda era como todas as mulheres. Impredizível.” (p.49) Claro está, se entristecia por perceber as discrepâncias presentes no que fantasiava e na realidade. Frederick é um ser submisso à Miranda, que não tem suas próprias opiniões formadas e não possui senso crítico além da distorção sobre certo e errado.

A segunda parte do livro é narrada pela visão de Miranda, num diário que construiu durante sua permanência enclausurada. Nesse ponto temos uma reviravolta na forma como concebemos um olhar sobre o livro e os personagens. Miranda até então nos parecia muito inteligente apesar de sua constante mudança de comportamento com Fred, e este, nos despertava curiosidade pela sua hora frieza e indiferença, hora por seu amor e dedicação à Miranda. Nos é apresentado os detalhes físicos e comportamentais de Frederick que ele não expunha e então a aversão ao personagem toma formas cada vez mais próximas ao asco.

O autor, que num primeiro momento soube dosar razoavelmente a quantidade de informações, agora torna a narrativa da cansativa e arrastada. Propositalmente ou não, somos apresentados ao mundo sufocante e entediante de Miranda, que é uma garota confusa e também incoerente nos seus pensamentos e atitudes. Dentro de sua perspectiva, sabemos de suas ambições, de seu posicionamento sobre a vida e principalmente a arte. É possível que o ambiente político e financeiro da década de 60 tenham algum impacto no comportamento dos personagens, pois possuem uma relação com a cultura, política e economia característicos da época.

Nos é apresentada na primeira parte do livro muito brevemente o que se passa fora da casa e ademais em momento algum. Também por esse aspecto o autor torna a narrativa enfadonha, pois se atém a detalhes triviais da vida de Miranda e não ficamos sabendo o rumo que toma as investigações sobre o seu desaparecimento.

Fonte: http://zip.net/bytFHJ
Fonte: http://zip.net/bytFHJ

A terceira e quarta parte são narradas por Frederick, deixando o final em aberto para a continuidade de sua obsessão. A obra de uma forma geral deixa a desejar no quesito de informações sobre o ato de colecionar borboletas e qual a relação de maneira mais ínfima o personagem possui com tal prática. Não existem referências às borboletas, espécies ou características mais elevadas que permitam que o leitor faça paralelos senão o próprio fato de Frederick ter Miranda como parte de sua coleção. O personagem nada deseja senão a presença de sua amada; ele não pode, mesmo se quisesse, viola-la.

De alguma maneira, esses desejos foram recalcados e a energia investida em outra área, que pudera, ser a de sentir prazer apenas no fato de possuir, de tê-la em sua coleção de espécimes tão raros. De todo jeito, está claro que apesar de ser um objeto substituto (Miranda) ele mesmo é uma fonte de angústia ao mesmo tempo que primordialmente venha com o objetivo de afastar do consciente um conteúdo que não é possível lidar no momento (FREUD, 1915). O conteúdo raiz que provocou tamanho desalinhamento não está claro e não podemos inferir mediante as poucas informações da infância de Frederick, mas é claro que o influenciaram sobremaneira.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

O COLECIONADOR

o-colecionador

Editora: Abril Cultural
Gênero:  Romance
Coletânea: Grandes Sucessos
Autor: John Fowles
Ano de lançamento: 1963
Idioma: Português
Ano: 1980
Páginas: 234

REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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O amor fraternal na obra de J. D. Salinger

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Fonte: http://zip.net/bntzqj
Fonte: http://zip.net/bntzqj

Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação”, romance publicado em 1963 por J. D. Salinger, aclamado autor de O apanhador no Campo de Centeio, é narrado por Buddy Glass e tem como protagonista Seymour Glass, que é apresentado somente pela visão de seu irmão, já que se suicidou aos 31 anos durante as férias de verão com sua esposa. O livro é dividido pelo conto Carpinteiros e pela prosa em que o narrador se incube a apresentar Seymour.

Salinger apresenta neste livro algumas características de sua escrita, presentes em O apanhador no Campo de Centeio, mas ao invés do narrador ter 17 anos, tem quarenta e é um professor de faculdade recluso. Buddy é filho de artistas aposentados, o segundo irmão mais velho de sete e alguns traços de sua própria personalidade quando jovem se assemelham com as de Holden Caulfield. Assim, em alguns momentos da leitura, é possível realizar algumas correspondências entre os personagens das duas obras.

O conto Carpinteiros narra os episódios que se sucederam à desistência do seu irmão pelo casamento, porque, segundo o próprio Seymour, se sentia muito feliz para fazer isso. No conto, o narrador deixa o leitor à par da personalidade de Seymour, sua profissão e outros detalhes da convivência com o irmão, que soam tão familiares à nós mesmos quanto possível, como a forma de resolver problemas na família e observar os outros. Buddy deixa claro no início do conto que o protagonista está morto, mas nem por isso se altera em contar a história do casamento.

Assim, após uma confusão causada na casa da noiva, Buddy entra em um carro que levava os convidados para outro lugar e narra a tarde juntamente com alguns deles. Nessa ocasião, a dama de honra, muito pontual e sincera em suas opiniões, começa a soltar disparates sobre a personalidade de Seymour e Buddy, com sua identidade como irmão do desistente ainda não revelada, se sente ultrajado perante as afirmações. Tomando posse de uma coragem que até então não havia demonstrado e para sua própria surpresa, Buddy se prontifica a desmentir todas as acusações desferidas contra o seu irmão relacionadas à sua personalidade e orientação sexual.

O narrador, transitando do implícito para o explícito, faz fortes críticas às escolas psicanalíticas ao atribuir essas interpretações da personalidade de Seymour como vindas de aristocratas intelectuais que não dão de fato ouvidos à dor do outro. Esses tipos de afirmação que encontramos com frequência no livro, sob as diversas faces, deixam explícito que o narrador se posiciona veementemente contra qualquer ideia, opinião ou comportamento de que alguma forma avilte quem seu irmão fora realmente em vida.

“Tenho cicatrizes nas mãos por haver tocado em certas pessoas.” (p. 67) Seymour em uma carta enviada a Buddy.
“Tenho cicatrizes nas mãos por haver tocado em certas pessoas.” (p. 67) Seymour em uma carta enviada a Buddy.

Nesse conto, o autor segue uma linha temporal de acontecimentos, o que na segunda parte do livro não acontece, pois as lembranças e sentimentos do narrador se intercalam numa narrativa acelerada e por vezes ele desiste de um caminho para seguir outro. Na segunda parte do livro, o narrador se presta a apresentar Seymour, contar sobre sua infância com ele e o relacionamento entre a família e os sete irmãos. É visível a preocupação de Buddy com a parcialidade fraternal, pois em todo momento o seu irmão mais velho é visualizado por ele como alguém único e essencial em sua vida. Salinger nesse momento toma uma frente narrativa bem diversa da primeira. Cabe salientar que o livro não tem capítulos ou partes, o que aumenta, além da própria escrita, a sensação de continuidade.

Seymour cumpre para Buddy o papel de ego auxiliar, que lhe guia e lhe apresenta alguns valores. As lembranças de seu irmão no início do texto estão recheadas de identificação e apreciação por parte de Buddy. Em dado momento, numa carta que seu irmão lhe dá, Seymour lamenta a necessidade dele em ter sua opinião para saber o quanto é bom e Buddy, menos para a surpresa do leitor e mais por satisfação, afirma que “senti-me sempre secretamente feliz e orgulhoso de me parecer com o Seymour”. (p.154)

Próximo do final do livro, o narrador começa a evidenciar características físicas de Seymour e existe neste ponto uma mudança relevante no andamento do texto, que se torna mais lento e com pausas. Se aproximar de uma descrição do irmão causa em Buddy cansaço físico e mental e apesar de acreditar que precisa fazê-lo, o narrador comemora enfadonhamente cada final de descrição, como se estivesse tirando um peso das costas.

O narrador possui uma relação muito próxima com o leitor, isto é, está a todo o momento se questionando o que ele pensará sobre suas afirmações. Ainda assim, tais reflexões parecem vir apenas à guisa de explicação, pois ele procura meios de evitar entrar em contato mais profundo com seu irmão que teve um valor muito significativo em sua vida e que se suicidou, fato que Buddy propositalmente não trata no livro. Para tanto, ele não deixa brechas para que tenhamos uma ideia de Seymour diferente do que nos é apresentado.

J. D. Salinger “Por que estarei assim tão cansado? Minhas mãos estão úmidas de suor, as entranhas em brasa. O Homem Tranquilo simplesmente não está em casa.” (p. 150)
J. D. Salinger
“Por que estarei assim tão cansado? Minhas mãos estão úmidas de suor, as entranhas em brasa. O Homem Tranquilo simplesmente não está em casa.” (p. 150)

Neste aspecto, o narrador parece temer que tenhamos uma visão errônea de seu irmão, que “embora nunca tenha escrito um único poema, transmitia poesia por todos os poros.” (p. 54, com modificações). É interessante de igual maneira observar a transição de indiferença inicial do narrador com o suicídio do irmão e o posterior pesar que sente em falar sobre ele. De fato, não pode escapar de sentir a dor apesar do passar dos anos.

A aproximação dessa obra e do Apanhador no campo de centeio está presente no amor fraternal, além de outros detalhes. No segundo, Holden tinha o irmão Allie que morreu de leucemia e que para ele era uma pessoa genial e boa. Como citado pelo próprio protagonista “qualquer um teria que gostar dele” (SALINGER, p. 41). Na apresentação de Seymour, o mesmo acontece com o Buddy, que descreve seu irmão como um “sujeito talentoso e decididamente encantador, de tal modo que qualquer opinião em contrário só podia ser atribuída ao mau gosto de quem assim pensava.” (p. 154) A maneira crítica de observar o outro está presente nos protagonistas das duas obras, por outro lado, as características humanas que Holden reprova são motivos de admiração para Seymour. À vista disso, Seymour tem a capacidade de ver beleza perante a imperfeição humana.

O livro é de uma sensibilidade incrível e apresenta características dos relacionamentos fraternais tão bem entendidos por aqueles que os sentem que a primeira sensação causada com a leitura do livro é de agradabilidade e afetividade. Ao término da leitura, nos resta apenas lamentar que uma figura tão formidável quanto Seymour seja apenas fruto da imaginação do escritor.

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FICHA TÉCNICA DO LIVRO

CARPINTEIROS, LEVANTEM BEM ALTO A CUMEEIRA & SEYMOUR, UMA APRESENTAÇÃO

carpinteiros-levantem-bem-alto-a-cumeeira-e-seymour-apresentacao

Título Original: Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introduction
Autor: J. D. Salinger
Tradução: Jorio Dauster
Editora: L&PM Pocket
Páginas: 181
Ano: 2011

REFERÊNCIAS:

SALINGER, J. D.. O Apanhador no Campo de Centeio. 18. ed. Ipanema: Editora do Autor, 2012. 208 p.

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Salvador sedia I Congresso Internacional de Psicologia Jurídica e Direito Penal

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Será realizado nos dias 17 a 19 de novembro o I Congresso Internacional do Nordeste com o tema Psicologia Jurídica e Direito Penal em Salvador-BA no Hotel Fiesta.

O congresso conta com mais de dez conferências, minicursos, mesas-redondas e atividades. São temas do encontro: psicologia criminal, jurídica, forense, penitenciária, investigativa; perícia psicológica, violência doméstica e direito penal.

Mais informações e inscrições podem ser realizadas no site do evento.

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