
Autor: Parcilene Fernandes
Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.

Sem sentido

Dogville: rabiscos de uma comunidade
Lars von Trier recriou um mundo bem real, ainda que sua cidade fosse um rabisco no chão, como as cidades criadas nas brincadeiras infantis. Dogville é formada por uma pequena comunidade pós quebra da bolsa de valores de 1929, ou seja, um povo que vive o fim de uma utopia fincada nos ditames das maravilhas e da indestrutibilidade do sistema capitalista. A comunidade que reside em Dogville parece saída de algum lugar bem familiar, talvez porque as agregações humanas não sejam assim tão diferentes.
Então, em meio a pessoas fracassadas, crianças domesticadas, mulheres e homens permeados por um ideal moralizante de suas vidinhas “mais ou menos”, surge Grace. Bonita, inteligente, sensível, mas só. A comunidade se sente superior àquela criatura graciosa e a noção de grupo dá certa segurança aos indivíduos, então no momento em que Grace adentra a cidade, ela percebe-se a mercê daquele povo, aparentemente simples e acolhedor. Tom, o escritor fracassado que a conduz na cidade, é uma figura mesquinha, que na busca pela história perfeita constrói um meio de ludibriar sua pequenez e sua paixão sem limites pelo sucesso e reconhecimento. Talvez dos personagens do filme, ele seja o que tenha menos empatia com o próximo, seja o mais egoísta membro da comunidade.
Ao intervir numa comunidade, o psicólogo necessita compreender o ambiente, conviver com as pessoas, saber o que move a comunidade, seus medos, seus ideais, suas verdades e, especialmente, suas mentiras. Um ponto comum nos agregados humanos é a questão do trabalho e como se dá sua natureza. Grace, para se aproximar das pessoas, aceitou a sugestão de Tom e entregou-se a pequenos trabalhos na comunidade. Tais trabalhos, mesmo que desnecessários inicialmente, foram se tornando essenciais para as pessoas e, vale ressaltar que tal dinâmica, de certa forma, sempre aconteceu no mercado, ou seja, as necessidades são criadas por meio de ações midiáticas, da cultura etc. Ou seja, criam-se as necessidades e, a partir disso, modificam-se as estruturas da sociedade, já que o trabalho sempre foi um norteador desta. Grace se pôs a serviço da comunidade evitando enxergá-la de fato. Se um psicólogo adentrar numa comunidade com esse mesmo pensamento corre o sério risco de também ser “usado” por esta, como o foi Grace.
Na visão crua de Lars von Trier, a comunidade mostra sua face ao entender o poder que tem em mãos, ou seja, ao descobrir que Grace é uma fugitiva. Assim, os pequenos trabalhos realizados por ela são intensificados. Várias são as exigências do grupo e, como Grace está tendo o conforto de ser acolhida no seio da comunidade, mesmo sendo claramente uma “infratora”, deverá agradecer à bondade humana, por mais estranha e contraditória que esta seja.
Um outro ponto evidenciado em Dogville, até pela própria estrutura do cenário, é a questão da coletividade ser mais intensa que o indivíduo. Mesmo no interior das casas é possível ver o coletivo, então cada gesto individual se faz importante na concepção do todo. Não há figurantes em Dogville, todos estão em cena o tempo todo. Isso também faz com que uma das imagens mais cruéis do filme tenha seu horror potencializado.
No momento em que Grace é estuprada, crianças brincam nas ruas, as pessoas se alimentam em suas casas, conversam animadamente sobre assuntos corriqueiros. Mas, ninguém vê. Um observador do aspecto cinematográfico do filme poderia dizer que apesar da não existência das paredes, segundo a concepção estrutural do diretor, há um ambiente fechado, logo eles não poderiam ver mesmo. No entanto, a mensagem que permanece e que causa constrangimento é o fato de que a comunidade sabe o que acontece, mesmo que não veja o momento do ato. Mas, às vezes, os grupos se fecham diante de um fato constrangedor, pois enxergar nem sempre é uma atitude coerente em um ambiente moralista, mas enganador.
Tom, aquele que a certa altura do filme se mostra apaixonado por Grace, sabe do estupro, mas se cala, pois ele precisa da dor para ter a inspiração ideal para seu livro. No entanto, a história que irá lhe tirar da pobreza imaginativa em que vive, não vem. Porque não há dor em Tom, já que não há empatia. Na frieza na qual ele transita pelos espaços que compõem a comunidade, permanecem sempre duas palavras no papel, mas nenhuma história.
A comunidade mostra-se hábil na especialização da tortura. O homem estúpido de outrora consegue construir uma mirabolante máquina de encarceramento para manter Grace cativa e obediente. Presa, despida de quase toda a humanidade, ela fica à disposição da comunidade. Psicólogos podem também achar que estando à disposição das pessoas, estejam fazendo o que é correto, estejam contribuindo. Mas, só há contribuição, se há entendimento das ações e do seu retorno.
Não se pode dar a um grupo o caminho de uma felicidade imaginada por você. Pode-se, no máximo, contribuir na formação de um olhar crítico, pois o psicólogo não pertence à comunidade, ele vai embora. Quem fica tem que ter sido tocado pelo sentimento provocativo da vontade de mudar, de melhorar, de enxergar suas potencialidades, mas também suas fraquezas. O povo de Dogville errou, foi de uma crueza absurda, mas Grace também contribuiu para tal horror ao enxergar um tipo de gente que só existia em sua imaginação, ao pensar que poderia contribuir com aquele povo sofrível simplesmente por ser de uma classe superior, por ter uma visão de mundo mais “complexa”.
Ao final, vimos uma Grace com ódio, pois ela teve dificuldade em entender que o espelho que refletia o mundo que ela via, só refletia sombras. E sombras deturpadas pela parca visão que ela tinha do mundo “dos outros”. Ao entender que as pessoas por serem simples e miseráveis, não são, necessariamente, nem puras, nem boas, ela sentiu ódio e daí nasceu o desejo da vingança, sentimentos tão humanos, mesmo para uma Grace que se imaginava tão superior.
O cachorro foi poupado, porque o cachorro tinha motivos para odiá-la, tinha motivos para latir com ela. Já o povo de Dogville, maltratou-a sem motivos, fez dela uma espécie de propriedade da comunidade. Grace foi explorada, violentada, tiraram-lhe a humanidade e a “coisificaram” simplesmente porque tinham o poder para tal. Grace, filha de gângster, que imaginava transformar o mundo em um local melhor, que se sentia tão diferente de seu pai, já que pensava transformar a si mesma através da vivência numa sociedade simples, não resistiu à pressão de ver um mundo diferente daquele imaginado em seus devaneios altruístas, então o destruiu, pois nem sempre é possível suportar um outro diferente daquele que foi imaginado por nós.
Um psicólogo que intervém numa comunidade precisa compreender que ele e a comunidade não são meros objetos que em dado ponto irão sofrer uma intersecção. Tanto um quanto o outro têm desejos, medos, regras morais, pré-conceitos e um conjunto particular de verdades e mentiras. O trabalho na comunidade requer um amadurecimento da ideia de que não há um salvador que irá livrar o povo do sofrimento, nem que o grupo esteja sofrendo os desígnios de um Deus (ou um demônio) cruel e implacável, mas sim de que tanto o psicólogo quanto a comunidade devem aprender juntos, devem buscar uma colaboração mútua.
Assim, quando o psicólogo partir, não estará deixando para trás uma imagem decepcionante de um povo fraco e infeliz, nem a imagem reconfortante de um povo simples que precisa dos seus préstimos e seu eterno amor. O que ficará para trás, se o trabalho for bem desenvolvido, é uma comunidade mais consciente de seu lugar no mundo, mais crítica, menos submissa e, talvez, mais humana.
Nota: Texto apresentado na disciplina Psicologia Comunitária (Curso de Psicologia / CEULP). O ensaio em questão teve como premissa a realização de uma analogia entre a intervenção de um Psicólogo em uma comunidade e a entrada de Grace em Dogville.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
DOGVILLE
Título original: Dogville
Direção: Lars Von Trier
Roteiro: Lars Von Trier
Elenco: Nicole Kidman, Harriet Andersson, Lauren Bacall, Jean-Marc Barr, Paul Bettany;
País: França
Ano: 2003
Gênero: Drama

Rumo ao inverno de Sara
O diretor Darren Aronofsky conduziu o filme Requiem for a Dream como se fosse uma ópera. Tendo esse conceito inicial, dividiu-o em estações de forma literal, ou seja, o filme inicia-se no Verão, passa depois para o Outono, finalizando-se no Inverno. Cada estação é construída, especialmente, através da psique dos quatro personagens principais. Essa análise terá como foco a personagem Sara Goldfard, justamente por ser – das personagens apresentadas – a mais impactante (ao menos, para mim).
Sara Goldfard é uma senhora solitária, de meia idade, viúva, tem um único filho e passa a maior parte do seu tempo assistindo à TV, sua mais fiel companheira. A TV é usada como a droga necessária para sua sobrevivência solitária, sem esperança e objetivos concretos. Como uma ode ao claro verão do Brooklin, o filme é iniciado. Ainda nesse momento, Sara tem como vício apenas sua TV e, a partir desse vício, começa a elaborar sonhos antagônicos à sua reduzida realidade.
O verão da vida de Sara é iluminado por um telefonema. Nele, ela é convidada a participar de seu programa favorito. Diante disso, sua vida passa a ter um novo sentido, agora já não é somente mais uma viúva solitária, ela vai aparecer em um programa de televisão e o vislumbre dessa imagem é maior que qualquer imagem que ela poderia pensar em construir (se tivesse força para dar os primeiros passos rumo a isso). Com o convite, vira celebridade entre suas companheiras de “banho-de-sol”. Em virtude de seu novo status de celebridade emergente, ganha até um local especial durante as tardes de sol na porta do prédio. Esse é o estopim para a nova obsessão que se forma em sua mente. Agora ela precisa voltar a ser a mulher que vestiu o vestido vermelho. Esse vestido representa uma época em que seu marido existia, que seu filho era um promissor rapaz recém-formado do ensino médio. Representa, de certa forma, tudo aquilo que ela perdeu, que vinha à tona somente por intermédio de lembranças longínquas.
A Sara que ela via no espelho estava com um peso acima do padrão estabelecido pelo vestido vermelho. Não tinha nem mais a beleza de outrora. Mas, a esperança de ser alguém através da luminosidade atraente da tela da TV, deu-lhe forças para iniciar uma mudança radical em seu corpo (o que resultaria numa mudança em sua vida, pensava ela). Como deixar os doces que lhe davam alento era uma atitude que requeria uma força que ela não tinha, seguiu o conselho das senhoras do prédio e foi ao médico na esperança de que ele lhe desse uma saída mais fácil. O médico, mostrando a frieza de alguns profissionais da área que dão pouco ou nenhuma relevância ao contexto no qual vive seu paciente, receitou-lhe umas pílulas mágicas que lhe permitiriam o emagrecimento tão sonhado. Essa nova Sara, com esperança, objetivos, show de TV e pílulas milagrosas e que negava-se a enxergar o vício do seu próprio filho (e sua própria situação) era a figura que fechava o verão para iniciar um ciclo que desencadearia numa fragmentação quase total de sua “triste figura”.
É outono. E isso é constatado não somente nas folhas caídas pelo chão, mas pelos restos dos personagens principais desta história jogados no abismo de suas próprias vidas. As pílulas de anfetaminas, que a princípio ajudaram a consolidar o sonho do vestido vermelho, começaram a surtir o efeito devastador que advém de sua ingestão sem controle e exagerada. A mulher do vestido vermelho, ao invés de parecer mais próxima com a significativa perda de peso, assemelha-se mais a um borrão distante na mente da Sara. Sua existência pacata foi transformada num show de horrores e a esperança deu lugar ao delírio. A Sara que a cada semana comprava sua própria televisão – continuamente vendida pelo seu filho drogado – ainda espera o convite para participar do programa, que parece ser tão ilusório quanto a mudança de vida trazida pelo adentrar-se no vestido vermelho. A droga e seu efeito tranquilizador e facilitador para algumas ações, agora é o botão que aciona as alucinações (não mais interessantes) em sua mente. Por causa da própria miséria que compõe sua existência, ela insiste no aumento do consumo das anfetaminas para tentar apaziguar algo que já saiu do seu controle. Esse algo é sua própria mente, sua capacidade de discernir entre o real e o fantasioso, sua capacidade de lutar para a sustentação da sua unicidade e identidade. A Sara torna-se parte de sua casa obscura. É parte da geladeira que a assombra, do programa que antes a divertia e que agora a atormenta, ou seja, a Sara é seu próprio delírio.
Há um momento em que o sonho passa a ser um veneno para a saúde mental? Se existe, como identificá-lo? Há vida saudável perante um contexto doente? Há algo que possa ser feito para mudar o rumo de nossas próprias vidas se tivermos sujeitado o nosso organismo a determinadas substâncias? O diretor do filme não tenta responder a nenhuma dessas perguntas de forma literal. Apresenta em seu Inverno não um gabarito simples para perguntas muitas vezes estúpidas, mas um ambiente trágico e seco, cruel e devastador, como é o final da maioria das grandes óperas.
O inverno de Sara é o fim de sua esperança. É a constatação de sua doença mental pelas poucas pessoas que a cercam. Uma doença obviamente exponencializada pelo vício nas pílulas mágicas, mas iniciada muito antes, através da solidão, do medo, das promessas advindas da televisão (ainda que acreditar nisso tenha sido apenas um reflexo das duas primeiras situações). É nesse cenário devastador que a caminhada de Sara rumo ao sucesso almejado em participar de um programa de TV chega ao fim. Em seu delírio no hospital psiquiátrico, ela ainda sonha com o vestido vermelho, com o show que prometia ascensão social, com seu filho bem sucedido vindo ao seu encontro, com uma vida que não lhe pertence, mas que permanece vívida em algum local de sua conturbada mente.
Texto apresentado na disciplina Bases Biológicas do curso de Psicologia do CEULP
FICHA TÉCNICA DO FILME
Réquiem para um sonho (Requiem for a Dream, EUA, 2000)
Gênero: Drama
Duração: 100 min.
Elenco: Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly, Marlon Wayans, Christopher McDonald, Louise Lasser, Keith David, Sean Gullette
Compositor: Clint Mansell
Roteirista: Hubert Selby Jr.
Diretor: Darren Aronofsky

No subsolo com Dostoiévski
O escritor russo Dostoiévski escreveu Memórias do Subsolo na segunda metade do século XIX e a obra foi publicada pela primeira vez em 1864. É um livro denso, narrado em primeira pessoa, por um sujeito não nomeado (um dos poucos personagens de Dostoiévski que apresenta tal característica), de 40 anos de idade, cuja vida parece ser um eterno deslizar de significados sem sentido. Para uma melhor condução do texto, denominarei o personagem principal de Homem do Subsolo.
Arte: Bruna Thabata Ribeiro de Souza
O Homem do Subsolo tem dilemas e angústias atemporais, logo o fato do livro ter sido escrito no século XIX não implicará um distanciamento das vivências contemporâneas. O livro é dividido em duas partes: a primeira parte tem relação com o subsolo, que é, de certa forma, uma metáfora do inconsciente e a segunda parte é a narração que o personagem faz de alguns fatos de sua juventude (por volta dos 24 anos). Ao final, é realizada uma exposição breve sobre a existência no tempo atual do personagem (já na idade na qual ele se encontra).
A maior dificuldade em analisar uma figura saída de um romance de Dostoiévski reside no entendimento que a maior parte de seus personagens tem de suas angustias, medos, fraquezas, maldades, em suma, de sua essência. Assim, o Homem do Subsolo não é um sujeito alienado de sua própria natureza ou que pensa ser uma formiga (de forma literal) ou que acredita ser o dono da verdade (de forma absoluta). Ele é apenas alguém que resolveu compartilhar suas memórias e escrever sobre os pensamentos que ocupam sua mente na maior parte do tempo. Assim, se não há a necessidade de ajudá-lo a ter uma compreensão de si próprio (já que ele parece fazer isso muito bem, ainda que ele próprio compreenda que muito do que ele é dificilmente possa ser trazido à tona), torna-se complexo inferir quais das suas funções psíquicas possuem algum tipo de alteração (se é que existam tais alterações).
Na juventude, o Homem do Subsolo foi assessor colegial (um posto mediano da administração civil, no regime czarista) e tinha em seu chefe de seção um amigo, ainda que tal amizade se resumisse a uma necessidade de ambos em ter um ouvinte esporádico, mesmo que pouco ou nada compartilhassem de fato. Siétotchkin (o chefe de seção) era um senhor de meia idade que morava com suas duas filhas e as tias destas. Em uma das poucas passagens do livro que tem tal relação como foco, o Homem do Subsolo assim se pronuncia:
“Mas só ia visita-lo quando atingia aquela fase, quando os meus devaneios me traziam tamanha felicidade que me era inevitável e imediatamente necessário abraçar as pessoas e toda a humanidade; e, para este fim, necessitava contar ao menos com uma pessoa que existisse realmente.” (p. 73)
O Homem do Subsolo é um solitário. Uma pessoa que ficou órfã ainda criança e que foi enviado a um colégio interno onde teve péssimas experiências. Vive em meio a um eterno paradoxo: ao mesmo tempo em que acredita ser uma pessoa esclarecida, extremamente inteligente (até superiormente inteligente), a vida cotidiana com suas minúcias e necessidades simplórias mostra-lhe o quão ele está distante da imagem de homem bem sucedido projetada pela sociedade.
Vale ressaltar que um Homem do Subsolo não existe apenas como resultado de uma determinada sequência de DNA. É necessário que se entenda o contexto no qual tal história foi erigida, mesmo que a dimensão psicológica desse romance existencial extrapole qualquer tempo ou espaço. Como o livro foi escrito no século XIX, em meio ao apogeu da Revolução Industrial e do Sistema Capitalista, do abandono de explicações metafísicas e da supervalorização do pensamento positivista, é interessante o fato de ele ser uma crítica à supervalorização da razão e da lógica. Nesse ínterim, as palavras do Homem do Subsolo mostram o quão tal preocupação exacerbada da sociedade em viver em prol de uma racionalidade delimitada e de uma lógica inflexível podem causar a fragmentação de indivíduos que vivem à margem de tal sistema.
Após essa breve contextualização do personagem, seguir-se-á a realização do exame de algumas das suas funções psíquicas. Para tanto, trechos citados por ele serão apresentados.
Contradição
“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. […] Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. […] Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.” (p. 15)
Nesse ponto é possível compreender os pensamentos contraditórios que permeiam a existência do personagem principal. Há, também, na forma irônica do seu discurso, a necessidade de refutação de toda e qualquer verdade absoluta, mesmo que essa verdade seja defendida por ele próprio. Ao mesmo tempo em que ele afirma algo, constrói, em seguida, uma refutação. É um escárnio ou uma forma de permanecer no subsolo, já que por mais que ele traga à tona suas memórias, ainda vive no subsolo e precisa manter certas verdades (mesmo que transitórias) submersas.
“Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida…” (p. 16)
A grande dificuldade em analisar uma personagem de Dostoiévski é que eles, muitas vezes, já compreendem seus próprios demônios e nos apresentam a fragilidade de seus discursos elegantes em nome de mentiras bem construídas. O Homem do Subsolo sabia que vivia com máscaras presas à face, só não tinha noção de como era seu rosto sem elas.
Inteligência
“Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem.” (p. 17)
“… tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta. […] Finalmente, sou culpado porque, mesmo que houvesse em mim generosidade, eu teria com isso apenas mais sofrimento devido à consciência de toda a sua inutilidade.” (p. 21)
“… talvez o homem normal deva mesmo ser estúpido.” (p. 22)
“Todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; isto é de fato o mais importante.” (p. 29)
A partir desse argumento, inicia-se um discurso recorrente sobre sua superioridade intelectual, ainda que ele desconstrua tal superioridade a todo o momento. Isso porque mesmo que sua aparente exacerbada inteligência seja motivo de orgulho, também é uma forma de tortura. Pois o homem prático, de natureza idiotizada, acalma-se mais facilmente com suas ações vazias e pela substituição das suas causas primeiras por causas secundárias, sem tanta importância.
Então, até poderia ser suscitado que há a ocorrência de alteração do Juízo da Realidade, na forma de um Delírio de Grandeza. No entanto, a maneira como ele próprio desconstrói essa sua superioridade intelectual, faz com que tal pensamento não tenha força suficiente para ser definido como delírio.
Consciência
“Uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.” (p. 18)
“Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que é ‘belo e sublime’, tanto mais me afundava em meu lodo, e tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo.” (p. 19)
“Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados”. (p. 29)
Aqui o Homem do Subsolo mostra que sua inteligência e sagacidade ao invés de lhe trazer melhores condições de vida, torna-o ainda mais submerso. A consciência, nesse caso compreendida como o entendimento das coisas, ao invés de potencializar sua ação em busca de uma melhoria de vida, exponencializa sua inércia perante a realidade na qual está inserido. Esse entorpecimento da ação pode ser um potencializador de um sentimento depressivo, já que uma das funções psíquicas afetadas é a Atenção, mais especificamente uma diminuição da atenção “passiva” (hipovigilância), pois ele quase não muda de foco, tendo em vista que as descobertas de certas verdades tiraram-lhe o desejo de buscar novos caminhos e, por outro lado, propicia o aumento da atenção “ativa” (hipertenacidade), ou seja, a inércia constitui o foco principal de sua atenção.
Ciência e Lógica
“A própria ciência há de ensinar ao homem que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. […] Todo os atos humanos serão calculados, está claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua de logaritmos.” (p. 37)
“… meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?!” (p. 38)
“Não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida. […] E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada.” (p. 41)
“Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer, enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo”. (p. 41)
“Ter o direito de desejar para si mesmo algo nocivo e estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente”. (p. 42)
“… continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição – de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão -, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu!” (p. 44)
“Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade.” (p. 45)
“… na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora. Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontra-lo realmente… juro por Deus, tem medo. […] Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar de fato, nem sempre. E isso, está claro, é ridículo ao extremo. […] Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável.” (p. 47)
“Dois mais dois são quatro” representa uma impossibilidade de mudança perante os fatos da natureza. A lógica que há em tudo parece extinguir qualquer fagulha de livre arbítrio que há no homem. A existência desse axioma (que é, de certa forma, representado pela vitória da razão) pode incitar no personagem a alteração na função psíquica Humor e Afeto, já que tal ação pode ser capaz de provocar-lhe a alteração do humor denominada Ansiedade, pois há um enorme desconforto perante as evidências de que tudo está preso a uma lógica, assim ele não vê uma saída para o futuro, pois “dois mais dois são quatro” mesmo sem a sua vontade.
Essa ideia do imperativo da lógica como fonte de alienação do indivíduo pode, em alguns contextos, ser considerada uma alteração do conteúdo do Pensamento, já que pode ser compreendida como uma Ideia Prevalente, dada a recorrência de tal pensamento em forma de um loop profundo.
O Jovem Homem do Subsolo
“Eu tinha apenas 24 anos. Minha vida já era, mesmo então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. […] Notei bem que os meus colegas não só me considerava um tipo original, como até – tinha esta impressão continuamente – pareciam olhar-me com certa aversão. […] Atualmente, percebo com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar.” (p. 55, 56)
Em um primeiro momento acreditei que ele poderia ter uma alteração no Juízo da Realidade, em forma de um Delírio de Referência, dado o fato que ele acreditava constantemente que os outros estavam zombando-o ou criticando-o. Mas, o entendimento dele (ainda que só aos 40 anos) de que, na verdade, o olhar dos outros sobre ele era uma projeção de seu próprio olhar, fez a ideia do delírio cair por terra.
“Torturava-me o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. ‘Eu sou sozinho, e eles são todos’, dizia de mim para mim, e ficava pensativo.” (p. 58)
Essa crença pode ser representada por uma alteração do conteúdo do Pensamento, o Juízo da Realidade, em forma de uma Ideia Deliróide, pois há uma convicção por parte do personagem de que estará sempre sozinho, sempre afastado de todos os outros, sem nunca encontrar uma equivalência ou, ao menos, um semelhante.
“… ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim. (p. 57)
“Sempre tive consciência deste meu ponto fraco e, às vezes, temia-o ao extremo: ‘Exagero em tudo, e é isto que me faz capengar’”. (p. 126)
“Era o cúmulo do suplício, uma humilhação incessante e insuportável, suscitada pelo pensamento, que se transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante todo aquele mundo, mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta e mais nobre que todos os demais, está claro, mas uma mosca cedendo sem parar diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida.” (p. 66)
“Mais ainda: no mais intenso paroxismo da febre do medo, sonhava sobrepujá-los, vencê-los, arrastá-los, obriga-los a amar-me; bem, ainda que fosse ‘pela elevação das ideias e pelo meu indiscutível espírito’”. (p. 84)
Em alguns trechos do livro é possível verificar a mudança de humor e afeto na relação que ele tem com as pessoas e na representação dessas pessoas para ele. Observa-se na “fala” da personagem a falta de esperança, a desmotivação, a descrença no ser humano e um constante sentimento de negatividade, além de uma vida social limitada e conturbada. Apesar de ser visto como uma mosca (asqueroso, desnecessário e vil), acreditava que da caverna reluzente e límpida na qual viviam os outros, as sombras que se formavam diante de seus olhos “lógicos” eram ainda mais enganosas. Já no subsolo, sombras e coisas confundiam-se e fundiam-se, mas quem ali vivia era capaz de distinguir tais intersecções e as formas percebidas assemelhavam-se mais àquilo que ele entendia como real.
Amor / Tirania / Desesperança
“Eu e você… nos unimos… ainda há pouco, e nem uma palavra dissemos um ao outro, e, depois, você ficou a examinar-me como uma selvagem; e eu a você, também. É assim que se ama? É assim que uma pessoa deve unir-se a outra?” (p. 108)
“É que você… fala como se estivesse lendo um livro”. (p.113)
“Eu não sabia falar de outro modo a não ser ‘exatamente como um livro’”. (p. 119)
“Acostumara-me a tal ponto a pensar e a imaginar tudo de acordo com os livros, e a representar a mim mesmo tudo no mundo como eu mesmo anteriormente compusera nos meus devaneios, que então nem compreendi imediatamente aquele estranho fato. E eis o que sucedeu: ofendida e esmagada por mim, Liza compreendera muito mais do que eu imaginara. Ela compreendera de tudo aquilo justamente o que a mulher sempre compreende em primeiro lugar, quando ama sinceramente, isto é, compreendera que eu mesmo era infeliz.” (p. 139)
“… amar significava para mim tiranizar e dominar moralmente. […] O amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. […] Queria que ela sumisse. Queria ‘tranquilidade’, ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar.” (p. 142)
“Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos o fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia.” (p. 146, 147)
No trecho supracitado, pode ser observada uma alteração quantitativa da Afetividade, com a diminuição na intensidade e duração dos afetos (hipotomia), bem como na incapacidade que o personagem tem de formular respostas afetivas adequadas e pela própria rigidez afetiva apresentada em vários momentos do texto (hipomodulação).
E, por fim, podemos ser levados a acreditar em uma alteração do Juízo da Realidade, na representação da ideia delirante denominada Niilista. Isso é evidenciado na constatação final do Homem do Subsolo de que somos natimortos, de que não sabemos mais ser gente no sentido real da palavra, de que o futuro é obscuro, especialmente pela grande probabilidade do fato observável e concreto eliminar o desejo e da razão sobrepujar qualquer outra manifestação de sentimento humano.
Com os fatos apresentados acima, é ainda complexo inferir uma patologia, pois seria por demais simplório apontar a Depressão, por exemplo. Mesmo porque as alterações nas funções psíquicas apresentadas não podem ser confirmadas apenas com o que foi citado pelo personagem, há uma carência de informações e dados para uma análise mais minuciosa e com um maior grau de certeza.
A princípio, ousei acreditar que ele não apresenta alteração de função psíquica alguma, apenas tem que lidar com reflexões que sua mente trouxe à tona do subsolo quando, na verdade, seriam mais saudáveis que permanecessem submersas. O personagem tem noção de tudo que vive, até os delírios seguem uma lógica de difícil refutação por outras pessoas. A única questão apresentada no livro que considero extremamente complexa e, por vezes, doentia é o sentimento exacerbado de inveja. Essa característica fez-me crer que ele não está suportando tão bem os fatos que emergiram do subsolo. E, se há uma recorrente manifestação de sua inabilidade em lidar com seus pensamentos, então talvez uma patologia ou já esteja enraizada nele ou a caminho. Mas, não há nada que garanta que tais sentimentos ou pensamentos transformar-se-ão em uma patologia de fato. Talvez seja mais prudente a compreensão de que o ato de viver signifique encontrar formas de lidar com nossa percepção do mundo, mesmo que esta percepção advenha de sentidos construídos a partir de fatos que possam refutar muito daquilo que uma dada cultura e época entendam por normalidade.