O sofrimento pela finitude em ‘Amour’

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Com cinco indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Diretor (Michael Haneke),
Atriz (Emmanuelle Riva), Roteiro Original (Michael Haneke), Filme Estrangeiro

“Vai durar até o dia em que acabar.”

Há filmes que apresentam a morte de forma poética, mas este não é o caso de Amour. Nele, a morte, observada em um velho apartamento elegantemente decorado, é apresentada da primeira até a última cena do filme de forma cruel, inevitável, lenta e libertadora. Além desse personagem, há o casal que passa a viver sob sua sombra: Georges e Anne. Dois músicos aposentados que compartilharam uma imensa vida juntos e que agora, sozinhos, tentam percorrer o último caminho de um deles, o que equivale a dizer: o último caminho de ambos.

Os objetos dispostos nos vastos cômodos do apartamento mostram a forma elegante e simples do cotidiano do casal. Assim, quando Anne sofre um derrame e uma cama de hospital fria e destoante do resto do cenário é incorporada ao seu lar, tem-se o início da vitória da dor sobre a calmaria e a rotina. E isso fica evidenciado na forma com que o diretor conduz as cenas, mostrando em tomadas longas e abertas a amplidão solene dos cômodos e as cores sóbrias dos móveis. A constatação de que os objetos que vivem no ambiente parecem inalterados diante do vendaval de emoções do casal fornece-nos uma sensação ainda mais complexa de derrota e finitude. É quase possível ouvir o som de uma valsa triste conduzindo os gestos minimalistas que caracterizam o sofrimento profundo gerado pelo entendimento do fim, sem artifícios ou fantasias.

Em Amour há dois tipos de morte: aquela que ocorre quando não há mais pulso e uma outra, ainda mais complexa e obscura, que tira do indivíduo o sentido da sua existência, mesmo que seu corpo frágil e sua mente confusa ainda permaneçam no mundo de alguém. A grande angustia de Anne era ser esse tipo de realidade para Georges, para sua filha e netos, ser apenas uma sombra da mulher que existiu, uma sombra disforme que não é capaz de acompanhar os movimentos imaginários de um corpo parado, uma sombra sem linguagem, mas com emoção demais para existir no silêncio e na escuridão.

A resiliência de Georges e a insistência em manter sua esposa no lar que compartilharam grande parte da vida refletem a profundidade do amor que os une. É a força desse sentimento que torna o filme suportável, pois há momentos em que a impossibilidade de ação de Georges diante da angustia de Anne é tão intensa, claustrofóbica e dilacerante, que seria mais fácil desistir do filme, afinal, como disse Anne em uma conversa com seu marido: “imaginação e realidade têm pouca coisa em comum”. Assim, parece mais reconfortante imaginar um universo e, a partir disso, criar um contexto menos real, porém mais familiar, do que suportar um mundo que, apesar de ser a imagem e semelhança dos que vivem nele, nem sempre lhes dá um campo verde e calmo para descansar.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

AMOUR

Título Original: Amour
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Elenco principal: Emmanuelle Riva, Jean-Louis Trintignant, Isabelle Huppert

Alguns Prêmios:
Palma de Ouro de Melhor Filme no Festival de Cannes
Prêmio de Melhor Filme Europeu de 2012, Melhor Diretor, Melhor Ator (Jean-Louis Trintignant) e Melhor Atriz (Emmanuelle Riva) – Academia Europeia de Cinema
Melhor filme e Melhor Atriz (Emmanuelle Riva) – Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles
Melhor Filme Estrangeiro do Círculo de Críticos de Cinema de Nova York

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Indomável Sonhadora: um poema sobre a infância

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Com quatro indicações ao Oscar:

Filme, Diretor (Benh Zeitlin), Atriz (Quvenzhané Wallis), Roteiro Adaptado (Lucy Alibar e Benh Zeitlin)

“Sempre, em todo lugar, todos os corações batem e bombeiam.
E conversam de forma que não entendo.”

“Beasts of the Southern Wild” é um poema sobre a infância, com versos crus e estrofes que terminam bruscamente, sem as amarras do politicamente correto ou dos limites da nova ordem mundial a respeito do que é ser saudável e humano. O filme é narrado por Hushpuppy, uma menina de seis anos, inteligente, observadora, forte e com um grau de imaginação que somente se alcança na infância, quando a percepção ainda não foi totalmente domesticada.

“Os animais fortes sabem quando estão com o coração fraco.”

Hushpuppy vive com o pai em um lugar fictício chamado “Banheira”, nos arreadores da cidade americana New Orleans. As pessoas que vivem nesse lugar parecem formar uma espécie de comunidade primitiva, em negação ao progresso e as inventividades do homem moderno. Sabem que a Banheira brevemente será inundada e pouco ou nada restará do seu lar, mas parecem preferir viver o presente e aceitar o futuro sem luta, mas, também, sem fuga.

A menina cria um universo dentro do seu mundo e nele, às vezes, animais pré-históricos a perseguem. Isso acontece quando algo a faz sofrer ou perturba a lógica do seu cotidiano, é uma forma indireta de reação àquilo que não compreende, ou compreende quando devia não compreender. Assim, se o pai some por dias, os animais começam a persegui-la. Se o pai sente dor ou a afasta para que ela não o veja morrer, novamente eles se fazem presente. É uma forma lírica de lidar com o sofrimento, talvez seja a única maneira possível.

“Posso contar com dois dedos as vezes que me carregaram.”

Quvenzhané Wallis, a pessoa mais jovem a concorrer a um Oscar de Melhor Atriz (na época das gravações do filme ela nem tinha completado seis anos), vive cada cena de forma tão intensa que impressiona e comove. Ela consegue mostrar todo o universo da Hushpuppy, desde sua solidão, expressa em seus diálogos imaginários com a roupa da mãe, até na sua capacidade de sobreviver às tormentas (não somente as literais). A menina é uma força da natureza: persistente, otimista e com um entendimento tão profundo do seu mundo que foi capaz de fazer amizade até com os monstros criados em sua mente, pois, afinal, entendeu que eles também são parte dela.

Para os animais sem pais que os coloquem num barco, o fim do mundo chegou.

No mundo de Hushpuppy, duas coisas são relevantes: seu pai e seu lar. O pai, mesmo sem uma educação formal ou aquilo que definimos como “bons modos”, tenta lhe ensinar a única coisa que sabe: sobreviver. E a menina compreende que o pai está partindo, por isso o desespero em entender porque os corações batem, mais especificamente porque param de bater. Em uma das cenas do filme, quando a comunidade, logo depois de um grande temporal, é resgatada por um grupo da cidade, e vão todos para um hospital, Hushpuppy tem o primeiro vislumbre do que é viver em um mundo moderno. Então, quando ela percebe que parte das pessoas que vive ali está presa a tubos, diz: “aqui, quando um animal fica doente, eles o ligam na parede.”. O pai foi trazido ao hospital para ser um daqueles animais ligados à parede, ela sabe disso, assim, entende (em algum nível) que ele brevemente vai morrer.

“Quando tudo fica quieto atrás dos meus olhos, vejo cada coisa que me fez voar por lugares invisíveis. Se me esforço em distingui-los, desaparecem. Mas quando tudo se aquieta, vejo que estão aqui. Vejo que sou uma pequena peça de um grande universo. Então sinto que assim deve ser. Quando eu morrer, os cientistas do futuro vão encontrar tudo isto. Vão saber que uma vez existiu uma Hushpuppy que viveu com seu pai na Banheira.”

A saga de Hushpuppy e seu pai é uma história sobre amor, devoção, força e esperança. Muitas vezes, em meio à velocidade de uma época em que quase tudo é breve, frágil e mutável, esquecemos que algumas coisas, para existirem, precisam de tempo e espaço. Um tempo cada vez mais escasso para ser usado livremente no exercício da imaginação. Talvez estejamos em um contexto em que cobrir o que já vem pontilhado seja o máximo de diversão possível, assim quem sai do círculo que molda a forma pode ganhar, como prêmio, uma categorização no extenso manual que define o que não é saudável e bom.

 

FICHA TÉCNICA

INDOMÁVEL SONHADORA

Título Original: Beasts of the Southern Wild
Direção: Benh Zeitlin
Roteiro: Lucy Alibar e Benh Zeitlin
Elenco principal: Quvenzhané Wallis, Dwight Henry.

Alguns Prêmios:
AFI Awards – Filme do Ano
Austin Film Critics Association – Filme e Artista Revelação (Quvenzhané Wallis)
Broadcast Film Critics Association Awards – Melhor Atriz/Ator Jovem (Quvenzhané Wallis)
Cannes Film Festival – Caméra D’Or (trófeu dedicado aos estreantes em longa metragem)
Hollywood Film Festival – Atriz (Quvenzhané Wallis)
Sundance Film Festival Grand Jury Prize

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A Hora Mais Escura: o mal é uma saída necessária

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Com cinco indicações ao Oscar:

Filme, Atriz (Jessica Chastain), Roteiro Original (Mark Boal), Edição, Edição de Som

 

No escuro da tela, ouve-se uma ligação, é a gravação real de um telefonema para a emergência no 11/09/2001. A última frase que ouvimos da pessoa é “estou queimando”.  Muda-se o foco, agora aparece um galpão em algum lugar do Paquistão e o que vemos é uma cena de tortura, um americano falando metodicamente que quer ouvir a verdade, uma pessoa de capuz assistindo a cena e mais dois encapuçados puxando as cordas que prendem os braços do prisioneiro.

Quando Zero Dark Thirty estreou em Dezembro de 2012 nos EUA gerou muita polêmica, em especial, por mostrar cenas de tortura praticadas por integrantes da C.I.A. (A Central de Inteligência Americana). E a impressão que se tem é de que a premissa principal do filme gira em torno do fato de que o Interrogatório Reforçado (ou seja, aquele na qual se usa a tortura como um meio para se chegar a um fim) foi a peça principal na descoberta do esconderijo de Osama Bin Laden e na sua consequente morte.

A minuciosa pesquisa jornalística do roteirista Mark Boal e da diretora Kathryn Bigelow (ambos ganhadores do Oscar em 2010 pelo filme “Guerra ao Terror”) sobre os acontecimentos em torno da “Caçada ao Osama” produziu um filme com uma sequência de fatos tão reais que tem provocado um grande desconforto em alguns membros do Senado e da CIA.

 

 

O filme conta a história a partir do ponto de vista de Maya (uma agente da CIA – um personagem que representa uma composição de algumas figuras reais). Maya muitas vezes é a única figura feminina em cena, mas sua forma, paradoxalmente, passional e lógica de conduzir o caso acabou fazendo com que ela se tornasse a mentora por detrás do quebra cabeças de fatos que conduziram à morte do Bin Laden.  Na primeira cena de tortura que ela acompanhou, o prisioneiro tentou apelar para os seus sentimentos, talvez julgando que uma figura feminina tivesse mais complacência. Mas, de maneira impassível, Maya apenas disse a ele o que o outro agente já havia falado: se não quiser ser torturado, fale a verdade.

As cenas de tortura presenciadas ou conduzidas por Maya são uma ode ao horror: espancamentos, humilhação, privação de sono, confinamento em caixa, afogamento. Para Maya, não há tempo para pensar na natureza de tudo aquilo, ela executa as ações que julga serem relevantes para alcançar seu objetivo: encontrar Osama. Graças à brilhante interpretação de Jessica Chastain, podemos acompanhar através de suas expressões sutis, especialmente do seu olhar, a angústia do personagem, desde sua tentativa de permanecer impassível até sua nítida perda de controle em alguns momentos. Mas, Maya tem que acreditar que a sua complacência perante a dor do outro tem que ser menor que seu objetivo final e ela acredita, foi treinada para isso.

Depois de 12 anos de busca, de muitas mortes (inclusive de amigos da CIA), Maya finalmente consegue comprovar que sua principal pista, um mensageiro da Al-Qaeda, ao contrário do que diziam outros agentes, estava vivo e poderia levá-los ao Bin Laden. Desta forma, ela consegue encontrar provas suficientes para que o alto escalão autorizasse um ataque aéreo surpresa e uma invasão na casa que, em tese, estaria Osama.  Quando, na reunião repleta de homens, o chefe de departamento da CIA pergunta quem é a mulher sentada na parte mais distante da sala, ela mesma responde: “I am the motherfucker that found the place,sir”.

 

 

A reconstrução de toda a operação realizada na casa na qual estava escondido Bin Laden é primorosa.  Enquanto crianças choram, mulheres se desesperam, homens são assassinados, o corpo de uma pessoa envelhecida cai ao chão. Bin Laden muda de status: da figura mais procurada pelo Governo dos EUA passar a ser o corpo inerte no terceiro andar. Então, colocam-no em um saco e levam-no para a sede da CIA no Paquistão.

 

 

E, assim, Maya fica diante daquilo que foi seu objetivo de vida durante 12 anos. Com uma expressão de quem está assustada pelo fechamento de um ciclo, ela se aproxima do corpo do Osama e confirma sua identidade.  Finalmente, a busca chegou ao fim, então ela entra em um avião e ouve-se uma voz: “Deve ser muito importante, tem um avião só para você. Para onde quer ir?”

Ela nada responde. Talvez com a morte do Bin Laden, não haja mais um objetivo, nem um lugar para ir.

 

 

Mais do que uma história sobre as consequências do fundamentalismo, do imperialismo político ou do fanatismo religioso, esse filme mostra como podemos nos acostumar com o mal e aceitá-lo como uma saída necessária em alguns dilemas. Muitas vezes, as categorizações que se formam em torno daquilo que assumimos como justiça, verdade ou moral podem ser responsáveis por criar cruzadas que vão além da nossa possibilidade de discernimento entre o bem e o mal. Talvez porque a maior parte dos dilemas não se encontra em um polo distinto de uma abstrata linha moral, e sim em trânsito entre uma coisa e outra.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

A HORA MAIS ESCURA

Título Original: Zero Dark Thirty
Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco Principal: Jessica Chastain, Jason Clarke, Jennifer Ehle, Mark Strong, Kyle Chandler e Reda Kateb.

Alguns prêmios:
AFI Awards – Filme do Ano
Austin Film Critics Association – Melhor Filme
Broadcast Film Critics Association Awards – Melhor Filme, Melhor Atriz (Jessica Chastain), Melhor Edição, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original
Golden Globes – Melhor performance de uma Atriz em um filme – drama (Jessica Chastain)

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O Lado Bom da Vida e a busca para além do final feliz

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Com oito indicações ao Oscar:

Nas quatro categorias de atuação (algo raríssimo): ator (Bradley Cooper), atriz (Jennifer Lawrence), ator coadjuvante (Robert De Niro) e atriz coadjuvante (Jacki Weaver). E, ainda, Filme, Diretor (David O. Russell), Roteiro Adaptado (David O. Russell), Edição.

“O lado bom da vida” é uma boa surpresa na lista dos filmes indicados ao Oscar. É de difícil classificação, assim, poderíamos dizer que é uma comédia romântica em alguns aspectos e uma comédia sombria em outros, mas, de uma forma geral, fala sobre o amor, a loucura e a superação. O filme inicia-se com a saída do personagem principal, Pat Solitano Jr (o ótimo e lindo Bradley Cooper), de uma instituição para doentes mentais. Ele foi diagnosticado com transtorno bipolar e costuma agir, em momentos de stress, de forma agressiva, além de construir pensamentos delirantes quando se sente inseguro. Esse conjunto de fatores resultou em uma série de ações que desencadearam em sua internação.  Solitano tem um pai obcecado por organização e por fatos de jogos, o que contribui para alimentar suas superstições. Seu pai é uma pessoa com boas intenções, observadora, mas também com algumas conturbações sociais advindas do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).  Nesse cenário ENCENA (saúde mental em movimento rs), eis que temos o início de um romance atípico, mas interessante.

Pat passa a primeira parte do filme lembrando aos pais, ao amigo e a qualquer pessoa que se aproxima dele que seu desejo em ser uma pessoa melhor está relacionado à vontade de reconquistar sua esposa. Em meio a seus devaneios sobre o amor até Hemingway é torturado (ou melhor, o seu livro). Pat, em sua tentativa de ver o lado bom da vida, não entende o motivo que, até na Literatura, que é ficção (logo, pode ser mais facilmente manipulada), a felicidade não é tão comumente retratada. Então, em um ataque de fúria, não apenas pelo escritor, mas pelo contexto que compõe a vida, perde, momentaneamente, seu frágil equilíbrio, e o ódio por Hemingway produz uma das melhores (e mais hilárias e tocantes) cenas do filme.

O tempo todo você torce para o tal Hemingway sobreviver à guerra e ficar com a mulher que ele ama, Katherine Barkley. E ele consegue. Consegue. Ele sobrevive à guerra. Depois de se explodir, sobrevive e foge pra Suíça com Katherine. Mas agora Katherine está grávida! Não é ótimo? Ela está grávida e eles fogem para as montanhas, e vão ser felizes, vão beber vinho, vão dançar. Gostam de dançar. Há cenas deles dançando, o que é um tédio, mas gostei, porque estavam felizes! Acham que acaba aí? Não! Ele escreve outro final! Ela morre! O mundo já é difícil o suficiente, sabe? Já é difícil o suficiente, porra! Alguém não pode dizer: “Sejamos positivos!” “Vamos ter um final feliz na história”?  (Pat)

Tiffany (Jennifer Lawrence), a menina que mora ao lado, é uma jovem viúva que, por se sentir culpada pela morte do marido, tenta se punir ao desenvolver um comportamento sexual agressivo.  Quando Pat e Tiffany se encontram pela primeira vez, já é possível notar uma atração mútua, uma ligação relacionada, talvez, ao frágil equilíbrio de suas mentes.  Em ambos, houve um fator que intensificou a doença, mas os problemas já estavam lá, latentes, há um longo tempo. Ou seja, enquanto que, para Pat, sua esposa o trair em sua própria casa, em meio às recordações do seu casamento, tenha sido um disparador para trazer à tona os sintomas de uma determinada patologia, seu comportamento oscilante, de certa forma, já tinha contribuído para o fracasso da sua relação; assim, também, a Tiffany, que apresentava problemas relacionados à depressão antes mesmo da morte do marido, logo, os sintomas apenas se acentuaram depois desse fato traumático.

O que o diagnóstico da doença trouxe ao Pat foi uma explicação do seu próprio comportamento e uma possibilidade de criar artifícios capazes de contribuir com seu autocontrole. Isso, aliado à terapia conduzida por seu psicólogo e ao uso de medicamentos receitados pelo seu psiquiatra, não é suficiente para criar os meios que definirão uma cura, mas poderá ajudá-lo a ter uma vida melhor. Essa premissa é um dos pontos positivos do filme.

Quando Tiffany e Pat começam a apreciar a companhia um do outro, ele quase esquece o motivo que o levou a querer ser uma pessoa melhor (a ex-esposa) e ela o porquê desejou ajudá-lo (costumava agir assim por achar que tinha que se doar por completo, já que não fez isso pelo marido morto). Assim, ao esquecer os motivos secundários, os motivos principais vieram à tona, ainda que de forma inconsciente. Então, a convivência motivada por um objetivo cria uma rotina, intensifica os sentimentos e destina pouco tempo à solidão (geralmente, necessária para a construção de fantasmas). Esses fatores em conjunto provocam um efeito positivo em ambos, ainda que haja sempre a sombra de uma crise, uma tensão advinda da dificuldade em controlar as emoções.

“I was a slut. There will always be a part of me that is dirty and sloppy, but I like that, just like all the other parts of myself. I can forgive. Can you say the same for yourself, fucker? Can you forgive? Are you capable of that?” (Tiffany)

Enquanto Pat passa grande parte do filme tentando se enquadrar em um perfil que possa ser aceito por sua ex-esposa, pelos seus amigos e pela comunidade na qual vive, a forma crua e direta que Tiffany expõe suas falhas sem medo de julgamentos (especialmente, pelo fato dela reconhecer que até a parte “suja” de sua personalidade é importante na definição de quem ela é) obscurece parte de suas certezas. Essa ruptura com uma série de verdades que ele havia construído ao longo da vida e, mais especificamente, durante a sua estadia no sanatório, permeada por seu mantra de positividade, provoca a desconstrução do que ele considerava o perfil ideal para ser amado, aceito e respeitado. E, a partir disso, ele vislumbra um caminho que pode seguir se quiser encontrar a si mesmo.

“O lado bom da vida” é um filme hollywoodiano, logo o casal em questão é lindo, inteligente, e, em alguns aspectos, divertido. Além disso, tem a oportunidade de se encontrar em um momento certo e são atraídos mutuamente. Só que a vida nem sempre segue uma sequência lógica, na verdade, raramente segue. Mas, o diferencial dessa “comédia romântica” está na definição e na construção de cada personagem, pois, em alguns aspectos, eles parecem reais, talvez porque são fragmentados como a maioria de nós.


FICHA TÉCNICA DO FILME

O LADO BOM DA VIDA

Título Original: Silver Linings Playbook
Direção: David O. Russell
Roteiro: David O. Russell
Elenco: Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Robert De Niro, Jacki Weaver.
Ano: 2012

Alguns Prêmios:

Golden Globes – Melhor atriz em filme de humor ou musical: Jennifer Lawrence
Austin Film Critics Association – Melhor Atriz: Jennifer Lawrence
Screen Actors Guild Awards – Melhor Atriz: Jennifer Lawrence
Broadcast Film Critics Association Awards – Melhor Ator: Bradley Cooper; Melhor Atriz: Jennifer Lawrence

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Virginia Woolf

À sombra de Virginia Woolf

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Fragmentos de textos (entre aspas) de Virgínia Woolf retirados do livro “Contos Completos – Virginia Woolf”, Editora Cosac & Naif, edição de 2005.

“Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.”

E mesmo quando não conseguimos definir o valor de algo, continuamos a procurar o sentido das coisas, achando que esse sentido seja mais profundo do que o contorno de seus corpos. Não sei, de fato, quem foi Virginia Woolf, sei que seu texto me assusta, inquieta-me, deixa-me um tanto sorumbática, o que é contraditório, ficar meio morta e sentir-se a ponto de ter um ataque de vida. Mas, vou tentar compreender o contorno das sombras que vejo em suas palavras. Cada palavra, um fragmento. Cada pedaço de sombra, uma ausência.

“Entretanto sou incapaz de dizer o que é que eu quero, apesar de ansiar pelo que espero de alguma forma secreta. Pois muitas vezes, e com frequência cada vez maior, à medida que o tempo passa, dou comigo de repente a interromper minha andança, como se eu fosse paralisada por um olhar estranho e novo sobre a superfície da terra que conheço tão bem. Um olhar que insinua alguma coisa; mas que se vai antes de eu perceber seu sentido. É como se um riso nunca visto furtivamente se estendesse num rosto bem conhecido; por um lado dá medo, no entanto por outro ele nos faz um sinal.”

A sensação de conhecer a terra em que pisamos e da qual fazemos parte é poeticamente claustrofóbica. Não queria ser somente barro. Queria acreditar no olhar que não vejo, ainda que insista em buscá-lo na esperança de que ele repousa sobre mim. Tudo parece novo na terra e cada expressão dos rostos sem contexto é um sinal de que sou incapaz de sair da esfera que circulei em torno dos meus pés. Talvez, ela quase compreendesse o olhar. Mas, “quase” é terrível. Que Deus não nos permita sair do círculo em torno dos nossos pés. Não ainda.

“É mais fácil escrever sobre a morte, que é comum, do que sobre uma vida única.”

Uma vida única não é qualquer vida. É terrivelmente singular. Digo “terrivelmente” porque aprendemos desde sempre a sermos muitos, a buscarmos um sentido homogêneo e grandioso para as coisas.

“Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis.”

Tenho medo de lagos e mares. Só confio na água que posso controlar. Acho que ela também tinha medo, as pedras nos bolsos a protegeram do instinto da vida que, por ser instinto, não nos cabe compreender.

“É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela.”

Nem sei se posso realmente dizer que conheço meu original, logo a imagem que vive em mim talvez seja tudo que tenho. Ainda que “ter” seja um verbo totalmente sem significado em qualquer língua, tempo ou lugar. Penso que um nariz grande possa ser ridículo, talvez porque conviva com pessoas de narizes pequenos. Penso que muito do que há em mim possa ser questionado, adorado ou ridicularizado, mas são apenas pensamentos, nada mais.

“Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras – que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver.”

Se eu a conhecesse, diria que ela queria muito ser “um mundo no qual viver”, mas tinha indagações demais para fazer o que alguns de nós faz, ou seja, acreditar. Acreditar só para poder levantar toda manha e adormecer toda noite com medo de que aquela noite possa ser a última. O medo é perigoso, mas nos faz, paradoxalmente, dormir e acordar.

“Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos.”

Tudo que temos são espelhos. Mas, um espelho não é assim tão ruim, ele nos permite enxergar sombras. Platão já havia descrito essa sensação e muitos depois dele também. Talvez nossos olhos não sejam “a janela da alma” (desculpe-me Machado de Assis), sejam apenas o reflexo daquilo que é possível deixar o outro ver. O outro nos vê vagamente, mas mesmo em meio a nebulosidade há um brilho. Brilho não deve ser teorizado, apenas apreciado. Teorizamos demais.

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

Obrigada.

“Fascinado pelo contraste entre a porcelana, tão vívida e alerta, e o vidro, tão contemplativo e calado, ele se perguntou, pasmo e perplexo, como os dois tinham vindo a existir no mesmo mundo, para plantar-se, além do mais, no mesmo cômodo, na mesma estreita faixa de mármore. Mas a pergunta permaneceu sem resposta.”

Em meio a divagações, vejo-a em uma sala com móveis brilhantes, observando através da janela um colorido jardim. Se ela fechar os olhos, pode ouvir o barulho do lago ali perto. É tanto silêncio. A mente se alimenta do silêncio, ela começa a tecer pensamentos que vão desde os alicerces para a construção de uma grande cidade até a quantidade de sopro necessária para apagar uma vela. Vejo-a com o olhar sereno, o cabelo arrumado, a roupa limpa e a luta dos dedos sujos de tinta. Pobres dedos. Nunca dedicamos aos dedos nem uma mínima fração do silêncio que usamos para alimentar a mente.

“Há um momento que não consigo imaginar: o momento da vida dos outros que deixamos sempre de lado.”

Acho que ela imaginava. Se não imaginasse, não teria a consciência de dizer que “não imagina”. Se fôssemos só nós, vá lá. Mas há os outros e eles são tantos e cada qual é uma “vida única” e cada qual carrega seus olhos de vidro e seu silêncio. “Em silêncio ele se recolheu e, embora sua voz nada fosse, seu silêncio é profundo”. Talvez o silêncio de cada um seja profundo à sua maneira.

“Por que meu pai me ensinou a ler?”

Minha mãe me ensinou a ler. Isso porque nasceu em um mundo no qual não era mais nos dada alternativa a não ser compreendermos a guerra, a política, a economia, a geografia e a nós mesmas. Podíamos acreditar em nossa inferioridade, como tanto bradou Mr. Bennett, mas tivemos que sair dos nossos lares quentes, tirar nossos bebês dos braços e fazer alguns homens [e algumas mulheres] aceitarem o óbvio – pensamos e somos diferentes. Só que isso também é uma generalização estúpida, porque muitas de nós não pensam, como também muitos deles.

“Bem que poderia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fui eu, eu!”

Queria ser a pedra, não apenas uma pedra. Mas queria muito que todas as outras (pedras) também fossem ‘únicas’. Quero demais.

“Nem assim a vida acaba…”

É.

“Ah, a marca na parede! Era um caramujo.”

Quase sempre é um caramujo, mas é interessante brincarmos com as possibilidades que nascem quando libertamos nossa tão domesticada percepção. Só assim voltamos a enxergar as coisas com uma certa perplexidade, aquela que tínhamos quando não havia tanto silêncio.

“… eu já começava a me perguntar se as sombras morrem, e como poderiam ser enterradas…”

Pensei tanto nessa frase quando a li. Pensei especialmente nela e nas pedras em seu bolso no último passeio ao Rio Ouse. Ainda que a minha mente crie artifícios para me fazer compreender que até as sombras morrem, não consigo aceitar esse fato sem um grande espanto, pois, mesmo que isso seja lógico, parece-me absurdo. Assim, continuo olhando para meus pés, pensando que o círculo que construí ainda é mais poderoso que minha vontade de ultrapassá-lo. Sou apenas uma pedra.

Parcilene Fernandes
Paraíso, 26 de Fevereiro de 2006

Saiba mais:

Virginia Woolf foi uma escritora inglesa. Nasceu em Londres em 1882 e morreu em 1941. Foi uma importante figura do movimento modernista. Dentre suas obras, podemos elencar: Mrs Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927), Orlando (1928), Um Quarto Só Para Si (1929), Entre os atos (1941), Contos Completos (1917-1941).

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Memórias de um menino morto

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“Tudo está morto, e há cadáveres por toda a parte.”
“Eu jazia e, estranho -, nada esperava,
aceitando sem discussão que um morto nada tem a esperar.
Mas ali estava úmido.”

(A dócil, O sonho de um homem ridículo, Narrativa Fantástica, Dostoiévski, 1877)

Ontem, eu morri. Ou melhor, há muito tempo morri. Tinha 10 ou 12 anos. Tinha pais, mas não me lembro deles, apenas da sensação de tê-los. Mas isso são detalhes da minha história e queria contar a história da menina que me observava através do vidro da sepultura.

A primeira vez que a vi, ela ainda tinha o cabelo curto e parecia ser bem mais nova do que eu. Entrou no cemitério devagar, silenciosa. Os outros seguiram adiante e ela parou ainda na entrada, diante de mim. Nunca entendi porque tinha que ficar ali, perto do portão, mas nunca fui bom para entender coisa alguma, logo se ser um morto enterrado diante de um portão era minha sina, então iria cumprir tal desígnio com louvor. Ela (a menina) lia devagar as poucas palavras contidas em meu sepulcro: apenas duas datas e um nome. Alguém aproximou-se e disse-lhe que eu havia morrido depois de ter contraído uma doença denominada “raiva”, acho que ela não entendeu o significado disso, mas tão pouco eu, a vítima, algum dia entendi. Ela ficou mais um tempo observando meus olhos estáticos na fotografia e depois correu para o centro do cemitério, para encontrar seus pais e acender uma vela, o momento mais eufórico do seu bucólico passeio familiar. Depois ela partiu, não sem antes observar meu rosto através do vidro e ler novamente as duas datas e o nome.

Era dois de novembro, dia dos mortos, dia que recebia visitas e a via perscrutando cada detalhe do meu lar. Todos os outros dias era um marasmo. Mas isso não me aborrecia de fato, pois tinha um lar para cuidar, detalhes para observar e um dia para aguardar. Andava pelo meu sepulcro tão familiar, sentia o cheiro das flores que morriam mais rápidas do que eu e da fumaça das velas apagadas pela chuva. Sempre amei a chuva. Posso viver morrendo eternamente se tiver como ouvir o barulho da água caindo, o cheiro da terra molhada, o contorno rebelde das poças de lama.

Uma vez, a menina apareceu em um fim de tarde, em um dia que não era o “nosso”. Depois disso, passou a vir várias vezes ao cemitério nesse horário, mas já não me observava através do espelho. Caminhava entre as outras sepulturas, talvez tivesse encontrado alguma que fosse mais interessante do que a minha, que tivesse algo além das duas datas, um nome e uma foto amarelada. Observava-a do meu sepulcro, esperando, ansiando, desejando um olhar, um leve gesto que me fizesse compreender que eu ainda existia através dela (ou, por ela). Mas, nada. Até que ela simplesmente parou de vir. Assim, o portão, tão movimentado no dia dos finados e nos fins das tardes, já não me interessava mais. As crianças que passavam por ele nem tinham curiosidade em saber o que aquela foto amarelada representava, se era um menino, um fantasma, um monstro.

E eis que um dia, que não era dos mortos e não chovia, ela novamente atravessou o portão. Chorava. Nunca a tinha visto chorar antes, logo, assustei-me e recuei. No canto do meu sepulcro tentei entender o significado daquilo, mas quando levantei os olhos, ela já tinha ido embora.

Depois de algum tempo, finalmente compreendi: a menina havia crescido. Talvez alguém que ela amasse tivesse morrido. Assim, diante de um cemitério lotado, resultado daquilo que os vivos designam por “progresso”, tive a primeira sensação de solidão na minha vida-morta. E foi assim que cansei de ser menino. Já não era mais divertido viver os dias de morte cuidando de um sepulcro velho demais para causar curiosidade, ou ser guardião de um portão que possivelmente seria fechado para sempre em breve.

Peguei as poucas coisas que tinha (minhas duas datas, meu nome) e parti.

A foto ficou. Não me reconhecia mais naquele rosto que sorria.

Envelheci.

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