Sexualidade do Sujeito Autista

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A sexualidade, um aspecto intrínseco à experiência humana, é uma dimensão complexa e multifacetada que permeia a vida de cada indivíduo. A expressão da sexualidade vai muito além do simples ato sexual, abrangendo um amplo espectro de emoções, identidades, relacionamentos e experiências. Ao longo da história, as sociedades têm moldado e redefinido concepções sobre a sexualidade, influenciadas por fatores culturais, religiosos e sociais. Neste texto, busca-se esta dimensão de sexualidade: um direito humano universal, abrangendo, inclusive, pessoas com que fogem do que a sociedade ou o DSM 5, classificam como “normal”.  Neste contexto, entendemos que as pessoas com Transtorno de Espectro Autistas são totalmente dotadas de capacidades de se relacionar afetivo/sexualmente.

De acordo com o DSM 5, o Transtorno do Espectro Autista – TEA, é caracterizado por déficits persistentes na comunicação e na interação social em vários contextos, juntamente com padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Esses sintomas devem estar presentes na primeira infância, embora possam não se manifestar completamente até que as demandas sociais excedam as capacidades limitadas. Isso pode envolver dificuldades na reciprocidade socioemocional, na comunicação não verbal e no desenvolvimento e manutenção de relacionamentos. Além disso, o TEA apresenta-se por padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Esses padrões podem se manifestar de várias maneiras, como estereotipias motoras, insistência na mesmice, interesses fixos e intensos em determinados temas, e hipersensibilidade ou hipossensibilidade sensorial a estímulos do ambiente. (DSM 5, 2014)

As dificuldades de comunicação e nas relações interpessoais apresentam uma ampla variação, podendo incluir desde um simples atraso na linguagem até a completa ausência de fala. Mesmo nos casos em que a habilidade verbal é preservada, observam-se desafios no uso da linguagem para comunicação efetiva. Por outro lado, a dificuldade na linguagem não verbal pode se manifestar por meio da redução ou ausência de contato visual, gestos e outras formas de comunicação não verbal.

Durante muito tempo se imaginou que o sujeito TEA não era capaz de se relacionar afetivo/sexualmente, uma vez que o transtorno afeta a comunicação e as relações interpessoais. No entanto, cada vez mais observa-se que a sexualidade não se limita à pessoas que seguem padrões sociais de normalidade. É certo que indivíduos TEA possuem dificuldades e necessitam de adaptações para se relacionar e a exploração da sexualidade desses indivíduos é um campo complexo que demanda um olhar sensível e adaptado, pois observamos que, a sexualidade das pessoas afetadas por TEA é reconhecida, embora com algumas limitações. Este parece ser um padrão geral na compreensão da sexualidade de indivíduos com deficiências ou necessidades especiais.

O início das pesquisas sobre sexualidade em indivíduos com autismo remonta a uma década após a inclusão do diagnóstico de autismo infantil no DSM-3, em 1980. Nesse período, as publicações frequentemente perpetuavam a ideia de que as pessoas com autismo eram consideradas inaptas, desinteressadas e inadequadas para receber educação sexual e manter relacionamentos românticos. Poucas abordam histórias de sucesso no campo da sexualidade e dos relacionamentos, com uma ênfase maior nos comportamentos sexuais considerados inapropriados. Vale ressaltar que essas publicações iniciais eram baseadas principalmente em relatos de pais e cuidadores, em vez de depoimentos diretos de indivíduos com Transtorno do Espectro Autista – TEA.(MALEBRA, 2020)

O tema da sexualidade em indivíduos com Transtorno do Espectro Autista – TEA, é frequentemente considerado um tabu para a sociedade e, sobretudo, para as famílias. Os pais, normalmente enfrentam dificuldades para lidar com a sexualidade de seus filhos de modo geral, muitas vezes descrevendo essa fase como desafiadora, em se tratando de indivíduos com TEA os tabus e dificuldades são um desafio a mais. Há temores relacionados à falta de habilidades sociais, preocupações sobre a possibilidade de seus filhos se tornarem vítimas ou autores de abusos sexuais.

A necessidade da socialização e a interação desempenham papéis preponderantes nesse processo, orientando o acesso e a vivência da sexualidade. Assim, as dificuldades no desenvolvimento ou estabelecimento das interações sociais, como ocorre nos TEA, têm o potencial de influenciar e prejudicar o desenvolvimento e a vivência da sexualidade.

Dessa forma, quando a sexualidade das pessoas com TEA é reconhecida, espera-se que ela se manifeste de maneira privativa e nominal, predominantemente por meio da masturbação individual. Isso implica que as expressões sexuais não devem se manifestar de forma inadequada, como toques genitais em locais públicos ou em situações inapropriadas, bem como o uso de palavras e gestos obscenos.

Nesse contexto, é crucial não negligenciar três preceitos fundamentais. Em primeiro lugar, o amplo domínio da sexualidade humana se manifesta de maneira variada em diferentes épocas, sociedades, civilizações e na trajetória histórica. Em segundo lugar, a sexualidade biológica não é tão inata quanto pode parecer, uma vez que, para os seres humanos, está sujeita à influência dos laços sociais, da cultura, dos registros de vida e morte, levando a linguagem a se desvincular das coordenadas naturais, conforme diversas epistemes destacam. Para a psicanálise, a anatomia não determina um destino, e a escolha sexual é encarada como uma decisão subjetiva para cada indivíduo. Em terceiro lugar, o sexo é um ato de expressão.

A sexualidade, por sua vez, abrange um vasto campo nas relações humanas, envolvendo dimensões biológicas, sociais, históricas, éticas, culturais, políticas e subjetivas. Este tema apresenta um desafio central, pois, ao contrário dos animais, para os quais um programa instintivo segue as leis naturais, a sexualidade humana necessita dos registros imaginário, simbólico e real para se concretizar. Essa concretização é marcada por mal-entendidos, pela falta, por desejos insatisfeitos e impossíveis, pelo gozo desmedido e excessivo, e pela discordância entre o conhecimento e a existência.

Questões culturais desempenham um papel significativo nas relações entre pais e filhos, contribuindo para que a sexualidade seja encarada como um tabu, o que representa um obstáculo considerável dada a relevância do tema. O silêncio em torno da sexualidade no ambiente familiar pode levar à desinformação e ao fortalecimento de concepções equivocadas sobre sexo, gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Neste contexto, se torna cada vez mais relevante e importante a educação sexual não apenas para os adolescentes, mas também para os pais, concentrando-se em desmistificar mitos, superar tabus e abordar crenças que podem influenciar essas relações, resultando em comportamentos de risco.

                                                                                                           Fonte: pexels.com.br

Considerando a família como uma teia de relações, afetos, sentimentos, ações e experiências transmitidas por meio da socialização, as representações e práticas relacionadas à sexualidade de uma geração têm impacto nas gerações seguintes. Assim, a família pode ser vista como uma instituição de significativa importância para orientar os relacionamentos pessoais e sociais. Especificamente no caso de famílias que têm membros com necessidades especiais, destacam-se as dificuldades enfrentadas ao lidar com a sexualidade. A dinâmica de relacionamentos e afetos dessas famílias é afetada quando um de seus integrantes apresenta alguma doença, transtorno ou disfuncionalidade. Em situações de doença, transtorno ou disfuncionalidade, as famílias geralmente interrompem suas atividades sociais habituais para que o indivíduo afetado possa se adaptar às especificidades impostas pela condição.

É fundamental adotar uma perspectiva familiar ao analisar o desenvolvimento, evitando separar o adolescente do contexto familiar que o envolve. O mito de que as pessoas com autismo seriam assexuadas está gradativamente sendo substituído pela percepção de que a maioria delas possui interesse em relacionamentos amorosos e experiências sexuais com parceiros. No entanto, a sexualidade desses indivíduos ainda é um tabu entre seus familiares, que muitas vezes mantêm a expectativa de que sejam assexuados ou que seus impulsos sexuais sejam controlados e domesticados. Essa abordagem infantilizada pode levar à percepção errônea e prejudicial de que são dependentes em aspectos relacionados à sexualidade.

Dificuldades na tomada de decisões, falta de flexibilidade, sensibilidade sensorial e desregulação emocional são obstáculos adicionais que dificultam as tentativas desses indivíduos de estabelecerem relacionamentos românticos. Além disso, as rotinas, que desempenham um papel crucial na vida dessas pessoas, podem ser desafiadoras de serem mantidas quando estão acompanhadas de outra pessoa. A inflexibilidade pode dificultar a adaptação às necessidades do parceiro, resultando em dificuldades de comunicação e compreensão das expectativas do relacionamento.

Além disso, os indivíduos afetados pelo transtorno do espectro autista (TEA) frequentemente apresentam interesses restritos e comportamentos repetitivos. Esses comportamentos incluem ações como o ato de balançar as mãos, a repetição constante de palavras ou frases, e a adesão a rituais e comportamentos rotineiros. Essas características constituem elementos distintivos do TEA, contribuindo para a complexidade desse transtorno.

Por outro lado, a gama de vivências nesse contexto é ampla, pois os indivíduos no espectro autista podem apresentar uma diversidade de desafios em habilidades sociais. Entender a sexualidade em pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) exige uma compreensão das complexidades relacionadas às interações sociais, comunicação e regulação sensorial que caracterizam essa condição. Enquanto alguns no espectro podem enfrentar dificuldades na expressão e compreensão da sexualidade, outros podem desenvolver interesses específicos e expressar formas únicas de afetividade.

Referências:

MALERBA, V. de B. Sexualidade no Transtorno do Espectro Autista: perspectivas do adolescente, de sua mãe e de seu pai.  (dissertação de mestrado.) Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, 2020. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59141/tde-08022021-192641/publico/Resumida_Victor_de_Barros_Malerba.pdf Acesso em: 20/11/2023.

Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

MELO, L. M. L. Autismo e Sexualidade. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 25, n. 3, p. 1263-1273, dez. 2019. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v25n3/v25n3a20.pdf. Acesso em: 20/11/2023

TILIO, R. de. Transtornos do Espectro Autista e sexualidade: um relato de caso na perspectiva do cuidador. Psicología, Conocimiento y Sociedad 7(1) 36-58, (mayo 2017–octubre 2017) Trabajos originales ISSN: 1688-7026. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/pdf/pcs/v7n1/1688-7026-pcs-7-01-00036.pdf. Acesso em: 19/11/2023

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A relevância da educação sexual na Educação Fundamental

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A educação sexual é um tópico de grande importância na sociedade contemporânea, pois aborda questões fundamentais relacionadas à saúde, relacionamentos e desenvolvimento pessoal. Explorar e entender como o tema é significativo na vida de crianças e adolescentes é de fundamental importância para o desenvolvimento completo do ser humano. Neste sentido, o EnCena se volta para a importância do tema educação sexual em escolas de educação básica no intuito de entender como profissionais de educação e população discente entendem e abordam o assunto. Para isso, entrevistamos a professora Keylla Cristina Arruda Farias, profissional de educação da rede pública do Tocantins com 19 anos de experiência para falar sobre o assunto.

 

(En)Cena:  Faça uma apresentação pessoal enfatizando sua formação e campo de estudos.

Keylla Cristina: Me chamo Keylla Cristina Arruda Farias, sou professora efetiva pela Secretaria Municipal da Educação há 19 anos, possuo graduação em Pedagogia, pela Universidade Federal do Tocantins, sou especialista em Docência Para Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, sou mestre em Letras pela Universidade Federal do Tocantins, cujo projeto de pesquisa tem como tema Diversidade sexual e Equidade de Gênero na Perspectiva Escolar: Documento Curricular e Práticas Discursivas. Atualmente, atuo com educadora na Escola de Tempo Integral Professor Fidêncio Bogo, que intervém com um projeto agroecológico desenvolvido pela unidade escolar, no distrito de Taquaruçu Grande.

(En)Cena: A escola e os professores compreendem a sexualidade e o gênero?

Keylla Cristina: Esta pergunta é basicamente o problema nevrálgico da minha pesquisa.

Para que o professor tenha domínio de entendimento sobre as temáticas de gênero e sexualidade no ambiente escolar, é preciso escarafunchar primeiramente se no Projeto Político da Escola há um embasamento dessas abordagens. É necessário provocar se no sistema educacional há uma boa base de formação contínua sobre tais pautas, pois sabemos que o currículo é um poder do sistema dominante que exclui as subjetividades humanas. Logo, com base nesses estudos, é possível compreender que há todo um aparato discursivo que limita o professor de estudar e de se amparar em metodologias que compreendem essas discussões em sala de aula. Há um poder disciplinar que engessa o currículo e inviabiliza o docente a trabalhar com autonomia as pautas identitárias dentro das escolas.

(En)Cena: No PPP da escola quais documentos da educação brasileira abordam o conceito de sexualidade?

Keylla Cristina: Dentro do projeto pedagógico escolar, os estudos e análises sobre gênero e sexualidade são pendulares em avanços e retrocessos. Historicamente, o documento que aponta a sexualidade de modo ainda tímido e no contexto da transversalidade e embora tenha-se criado em um panorama globalizado e com interesses internacionais, O Parâmetro Curricular Nacional PCN é um precursor da importância de se trabalhar a sexualidade nas escolas, mormente as públicas. As Diretrizes Curriculares Nacionais DCNs endossam que as escolas, na elaboração de seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP), devem incorporar temas que se relacionem com fatos relevantes da realidade. Nesse aspecto, as questões de gênero, etnia, classe, dentre outras, devem subsidiar as partes integrantes do PPP e do regimento escolar. Já a Base Nacional Comum Curricular BNCC – enquanto documento normativo vigente – sofreu retrocessos, pois devido a um movimento político ultraconservador, o documento sofreu supressões no que se refere aos temas gênero e sexualidade. O exemplo mais recente desse embate foi a retirada das expressões “orientação sexual” e “identidade de gênero” da versão final da BNCC, devido a pressões exercidas por grupos religiosos conservadores.

(En)Cena: Como a escola lida com a diversidade sexual no seu contexto diário?

Keylla Cristina: Ao longo da minha experiência profissional, a escola já começa a abrir um espaço de discussão ainda muito moderado, em detrimento de dois aspectos determinantes: a formação ou má formação dos educadores, sobretudo por apoio ou falta de apoio da equipe diretiva, no âmbito das discussões de gênero e sexualidade e o receio da escola enquanto instituição curricular de se posicionar sobre as discursividades. O outro fator está intrinsecamente ligado ao primeiro, que é a relevância dos estudos das pautas identitárias que vai na contramão de uma política ainda dominante e ultraconservadora do Estado e da sociedade.

(En)Cena: Durante os processos de formação de professores os temas “sexualidade, gênero e diversidade” fazem parte da formação? de que forma?

Keylla Cristina:No início do primeiro mandado do governo Lula (2003), foi criada a Secretaria de Políticas para Mulheres, com status de Ministério. Em 2004, criou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade, no âmbito do Ministério da Educação (MEC), que foi o órgão responsável por articular as ações de inclusão social com a valorização da diversidade e com o destaque às demandas até então invisibilizadas e não atendidas efetivamente pelos sistemas públicos de educação com as questões de gênero, sexualidade, raça-etnia, entre outras. Ainda no ano de 2004, foi lançado o “Programa Brasil sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra LGBTQIAP+ e de promoção da cidadania homossexual”. Esse programa significou um marco político na discussão e na institucionalização das temáticas de orientação sexual e identidade de gênero nas políticas educacionais do Estado brasileiro. Em seu programa de ações, o Programa Brasil Sem Homofobia propôs, no eixo sobre “Direito à educação: promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação sexual”, elaborar diretrizes para a orientação dos Sistemas de Ensino na implementação de ações que assegurem o respeito ao cidadão e à não discriminação por orientação afetivo-sexual (BRASIL 2004). A primeira oferta do GDE (Gênero e Diversidade na Escola) no Tocantins ocorreu no ano de 2013, na modalidade “aperfeiçoamento”, sob coordenação da mesma equipe que em 2015 iniciou a oferta da especialização lato sensu. Esta equipe de pesquisadoras e professores da Universidade Federal do Tocantins, que coordenou e organizou o projeto GDE, foi composta por docentes e discentes egressos do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Sexualidade, Corporalidades e Direitos da UFT, criado em 2009, no Campus do município de Miracema do Tocantins. O aperfeiçoamento formou, no ano de 2013, aproximadamente 100 cursistas profissionais da educação básica municipal e estadual em uma oferta de 150 vagas, enquanto a especialização certificou, no ano de 2017, aproximadamente 50 cursistas em uma oferta de 75 vagas. Os produtos do GDE envolveram desde a formação às ações executadas em pelo menos 20 escolas distintas da rede pública local. O desdobramento de projetos de extensão e pesquisa da própria equipe de trabalho também compõem os indicadores positivos do GDE. Análises do impacto do GDE a nível de mestrado e graduação também foram comunicadas em dissertações, monografias e artigos científicos, dentre elas este documento que em que sou subscritora.  E é a partir desse projeto que envolveu diretamente 100 pessoas, que será avaliado o impacto positivo de formação de professores e os educandos contemplados neste modelo de educação onde o professor aborda as temáticas de modo embasado contemplado pelas diretrizes educacionais. A partir desse programa, a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SECAD) passou a financiar e apoiar programas de formação docente sobre os temas da diversidade, incluindo a diversidade de orientação sexual e gênero. Nesse campo, há o curso Gênero e Diversidade na Escola/GDE, voltado para a formação de professores nas temáticas de gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais a partir de uma abordagem interdisciplinar e transversal. O curso foi oferecido desde 2006 por meio da modalidade de educação à distância e resultou de uma articulação entre diversos ministérios do governo brasileiro (HEILBORN; ROHDEN, 2009). No Distrito Federal, o curso foi ofertado pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília desde o ano de 2009. Nesse período, houve três edições (2009, 2012-2013 e 2013-2014) e formaram mais de 489 profissionais da educação da rede pública do Distrito Federal.

(En)Cena: Se existissem palestras, oficinas e demais atividades sobre a temática, as violências diminuiriam?

Keylla Cristina: Certamente. O principal viés de uma educação pautada nos princípios de uma educação democrática é construir um currículo inclusivo que abranja as pautas sobre o reconhecimento dos direitos às subjetividades humanas. O sistema educacional deve – em caráter de urgência – reformular os projetos políticos pedagógicos das unidades escolares, no propósito de se pautar em estudos e ações educativas que discutam cada vez mais políticas afirmativas que combatam ou ao menos reduzam as violências de gênero, a violência de identidade sexual, sobretudo numa perspectiva interseccional.

(En)Cena: Na visão da escola, sexualidade é sinônimo de sexo?

Keylla Cristina: A visão escolar, num panorama geral, a sexualidade está atrelada ao biologicismo. Por isso, se faz tão necessário uma docência resguardada em formação continuada que paute essas discussões dentro das epistemologias, dentro dos estudos científicos.

(En)Cena: Como a escola promove um ambiente inclusivo e seguro para as discussões sobre sexualidade?

Keylla Cristina: A promoção nesse sentido é ainda solitária e de interesse unilateral do profissional que tem interesse em estudar mais sobre as temáticas supracitadas.

(En)Cena: Quais são os principais desafios enfrentados ao abordar a educação sexual na escola?

Keyla Cristina: O enfrentamento de um sistema ainda dominado por um discurso de poder de apagamento das subjetividades humanas.

(En)Cena: Como os alunos e alunas recebem a temática sobre sexualidade?

Keylla Cristina: São temas muito bem recebidos pelos estudantes, pois as abordagens vão ao encontro das vivências individuais dessas pessoas, que estão em processo contínuo de construção de identidades.

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As Veias Abertas da América Latina: uma história de exploração

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“As Veias Abertas da América Latina” (1971) de Eduardo Galeano é uma obra literária e histórica que mergulha nas entranhas da história latino-americana, revelando um panorama de exploração, opressão e resistência ao longo de séculos. Publicado em 1971, o livro se tornou um clássico da literatura política e social, provocando debates e reflexões profundas sobre o destino da América Latina. O título, “As Veias Abertas da América Latina”, evoca uma imagem poderosa da região como uma vítima sangrando, vítima da exploração sistemática e do saqueio de seus recursos naturais e humanos. Galeano utiliza essa metáfora para transmitir sua crítica contundente aos processos coloniais e neocoloniais que moldaram a América Latina desde os primeiros contatos com os conquistadores europeus até o século XX.·.

O livro se inicia com uma frase que retrata o cerne da teoria da dependência. Ela afirma que a maneira como o trabalho é distribuído internacionalmente implica como alguns países se especializaram em prosperar, enquanto outros se especializaram em enfrentar perdas. Ao longo de nossa história, a região que conhecemos como América Latina tem uma tradição de especialização na experiência de perdas destes tempos remotos. Esta breve declaração oferece uma representação densa e altamente elucidativa da dinâmica da dependência, sendo frequentemente citada para descrever o status histórico desta região.

            Antes de tudo, para melhor entendermos a magnitude da obra que hora nos referimos, é necessário conhecer um pouco sobre a história do autor que tanto problematizou a exploração sobre a América Latina. Eduardo Galeano (1940-2015) foi um renomado escritor, jornalista e pensador uruguaio, amplamente reconhecido por sua obra literária e sua perspicaz análise social e política. Ele é mais conhecido por suas obras de não-ficção que exploram a história e a cultura da América Latina, frequentemente abordando temas de injustiça social, desigualdade e exploração. Nascido em Montevidéu, Uruguai, em 1940, Galeano cresceu em uma família de classe média e desde jovem demonstrou interesse pelo jornalismo e pela escrita. Envolveu-se com movimentos políticos progressistas na América Latina e, em 1973, durante o golpe militar no Uruguai, foi preso e posteriormente exilado na Argentina e na Espanha. Seu exílio influenciou sua visão crítica da política e da sociedade. Galeano era conhecido por seu estilo de escrita poético e lírico, que misturava história, mito e análise crítica. Galeano era um defensor dos direitos humanos, da justiça social e da igualdade. Seus escritos frequentemente destacavam as lutas dos oprimidos e marginalizados na América Latina. Eduardo Galeano faleceu em abril de 2015, mas sua voz e suas palavras continuam a ressoar como um lembrete constante das questões sociais e políticas enfrentadas pela América Latina e pelo mundo como um todo.

            Galeano utiliza-se de uma metáfora, comparando a América Latina a uma “vaca leiteira” que tem suas veias abertas para o benefício das potências coloniais europeias. Esta metáfora visualmente impactante dá nome ao livro e estabelece o tom crítico que permeia toda a obra. O autor argumenta que a América Latina tem sido historicamente explorada e espoliada de seus recursos naturais em benefício de nações estrangeiras, resultando em subdesenvolvimento e pobreza persistentes.

Galeano também examina os impactos do capitalismo e da industrialização na região, argumentando que muitas vezes esses processos foram conduzidos de maneira a beneficiar elites locais e estrangeiras, em detrimento das populações mais amplas. Ele aborda temas como a dívida externa, o papel das multinacionais e o papel dos Estados Unidos na América Latina. Um dos aspectos mais marcantes do livro é a paixão e a indignação com que Galeano aborda seu tema. Sua escrita é repleta de imagens vívidas e linguagem poética, o que torna a leitura ao mesmo tempo envolvente e emocional. Ele não apenas apresenta uma análise crítica dos eventos históricos, mas também expressa sua simpatia e solidariedade com os povos latino-americanos que sofreram as consequências desses eventos.

O livro é estruturado em capítulos que abrangem diferentes períodos e temas históricos, permitindo ao autor traçar uma narrativa cronológica das experiências latino-americanas. Galeano aborda as complexidades e nuances da história da região, destacando não apenas a exploração econômica, mas também questões sociais, culturais e políticas que moldaram o destino dos povos latino-americanos. Uma das principais contribuições do livro é sua capacidade de revelar o lado humano da história. Em vez de simplesmente apresentar dados e fatos, Galeano preenche suas páginas com histórias pessoais, anedotas e narrativas individuais que ilustram a impactante realidade da exploração e da resistência na América Latina. Essa abordagem torna a leitura envolvente e emocional, conectando o leitor de maneira profunda com as pessoas comuns que viveram e lutaram nesta região.

 

 

                                                              Fonte: memorial.org.br

Escultura “Mão”, de Oscar Niemeyer, localizada no centro da Praça Cívica do Memorial da América Latina

A estrutura do livro não segue um formato de capítulos tradicionais, mas sim uma narrativa contínua que aborda diversos aspectos da história da região. No entanto, você pode identificar diferentes seções e temas ao longo do livro. Na introdução relata sobre a tese central do livro: a exploração e o saqueio dos recursos da América Latina pelas potências estrangeiras. Também discute sobre a contextualização da situação atual da América Latina no momento da escrita (início do século XX). Em seguida discute sobre a colonização e o saqueio inicial, abordando sobre a exploração dos primeiros contatos com os europeus e descreve sobre as práticas de colonização e exploração de recursos naturais, como metais preciosos e terras. Seguindo, discute sobre o impacto do colonialismo abordando discussão sobre as consequências sociais, econômicas e culturais do domínio colonial, dando ênfase na extração de riquezas em detrimento das populações indígenas e locais.

As lutas pela independência são abordadas através da análise dos movimentos de independência na América Latina e a exploração dos desafios enfrentados pelos líderes independentistas e as lutas contra o domínio estrangeiro. O neocolonialismo e o imperialismo são discutidos pelo exame das relações econômicas desiguais entre a América Latina e as potências estrangeiras, especialmente os Estados Unidos. E discussão sobre a exploração de recursos naturais, como petróleo e minerais. Faz, também, uma análise das ditaduras militares e regimes autoritários na América Latina. A exploração das violações de direitos humanos e a repressão política também estão contidas. Dá destaque para os movimentos de resistência, sindicatos, movimentos sociais e a busca por justiça social. Discute o futuro da América Latina através de considerações sobre as perspectivas e desafios enfrentados pela região no futuro. Concluindo com reflexões sobre a necessidade de mudança e justiça na América Latina.

Ao longo de sua obra, Galeano critica fortemente a influência das potências estrangeiras, principalmente europeias e mais tarde os Estados Unidos, nas políticas e economias latino-americanas. Ele explora como os interesses externos frequentemente sobrepujavam o bem-estar das populações locais, levando a ciclos de exploração, dívida e subdesenvolvimento.

O autor também enfatiza o papel das elites locais na perpetuação desses sistemas opressivos, muitas vezes colaborando com interesses estrangeiros em detrimento das massas empobrecidas. Ele destaca a concentração de terras, a exploração de recursos naturais e a marginalização das comunidades indígenas e afro-americanas como elementos centrais dessa dinâmica. Galeano não se contenta em apenas apontar os problemas; ele também se envolve em análises políticas e sociais profundas, questionando as estruturas de poder e propondo alternativas para a América Latina. Ele expressa uma esperança persistente de que a região possa se libertar da opressão e do subdesenvolvimento, embora reconheça os desafios significativos que enfrenta.

O livro descreve a exploração sistemática e a extração de recursos naturais da América Latina por poderes estrangeiros, em especial, países europeus e os Estados Unidos. O autor argumenta que essa exploração econômica teve consequências devastadoras para a região, incluindo a degradação do meio ambiente, a exploração de mão de obra, a criação de desigualdades econômicas e a perpetuação do subdesenvolvimento.

“As Veias Abertas da América Latina” é uma obra que busca despertar a consciência sobre as injustiças históricas enfrentadas pela América Latina, oferecendo uma crítica contundente ao neocolonialismo, ao imperialismo e às desigualdades econômicas. O livro teve um impacto duradouro e continua a ser uma referência importante para aqueles que buscam entender a história e os desafios da América Latina.

            Galeano representava estes princípios de forma pessoal e também cativou aos seus leitores. Ele irradiava entusiasmo, autenticidade e firmeza em suas palavras. Suas declarações inspiravam as pessoas a se unirem na busca de um futuro caracterizado pela solidariedade e equidade, e a melhor maneira de homenagear sua obra é renovar esse compromisso.

Embora bastante aclamado, a obra “As Veias Abertas da América Latina” também foi alvo de críticas. Alguns argumentam que o livro tende a simplificar demais questões complexas e que não apresenta soluções práticas para os problemas que descreve. Além disso, alguns críticos afirmam que o livro necessita de equilíbrio e não leva em consideração as nuances das políticas e eventos históricos.

Apesar das críticas, “As Veias Abertas da América Latina” se propõe justamente a uma obra provocativa que nos desafia a repensar a história e a realidade da América Latina. Galeano fornece uma crítica emotiva da exploração econômica e política que a região sofreu ao longo dos séculos. Embora o livro tenha sido alvo de críticas, sua influência duradoura na discussão sobre a América Latina é inegável, tornando-o uma leitura valiosa para aqueles interessados na história e na política da região.

Referência:

GALEANO, E. As Veias Abertas da América Latina. Tradução de Galeano de Freitas. Paz e Terra. Rio de Janeiro, RJ. 1992.

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O Protagonismo Feminino em Game of Thrones através da Personagem de Arya Stark

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Giselle Carolina Thron: giselle.thron@ceulp.edu.br

A icônica série televisiva Game of Thrones estreou em 2011 e se tornou um fenômeno mundial. Adaptada dos livros de George R.R. Martin, Crônicas de Gelo e Fogo, a saga épica apresenta um mundo repleto de intriga política, batalhas sangrentas e personagens complexos. A série se passa em um mundo fictício, com inspiração medieval, tendo como local o continente de Westeros e Essos e a luta pelo Trono de Ferro. Westeros é um continente dividido em Sete Reinos, cada um governado por uma família nobre. As principais famílias envolvidas são os Stark, Lannister, Targaryen e Baratheon, cada uma com suas próprias motivações, interesses, intrigas e rivalidades.

A série explora as complexidades do poder político, mostrando as estratégias, alianças e traições entre as diferentes casas nobres. Os personagens estão constantemente tentando obter vantagens políticas, seja através de casamentos, negociações diplomáticas ou manipulação, o que gerou durante sua narrativa várias guerras e batalhas sendo estas de inspiração nas guerras e conflitos ocorridos no período medieval. Além disso, conta, também, com vários elementos de fantasia, tais como dragões, lobos gigantes, zumbis, os caminhantes brancos e antigas formas de magia.

Cada personagem tem sua própria motivação, história e arco narrativo. Ao longo da série, acompanhamos as jornadas individuais dos personagens, que são confrontados com escolhas difíceis e consequências impactantes. Ao pensarmos na gama de personagens interessantes da série, e sobretudo, o que se trata o texto, o universo feminino, as quais desempenham papéis importantes na trama da série, desafiando estereótipos de gênero e demonstrando força, coragem e inteligência nos lembramos inicialmente da poderosa Daenerys Targaryen ou a ardilosa Cersei Lannister, mas, no contexto do texto que hora desenvolvemos o destaque será dado à personagem Arya Stark.

Arya Stark é a filha mais nova da Casa Stark, e se desenvolveu como uma notável determinação e habilidades de combate. Ao longo da série, ela passa por uma jornada de autodescoberta e se torna uma assassina treinada e destemida. Arya desafia os papéis tradicionais de gênero e se torna uma figura de resiliência e vingança. Uma personagem corajosa, teimosa e determinada desde o início da história. Ela se destaca por não se encaixar nos papéis tradicionais esperados das mulheres em Westeros. Diferente de sua irmã Sansa, Arya não se interessa por atividades femininas, como costura e etiqueta. Em vez disso, ela prefere lutas de espadas, arco e flecha, e se envolve em atividades consideradas mais “masculinas”.

                                                                   Fonte:HBO Entertainment

Poster de divulgação de Game Of Thrones personagem Arya Stark

Percebe-se a quebra de estereótipos que a personagem representará logo quando ela é apresentada na primeira temporada da série. Uma menina de 11 anos de idade que rejeita as tarefas tipicamente femininas como bordado e costura e é apresentada treinando esgrima vestindo camisa, calça e botas tipicamente masculinas. Os gostos pessoais da menina se apresentam como fonte de preocupação para seus pais que, assim como idealizaram um bom casamento para a irmã mais velha, sonhavam com um casamento para ela. Em um diálogo entre pai e filha Arya deixa claro que as aspirações que seus pais sonhavam para ela não era o que a própria menina queria:

                                                                 Arya: – Eu posso ser Senhora de um castelo?

                                                                                        Ned: – Você se casará com um Senhor e governará o                   castelo dele. Seus filhos serão cavaleiros, princesas, senhores.

                                                         Arya: – Não. Essa não sou eu. (T01E04).

Logo no início da série e as conspirações pelo poder levaram Arya a se separar de sua família. Primeiro, ela precisa se disfarçar de menino para não ser reconhecida e se une a um grupo de recrutas com o intuito de fugir da cidade onde as conspirações levaram à execução de seu pai. Sozinha, em um ambiente totalmente hostil, a menina consegue se defender de todos os perigos que a cercam enquanto planeja sua vingança a todos e todas que conspiraram para a morte de Ned Stark, seu pai. Logo após, Arya se une à outro personagem da série, Clegane, personagem rude conhecido como Cão de Caça, o qual representa uma espécie de anti-herói no contexto da história. O encontro dos dois é também marcado por interesse, pois ele leva a menina como refém na esperança de ganhar uma boa recompensa. O desenrolar do relacionamento dos dois leva a crer, inicialmente, que ele assumiria um papel de figura paterna/protetiva, no entanto, Arya se aproveita dos dotes de guerreiro de seu sequestrador para se aperfeiçoar na esgrima e autodefesa.

Finalmente, conseguimos observar uma relação construída entre os dois conferindo um ar de hostilidade mas também compreensão mútua e até mesmo respeito, uma vez que os dois estavam em busca de vingança. Por fim, os dois se separam quando ele, ferido, é deixado por ela que segue seu caminho e se torna aprendiz de uma comunidade conhecida como Sem Rosto, uma organização de assassinos e adoradores do Deus de Muitas Faces em Braavos, sendo uma das habilidades mais notáveis desta comunidade a transmutação de rostos, ao que Arya se aproveita para aprimorar suas habilidades de combate e disfarce. Neste ponto da trama, ela enfrenta desafios mentais e físicos, incluindo enfrentar seu próprio passado e abandonar sua identidade. No entanto, ela também questiona o objetivo e os métodos daquela comunidade, especialmente quando eles lhe pedem para renunciar à sua identidade e matar indiscriminadamente. Eventualmente, ela recupera sua independência e se recusa a completar uma missão de assassinato, optando por seguir seu caminho. Embora ela tenha deixado os Sem Rosto, Arya ainda mantém as habilidades que aprendeu lá e a usa ao longo da história para se vingar daqueles que prejudicaram sua família.

Ao deixar a comunidade dos Sem Rosto, Arya se mantém no desejo de vingar a morte de seu pai e agora outros membros de sua família, que também foram assassinados devido a conspirações. Sua mãe e seu irmão mais velho foram assassinados em um momento de grande drama da série, o Casamento Vermelho. Assim, Arya, utilizando-se da habilidade de transmutar o rosto, consegue se infiltrar no castelo dos assassinos, envenena toda a linhagem da casa e oferece a carne de seus descendentes para o lorde da casa comer o assassinando em seguida. Outro marco importante para a personagem Arya Stark foi a morte do Rei da Noite um dos grandes vilões da história, o líder dos Caminhantes Brancos, espécie de zumbis, o Rei da Noite marchava para o ataque e possível eliminação da região de Winterfell e foi morto justamente por Arya que o apunhalou com uma adaga especial.

            A morte do Rei da Noite, um dos grandes antagonistas da série, pelas mãos da personagem Arya é um evento significativo no desenrolar da história. A forma como ele é derrotado por ela possui pontos de relevância, o primeiro deles é a subversão das expectativas, pois ao longo da história somos levados a acreditar que Jon Snow, o protagonista e herói em muitos aspectos, seria aquele que finalmente derrotaria o Rei da Noite. No entanto, a escolha de Arya Stark para realizar o ato subverte as expectativas tirando da sempre figura heroica masculina a cartada final para exterminar o grande vilão. A morte do Rei da Noite também é entendida como o ápice do arco de desenvolvimento de Arya a qual passou por um treinamento rigoroso com ao longo de sua jornada, adquirindo habilidades de combate e assassinato. Sua jornada de vingança pessoal, combinada com seu treinamento, a transforma em uma assassina altamente habilidosa e determinada, tornando-a capaz de enfrentar aquela que se apresenta como a grande ameaça sobrenatural.

Ao analisarmos a trajetória da personagem Arya Stark podemos extrair vários elementos importantes: ela desenvolve um forte senso de justiça e busca vingança contra aqueles que causaram mal a ela e sua família. Arya Stark é admirada por sua determinação, habilidades de sobrevivência e força de vontade. Ela desafia as expectativas de gênero em um mundo dominado pelos homens e é uma figura que representa resiliência e independência, uma das principais características de Arya é sua determinação inabalável. Desde o início, ela se destaca por sua personalidade independente e sua recusa em se conformar com os papéis tradicionais de gênero desafiando as expectativas familiares e sociais e se esforça para encontrar seu lugar em um mundo brutal e complexo. Arya passa por uma série de experiências traumáticas e perdas ao longo da história, o que a obriga a se adaptar e sobreviver em circunstâncias adversas, aprende a lutar, a esconder sua verdadeira identidade e a confiar apenas em si mesma. Essas experiências moldam sua mentalidade e a tornam uma personagem resiliente e corajosa. Além de sua força física e habilidades de luta, Arya também possui uma inteligência aguçada e uma habilidade única de observar e aprender com as pessoas ao seu redor. Torna-se uma mestra na arte do disfarce e da manipulação, usando essas habilidades para sobreviver e se vingar daqueles que causaram mal a ela e sua família.

Arya também é uma personagem complexa, com uma mistura de raiva, tristeza e desejo de justiça, enfrenta dilemas morais ao longo de sua jornada, e sua busca por vingança a leva a questionar suas próprias noções de justiça e até onde está disposta a ir para alcançar seus objetivos. Uma das partes mais fascinantes da personagem de Arya é seu relacionamento com a identidade e a conexão com sua família carregando o nome e a honra da Casa Stark, mas também adota várias identidades falsas ao longo da série. Ela luta para equilibrar seu desejo de vingança e sua necessidade de preservar sua verdadeira identidade. Arya Stark é frequentemente analisada de uma perspectiva feminista devido à sua representação de uma personagem feminina forte, independente e desafiadora dos papéis de gênero tradicionais. Sua jornada e características específicas são frequentemente consideradas empoderadoras e inspiradoras para os que acompanham a história.

Aqui estão alguns aspectos da personagem que podem ser analisados ​​sob uma lente feminista: Desafio aos estereótipos de gênero rejeitando as expectativas tradicionais de comportamento feminino em uma sociedade patriarcal. Ela demonstra interesse em atividades consideradas “masculinas”, como lutas de espada e arco e flecha, em vez de se envolver com as tarefas e habilidades femininas esperadas. Essa quebra de estereótipos reforça a mensagem de que as mulheres têm o direito de seguir seus próprios interesses e paixões, independentemente das normas de gênero impostas.

A sua busca constante por autonomia e independência fizeram-se presentes durante todo o seu percurso. Arya busca constantemente sua própria independência, navegando por um mundo perigoso por conta própria. Ela desafia as expectativas sociais e reivindica sua própria agência, buscando seu caminho e tomando suas próprias decisões. Sua busca por vingança e justiça é um exemplo de sua determinação em moldar seu próprio destino, em vez de ser uma figura passiva. Ela é resiliente e adapta-se às circunstâncias adversas, aprendendo com suas experiências e fortalecendo-se. Essa resiliência é um aspecto inspirador da personagem, mostrando que as mulheres podem enfrentar desafios e se recuperar com força e determinação.

Outro ponto a ser destacado é a quebra de padrões de beleza convencionais, pois ela não se preocupa com a aparência ou em se enquadrar nos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade. Ela se recusa a se conformar com as expectativas de feminilidade e valoriza suas habilidades, inteligência e força interior em vez de sua aparência externa. Isso envia uma mensagem de que a autoestima e o valor pessoal não devem depender de aparência física. Assim como as noções de camaradagem e sororidade uma vez que Arya desenvolve relacionamentos fortes com outras personagens femininas ao longo da série. Ela compartilha momentos de camaradagem e apoio mútuo com personagens como Brienne de Tarth e Yara Greyjoy, mostrando a importância das conexões e do apoio entre mulheres em um mundo onde são frequentemente subestimadas.

O final de Arya Stark é sobremaneira sugestivo, enquanto sua irmã mais velha assume o trono de sua casa, ela se recusando a permanecer na casa de sua família e indo em busca de seus sonhos infantis de conhecer o mundo, a sua última cena é a bordo de um navio rumo à outros continentes e o desconhecido.

Referências:

GAUDENZI, Mariana Vargas. BICCA, Angela Dillmann Nunes. Aprendendo sobre Feminilidades com Arya e Sansa Stark da Série Game Of Thrones. Vol 08, N. 03 – Jul – Set. 2022. ISSN 2525-6904. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/cadgendiv/article/view/39101/27731 . Acesso em: 11/08/2023

PEIXOTO, Beatriz Viana Barboza. Representação do Feminino na Mídia: Um Estudo de Caso da Oitava Temporada de Game of Thrones. (Monografia) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ. 2021. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/14725/1/BPeixoto.pdf. Acesso em: 11/08/2023

RANGEL, Izabela Pereira. VIEIRA, Vanrochris Helbert. Arya Stark: Representação Feminina em Game of Thrones. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba – PR – 04 a 09/09/2017. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.portalintercom.org.br/anais/nacional2017/resumos/R12-0714-1.pdf . Acesso em: 18/08/2023

SOUSA, Fernanda Cristina Cobo de. Game of Thrones e sensibilidade pós-feminista: uma análise da trajetória das mulheres de Westeros e Essos. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Belo Horizonte – MG – 7 a 9/6/2018. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.portalintercom.org.br/anais/sudeste2018/resumos/R63-0133-1.pdf. Acesso em: 18/08/2023

TOLEDO, Ludmila Soares. Representações Femininas na Literatura de Fantasia. (Monografia) Universidade de Brasília. Brasilia, DF. 2014. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://bdm.unb.br/bitstream/10483/9428/1/2014_LudmilaSoaresToledo.pdf. Acesso em: 18/08/2023

 

 

 

 

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Relações humanas contidas no seriado “The Big Bang Theory”

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As relações humanas são o tecido que compõe a complexa tapeçaria da vida social. Elas são a essência da nossa existência, moldando quem somos e como interagimos com o mundo ao nosso redor. Essas interações variam desde os laços familiares mais íntimos até as conexões fugazes que estabelecemos com estranhos em nossa rotina diária. Neste sentido, temos vários tipos de aprendizagens através de nossa cultura e nada mais cultural na atualidade que filmes e séries televisivas. Para esta reflexão, nos centramos no seriado de humor norte americano de grande audiência no Brasil The Big Bang Theory.

The Big Bang Theory é uma sitcom americana que foi ao ar entre 2007 e 2019. Criada por Chuck Lorre e Bill Prady, a série segue um grupo de amigos detentores de altos títulos acadêmicos, mas desajustados socialmente. A trama começa com os dois amigos, Físicos, Leonard Hofstadter e Sheldon Cooper que vivem em um apartamento em Passadena na Flórida. Eles trabalham em uma Universidade, a Caltech e são apaixonados pela cultura nerd. O grupo de amigos é completado por Howard Wolowitz, um engenheiro aeroespacial e Rajesh Hoothrappali, um astrofísico indiano que não consegue falar com mulheres a menos que tenha consumido álcool.

A vida do grupo começa a mudar quando Penny, uma aspirante a atriz que trabalha como garçonete, se muda para o apartamento vizinho de Sheldon e Leonard. Logo Leonard desenvolve uma paixão por ela, o que cria uma dinâmica cômica entre eles devido às suas personalidades opostas. Sheldon, por sua vez, se desagrada pela nova vizinha que de certa forma veio “mudar” a rotina do prédio, uma vez que ele é avesso a mudanças, mas ao longo da história os dois desenvolvem uma bela relação de amizade. Futuramente, se juntam ao grupo mais duas personagens: Bernadette Rostenkowski que se tornará par romântico de Howard e Amy Farrah Fowler que desenvolverá uma relação com Sheldon.

Antes de tocarmos no foco principal deste texto: as relações contidas na série é necessário conhecer um pouco os principais personagens e entender a complexidade que foi atribuída a cada um deles

Sheldon Cooper é um dos personagens principais da série, é uma figura icônica conhecida por suas peculiaridades, inteligência excepcional e falta de habilidades sociais. Sheldon é um gênio em Física teórica, com um QI extremamente alto. Seu conhecimento é vasto e frequentemente desdenha aqueles que ele considera menos inteligentes. O personagem é muito ligado a rotinas e rituais, ele tem uma programação meticulosamente planejada, desde os horários para refeições até os momentos específicos para realizar certas atividades. Qualquer desvio de sua rotina pode causar desconforto e ansiedade para ele. Outra característica marcante é sua dificuldade em compreender e participar de interações sociais. Ele muitas vezes não entende sarcasmo, ironia e nuances nas conversas. Seu estilo de comunicação é muito direto e muitas vezes inapropriado. Sheldon muitas vezes coloca suas próprias necessidades e desejos acima dos outros, exibindo um grau limitado de empatia em relação aos sentimentos dos outros. Embora não seja explicitamente mencionado na série, muitos fãs e especialistas especularam que Sheldon pode ter características do Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), devido às suas características de personalidade e comportamento.

Leonard Hofstadter é outro personagem principal da série. Ele é um Físico experimental altamente inteligente e o melhor amigo de Sheldon e assim como seu amigo, Leonard é um cientista brilhante, com doutorado em Física experimental, trabalhando como pesquisador em uma a Universidade e lida com experimentos e estudos práticos, em contraste com a abordagem teórica do colega. Diferente de Sheldon, Leonard é mais sociável e tem um comportamento mais empático, ele é conhecido por ser um bom amigo, alguém disposto a ajudar os outros e fazer concessões para manter a harmonia no grupo. Leonard compartilha muitos dos interesses nerds do grupo, como quadrinhos, ficção científica e jogos de vídeo. Ele é um membro ativo dos encontros semanais de quadrinhos e jogos.

Howard é conhecido por suas excentricidades, estilo de vida peculiar e seu trabalho como engenheiro aeroespacial talentoso trabalhando na mesma Universidade que os colegas Leonard e Sheldon, sua especialidade é em sistemas de navegação e é alvo constante de piadas sobre ser Engenheiro e não possuir doutorado. Seu estilo de se vestir de modo considerado chamativo e muitas vezes extravagante combina com sua personalidade extrovertida. Outra característica marcante de Howard é seu flerte constante e suas tentativas de se apresentar como um “homem das senhoras”. Ele frequentemente faz comentários ousados e piadas de teor sexual, o que muitas vezes resulta em situações cômicas, uma vez que, para os atuais padrões de beleza masculina, ele não é considerado um modelo de beleza.

Rajesh Koothrappali, também conhecido como Raj, completa o quarteto de amigos da série. Raj é um astrofísico e trabalha no mesmo departamento da Caltech que seus amigos Leonard, Sheldon e Howard. Ele é conhecido por suas dificuldades em se comunicar com mulheres, especialmente quando está sóbrio, sofrendo de uma forma de mutismo seletivo que o impede de conversar com mulheres, exceto quando está sob a influência de álcool. Isso leva a situações cômicas e momentos constrangedores ao longo da série. Raj é frequentemente retratado como um indivíduo sensível e gentil. Ele valoriza a amizade e se preocupa com os outros, muitas vezes oferecendo apoio emocional a seus amigos em momentos difíceis. Se destacando, também, sua vida religiosa, pois Raj é de origem indiana, e sua cultura e religião são abordadas em vários episódios, isso inclui suas relações com sua família na Índia e como ele navega entre as expectativas culturais e a vida nos Estados Unidos. Assim como os outros personagens, Raj compartilha interesses nerds, como quadrinhos, ficção científica e videogames. Ele também tem um gosto pela moda e pelo luxo, muitas vezes exibindo roupas extravagantes e caras.

Sendo a primeira personagem feminina da série, Penny é uma garçonete aspirante à atriz e se torna vizinha de porta de Leonard e Sheldon. Ela é conhecida por sua personalidade extrovertida, carisma natural e senso de humor. Penny é amigável, acessível e em muitas ocasiões serve como uma figura de equilíbrio entre os personagens mais nerds e introvertidos.  Ela é uma personagem crucial para equilibrar a comédia da série, proporcionando um contraste entre o mundo acadêmico e a vida cotidiana. Sua jornada e interações adicionam camadas de humor e emoção à trama. Penny passa por uma jornada de autodescoberta e amadurecimento ao longo da série enfrentando desafios em sua carreira e vida pessoal, mas também desenvolve uma maior confiança em si mesma e toma decisões significativas em relação ao seu futuro.

Bernadette é introduzida na série como a namorada de Howard, eventualmente se tornando sua esposa. Ela é uma Microbiologista e é conhecida por sua voz aguda e aparência delicada. Bernadette é em muitas ocasiões subestimada devido à sua aparência fofa, mas ela frequentemente revela uma personalidade forte e assertiva. Mesmo sendo conhecida por sua doçura, também tem um lado sarcástico e até mesmo explosivo. Ao longo das temporadas, Bernadette passa por mudanças pessoais e profissionais, avançando em sua carreira, enfrentando desafios no trabalho e conciliando com a vida doméstica e a maternidade.

A última personagem fixa anexada à série, Amy é uma Neurobióloga que se torna amiga próxima do grupo de nerds. Sua profissão a coloca em um campo relacionado ao dos outros personagens e ela frequentemente se envolve em conversas acadêmicas com eles, sendo conhecida por sua personalidade peculiar e às vezes excêntrica. Inicialmente aparece como alguém com dificuldades em entender e expressar emoções, mas ao longo da série, ela se desenvolve emocionalmente e se torna mais conectada com seus sentimentos e com as pessoas ao seu redor. Amy passa por um notável desenvolvimento pessoal, aprendendo a expressar suas emoções e a se tornar mais independente. Ela cresce como cientista, amiga e a pessoa que consegue se manter ao lado de Sheldon mesmo em seus momentos mais difíceis.

                                                                                                                                          Warner Bros Company

 Poster de Divulgação: Warner Bros.

            A série conta ainda, com vários personagens secundários que adicionam momentos dramáticos e humorísticos às histórias individuais. As relações de amizades, amores românticos, conjugalidade, maternidade, trabalho, relações parentais. Tudo isso sendo distribuído entre os próprios dramas pessoais.

            As relações de amizades entre os rapazes que, em alguns momentos percebemos amor, mas também hostilidade e agressividade, piadas que envolvem a relação de trabalho, sexismo, etnia e religião foram bastante exploradas durante a história, de modo geral, sempre, ou quase sempre resolvidas através do desenvolvimento de conversas que acrescentaram seriedade à série.

Sheldon e Leonard, por exemplo, são melhores amigos, dividem o mesmo espaço e precisam se adequar um ao outro, sendo o primeiro uma pessoas com poucas habilidades sociais e rigidez em suas rotinas sendo necessário descrever tudo em “acordos escritos” para que nada fuja ao seus padrões de normalidade o que faz com que Leonard tenha que desenvolver cada vez mais sua tolerância. Tolerância essa que aprendeu desde a infância por ter sido criado por uma mãe exigente e nada carinhosa. Durante a história, percebe-se que a carência afeto e afago materno é permanente sendo “resolvido” em uma das últimas cenas do último episódio da série em que o filho finalmente consegue um abraço afetuoso de sua mãe.

            Em se tratando de relações parentais, observa-se que são diversos tipos de construção de maternidade, a mãe de Leonard sendo fria e distante o que se destoa totalmente da mãe de Howard, que mesmo nunca tendo aparecido em pessoa na história, desenvolve uma relação de codependência com o filho sendo justificado pelo fato de ter sido abandonado pelo pai na infância. Mesmo que sua mãe traga elementos de humor para a história é nítido como ela manipula o filho para que sempre fique junto a ela. Já a mãe de Sheldon é uma cristã praticante e também superprotetora que não aceita o fato do filho ser um cientista e não comungar de suas crenças religiosas. A mãe de Amy é a típica “mãe devoradora” que quer dominar a filha. Os pais de Raj não aceitam muito bem o fato de ele ter saído do país e se envolver com mulheres de outra etnia.

            As relações amorosas também são desenvolvidas no decorrer da história com toques de humor e drama mas que nos ensinam sobretudo que estas relações são construídas com base em tolerância e trocas. Algumas situações nos deixam a impressão que um “lado” sai perdendo, mas analisando o contexto geral vemos que existe sim uma relação de trocas. O relacionamento entre Sheldon e Amy é um exemplo disso.

            Sheldon é uma pessoa de padrões rígidos, tem aversão à mudanças, o contato físico é dispensável e relações sexuais são para ele é algo banal e desnecessário. Já Amy, embora tenha sido construída pelo estereótipo da “inteligente e esquisita” é muito mais pessoal, pensa e deseja sexo. Os dois se juntam em relação inicialmente de amizade e trocas científicas e desenvolvem a relação amorosa através do tempo. Amy faz tudo para agradar Sheldon que raramente retribui como ela gostaria, mas retribui como ele mesmo consegue devido às suas limitações. Após anos juntos ele finalmente se rende ao sexo e ao casamento, sem contudo, deixar de ser quem ele é.

            Leonard e Penny formaram o casal menos provável mas de muito carisma. Ele, cientista e sem traquejo social, ela garçonete e extrovertida. Os dois desenvolveram a relação com idas e vindas durante todo o percurso da série provando para o público que duas pessoas tão diferentes conseguem se dar bem em relacionamento amoroso. Ao contrário da união Amy/Sheldon entre Penny e Leonard é ele quem mais tende a ceder no relacionamento, embora tenham um final previsível com a gravidez de Penny que já havia deixado claro ao longo da história não ser um grande sonho.

            Já o relacionamento de Howard e Bernadette foi marcada pelos problemas habituais da conjugalidade. Inicialmente, pela influência da mãe dele, já que mantinham uma relação disfuncional e não queria que o casal vivesse em outra casa. Após, o fato de ela ganhar bem mais que ele e ainda ter que ser a responsável por toda a manutenção das tarefas domésticas, algo que a sobrecarrega. Mesmo assim, ela sempre demonstra admiração pelo marido e sempre estava ao seu lado quando ele sofria com as piadas dos amigos por ser o único que não tinha doutorado.

            Raj foi o único do grupo a não conseguir uma relação duradoura, mostrando que relacionamento amoroso nem sempre fará parte da vida. Ele é um imigrante com uma extrema timidez e tem muitas dificuldades até mesmo para falar com mulheres até chegar a ponto de concordar com um casamento arranjado por seus pais como é costume em sua cultura, algo que não deu certo e Raj terminou a história sozinho.

            Estas histórias nos mostram que relacionamentos são difíceis e necessitam, além de amor, tolerância e o diálogo constantes. Algo que foi mostrado durante o desenvolvimento de todos os relacionamentos contidos no decorrer da história. Em alguns momentos, podemos não concordar com certas atitudes e pensar que um saia ganhando em decorrência do outro, o que não se constitui como uma verdade, já que em todas as ocasiões de conflitos os personagens conseguem dialogar e resolver as questões que geravam estes conflitos.

            Enfim, relações humanas são de extrema dificuldade e esta série nos mostra, com muito humor e sensibilidade que se relacionar com outras pessoas é complexo e que conflitos e desajustes sempre irão ocorrer, e que manter relacionamentos, de qualquer natureza, há uma necessidade de utilizar uma das maiores armas que o ser humanos possui, a comunicação.

Referências:

ANAZ, S. A. L. CERETA, F. M. Ciência e tecnologia no imaginário de The Big Bang Theory: das imagens arquetípicas à atualização de mitos e estereótipos na “Era do Conhecimento”. Revista FAMECOS Porto Alegre, v. 21, n. 2, p. 647-674, maio-ago. 2014. Disponível em:  https://www.redalyc.org/pdf/4955/495551016013.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

FRANCO OLIVEIRA, A. C. TONUS, M. Bazinga! Uma Análise Neotribal Da Sitcom The Big Bang Theory. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – São Paulo – SP – 12 a 14 de maio de 2011. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2011/resumos/R24-0340-1.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

SOUSA, V. d. A Construção da Identidade Feminina no Texto Digital Transmédia de The Big Bang Theory. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v. 9, n. 2, jul./set. 2018 (ISSN 2179-3948 – online). Disponível me: https://run.unl.pt/bitstream/10362/65045/1/5915_Texto_do_artigo_28741_1_10_20181028.pdf. Acesso em: 08/09/2023.

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Mika Etchebéhère, personagem esquecida: da América Latina à Europa em busca da Igualdade de Gênero

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Giselle Carolina Thron: giselle.thron@ceulp.edu.br 

Ao pensarmos na conturbada história dos conflitos mundiais que ocorreram no século XX, temos nomes formados em nossas memórias, sobretudo nomes masculinos, que sempre estão presentes na literatura sobre o assunto. Pensando também na hierarquia destes conflitos, sempre nos lembramos de determinados eventos sendo alguns deixados à revelia, entendemos que é de suma importância conhecer personagens novos, sobretudo de conflitos que não estão no topo do interesse comum mas que, no contexto destes conflitos, são de grande relevância para o entendimento do conturbado período a que estamos nos referindo. 

Durante os agitados anos da década de 1930 as mulheres espanholas viveram várias fases: queda da monarquia, instauração da república, revolução, repressão stalinista, ditadura franquista. Cada uma destas fases provocou muitas mudanças no seu modo de vida, novas experiências, algumas boas, outras nem tanto. Mas, destas, a Revolução de 1936 foi, sem dúvida, o ápice das conquistas e de experiências transformadoras. Na madrugada de 18 para 19 de julho de 1936, um golpe militar marcaria para sempre a história da Espanha e do mundo. Apesar de considerado o marco inicial da Guerra Civil Espanhola, na realidade marca o ápice de um processo revolucionário anterior, irrompida pelas massas operárias e camponesas. 

Deflagrada a revolução, as mulheres foram aceitas para servir nas milícias revolucionárias combatendo de igual para igual com seus companheiros. Nos primeiros combates não era uma imagem tão impressionante, mas elas estavam lá para defender os direitos da classe operária como um todo e o seu especificamente. Nas milícias revolucionárias não havia hierarquia militar e imperava a ausência dos privilégios do antigo Exército fazia da milícia uma de muitas concretizações do ideal revolucionário perseguido pela classe operária. E, entre tantas desigualdades, a milícia punha fim àquela de natureza sexual.

Poderíamos falar sobre centenas de mulheres que participaram destes combates, e foram muitas, mas neste momento, resgataremos a história da miliciana Mika Etchebéhère que participou desde os primeiros combates na defesa de Madri, quando inicialmente os franquistas tentaram tomar a capital castelhana e teve início a batalha – seguida do cerco em Madri, onde participaram na sua defesa as milícias dos vários partidos e organizações sindicais lutando juntas na defesa da capital.

Micaela Feldman era filha de judeus russos que fugiram para a Argentina antes de seu nascimento em 14 de março de 1912. Ainda na infância, Micaela se encantou com a revolução social. Seus pais possuíam um restaurante na colônia judaica em que habitavam na Província de Santa Fé. Lá ouvia os relatos de fuga de revolucionários das prisões da Sibéria. Ainda na adolescência juntou-se a algumas colegas para formar a agrupação de mulheres “Luísa Michel” de inspiração anarquista.

Em 1920, com 18 anos, já em Buenos Aires cursando Odontologia, conheceu Hipólito Etchebéhère. A partir daquele momento os dois formariam uma parceria que duraria até a morte de Hipólito no início da Revolução Espanhola. Micaela foi apresentada a Hipólito Etchebéhère e a mais dois amigos que queriam sua adesão ao grupo Insurrexit. Inicialmente ela ficou reticente por se tratar de jovens provenientes da burguesia, mas Hipólito a convenceu.

As lutas operárias, a Revolução Russa e o antissemitismo mexeram com os sentimentos de Mika, tanto que, em 1924, filiou-se ao Partido Comunista da Argentina trabalhando para a sua implantação definitiva. Ela trabalhava em prol da seção feminina do partido, promovendo encontros e reuniões, panfletagem e discursos nas ruas e em portas de fábricas. Por não concordar com as novas diretrizes do partido – essa é a época da burocratização – se distancia do Partido Comunista e, devido às discordâncias que sempre expressaram publicamente, é expulsa e se aproxima do trotskismo.

Em virtude da fraca saúde de Hipólito, causada pela tuberculose, eles resolvem ir para a Patagônia onde trabalhavam no consultório odontológico que Mika montou com o intuito de juntar dinheiro para a viagem para a Europa. Naquele momento não tinham esperanças no movimento revolucionário argentino ou mesmo latino-americano, o que sentiam muito.

O país escolhido inicialmente fora a Alemanha, no momento da Revolução Alemã. Acreditavam que em um país com uma classe operária tão forte e organizada como era o caso alemão, a revolução social teria sucesso. Passaram antes por Madri, desembarcaram em junho de 1931, dois meses após a queda da monarquia e a instauração da República. O clima revolucionário em que vivia a Espanha a deixou com grandes expectativas: “exigiam a separação da Igreja e o Estado… aprendemos a querer o povo espanhol”. Nutria o desejo de voltar à Espanha para participar das grandes transformações que certamente aconteceriam. Da Espanha partiu para Paris para preparava-se intelectualmente para a revolução, trabalhando em jornais da esquerda comunista, acreditando que assim poderia se aproximar mais da classe operária alemã. 

Em outubro de 1932 chegou à Alemanha, acreditando na vitória da revolução, procurou se aproximar do Partido Comunista, mas com a derrota da classe operária, a ascensão de Hitler e a passividade do Komintern decepcionaram-se ainda mais com o comunismo.

Em maio de 1936 Hipólito vai para um sanatório em Madri devido à tuberculose. Ela continua em Paris trabalhando para prover sustento do casal. Em 12 de julho, Mika Etchebéhère chegou a Madri, apenas seis dias após o golpe liderado pelo general Franco. A resistência da classe operária reacende a esperança de uma revolução vitoriosa. A derrota da Alemanha tão presente em sua memória não poderia se repetir. 

Mika e Hipólito Etchebéhère logo se incorporam ao POUM – Partido Operário de Unificação Marxista. Não era o seu partido, mas era o que mais se assemelhava ao grupo de oposição comunista. Hipólito foi requisitado para ser capitão da Coluna Motorizada do POUM. Inicialmente Mika ficou na retaguarda, cuidando dos feridos, junto a outras mulheres por ordens de Hipólito. Mesmo para ele, homem culto e consciente das suas capacidades, não lhe agradava ver as mulheres de sua milícia na frente de batalha, principalmente sua companheira. Assim, por sua ordem, ela ficou na organização da retaguarda, responsável pelos cuidados médicos, limitada à prática do assistencialismo.

Fonte: commons.wikimedia.org

Com o apoio dos milicianos e milicianas, Mika decidiu assumir a milícia após a morte de Hipólito em 16 de agosto de 1936 (ferido no coração na batalha de Atienza), mas a situação era desesperadora. Ao contrário do marido, descrito por ela como um eterno otimista, Mika mostrava-se mais realista perante a situação. No entanto, acreditava que ali tinham a responsabilidade de frear o avanço dos fascistas e levar adiante a revolução social. A falta de armamento adequado, a responsabilidade pela integridade física e de manter acesas as esperanças daqueles milicianos tão jovens, alguns meninos e meninas de apenas 14 anos, era uma constante preocupação para ela.

Além das vitórias conseguidas pela “Coluna Motorizada do POUM” sob o comando de Mika, as notícias corriam também sobre o modo como sua capitã se comportava diante das situações de perigo e sobre o modo como ela dirigia sua coluna promovendo a igualdade entre homens e mulheres, seguindo as diretrizes do POUM – e suas próprias. Este comportamento levou muitas milicianas que estavam em outras colunas, sabendo da igualdade de direitos que promovia a capitã Etchebéhère, a se ofereceram como voluntárias na milícia de Mika, por saber que lá as mulheres teriam o direito de lutar.

Após o combate de Siguenza e o cerco à catedral, Mika passou um tempo em Madri e depois em Paris. Devido ao casamento com Hipólito, que era filho de franceses, ela obtém a cidadania francesa, o que futuramente a salvaria das prisões stalinistas e fascistas. Enquanto estava em Paris, continuou trabalhando pela revolução organizando reuniões para a apresentação de filmes, sobretudo dos combates de Siguenza. Mika fez palestras explicativas aos cidadãos franceses buscando apoio da classe operária para a união em defesa da revolução. Mas o que chega da Espanha desanima, as notícias recebidas da imprensa a deixam preocupada: “As notícias sobre a guerra na Espanha são doídas”. As milícias continuam fugindo diante do avanço franquista.

Ao voltar de Paris, no início de novembro, desta vez para Barcelona, Mika confirma as notícias anteriormente recebidas: a situação está cada vez mais difícil para o lado republicano, “não há esperança para Madri,” a capital já havia sido transferida para Valência. Neste período, a milícia do POUM foi dividida em duas companhias e o comando de uma delas composta, na maioria, por sobreviventes de madrilenos – que, por sua vez, sobreviveram ao cerco da catedral foi entregue à Capitã Etchebéhère.

Mesmo com a militarização das milícias e posterior volta das mulheres para a retaguarda, Mika Etchebéhère continua no comando, sendo a única mulher a ter o comando de tropas do Exército republicano. Mesmo que não soubesse sobre táticas de guerra, nem tampouco ler mapas militares, o fato não assustava os homens e mulheres que ela comandou, estes sempre demonstraram confiança e orgulho em combater sob suas ordens. Na verdade, nem mandar sabia, afirmou certa vez que não necessitava mandar, já que os homens tinham total confiança em seu poder de decisão e não contestavam suas ordens. Mesmo com todos os problemas enfrentados, a fama da Capitã Etchebéhère chegou ao Alto Comando da República.

O respeito que os homens sentiam por ela crescia ainda mais. Os milicianos sob seu comando também se preocupavam com ela, em muitos momentos achavam incrível que uma mulher pudesse resistir às durezas das trincheiras. A maioria dos seus comandados eram espanhóis e para eles era estranho ver mulheres em situações como esta, conhecendo todas as situações difíceis e a dificuldade da vida que sempre levavam as mulheres. Além desse, outro ponto chamava a atenção deles: Mika era estrangeira. Tanto ela como seu marido, além de tantos outros homens e mulheres estrangeiros que lutaram e morreram em várias frentes de batalha, despertaram a admiração dos operários e camponeses espanhóis. Outro ponto de admiração era que Mika não se preocupava apenas com a saúde física da milícia, preocupava-se também com o conhecimento. Organizou uma escola e uma biblioteca com doações de livros obtidos em Madri e, quando a situação se mostrava calma, dava aulas para os integrantes da milícia e os incentivava a ler.

Mesmo com todos os esforços da coluna da Capitã Etchebéhère, assim como de tantas outras que combateram pela revolução social e todos os benefícios que traria para a classe operária e camponesa, a contrarrevolução venceu. Após isso a derrota para o fascismo, cujo resultado foram prisões lotadas, centenas de torturados, milhares de mortos e feridos, centenas de exilados. Durante a perseguição stalinista, Mika foi presa, mas por poucos dias. Seu passaporte francês a salvou de uma nova prisão, quando os franquistas tomaram Madri, depois disso refugiou-se em Paris e de lá voltou para a Argentina. Em 1976, ao escrever sua autobiografia recordou-se de todos aqueles meninos e meninas que, em muitas situações, depositaram suas vidas nas mãos dela. Continuou a defender sempre seus ideais revolucionários até sua morte em 1992. Mika Etchebéhère nunca voltou a se casar e, até seu falecimento, conservou o capote e a arma de Hipólito como um troféu, a lembrança mais viva de suas paixões, Hipólito e a revolução 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Ângela Mendes de. Revolução e Guerra Civil na Espanha. 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1987. (Tudo é História)

ETCHEBÉHÈRE, Mika. Mi Gerra de Espana. Barcelona: Alikornio Ediciones. 1984. 

FERNANDEZ, Adriana Martinez. Rojas: La Construcción de la Mujer Republicana en la Memoria de España. Revista Eletrônica ALPHA, n. 22. jul. 2006. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/CHCO/article/view/CHCO0707220035A/6747  Acesso em: 24/03/2023.

MARTÍNEZ, Rosa Maria Capel. De Protagonistas a Represaliadas: la Experiencia de las Mujeres Republicanas. Cuadernos de Historia Contemporánea, 2007. Disponível em: https://www.revistaalpha.com/index.php/alpha/article/view/538/537. Acesso em: 24/03/2023

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Cultura e Identidades através das Festas Religiosas no Tocantins: Um Olhar Multidisciplinar

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A cultura de um povo é fundamentada através de diversos elementos como comportamentos, crenças, valores e linguagem, ou seja, tudo que une um povo pode ser considerado cultura. Em um país de grande diversidade como o Brasil vemos várias expressões culturais que são próprias de cada região. Entendendo que expressões culturais são tão diversas, procuramos, neste momento, um elemento que pudesse traduzir este sentimento e chegamos à tradição das festas religiosas no Estado do Tocantins. As festas religiosas são eventos carregados de tradições locais, que na maioria das vezes nos trazem elementos dos povos colonizadores, e celebram divindades importantes para a cultura local.

Neste contexto, o EnCena entrevistou o professor Valdir Aquino Zitzke, natural de Pelotas, RS. Cursou Licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Rio Grande do Sul em 1995 onde também fez Mestrado em Educação Ambiental em 1998. Em 2007 fez doutorado em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Hoje, é professor do curso de Geografia da Universidade Federal do Tocantins (UFT), trabalhando com Geografia Cultural e das Religiões, também atua com Educação Ambiental e Educação do Campo com ênfase em Pedagogia da Alternância.

(En)Cena: Como você entende/avalia como o cotidiano religioso do Tocantins interfere na vida/cotidiano das pessoas?

Valdir Zitzke: Nós temos uma predominância de pessoas que se afirmam cristãos: católicos, pentecostais e neopentecostais e uma pequena parcela se identifica ou participa de cultos e doutrinas de outras matrizes. Podemos perceber que as religiões querem interferir ou interferem, em maior ou menor intensidade, o cotidiano das pessoas no sentido de mudar comportamentos, atitudes e a imposição de valores um tanto questionáveis. Aqui é preciso diferenciar religião de fé e espiritualidade: enquanto a religião é uma construção humana, dependente da fé ou da crença das pessoas e vivenciada no coletivo, a fé e a espiritualidade independem da religião e podem ser vivenciadas na intimidade. As religiões interferem no cotidiano das pessoas no sentido de prendê-las àquela igreja e aos valores morais que ela defende e tenta impor, mas não se preocupam com a realidade social das pessoas uma vez que não se preocupam em divulgar valores sociais ou éticos em relação aos demais: são irmãos entre si, na igreja, mas não são irmãos dos outros. Um exemplo dessa interferência no cotidiano das pessoas pode ser observado nos comportamentos das igrejas, no Tocantins, com a “arminha” tão presente nas fotos divulgadas nas redes sociais, a ira e raiva ao se referir a certos candidatos políticos, seja na defesa ou seja na acusação, e a falta de empatia com ao mais necessitados, considerando que o Brasil apresenta milhões de pessoas passando fome. Não se vê campanha nas igrejas para isso e nem obras sociais para amparar essas pessoas.

(En)Cena: Sobre o profano e o sagrado, o quão profano existe nas festas religiosas no Tocantins?

Valdir Zitzke: Em toda festa religiosa o profano está na mesma medida que o sagrado: no centro da festividade está o sagrado, representado pelo santo ou santa (imagem ou bandeira) e tudo que está ao seu redor é considerado profano, uma vez que não está no centro: as comidas, as bebidas, os corpos, as danças, os leilões, os adornos das festas, o luxo etc. As festas brasileiras, desde o Brasil Colônia, se caracterizam pela abundância de comida, bebida e dança, por isso a denominação de Festa, e não procissão: a devoção ao santo se faz, também, com alegria. 

(En)Cena: Você, enquanto geógrafo, consegue perceber aspectos psicológicos nos devotos das festas religiosas no Tocantins? Quais?

Sim, principalmente nos atos de devoção e fé. Um exemplo disso é a fila que se forma para “beijar” a bandeira do Divino Espírito Santo na saída e na chegada das folias: as pessoas aguardam sob sol forte a oportunidade de ajoelhar, agradecer, pedir, fazer promessas. A demonstração da fé ali acontece a cada ano e é muito esperada pelos devotos. Em termos mais específicos, se observássemos pelo viés das emoções, verificamos a alegria nas saudações; a tristeza (choro) por um ente que partiu mas que está “sob os cuidados do Divino”; a determinação para organizar as festas, que não são baratas; a gratidão em contribuir para fazer as comidas e as bebidas (licores). Outro aspecto é a participação das famílias nos eventos: existem famílias tradicionais que “formam” foliões; famílias que se organizam para preparar as comidas; famílias que se envolvem na parte estética das festas (decoração, elementos, adornos específicos, cores, etc.). As festas se constituem, além de reverenciar o santo, num acontecimento social, onde as famílias se aproximam, também, para trocas sociais: negócios, namoros, manutenção da ordem e a organização social. Podemos perceber um entrelaçamento de muitas dimensões, como as emoções envolvidas nos diferentes atos da dramatização da festa; das necessidades que as pessoas possuem de participar na forma de devoção e fé e de pagamento de promessas por uma graça recebida, ou mesmo, pedir uma graça; nos comportamentos e atitudes demonstradas na festa, como respeito, resignação, dedicação; na tradição que muitas famílias e pessoas demonstram  e na força desta tradição para, anualmente, realizar a festa e a memória, individual e coletiva, de um grupo social envolvido, direta ou indiretamente. Memória e tradição são duas categorias muito fortes nas festas e delas decorrem muitas emoções e sentimentos por parte das pessoas, promovendo mudanças ou alterações psicológicas.

(En)Cena: Você consegue perceber mudanças nos aspectos religiosos com o advento da modernidade nas festas religiosas? Quais?

Valdir Zitzke: É perceptível que a modernidade, principalmente as redes sociais, tem interferido diretamente sobre os jovens fazendo com que eles não se interessem pela manutenção da tradição das festas. Este fato gera, muitas vezes, conflitos familiares, pois, os pais desejam que seus filhos ocupem a mesma função que eles desempenham, e que herdaram de seus pais e avós. Algumas funções, antes masculinas, estão, aos poucos, sendo ocupadas por mulheres, mesmo com resistência, pois os jovens da geração atual não querem mais participar.

 

(En)Cena: Sendo as festas no Tocantins, em sua maioria, de tradição católica, quais aspectos de papéis de gênero são percebidos?

Valdir Zitzke: As festas religiosas são predominantemente católicas, no contexto do catolicismo popular. Sendo uma religião que polariza o masculino e o feminino, define, também, as funções e atribuições de cada gênero. Exemplos: cabe às mulheres a elaboração da comida, mas aos homens a função de abater e limpar os animais e a manutenção dos fornos para assar pães, bolos e biscoitos; apenas homens compõem as folias e os Congos; apenas mulheres compõem as taieiras nas festas de Nossa Senhora do Rosário; as cortes real e imperial são compostas por casais.

(En)Cena: Qual o atual cenário relacionado ao respeito à diversidade religiosa, em sua opinião?

Valdir Zitzke: Ainda se percebe muita intolerância em relação a religiões de matriz afro-brasileira, como umbanda e candomblé. A falta de interesse de entender seus rituais e devoções gera a intolerância e a condenação a partir da fé de quem ignora. Esse movimento de intolerância é percebido muito mais nas igrejas pentecostais e neopentecostais, que tem numa interpretação muito específica de Deus, muitas vezes, com predomínio das leituras do Velho testamento, que aborda muito mais a história do povo hebreu na sua origem, do que na mensagem de amor, tolerância, humildade, empatia e respeito pelo diferente disseminada por Cristo. E, mesmo, não cumprindo a essência contida nas mensagens do Cristo, se autodenominam Cristãs.

(En)Cena: Do ponto de vista do monoteísmo e do politeísmo, qual o modelo que tenderia a ampliar mais a flexibilização mental de seus praticantes?

Valdir Zitzke: É difícil considerar o politeísmo num país de formação católica desde sua ocupação, o predomínio do politeísmo, mesmo se considerarmos os orixás do candomblé e da umbanda: são divindades, não são deuses. A falta de compreensão desta premissa gera confusão. Acredito que, pela tradição brasileira, com forte predomínio católico e, atualmente, pentecostal e neopentecostal, todos autodenominados cristão, seria muito difícil, do ponto de vista psicológico, substituir um universo religioso que possui um único Deus, por outro onde estão presentes diversos outros Deuses.

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“Red – Crescer é uma Fera” e importância das redes de afeto na adolescência

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Há muito tempo os filmes vêm sendo utilizados para análises psicológicas e neste contexto as animações estão entrando com uma expressiva força. A exemplo de Divertida Mente (Disney, 2015) que pode ser considerado um divisor de águas para as análises psicológicas, sobretudo na fase de passagem para a adolescência, a bola da vez é a animação Red: Crescer é uma Fera (Disney, 2022). O filme tem como plano central a puberdade da menina Meilin Lee, carinhosamente apelidada de Mei-Mei, de 13 anos, uma adolescente “praticamente uma adulta” como ela se coloca no início do filme e as intensas transformações da puberdade. O filme em si possui imensos campos de análises psicológicas e antropológicas: explora relações familiares (conflitos mães/filhas), bullying, papéis de gênero, movimentos imigratórios, bem como tradições orientais.

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Mei-Mei e sua representação das emoções da adolescência.

Mei-Mei é de origem chinesa e mora com sua família em Toronto, Canadá, é uma adolescente dedicada aos estudos e a família. Participa das tradições religiosas no templo de sua família, fonte de renda familiar, gosta de garotos e boybands, sofre bullying na escola por ser uma “nerd”, mesmo assim procura ser sucesso em todas as atividades escolares, afinal, deve sempre ser a melhor aluna, o que provoca intenso orgulho para sua mãe. Sua mãe é apresentada como a típica mãe superprotetora, invasiva e devoradora que não consegue enxergar sua filha como uma menina em fase de transição, é a eterna criança que deve ser protegida de qualquer ameaça mesmo que esta ameaça não exista. Ao vermos inicialmente o filme nos desperta certa antipatia por aquela mãe que submete a filha a situações vexatórias e ridículas em nome da proteção de quem ela se refere como um “bebê inocente”.

Mesmo com todas as situações que a mãe de Mei-Mei a faz passar ela não consegue se impor de modo algum para não decepcionar sua mãe. Aquela mãe que controlava tudo. Percebe-se que a figura da mãe foi construída daquela maneira justamente para sentirmos a antipatia inicial. Uma mulher sisuda, sóbria e fechada que dominava a casa e a família com mão de ferro e quer controlar todos os passos e atitudes da filha. Até descobrimos que ela própria foi também filha de uma mãe devoradora, reproduzindo o ciclo. Tema de uma futura análise.

Tudo ia indo de maneira normal na vida de Mei-Mei até o momento que um dia ela acorda transformada em um incrível panda gigante vermelho. Esta foi a alegoria escolhida para representar as mudanças da puberdade, a chegada da primeira menstruação e a descoberta da libido. Todas as emoções confusas e conturbadas desta fase da vida são demonstradas através da transmutação em panda. Mas mesmo com todas as conturbações e emoções desconhecidas, lidar com as cobranças familiares, e o bullying sofrido, Mei-Mei conseguia se remeter ao que mais a acalmava: seu grupo de amigas.

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Mei-Mei e sua rede de afeto.

Mei-mei conta com um inseparável grupo de três amigas que são sua rede de apoio e a ajudam a enfrentar as perturbações e emoções desconhecidas. Cada uma das meninas tem suas personalidades próprias e seus dramas pessoais, mas as paixões, os sentimentos, os gostos pela música e bandas típicas da fase da adolescência são compartilhados por elas. Segundo Assis e Avanci (2004) a convivência dos adolescentes com sua rede de apoio emocional é de fundamental importância para o seu desenvolvimento psicológico. Eles aprendem a conhecer o mundo além de sua rede familiar e podem perceber que o mundo é além do que apenas sua casa, aprendem sobre desejos, autoconfiança, decepções e podem estabelecer objetivos de vida.

Ao se deparar com emoções descontroladas, Mei-Mei se transforma naquele panda gigante e para voltar ao seu estado normal ela deve se ater a calmaria, conseguida apenas ao pensar em suas amigas, seu grupo de apoio, seu ninho de tranquilidade e segurança que encontra apenas naqueles abraços calorosos. Este também é um momento de lutas internas para a menina que sempre deseja a aprovação da mãe, pois para a mãe seu lugar de conforto e segurança deveria ser seu colo, não entendendo que o colo materno é sim importante, mas na fase da adolescência não é o suficiente.  Percebe-se com o filme como os amigos podem ajudar a fornecer um espaço seguro para experimentar novas ideias e comportamentos. Eles podem fornecer conselhos e perspectivas diferentes das dos pais e outros adultos significativos na vida do adolescente, permitindo uma maior compreensão do mundo ao seu redor. Além disso, os amigos podem desempenhar um papel importante na construção da autoestima e confiança oferecendo suporte em momentos difíceis ajudando a aliviar o estresse.

A adolescência é um período da vida marcado por mudanças físicas e psíquicas que ocorrem de modo abrupto, mudanças essas muito difíceis de lidar, mudanças que são vividas não só pelo adolescente, mas, por toda a família. O luto pela perda do corpo infantil, pela perda dos pais ideias: “Sabe quando você olha para as fotos antigas e fica feliz, mas também fica triste porque tudo mudou”. A fala da personagem simboliza bem a forma como passamos por estas transformações, nossa tristeza ao perceber que não somos mais crianças e que agora tudo será diferente em nossas vidas, a luta por aceitação pelos pares, as pressões familiares para ser “alguém na vida”, a descoberta da sexualidade. Sim, adolescentes também têm libido e este ponto fica claro no filme de forma simples e sutil. Fato totalmente impensado pelos seus pais. Para a mãe de Mei-Mei, que invade sua intimidade lendo seu diário e descobre que a menina tem um interesse amoroso, típico da adolescência, julga que “seu bebê” foi seduzida por aquele “marginal sedutor de crianças”.

 Interessante perceber que o panda sempre aparecia quando as emoções eram afloradas, emoções boas ou ruins. Deste modo vemos que emoções adolescentes são tão intensas quanto mutáveis e sim, é normal. O panda era um imenso desconforto para sua família, panda este que apenas sumia quando Mei-Mei se concentrava no que mais a fazia feliz e a reportava a tranquilidade e segurança, e qual seria este lugar? Certamente sua mãe julgava que seria em seus braços, afinal era sua mãe quem mais a amava e protegia, mas neste momento que nos deparamos com os longínquos pensamentos de Mei-Mei e seu lugar feliz repleto de segurança e conforto: o abraço de suas amigas. Era lá e apenas lá que ela conseguia o equilíbrio e a segurança para se concentrar e controlar aquelas emoções (panda) que tanto a afligiam.

 No decorrer do filme descobrimos que todas as mulheres da família de Mei-MEi sofriam com a mesma “maldição” do panda, inclusive sua mãe. A figura segura e controladora também fora a menina desprotegida que não conseguia controlar suas emoções e sensações. Em se tratando de uma animação infantil obviamente temos um final feliz com Mei-Mei aceitando suas emoções, seu panda interior, e fazendo as pazes com sua mãe e finalmente aceita que seu “bebê” está crescendo e também aceita lidar com as mudanças que são próprias da vida. A alegoria final foi a despedida de Mei-Mei para a mãe e os sorrisos para suas amigas para se divertiram em seus programas típicos da fase, como se finalmente conseguisse dizer adeus a sua infância e saudado sua nova fase de vida, mesmo que esta fase seja totalmente difícil e intensa.

Referências:

ASSIS, SG., and AVANCI, JQ. Os adolescentes, os amigos e a escola: caleidoscópio de imagens sobre o ‘eu’. In: Labirinto de espelhos: formação da autoestima na infância e na adolescência [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. Criança, Mulher e Saúde collection, pp. 129-159. ISBN 978-85-7541-333-3. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://books.scielo.org/id/vdywc/pdf/assis-9788575413333-06.pdf. Acesso em: 05/03/2023

CARNIER, A. Análise psicológica do filme “Red: Crescer é uma Fera”. Saúde Interior. Disponível em: https://saudeinterior.org/analise-psicologica-do-filme-red-crescer-e-uma-fera/.  Acesso me: 06/03/2023.

CARVALHO, R. B. Et. Al. Relações de amizade e autoconceito na adolescência: um estudo exploratório em contexto escolar. Estudos de Psicologia I Campinas I 34(3) I 379-388 I junho – setembro/ 2017. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.scielo.br/j/estpsi/a/n5xVR6z3nMqY9NPTXZLwzJg/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 05/03/2023.

 FILIPINI, C. B. Et. Al. Transformações físicas e psíquicas: um olhar do adolescente. Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 22-29, jan/mar 2013. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://cdn.publisher.gn1.link/adolescenciaesaude.com/pdf/v10n1a04.pdf. Acesso em: 05/03/2023.

NOBRE, A. F. Resenha do filme Red: Crescer é uma Fera. Disponível em: https://labdicasjornalismo.com/noticia/10986/resenha-do-filme-red-crescer-e-uma-fera. Acesso em: 06/03/2023.

OLIVEIRA, A. Conflitos Familiares e Amigos e a Influencia na Construção na Identidade do Adolescente. Portal dos Psicólogos. ISSN: 1646-6977. 2015. Disponível em: efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A0933.pdf. Acesso em: 05/03/3023.

ROSA, N. Crítica: Red, Crescer é uma Fera. Sobre Crescer e Abraçar quem você é. Disponível em: https://canaltech.com.br/entretenimento/critica-red-crescer-e-uma-fera-211678/. Acesso em: 06/03/2023.

VIEIRA, L. Feminilidade, amadurecimento e família – Resenha de Red: crescer é uma fera. Diponível em: https://wp.ufpel.edu.br/empauta/feminilidade-amadurecimento-e-familia-resenha-de-red-crescer-e-uma-fera/. Acesso em: 06/03/2023.

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Por que somos monogâmicos? Reflexões sobre a prática da monogamia em nossa sociedade

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O ideal do relacionando monogâmico obtendo como final feliz o casamento
Fonte: pixabay.com.br

Afinal, por que somos monogâmicos? Refletir sobre a prática da monogamia e não-monogamia em uma sociedade mononormativa carregada de valores patriarcais e de estereótipos de gênero é uma tarefa de certo modo difícil. Podemos responder a pergunta inicial com uma simples frase: “porque é o certo!”. Mas de onde veio o conceito de certo ou errado na forma de se relacionar afetivo-sexualmente? Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar que esta reflexão não se refere a determinar o que é certo ou errado nos padrões de relacionamentos, mas sim, abrir o debate sobre a forma de relacionamentos possíveis. 

Desde sempre nos é ensinado modos de nos relacionar em sociedade, assim, entende-se que comportamentos sócio-afetivos-sexuais nos são ensinados. Em uma sociedade baseada em valores patriarcais, religiosos, heteronormativos é difícil pensar que existem outras possibilidades de nos conectar afetivo-sexualmente com o outro. Para ser feliz precisamos: crescer, estudar, casar, ter filhos. Esta é a norma que nos é ensinada. E de onde vem esta norma?

Nossa primeira reflexão parte da ideia do amor romântico que foi popularizado no século XIX o qual pode nos ajudar a entender a atual monogamia como norma de relacionamento. O amor romântico é entendido como uma construção sociocultural advinda dos romances trovadorescos do século XI onde o amor era idealizado como o sublime da perfeição. O amor cortês jamais seria alcançado pois era considerado a sublimação da perfeição. Este conceito foi disseminado através de poemas e peças teatrais que encantavam o espectador de modo a desejar aquele amor para si, perseguindo este desejo por toda sua vida. O romance Tristão e Isolda, história medieval originada da literatura celta e popularizada na literatura francesa no século XII, representa bem este sentimento. 

Voltando ao século XIX, a literatura nos mostra vários exemplos de romances tendo como plano central a luta pelo amor: heteronormativo, branco, burguês. Valores estes tão bem representados na literatura onde o casal lutou durante toda a história para ficarem juntos no final, claro, ao conseguirem finalmente o “casamento” a história acabava. Afinal, Capitu traiu Bentinho? Esta é a indagação que persiste até os dias atuais, uma vez que seria impensado, até para os dias de hoje, Capitu amar Bentinho e Escobar, pois a norma se baseia na tese mononormativa de que só é possível se relacionar com uma pessoa e principalmente para as mulheres. 

O século XX trouxe a popularização do cinema e os grandes clássicos hollywoodianos mantendo o mesmo ideal de amor, onde o casal deveria sempre optar por uma pessoa para amar e se relacionar para o resto de suas vidas. A popularização do cinema invadiu classes socioculturais diversas e atingiu todas as faixas etárias com as adaptações dos contos de Grimm pela gigante do entretenimento Disney e a famosa figura da princesa encantada que deveria esperar seus príncipes para que finalmente tivesses sua salvação de uma vida de maus tratos. Mesmo que o perfil das princesas Disney tenha mudado com o tempo, animações como Frozen e Moana representam bem estes perfis, ainda se persiste a figura da princesa que precisa necessariamente encontrar seu par, casar e “ser feliz” no castelo nas nuvens. 

Em contraposição ao ideal masculino de ter sua “princesa” que deveria ser a imagem de um “anjo”, figura idealizada como dócil, terna, feminina e obviamente virgem, o “príncipe”, forte, másculo, protetor e atencioso foi idealizado através de personagens a exemplo dos filme Ghost, do Outro Lado da Vida ou Top Gun, Ases Indomáveis, com trilhas sonoras marcantes para fixar ainda mais no público o ideal romântico que perpetuam no imaginário coletivo como grandes exemplares de pares perfeitos, ou seja, o amor romântico idealizado e sobretudo, único e exclusivo, até mesmo após a morte.   

O advento da internet e a popularização das redes sociais tem nos influenciado e hoje a figura dos “influencers” ditam como devemos nos comportar. Fotos e vídeos de casais “perfeitos” fazem com que o grande público anseie por uma vida igual e o mesmo modelo de mononormativo de relacionamento. Se por um lado a popularização das redes sociais continua reafirmando um modelo de relacionamento mononormativo percebe-se também que o discurso tem se ampliado e hoje vemos o debate de relacionamentos não-monogâmicos como formas válidas de se relacionar afetivo-sexualmente. Debates que seriam impensáveis há algumas décadas. Hoje, podemos ver uma crescente onda de relacionamentos não-monogâmicos como o poliamor, relacionamentos abertos, swinger e outras práticas e modelos de relacionamentos.

Mesmo com a abertura do debate sobre variados tipos de relacionamentos ainda observa-se que o assunto está envolto de tabus e preconceitos.  Ao examinar alguns comentários em posts e reels que se referem aos relacionamentos não-monogâmicos a maioria das pessoas se posicionam de maneira agressiva e/ou crítica e dirigem comentários como: “falta de maturidade”, “se quer liberdade não namore/case”. O que revela que o assunto deve ser cada vez mais debatido e normalizado.

Atualmente podemos observar diferentes formas de se relacionar
Fonte: pexels.com.br

Podemos então creditar o costume ocidental da monogamia apenas ao ideal de amor romântico? Na verdade, é difícil dizer que uma norma socialmente aceita é debitada apenas a um fator e este texto se propõe a realizar reflexões, deste modo, a segunda reflexão que propomos tem relação a questões ligadas a fatores econômicos. 

Durante o desenvolvimento das sociedades humanas houveram mudanças de costumes e desde que se descobriu como ser social os indivíduos se relacionam de diversas maneiras. Em sociedades nômades, há milhares de anos, acreditava-se que as mulheres engravidavam por influência de poderes divinos, não havia o ideal de família nuclear e os filhos eram responsabilidade de toda a tribo. A partir do momento que se entendeu que as mulheres engravidavam através de relações sexuais com homens, houveram novos arranjos pois viu-se que as mulheres poderiam assegurar sua maternidade e aos homens ficava a dúvida. (Almeida, 2021).

A partir daí começou-se a definir relações exclusivas para se assegurar a paternidade e o direito de herança. Este foi a tese levantada pelo economista, filósofo, sociólogo e jornalista alemão Friedrich Engels em sua obra A origem da Família da Sociedade Privada e do Estado (1884), onde ele explica a formação da família nuclear e monogâmica pela ótica da sociedade capitalista, sendo assim, não seria possível outro modelo de família (relações afetivas/sexuais) que não assegura a manutenção da propriedade privada através da certeza da paternidade. 

Segundo Engels a família era uma forma de organização social baseada na cooperação e na comunidade de bens, onde não se tinha a noção de propriedade privada e a relação entre homens e mulheres eram igualitárias. Com o desenvolvimento das forças produtivas e da agricultura, a propriedade privada surgiu como forma de controlar os recursos naturais, o trabalho humano gerou a divisão da sociedade em classes e a exploração do trabalho humano gerou a divisão da sociedade em classes e divisão de papéis sexuais, onde os homens seriam responsáveis pelo sustento e proteção e as mulheres seriam as responsáveis pelos trabalhos familiares e a manutenção dos filhos e da casa, embora a necessidade de trabalho pesado ainda continuaram como tarefa feminina. 

Desta forma, as sociedades igualitárias e comunitárias foram sendo substituídas pela norma de famílias nucleares e mononormativa, assim, não haveria a possibilidade de dúvidas quanto à paternidade e o direito à herança estaria garantida aos filhos legítimos. Outro fator importante envolve o ideal patriarcal de assegurar, além do patrimônio (capital) que a mulher fosse também uma propriedade masculina ficando ligada ao homem através do casamento e da maternidade. Mas, e quanto às famílias de classes econômicas mais baixas que não teriam patrimônio a ser passado? O que se argumenta é que além do capital financeiro a sociedade que tem o patriarcado como base, mesmo sem herança para ser passada para as futuras gerações, o peso da continuidade, ou seja, “meu filho levará meu nome” sendo este considerado também um patrimônio a ser passado. 

Chegamos, então, ao final destas reflexões com o intento de abrir e ampliar o debate sobre o modo como as pessoas se relacionam afetivo/sexualmente. Podemos então responder a pergunta inicial deste texto, por que somos monogâmicos? Entendemos que há muitas questões envolvidas e este texto discute apenas duas delas, há ainda muito a ser discutido e podemos e devemos nos questionar: Afinal, há uma norma? Esta norma pode/deve ser pensada/discutida? Por que devemos aceitar que nos relacionamos de maneira que outras pessoas acreditam ser o certo?  Por que não podemos nos relacionar com quem ou como nos sentimos melhores/completos? Afinal, nascemos para sermos felizes e a forma como nos relacionamos afetivo/sexualmente é de grande importância. 

Referências: 

ALMEIDA, A. L. de. Contribuições da Psicologia Social Acerca da Monogamia Compulsória. Belo Horizonte. 2021. 24p. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://jornaltribuna.com.br/wp-content/uploads/2021/06/AS-CONTRIBUICOES-DA-PSICOLOGIA-SOCIAL-ACERCA-DA-MONOGAMIA-COMPULSORIA.pdf. Acesso em: 18/02/2023. 

AMORIM, P. M. DE. REIS, D. B. DOS. Monogamia e identidade: Considerações Psicanalíticas. Ágora (Rio de Janeiro) v. XXIII n.2 maio/agosto 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/5yCbk7g9Lt7j5qjd7wBFPyp/?lang=pt . Acesso em: 20/02/2023. 

ENGELS, F. A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Ruth M. Klaus. São Paulo. Centauro. 2002

GONÇALVES, I. V. Matemática dos afetos, dissensos e sentidos sociais acerca das

noções de “monogamia” e “não-monogamia”. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF v. 16 n. 3 Dezembro. 2021 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print). Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/34430 . Acesso em: 19/02/2023.

VIEIRA, E. PRETTO, Z. Mulheres não monogâmicas: Trajetórias em uma sociedade Mononormativa. Repositório Universidade RUNA. Dezembro/2021. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/20369 . Acesso em: 19/02/2023. 

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