Da mente de Neil Gaiman, reimaginando um personagem clássico da DC Comics, surge Sandman (1988). O personagem é chamado de Morpheus, que recebe o título de Sonho dos Perpétuos, e se trata do governante do Reino do Sonhar. O sonhar seria uma instância da existência onde todos os seres vivos visitam ao dormir; lá ocorreriam todas as narrativas oníricas e as experiências dos sonhos, Morpheus é quase que todo poderoso ali e com milhares de seres ajudantes que coordenam aquele plano existencial junto a ele.
A trajetória de Sandman é longa a partir daí, então para o contexto desta produção será observado o princípio das histórias de Morpheus, no Brasil chamada de Sandman: Prelúdio (2015), ilustrada pelo magistral J. H. Williams III. Uma graphic novel publicada mais recentemente na intenção de mostrar pontos anteriormente desconhecidos da vida do protagonista.
Essa história relata a sucessão de fatos que movem o protagonista a sua jornada de redenção no primeiro volume da série, e vem demonstrando a magnitude deste universo ao levar o leitor a ter consciência de que todos os seres e todas as partículas em todos os universos e existências sonham, dessa maneira, haveria uma versão do Sonho dos Perpétuos para cada ser da existência. O personagem descobre então que algo está matando outras versões dele mesmo, outros Governantes do Sonhar estão sendo mortos, e cabe ao (nosso) Morpheus investigar a morte de seus iguais.
Morpheus (ao centro) cercado por seus pares – Fonte: encurtador.com.br/drxH4
O Sonho para a Psicologia Analítica e a Simbologia do Sonhar
Para a psicanálise o sonho está ligado principalmente a imagética do sonhar, e ao valor compensatório do sonho para o sonhador. O sonhador deslocaria libido pelo Inconsciente enquanto dorme, e através de um arranjo de imagens conseguiria entrar em contato com conteúdos reprimidos fortes, ter vislumbres de questões recalcadas por seu aparato psíquico ou mesmo realizar desejos fortes que estariam em seu dia-a-dia reprimidos por todos os mecanismos de defesa propostos na clínica psicanalítica:
Na concepção psicanalítica, além de representações mentais mnemônicas derivadas da percepção consciente, as imagens adquirem uma função dinâmica, uma vez que, para Freud, elas possibilitam a transferência da energia instintiva que não encontra seu objeto no campo da fantasia. (SANT’ANNA, 2005, p.19)
Em Sandman, o personagem é o soberano do Sonhar, esta que seria uma instância dimensional onde todos os seres vivos se deslocam psiquicamente ao dormir para viver os sonhos. Esse conceito fantástico e abstrato é palatável quando se tem em mente o funcionamento da psique a maneira analítica de se ver.
Jung et al. (2016) decorre sobre a função do sonho e sobre o Inconsciente coletivo; sendo o sonho além de uma função organizadora da psique, onde conteúdos são revistos e processados, também é uma maneira do Inconsciente Pessoal de cada indivíduo se comunicar com a consciência através dos resquícios imagéticos. O Inconsciente Coletivo atravessa essa demanda na medida que fornece símbolos ancestrais e nos permite contato com os arquétipos. Logo, podemos colocar em paralelo a visão de Neil Gaiman na concepção do Sonhar, como esse local em paralelo a realidade e a psicologia analitica do ato de Sonhar.
Uma mandala, simbolo comum dos sonhos na Psicologia Analítica – Fonte: encurtador.com.br/dghU8
A maneira mais eficiente para se enxergar essa comparação é observar na própria escolha de personagens de Gaiman no preenchimento de sua história. Sonho pertence a uma categoria de seres, equivalentes em seu mundo aos deuses, um panteão, conhecidos como os perpétuos.
Em sua jornada ele se depara por exemplo com Desejo, Delírio, Destino e Morte, seus irmãos perpétuos; seu ajudante Lucien, o bibliotecário, que guarda todas as histórias não escritas; Coríntio, o pesadelo, que vem em contraponto e antagonizando o protagonista, quase como a Sombra arquetípica de Morpheus, representando seu oposto e negativo. Entre outros personagens, esses são fundamentais para entender a característica simbólica de tudo que cerca o reino do Sonhar, tudo alí surge e finda em conceitos complexos e simbólicos.
O conceito de arquétipo ocupa lugar significativo na teoria fortemente associado à ideia de inconsciente coletivo, um substrato psíquico coletivo. (…) Em cada indivíduo, manifesta-se por meio de imagens individuais (nomeadas por Jung como imagens arquetípicas) que têm a função de agrupar os elementos psíquicos próprios de cada pessoa e enviar à consciência algo como uma mensagem proveniente do inconsciente. Nessa perspectiva, o arquétipo só pode ser conhecido através de seus efeitos. (BONFATTI et al., 2019, p. 543-544)
Por fim, vale olhar para o mito de Morfeu em relação com o Personagem Morpheus. Sendo o primeiro o deus grego dos sonhos, filho de Hipnos, deus do sono, este era responsável por trazer a narrativa onírica aos humanos e guiá-los por uma boa noite de sono ou punir com os pesadelos (BULFINCH, 2013). O paralelo simbólico mais evidente feito por Gaiman, que em sua obra tende a tangenciar os conceitos para afastar dos arquétipos no mundo real, ele escolhe por emular quase que diretamente o deus dos sonhos grego em seu mundo fantástico.
Morfeu, deus grego dos sonhos – Fonte: encurtador.com.br/rCHWY
A Conclusão do Princípio da Jornada
Sandman: Prelúdio é a jornada pessoal de confronto de Morpheus consigo mesmo, diversas vezes. As várias versões do Sonho dos Perpétuos se defrontam com suas maiores qualidades e também seus maiores defeitos – Gaiman é um ótimo autor para trazer a humanidade a personagens imortais e de poder grandioso – e essa é a melhor parte da história, observar como um ser que tem a eternidade e a infinitude a sua disposição pode em seu ritmo tomar lições valiosas de crescimento pessoal e de personalidade.
Ao desvendar o mistério por trás do assassinato de seus pares, logo ao leitor fica claro que o Senhor dos Sonhos sabe o motivo e a circunstâncias do crime tão hediondo, pois de uma maneira bem arquetípica e bem similar a como funciona o Inconsciente Coletivo humano, cada versão de Morpheus espalhada pelo universo é também parte de sí mesma, todos os sonhos estão conectados e então ele tem consciencia do que ocorreu às partes dele que padeceram.
A história nesse ponto toma outro formato, não se tratando mais de uma investigação, mas sim de uma busca de redenção, da tentativa de abjuração de um erro cometido pelo próprio Morpheus que sucede nos assassinatos. Morpheus deve se conhecer e se munir da companhia de si mesmo para finalizar sua jornada com sucesso.
Referências
BONFATTI, Paulo et al. Acerca do conceito de arquétipo na Psicologia Analítica: breves considerações. ANALECTA-Centro Universitário Academia, v. 4, n. 4, 2019.
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.
SANT’ANNA, Paulo Afrânio. Uma contribuição para a discussão sobre as imagens psíquicas no contexto da psicologia analítica. Psicologia USP, v. 16, n. 3, p. 15-44, 2005.
Loki, na mitologia nórdica, é o deus da trapaça, do fogo, das travessuras e suas narrativas estão fortemente ligadas à magia e seus feitos vão desde ser um gigante de gelo adotado em meio aos aesires em Asgard, a estar presente em todos os principais momentos chave na cosmogonia escandinava, alterando a estrutura do mundo ao seu redor e influenciando os seres mitológicos que vivem ali consigo, de maneiras mais positivas até às mais desastrosas (GAIMAN, 2018).
No universo dos quadrinhos o personagem foi concebido por Stan Lee (1922-2018), Larry Lieber (1931-Presente) e Jack Kirby (1917-1994), baseado no deus nórdico e entrando em conflito direto com os vingadores, sendo inclusive responsável pela primeira reunião dos heróis em uma equipe, sua primeira aparição se daria em Journey into Mystery #85 (1962).
Loki e sua primeira aparição nos quadrinhos – Fonte: encurtador.com.br/kNUW9
Nos cinemas, sua primeira aparição se deu em Thor (2011), no filme que retrata a origem do deus do Trovão. Loki e sua concepção conturbada são apresentados ao público como a de um ser milenar e poderoso, que foi adotado na benevolência do rei dos deuses Odin, ao longo do filme, ele descobre seu passada e a verdade sobre ser filho dos piores inimigos de Asgard, os gigantes de gelo, e isso gera revolta tremenda. Tamanha inconformidade com este fato o leva a optar por se entregar ao vazio do espaço ao final do filme, ao perceber que jamais seria o herdeiro do trono dos deuses, papel esse destinado a Thor.
Essa concepção hollywoodiana, no entanto, não deixa no entanto a desejar no aspecto retratação da personalidade de Loki, como o deus da trapaça. Ele é intempestivo, volátil, e principalmente imprevisível. A maioria dos personagens ao seu redor passa a maior parte do tempo tentando lidar com as intrincadas tramas desenvolvidas por ele, escapar das maquinações e muitas vezes até das pegadinhas. Isso favorece alguns questionamentos, como por exemplo, porque a personalidade deste personagem é assim e porque é retratado de forma tão contundente assim; a resposta está no arquétipo do Trickster.
Tom Hiddlestone como Loki em “Thor (2011)” – Fonte: encurtador.com.br/ewGOX
O Trickster em Asgard
Ao estudar a psicologia analítica é possível identificar dentro do conceito dos arquétipos uma variedade quase infinita de representações, entre elas consta o Trickster. Queiroz (1991) essa figura arquetípica se pode associar com personagens de característica ardilosa, astuta, desonesta ou cômica, seriam aqueles heróis embusteiros ou o pregador de peças. O autor destaca também que o termo trickster vem do francês tricherie – que quer dizer algo entre trapaça, falcatrua ou engano – e que esses personagens míticos podem estar associados a um conceito de neutralidade moral, pois seus feitos podem prejudicar ou beneficiar as pessoas e o mundo a sua volta, devido a sua natureza dúbia.
Esta figura atua sem limites e sem qualquer lei que não seja a do próprio desejo. Por esta razão, pode-se dizer que o trickster costuma representar a antítese de valores culturais estabelecidos e integrados pela consciência coletiva em forma de rituais, e então, quando surge, personifica a antítese da atitude culturalmente esperada. Até o corpo do trickster não é uma unidade integrada, separando-se frequentemente em partes autônomas ou então metamorfoseando-se. Loki, por exemplo, é capaz de transformar-se em fêmea e se metamorfosear em vários animais (…) (ALVES, 2016, p.75)
Na mitologia nórdica nenhum outro ser se enquadra melhor no arquétipo do trickster do que Loki, o deus do fogo e da trapaça. Em toda sua trajetória este se vê atuando de maneiras absurdamente contraditórias; ora é retratado junto aos aesires indo em direção a batalhas ferozes ou ajudando Thor a recuperar seu martelo perdido, ora está se rebelando, concebendo filhos mortais – pois é retratado como um ser de gênero fluido e de forma abstrata quando deseja – e começando o equivalente ao apocalipse cósmico escandinavo:
Seja na mitologia nórdica de maneira geral, seja no círculo de Asgard, o lugar ocupado por Loki é de certa forma intrigante. Ele tem um papel de destaque na maioria dos mitos nórdicos conhecidos por nós nos dias de hoje. Considerando o material produzido por Snorri Sturluson como única fonte, Loki talvez seja o personagem de maior destaque entre os deuses do norte, o principal ator nas estórias divertidas e também a força motivadora em um bom número de tramas. Ele traz ao reino dos deuses tanto a comédia quanto as grandes tragédias (…) (ALVES, 2016, p.73)
Representação ancestral de Loki – Fonte: encurtador.com.br/adeG6
A inconstância nas interações do deus da trapaça são sua marca registrada e é aí que mora o trickster nessa narrativa, um ser que é livre de certa forma e exerce essa liberdade interagindo de diversas maneiras com o mundo ao seu redor. Tanto no caso de Loki, quanto no caso de outros tricksters de outras culturas. Vide Exu na cosmogonia Iorubá (DE ALMEIDA GABANI; SERBENA, 2015) que atuava como observador da humanidade entre suas vilas, ou mesmo Hermes da cultura greco-romana que era mensageiro dos deuses e divindade relacionada a medicina e aos viajantes (BALIEIRO, 2015), ambos podem ser identificados nesse arquétipo e mostram como as sociedades ancestrais que conceberam esses mitos vislumbravam essa figura arquetípica.
A Lição do Trickster
Tanto nas mitologias quanto nas narrativas cinematográficas em que está presente, um ponto em comum na narrativa do trickster e em sua interação com os que o orbitam fica evidente: ele coloca os personagens, o mundo e a história em movimento. Loki é ao mesmo tempo um inimigo infiltrado, um filho, um grande irmão, um anti-herói.
Ele é o responsável por colocar a história em movimento auxiliando os deuses, sendo parceiro, amigável, mas em uma de suas piadas mais cruéis, mata o deus Balder e inicia o fim dos tempos, levando toda a narrativa cósmica para seu ápice. Mesmo com tantas e repetidas idas e vindas, o trapaceiro tem que estar ali, para manter a narrativa em movimento, e muitas vezes dar um empurrão singelo para a conclusão tão esperada.
REFERÊNCIAS
BALIEIRO, Cristina et al. A imagem arquetípica do psicopompo nas representações de Exu, Ganesha, Hermes e Toth. Revista de Estudos Universitários-REU, v. 41, n. 2, 2015.
DE ALMEIDA GABANI, Michelle Suzana; SERBENA, Carlos Augusto. Exu: Um Trickster Solto No “Terreiro” Psíquico. Revista Relegens Thréskeia, v. 4, n. 1, p. 52-70, 2015.
QUEIROZ, Renato da Silva. O herói-trapaceiro. Reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, v. 3, n. 1-2, p. 93-107, 1991.
ALVES, Victor Hugo Sampaio. Um Estudo Simbólico-arquetípico Da Edda Em Prosa. Textos completos do 4 Seminário Integrado de Monografias, Dissertações e Teses, p. 62, 2016.
Compartilhe este conteúdo:
O processo de individuação representado na simbologia dos chakras: uma visão analítica
Ao longo de seus anos de estudo e após um vasto investimento financeiro, o psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) adquiriu poderoso e extenso conhecimentos antropológicos acerca de uma variedade imensa de culturas espalhadas pelo mundo. Tudo isso contribui para fomentar a base do trabalho de sua vida, que viria a se tornar a Psicologia Analítica. Para além do Inconsciente pessoal Freudiano, Jung (2018a) acreditava que havia uma instância psíquica em comum a todos os seres humanos, em nosso DNA, e que isso trazia a cada indivíduo, embutido no que tange de mais profundo em cada um, resquícios psíquicos simbólicos do passado mais longínquo e primitivo do ser humano.
Ao esmiuçar a prática analítica clínica, é possível constatar como os variados estudos do autor influenciaram sua percepção de mundo. Em seu livro “Jung e o caminho da individuação: Uma Introdução concisa”, Murray Stein (2020) expõe claramente que Jung não propunha apenas mais um tipo de tratamento, mas na verdade uma jornada de autoconhecimento que muitas vezes, a depender da vida pessoal e conflitos do indivíduo que a busca, pode ter proporções homéricas. E o final dessa jornada analítica culmina no que foi denominado pelo autor de Individuação, que é o mais próximo do autoconhecimento máximo que se poderia chegar.
Os povos indianos em sua ancestralidade carregam consigo o conceito da reencarnação natural e cíclica. O hinduísmo acredita que ao morrer a Roda de Samsara te mantém no ciclo quase infinito de nascimento, envelhecimento e morte – e é dito quase porque existe uma maneira de escapar de tal roda, através da Iluminação do espírito; o aprendizado máximo com cada vida vivida (ANDRADE; APOLLONI, 2010).
Essa crença se estende aos Budistas, Hinduístas e Jainistas, e curiosamente viria a ser inspiração para diversas vertentes filosóficas e teóricas, incluindo o próprio Jung. A maneira como a Individuação e a Iluminação se constituem é análoga, e é nesse ponto em comum que a relação de Jung com as mais diversas culturas mostram que sua compreensão acerca do ser humano é única (STEIN, 2020). Sua inserção nas mais variadas culturas e práticas possibilitou adquirir uma visão de homem ser humano plural.
Neste trabalho, outros pontos da cultura indiana estarão frente a frente com aspectos da psicologia analítica – mais especificamente o que diz respeito a meditação e os chakras corporais, outro elemento fundamental na vida do indivíduo que está imerso por essa parte da cultura hindu. A intenção desta dissertação é trazer luz sobre a intersecção adequada entre a psicologia analítica, a prática clínica e seus elementos, com a cultura dos chakras e da meditação.
BREVE CONCEITUAÇÃO SOBRE O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO
Uma personalidade unificada e ao mesmo tempo única, a qual parte de um desenvolvimento psíquico, é o que Jung chamaria de processo de individuação (STEIN, 2000). Neste, o indivíduo “torna/realiza o si-mesmo”, ou seja, a porção mais singular, íntima e indivisível de si. O que difere de ser “egoísta” ou “individualista’’, como alguém ensimesmado, onde não há consideração ou interesse em outras pessoas. Pois, na individuação, as qualidades únicas acessadas são, necessariamente, convidadas a serem integradas no mundo externo (JUNG, 2008).
Este processo ocorre de forma inconsciente e espontânea, pois faz parte de um impulso inato do ser humano. Porém, só é concretizado se vivido de maneira consciente e se o indivíduo tiver uma ligação ativa com esse desenvolvimento (FRANZ, 2019). Por isso, é possível e comum não alcançar esse processo. Muitas pessoas, inclusive, aparentam ter uma vida social e profissional de sucesso, porém sem a profundidade e integração que o processo de individuação proporciona (STEIN, 2000).
No pior dos casos nesse caminho de tornar-se si-mesmo, o indivíduo conseguirá aceitar sua neurose e encontrar o sentido à partir do sintoma, ou seja, o que adoece contém em si a própria cura, pois o sintoma é uma tentativa inconsciente de mostrar que a pessoa desviou-se do seu processo de individuação (JUNG, 1998). Já a individuação completa carrega o atributo de durabilidade, imortalidade e de atemporalidade. Essa experiência era o que os místicos denominavam como uma experiência com Deus ou com o Divino (JUNG, 2017).
Então, no decorrer desse processo e para que ele ocorra, o arquétipo do Self ou Si-mesmo se manifesta ao ego (SCHWARTZ-SALANT, 1982). O Self é então o centro unificador da personalidade, ele abrange tanto o inconsciente (pessoal e coletivo) quanto o consciente, ou seja, ocupa de forma total a estrutura da psique (SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988). Esses conteúdos podem despontar no ego de forma organizada e processual como também podem irromper de maneira a desestruturar o centro regulador da consciência (SCHWARTZ-SALANT, 1982).
No entanto, por mais que seja preciso que o ego faça uma aproximação com o Self para que ocorra o processo de individuação, não é possível incorporar por completo este arquétipo, pelo fato de ter conteúdos vastos, os quais a consciência humana não consegue abarcar. Então, essa aproximação e do ego ao Self, ou seja, a tentativa de integrar e reconhecer o Si-mesmo na consciência ocorre de forma contínua, durante uma vida inteira (SAMUELS; SHORTER; PLAUT, 1988).
Para tanto, além da extensão espiritual do Self, este também é presente na matéria, ou seja, no próprio corpo. Assim como Jung (1998) amplia o conceito no Seminário 4 de Zarathustra, o espírito é delimitado pelo corpo e só pode ser expresso por este também. O próprio significado da matéria/corpo é a terra, isto é, aquilo que é palpável e concreto. A pessoa que se distancia do próprio corpo, perde contato com esse “chão” e se perde no espírito. As consequências disso, podem ocasionar em negligências às necessidades corporais e a perda da identidade, uma vez que, um espírito sem delimitações (o corpo), pode ser qualquer coisa. É isso que ocorre, por exemplo, nas “participações místicas” ou efeito de massa, ou seja, quando a pessoa se perde da consciência do próprio corpo e se dissolve no coletivo.
Portanto, a realização do Self e em consequência, do processo de individuação, não ocorre fora do espírito e da matéria. Sendo assim, vê-se necessário ampliar as concepções do cuidado e percepção do corpo na prática clínica, uma vez que, vemos uma grande atenção voltada para o espírito e pouca para a matéria. Posto isso, no próximo tópico trataremos de expandir o entendimento sobre o corpo e seu simbolismo que é muito presente na cultura oriental.
Originada na língua sânscrita, a palavra chakra quer dizer “roda”, estes seriam pontos de concentração e convergência da energia vital nos seres humanos, sendo sete no total. Por meio de muita disciplina, treino intenso e através da meditação o indivíduo seria capaz de dominar o fluxo da energia vital através do seu corpo, canalizando-a nos chakras (COSTA; BASTOS, 2020). Seus nomes e localizações na tradição indiana são:
1 – Muladhara (Final da espinha dorsal, entre o anus e a genitália, na área do períneo), 2 – SvadhistHana (4-6 cm abaixo do umbigo, ao nível do osso púbico), 3 – Manipura (5-7 cm acima do umbigo, plexo solar), 4 – Anahata (no centro do thorax), 5 – Vishuddha (base do pescoço, timo), 6 – Ajna (no centro do cérebro, epífise), 7 – Sahasrara (topo da cabeça, vértex). (PRIYA; RAJESH, 2011, p. 78-79, tradução livre)[1]
Pode-se dizer então que seriam os pontos de concentração do que se entende por energia vital – é o deslocamento, a concentração e a maneira como o indivíduo faz a gestão desta que vai determinar alguns aspectos de sua vida. Essa energia pode ter vários nomes a depender da cultura, “na Índia, esta força tem a designação de prana, na China, de chi; os pitagóricos chamam-lhe luz corporal brilhante; e, na Idade Média, Paracelso falava do illiaster, a força vital” (MARTIN, 2020, p.780). Entretanto, esse conceito de energia é familiar para as psicologias profundas e a Psicanálise.
Tudo isso poderia ser visto como uma metáfora para o inconsciente, observe o caso da Psicologia Analítica em seus apontamentos para com a alquimia. Na concepção do método analítico funciona como uma alegoria no que se refere aos conteúdos psíquicos do alquimista; este que, como o terapeuta no setting, aquece com o fogo transformador o vaso alquímico – representado ali na figura do paciente – e provoca neste a mudança do estado físico do que quer que haja dentro, movimentando assim a libido (JUNG, 2018b).
Os chakras como pontos de convergência concentram a prana que passa, num movimento ascendente, da base da coluna em direção a parte superior do sistema nervoso central (SNC). Quem medita tem a intenção de se colocar em um estado alterado da consciência (EAC) e estimular a passagem dessa energia por seu corpo; na alegoria hindu para a meditação Kundalini:
é uma deusa serpente que dorme na base da coluna vertebral enrolada 3 vezes ao redor do primeiro chakra, aguardando a expansão. Quando ela é acordada, (…) ela se desenrola e sobe através do centro do corpo, espetando e despertando cada chakra conforme ela sobe. Quando ela alcança o topo, ou o chakra Coronário, então todos os chakras foram abertos e diz-se que a pessoa atingiu a iluminação. (JUDITH, 2004, p.12)
Em ambas as representações podemos notar que em um ponto comum está a movimentação da energia psíquica interna – a libido, em linguagem moderna – se direcionando a um processo que se embasa na autopercepção e no autoconhecimento; para o artífice alquimista, o estado de rubedo, o ouro, o elixir; para o praticante da meditação, a iluminação, representada pela Lótus em imagens ancestrais orientais. Em ambos os casos o indivíduo trabalha seus conteúdos internos de uma maneira a facilitar e promover a sua cura interna, e é aí onde a psicologia pode vir de encontro a sabedoria oriental.
RELAÇÃO DOS CHAKRAS COM O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO E O CORPO NA CLÍNICA ANALÍTICA
Em busca de explicações para sonhos que uma paciente de vivência oriental tinha, Jung passou a se aprofundar na cultura oriental e se deparou com o livro O Poder da Serpente de Arthur Avalon. Este levanta, de forma detalhada, a simbologia dos chakras e seus significados para o oriente. Foi então que Jung percebeu a riqueza de simbolismos e o quanto a teoria do despertar da kundalini, pela ativação dos chakras, se aproximava do seu conceito de processo de individuação (WACKER, 2010).
Este paralelo começa a ser destrinchado pelo primeiro chakra, o Muladhara, ou seja, onde inicia-se o processo para o contato com o transcendente. Neste, contém em si o contato com o ego e a segurança com as causalidades terrestres. O indivíduo que tem a energia concentrada nesse chakra, não expande para além das percepções do ego e se torna submisso ao inconsciente, aos instintos, aos impulsos e à “participação mística” ou comportamento de massa. Ao despertar a energia da Kundalini, que se concentra nesse chakra, o ego tem a oportunidade de começar a se relacionar com o Self, o que dá início ao próprio processo de individuação. Pois, com esse enraizamento pessoal, o ego percebe que há forças ou propósitos dentro de si maiores que seu conhecimento consciente (MEDEIROS,2017).
Se o primeiro chakra é um despertar para uma consciência mais profunda, o segundo – SvadhistHana, para Jung (1996) é a continuidade desse processo através da entrada no inconsciente. Então, nesse chakra que, simbolicamente, representa o elemento água, o autor faz uma comparação com o mar que também é uma representação do inconsciente. Então, o despertar, necessariamente, passa pelo caminho das profundezas da água (ou inconsciente) e, desse batismo, o indivíduo pode ser engolido pelo monstro que ali habita, pode se afogar mas, também pode renascer desse mergulho.
Caso a pessoa passe pelas profundezas e renasça das águas do inconsciente, ela entra no próximo chakra, o Manipura, também chamado de “plexo solar”, o qual representa o elemento fogo, este simboliza a energia criadora da luz solar e também o fogo destruidor. Após o contato com o inconsciente ambienta-se com as características que habitam nesse terceiro chakra, que são: as emoções, desejos, paixões, poder, impulsos e até os demônios internos. O indivíduo, então, passa a conhecer sua “nova” identidade, simbolizando uma mudança de consciência (JUNG, 1996).
Após passar pela intensidade das emoções, o próximo chakra – Anahata – é atingido. Nele, o indivíduo não se identifica mais com as emoções e desejos, o que o leva a um olhar mais apurado, um olhar que consegue enxergar o Eu por de trás da explosão das emoções e dos objetos externos, aqui, se tem mais contato com a realidade interna através da razão, mas também dos sentimentos. Sendo assim, o elemento que o representa é o ar, o qual também simboliza o pensamento. Então, na região do tórax, o que inclui o coração e os pulmões, marca o primeiro encontro com o Self, ou seja, o verdadeiro Eu (JUNG, 1996).
No quinto chakra, o Vishuddha, é onde começa a ficar mais complexo o entendimento para a cultura oriental, pois ele representa a segurança de se confiar em uma realidade não material. É o ponto onde atinge-se o corte entre as polaridades, ou seja, da realidade interna e externa. Na saída de Anahata para Vishuddha, o indivíduo desaprende que seus pensamentos e emoções devem ter uma base em objetos concretos e passa a entender que eles existem por si sós, que tudo faz parte de uma unidade psíquica, de um todo. Já no sexto chakra, o Ajna, é estar de fato nesse todo, já não existe dualidade, pois os dois lados viraram uma coisa apenas, pode-se dizer que, aqui, a pessoa já age de acordo com a força do Self. E, por fim, o último chakra, o Sahasrara, é o mais alto estado de gratitude, onde atinge-se o nirvana, não é necessário elaborar as questões inconscientes, pois tudo já está integrado (WACKER, 2010).
Jung ao elaborar todo esse estudo comparativo, percebeu que seria perigoso para o mundo Ocidental se apropriar das práticas orientais de iluminação, uma vez que, esta filosofia estava muito distante da vivência e de difícil assimilação para o ocidental. Na sua concepção, o ocidental se aproximaria dessas práticas através do cristianismo, por conter a raiz filosófica desse lado do mundo para o transcendente, sendo assim, Jung, em sua época, não recomendava a prática do Ioga Kundalini para a população Ocidental (JUNG, 2013).
No entanto, principalmente devido a globalização, hoje já é possível o ocidental se aproximar das práticas orientais, sendo mais comum o conhecimento e prática sobre a Ioga e meditação. Pensadores como Wacker (2010) defendem que as ferramentas do Ioga Kundalini podem ajudar o ocidental a acessar partes do seu inconsciente antes inacessadas e iniciá-lo ao seu processo de individuação, a eficácia dependerá de vários fatores como a estrutura do ego, os mecanismos de defesa, os traumas vividos e etc.
Na clínica analítica, o corpo também tem uma dimensão simbólica, onde os sintomas físicos revelam por si mesmos a cura e o mito pessoal que o indivíduo está vivenciando (ROTHENBERG, 2004). Pois, além da base psíquica, o Self tem sua dimensão corporal, então a expressão de complexos, além de dialogarem com a estrutura psíquica, também se expressam no corpo, através de mudanças sutis ou sintomas mais profundos (RAMOS, 2006).
Portanto, pode-se dizer que as doenças e mudanças corporais são sinais do Self de que o indivíduo se distanciou ou está fixado em uma etapa do processo de individuação. Sendo assim, na experiência clínica, também pode ser de preocupação do psicólogo/a o olhar sob o corpo e os sintomas físicos, além de que, pode-se usar de práticas corporais como ferramentas no processo terapêutico e de individuação.
A interpretação de Jung sobre os chakras dentro da filosofia do Ioga Kundalini nos remete a uma interpretação que se assemelha ao processo de individuação e uma possibilidade de pensar o corpo como um agente de transformação. Vale ressaltar, também, a utilidade da psicossomática para inserir o corpo na clínica analítica e das novas visões de autores ocidentais que defendem a aproximação, a certa medida, das práticas orientais como mais uma opção de alcançar a iniciação no processo de individuação.
Referências
ANDRADE, Joachim; APOLLONI, Rodrigo Wolff. Dos ciclos da natureza à roda de Samsara: a geografia na raiz do budismo. Interações: Cultura e Comunidade, v. 5, n. 8, p. 63-78, 2010.
COSTA, Daniel Lula; BASTOS, Rodolpho Alexandre Santos Melo. Usos do passado nos animes japoneses: a presença de imagens míticas das deusas da destruição e do mito dos irmãos, em Naruto Shippuden. Tempos Históricos, v. 24, n. 2, p. 487-510, 2020.
JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.
JUNG, Carl Gustav. Jung’s Seminar on Nietzsche’s Zarathustra. Estados Unidos: Princeton University Press, 1998.
JUNG, Carl Gustav. Seminários Sobre Análise de Sonhos: notas do seminário dado em 1928-1930 por c.g. jung. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Vol. 9/1. Editora Vozes Limitada, 2018a.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia, vol. 12. Editora Vozes Limitada, 2018b.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental 11/5. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. The Psychology of Kundalini Yoga: notes of the seminar given in 1932 by c. g. jung. New Jersey: Bollingen Xcix, 1996.
JUDITH, Anodea. A Verdade Sobre Chakras. Mauad Editora Ltda, 2004.
MARTIN, Kathleen. O Livro dos Símbolos: Reflexões Sobre Imagens Arquetípicas. Alemanha: Editora Taschen, 2020.
MEDEIROS, Fábio Roberto Gonçalves de Oliveira. A senda de individuação em Carl G. Jung e suas correlações com o budismo Mahayana. 2017. 187 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciência da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017.
STEIN, Murray. Jung e o caminho da individuação: uma introdução concisa. Editora Cultrix, 2020.
PRIYA, B. Shanmuga; RAJESH, R. Understanding abnormal energy levels in aura images. In: Proc. of International Conference on Artificial Intelligence and Machine Learing, Dubai. 2011
RAMOS, Denise Gimenez. A psique do corpo: a dimensão simbólica da doença. São Paulo: Summus Editorial, 2006.
ROTHENBERG, Rose-Emily. Jóia na ferida: o corpo expressa as necessidades da psique e oferece um caminho para a transformação. São Paulo: Paulus, 2004.
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Alfred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988.
SCHWARTZ-SALANT, Nathan. Narcisismo e Transformação do Caráter: a psicologia das desordens do caráter narcisista. São Paulo: Cultrix, 1982.
STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma : uma introdução. São Paulo: Cultrix, 2000.
VON FRANZ, Marie-Louise. O processo de individuação. In: JUNG, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019. p. 207-307.
WACKER, Priscilla. A Interpretação Psicológica do Kundalini Yoga – C. G. Jung. 2010. 55 f. Monografia (Especialização) – Curso de Especialização em Formação de Analistas, Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, São Paulo, 2010.
[1] Texto original: 1-Muladhara (Spine ending between anus and genitals, perineum area), 2-Svadhisthana (4-6 cm below the navel, at pubic bone level), 3-Manipura (5-7 cm above the navel, solar plexus), 4-Anahata (thorax centre), 5- Vishuddha (base of neck, thymus), 6-Ajna (the centre of brain, epiphysis), 7-Sahasrara (top of the head, vertex). (PRIYA; RAJESH, 2011, p. 78-79)
Compartilhe este conteúdo:
Arquetipo Materno na trajetória de Wanda em WandaVision
Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate, foi concebida pelos gênios dos quadrinhos Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994), a personagem surge nas histórias dos X-men em X-men #4 (1964), inicialmente como vilã, num grupo conhecido com a Irmandade dos Mutantes – os espectadores da animação X-men Evolution (2000) devem ser familiarizados com os vilões que se opunham aos heróis da Mansão Xavier.
Wanda e seu irmão Pietro posteriormente são revelados como filhos do vilão Magneto, mas a história deles nos quadrinhos passa por tantos roteiristas e consequentemente por tantos retcons – esse termo quer dizer “continuidade retroativa”, é a prática dos contadores de histórias que se refere a alterações do passado dos personagens e de fatos já estabelecidos anteriormente em um cânone fictício – que somente para esse retrato caberia um texto inteiro.
Wanda e Pietro a esquerda – Fonte: encurtador.com.br/hnovR
Mas no Universo Cinematográfico Marvel a personagem faz sua primeira aparição no filme Vingadores: Era de Ultron. Seu passado e de Pietro fica estabelecido como sendo fruto de uma experiência laboratorial feita pela organização antagonista aos protagonistas, Hydra. De maneira análoga aos quadrinhos, Wanda surge como vilã e após os fatos do filme acaba por se aliar aos protagonistas. Fato marcante aqui para a construção de sua personalidade é a morte de seu irmão: no clímax, perfurado por balas vindas de um dos milhares de ajudantes do vilanesco Ultron, Pietro Maximoff vê seu último suspiro e Wanda sentirá essa morte por toda a sua trajetória.
Após percalços em suas participações ao longo dos subsequentes filmes: Guerra Civil (2016), onde ela é responsabilizada por um desastre que tira a vida de algumas dezenas de inocentes, e Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Ultimato (2019) onde na culminação de uma saga, perde seu amado Visão, um androide super tecnológico que aprendeu a amar. Esses fatos culminam na trama do seriado protagonizado por ela, chamada WandaVision (2021), a série trabalha inúmeros aspectos da vida de Wanda Maximoff, seu luto por seu irmão e companheiro, mas também sua jornada pela maternidade e os impactos desse conceito em sua jornada.
Wanda e Pietro em “A Era de Ultron” (2016) – Fonte: encurtador.com.br/TVY58
Representações do Arquétipo Materno
Os conceitos arquetípicos ligados à figura do feminino se perpetuam por milênios nas mais diversas culturas e ancestralidades. As mulheres sempre foram associadas a simbologia de fertilidade e de mistério, pois delas provinha a vida, um processo que até os adventos científicos médicos esmiuçarem soava como místico e divino. Para além do símbolo da fertilidade, vem o símbolo da Mãe; esta que dá a vida, cuida e alimenta a necessidade dos filhos. Esse conceito é notado desde o extremo oriente, passando pelo Oriente Médio, Europa, África e chega ao novo mundo, as Américas, tanto em seus povos ancestrais nativos que aqui habitavam, quanto nos colonizadores que trazem em sua maioria idéias cristãs.
Existiam inúmeros cultos a deusas-mães, deusas-mulheres, sagrados femininos, como é o caso do culto a Cibele (mãe dos deuses) e à Diana (a toda mãe virginal), cujo culto alcançou seu zênite no século III d.C., na parte oriental do Império Romano. Maria pode ser identificada também em imagens arquetípicas representadas por Eva, Ísis, Ishtar, Cibele, Hera e outras. (COSTA, 2020, p.75)
Outra representação de divindade materna é Pachamama – Fonte: encurtador.com.br/amn34
Na mitologia grega a maior representante do arquétipo materno é a deusa Deméter. Irmã e quarta esposa de Zeus, depois de Gaia, Deméter foi a divindade a representar a terra “que tem como funções primordiais nutrir, proteger e gerar frutos” (DE SOUZA, 2016, p.69). A maior narrativa que associa a deusa ao símbolo materno é sua história com Perséfone, sua prole deusa da Agricultura, que é levada ao submundo pelo deus Hades. Nesse momento Deméter se ausenta do Olimpo e sua partida traz como consequência o frio e a escassez de recursos, depois de uma jornada em busca da filha, esta entra em acordo com o deus do submundo, que permite a vinda da filha ao Olimpo por um período do ano, quando as duas podem se reencontrar. (BULFINCH, 2013)
Além de ser uma analogia para o surgimento das estações do ano, essa história é uma das narrativas mitológicas mais influentes sobre como o arquétipo materno é poderoso no imaginário e inconsciente coletivo. Uma mãe que vai até as instâncias de morte de seu mundo para recuperar sua filha. Pode ser uma analogia também aos casamentos e como as mães se sentem ao perderem a companhia das filhas em detrimento dos maridos. Em todos os casos a Grande Mãe é facilmente identificável.
A trajetória de Wanda e a Maternidade
A trama da série gira ao redor do luto de Wanda, meses após os eventos de Vingadores: Ultimato (2019) a protagonista resolve ir atrás dos restos mortais de seu amado Visão. Os restos mortais do android foram recolhidos por uma organização militar de nome Espada, onde estavam sendo utilizados em uma tentativa de engenharia reversa para replicar suas habilidades. Quando ela pede para ver o corpo, o líder da organização permite, o que abala a personagem de maneira irreversível.
A personagem já havia passado pela perda do irmão, Pietro, em Vingadores: Era de Ultron (2015), e havia encontrado o amor que logo perdeu com a morte de Visão. Esses fatos culminam na fuga de Wanda, onde ela se direciona para uma pacata cidade pequena, para o local onde se revela posteriormente ela e o falecido companheiro haviam planejado toda uma vida, e uma casa para viverem; lá, numa catarse sobrenatural de seus poderes, toda a realidade a sua volta se molda e a cidade e seus habitantes são envolvidos pelos poderes dela.
Wanda diante do corpo robótico de Visão – Fonte: encurtador.com.br/bDGP2
Alí, através de suas habilidades, Wanda é capaz de materializar seu sonho de ter seu amado de volta. Numa trama intrincada que envolve o passado da personagem e as influências que recebeu de seus pais na infância a realidade ao seu redor se molda a cada episódio com uma influência visual diferente, começando com os seriados de comédia familiar dos anos 1960 e caminhando para as sitcoms do início dos anos 2000. À medida que os episódios passam o espectador pode perceber a jornada de Wanda por seu luto e as tentativas de recalcar um passado e uma realidade que a assombrava.
Ainda é interessante citar que mesmo sendo de origem europeia – Wanda é natural do país fictício de Sokovia, que fica em algum local próximo a Rússia nesse universo fantástico – toda a influência visual e cultural na narrativa criada pelos poderes de Wanda que molda o mundo ao seu redor vem com as características norte americanas. Em especial características do conhecido sonho americano, da década de 50 e do modelo familiar estadunidense retratado nas séries e filmes populares. Os pais da protagonista sempre levavam DVDs com seriados do gênero para a pequena Wanda assistir e observar como isso ficou sedimentado no inconsciente dela, partindo do pressuposto que os poderes transformam a realidade ao redor de acordo com a vontade da mente dela, é muito curioso.
No meio desse turbilhão, Wanda e Visão, em uma espécie de concepção sobrenatural – pois Visão é um ser robótico – descobrem que Wanda está grávida; e essa é a força motriz da mudança da personagem e da trama, é aqui que emerge na personagem a Grande Mãe. Como na consumação sagrada de todos os desejos da protagonista, como Maria que concebeu Jesus ainda virgem na narrativa cristã, os gêmeos Célere e Wiccano são trazidos ao mundo, mudando a vida de Wanda a partir daquele momento.
Wanda e Visão descobrindo a gravidez repentina- Fonte: encurtador.com.br/sAPS2
O roteiro da série passa a dividir o protagonismo com os filhos no momento em que aparecem em cena e isso deixa clara a importância da maternidade para o desenvolvimento psíquico e sentimental de Wanda. Os filhos passam a ser sua motivação, sua alegria, a fonte de seus maiores temores. A menção de ameaça a eles proporciona os maiores atos de heroísmo por parte dela e por fim eles se tornam sua maior força motriz após os eventos que concluem a série.
Seus filhos e sua relação com Visão – o conceito concebido alí por ela de família – se tornam sua motivação primária e é aí que vemos o arquétipo materno agir, dar forças e modificar a vida da personagem. Wanda se vê impelida de forma quase sobrenatural a amparar e proteger aqueles pequenos seres que saíram dela e a preservar sua estrutura familiar. Tudo isso graças a grande mãe que foi despertada dentro dela.
Referências
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.
COSTA, Christiane Gonçalves. Nossa Senhora Do Perpétuo Socorro E O Arquétipo Feminino. Revista Mosaico-Revista de História, v. 13, p. 72-80, 2020.
DE SOUZA, Felipe Machado; FIALHO, Antônio Francisco. Comunicação, consumo e o arquétipo da grande-mãe: a maternidade na perspectiva das marcas. Revista Memorare, v. 3, n. 3, p. 54-78, 2016.
Compartilhe este conteúdo:
Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?
É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.
Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.
Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.
Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.
Fonte: encurtador.com.br/dxAW1
O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam
Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.
Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.
No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.
Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.
Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.
Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.
Fonte: encurtador.com.br/ltyGJ
“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)
O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.
Fonte: encurtador.com.br/cejpx
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.
GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.
RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.
O Superman, como é conhecido hoje, foi a público pela primeira vez na publicação Action Comics (1938) concebido por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). Surge então da primeira leva de super heróis nos quadrinhos norte-americanos; o personagem é criado como um alienígena que haveria caído na terra vindo de um mundo distante, chamado Krypto.
Em sua terra natal, é conhecido como Kal-El, no planeta terra, ao ser adotado por um casal de idosos do Kansas recebe o nome de Clark Kent. Aqui este desenvolveria poderes sobre humanos e passaria a vestir as cores do país que o acolheu, combatendo o crime.
Outro fato importante acerca da criação de Superman é a origem étnica do mesmo, não aquela postulada nas páginas das histórias em quadrinhos; mas a origem de quem o concebeu e a carga cultural implícita na representação do personagem. O contexto histórico era o da ascensão do facismo e nazismo na Europa e as Américas eram por muitas vezes um refúgio para quem se movia para longe do caos europeu.
Siegel e Shuster, de batismo Jerome e Joseph respectivamente, eram judeus, e todo o contexto conturbado vivido por eles na década de 1940 iria influenciar imensamente na concepção das histórias e na visão de mundo dos personagens.
Superman no Cinema e a Visão de Heroísmo de Snyder
Ao longo das últimas décadas, diversas adaptações cinematográficas foram feitas da origem do Superman, ou mesmo tentativas de adaptação de novelas gráficas clássicas do herói. A filmografia se inicia na virada da década de 50 com Superman (1948), Atom Man vs. Superman (1950), Superman And The Mole Men (1951).
Na década de 70 surge o filme dirigido por Richard Donner e protagonizado por Christopher Reeves, Superman – O filme (1978), este que resultaria em três continuações com o mesmo ator, aclamado por fãs. Após longo hiato, somente em Superman – O Retorno (2006) é que o herói veria as telas cinematográficas novamente, através da visão do diretor Bryan Singer (Bohemian Rhapsody, 2018). Mas é em Man of Steel (2013), que o diretor Zack Snyder (Watchmen, 2009; 300, 2006) traz a adaptação mais recente do personagem e com ela algumas particularidades.
Acerca das adaptações cinematográficas de Snyder, vale salientar sua preferência por adaptar uma visão bem específica acerca do arquétipo do herói. Ao traduzir para as grandes telas o filme 300 (2006) – este derivado de uma graphic novel concebida pelo autor Frank Miller de nome “Os 300 de Esparta” (1998) – que é uma releitura da trajetória do mítico rei Leônidas, o diretor deixa mensagens claras acerca do lado humano do rei, seus erros e sua personalidade que em essência não eram divinas e imaculadas, mas humanas e passíveis de erro; Sua derradeira queda nas mãos do rei Persa Xerxes solidifica essa narrativa.
Em Watchmen (2006), o diretor já deixa pistas de como interpreta o papel dos super heróis perante a sociedade, adaptando mais uma obra de Miller e retratando um mundo onde os vigilantes são temidos de muitas maneiras, por sua imprevisibilidade e por serem não deuses, mas seres humanos usando máscaras. Essa mescla entre a visão de Frank Miller e a de Snyder pavimentaram uma estrada narrativa que o cineasta abordaria em seu filme que contaria a origem do herói, faria então um recorte quase pessoal de sua visão sobre o mito do Superman.
O desenvolvimento se dá ao longo de três filmes: Homem de Aço (2013), Batman V Superman (2016) e Liga da Justiça (2021). Nessa jornada você acompanha uma versão diferente da origem do Superman, muito semelhante a original dos quadrinhos porém com diferenças pontuais no que se diz respeito à personalidade do herói.
O Clark Kent mostrado no primeiro filme é um homem que desconhece seu potencial e mesmo ganhando habilidades especiais, toma atitude de herói tardiamente em sua vida, nesse caso após o conturbado final de Homem de Aço. Aquele final também guarda um fato que impõe diferença entre esse Superman do filme para o das histórias em quadrinhos, que é a despreocupação do personagem com a cidade a sua volta, sendo que este acaba por passionalmente destruir o ambiente a seu redor – a cidade inteira sucumbe desastrosamente, enquanto em uma cena de gosto duvidoso, Clark beija sua amada após quebrar o pescoço do antagonista.
É uma cena forte, e com certeza destoa do tom otimista geralmente adotado no retrato deste personagem. Snyder muda o status quo do Superman, o transfigura em um novo produto, diferente daquele já inserido na coletividade mudando o arquétipo pelo qual o ele era mais frequentemente apresentado ao público. A partir disso, diversas questões imperam acerca desta mudança e essa realocação arquetípica faz parte da narrativa desse novo personagem.
Primeiramente um breve apanhado acerca dos arquétipos. Para Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua publicação “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1957-2018), pode-se definir arquétipo como uma espécie de tendência instintiva que reside na psique dos seres humanos transmitida ao longo das gerações; como um instinto biológico que perpassa os ancestrais de uma espécie – o autor exemplifica com a tendência dos pássaros de fazerem ninhos ou viajarem para determinados locais em determinadas épocas do ano – assim também seria psicologicamente falando. Os humanos transmitem essas tendências a seus herdeiros e esses fenômenos são acessados através do inconsciente coletivo. Um desses arquétipos é conhecido como a Criança Sagrada.
Como Jesus para os cristãos, ou o Imperador de Jade em algumas narrativas ancestrais chinesas, é a representação de uma criança que vem carregada de expectativas, imaculada, de futuro promissor. Jung, ao falar acerca desse arquétipo, nos diz:
Um aspecto fundamental do motivo da criança é o seu caráter de futuro. A criança é o futuro em potencial. Por isto, a ocorrência do motivo da criança na psicologia do indivíduo significa em regra geral uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mesmo que pareça tratar-se à primeira vista de uma configuração retrospectiva. (…) Não admira portanto que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às experiências da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a “criança” prepara uma futura transformação da personalidade. (JUNG, 1957-2018, p.165)
Logo, relacionar a Criança Sagrada com a narrativa do Superman, tendo como ponto de partida a cultura judaico-crisã, não é difícil e na verdade esse se demonstra um arquétipo recorrente. Como Moisés que é colocado em um cesto no Nilo – rio esse carregado de simbologias e mitos pelos Egípcios – e enviado a um futuro profético destinado a salvar os Hebreus, Kal-El é colocado por seus pais em uma nave e enviado a Terra a partir de seu planeta natal Krypton, com um destino heróico a sua frente. Esse paralelo deve ser aqui estabelecido para demonstrar o poder da simbologia judaica do Superman clássico e seus criadores fizeram ali impressão da ancestralidade de sua cultura.
Conclusão
A versão do Superman de Snyder trilha o começo do caminho da criança sagrada, mas por ser criado por seres humanos isso implica diretamente na maneira como este vê o mundo, ele está longe de ser o ser divino retratado em outras mídias onde ele paira sobre a humanidade como um ser protetor, muito pelo contrário.
Este Clark Kent voa longe para se isolar, pois se sente um pária, deslocado. E o peso do heroísmo cobra duras penas, pois no início de sua jornada, este se vê não aclamado por salvar o mundo dos invasores, mas temido por suas habilidades excepcionais e olhado com desconfiança por todos à sua volta. A promessa da criança sagrada não se cumpre, restando apenas um ser em meio a uma jornada heróica que passa pelo vale mais obscuro.
O filme ‘Ensaio sobre a cegueira’ mostra a contaminação da perda de visão que assola uma cidade. Adaptado da obra original “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1995), a obra propõe uma situação onde uma cidade, sem nome definido pelo autor, é acometida subitamente por uma condição de cegueira, esta denominada de “mal branco”. A partir daí você acompanha diversos personagens, estes também sem nome definido, lidando com as consequências dessa endemia.
A primeira vítima da cegueira é um motorista que procura um médico oftalmologista, no qual também se contamina. A única pessoa que não perde a visão é a esposa do médico, que em compensação, é quem fica responsável por gerenciar muitas decisões e situações práticas por ainda conseguir enxergar, pois todas as pessoas contaminadas foram levadas para um manicômio abandonado e passaram a ficar em isolamento.
A trama se desenvolve mostrando as tentativas de adaptação e sobrevivência das pessoas a partir da nova condição de cegueira, conforme os dias passam, os instintos primitivos como fome, sono, desejo sexual afloram nos personagens e tudo isso os leva a embates civilizatórios contundentes.
Assim, os aspectos levantados serão analisados através da abordagem psicológica psicanalítica interpretando a perda de visão como um processo psíquico de luto e suas possíveis formas de elaboração e buscando possíveis associações simbólicas psicanalíticas relacionadas ao mal branco que atinge os personagens.
Fonte: encurtador.com.br/uvRZ9
Luto e Inclusão
Ao observar o filme, o espectador pode compreender a importância de trabalhar a inclusão para a construção de uma nova mentalidade que exige mudança de todos indivíduos que convivem em uma sociedade, e não somente dos personagens; mas também dos próprios espectadores. De acordo com Mesquita (2017), a proposta da inclusão tem como parâmetro o princípio das diferenças, não o princípio da igualdade; essa proposição exige muito mais que oferecer recursos para sanar diferenças e igualar os sujeitos.
Diante desse fato, a política da inclusão vai ao encontro do respeito das diferenças e pela construção de caminhos alternativos e criativos para proporcionar desenvolvimento humano e superações de todos os envolvidos no processo. Assim, quando o espectador analisa o contexto do filme, pode inferir que eles próprios se colocam nessa sociedade de exclusão. O filme utiliza como metáfora a cegueira em que as pessoas estão cegas para valores básicos da solidariedade social e que evidência é uma sociedade que exclui as diferenças (MESQUITA, 2017).
Segundo Gomes (2012, p. 687 apud MESQUITA), a diversidade é “compreendida como construção histórica, social, cultural e política das diferenças, que se faz por intermédio das interações de poder e do aumento das desigualdades e da crise econômica”, assim, é importante articulação de políticas para o reconhecimento das diferenças.
Diante do que foi supracitado em relação à inclusão,no filme, o espectador percebe essa falta de articulação dos membros da sociedade, chefes de estados, cientistas em conhecer as diferenças, e a falta de conhecimento, compreende-se o que deixa a humanidade extremamente fragilizada é uma sociedade não inclusa e não a cegueira biológica. Essa análise pode ser observada no trecho do filme, quando a mulher do médico faz um jogo de palavra agnosia, agnosticismo, ela infere que pode estar interligada com a com ignorância e a descrença; também pode interligar com a desesperança, a tristeza. Daí, o filme pode sugerir porque a esposa do médico é a única não contaminada; uma vez que no decorrer do filme, a esta se mostra uma pessoa extremamente empática com o próximo.
Fonte: encurtador.com.br/hAJPU
Diante do contexto do filme, compreende que os personagens perderam a visão e, em seguida, passaram por um processo de luto. Dessa forma, pode ser entendido como um conjunto de sentimentos e comportamentos que normalmente se verificam depois uma perda, como o indivíduo experiencia essa nova realidade. É primordial que a pessoa se ajuste a viver com a ausência para que se possa elaborar de forma adaptativa essa situação (WORDEN, 2003, apud NAZARÉ et al., 2010, p. 36).
Sobre aspectos do luto, Elisabeth Kübler-Ross (1969), ganhou grande destaque ao aprofundar seus estudos sobre o tema, pois ela definiu tal situação em estágios de negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação; sendo caracterizado como mecanismos de defesa psíquica para enfrentamento da situação dolorosa.
Em 1917, Sigmund Freud discute que o luto é uma experiência a partir da perda de vínculo emocional, físico e ou psíquico de alguma pessoa ou de uma ideia. Quando essa experiência é vivida através da melancolia, pode haver indícios de predisposição genética para tal desenvolvimento. Porém, o mesmo autor ainda afirma que o luto não deve ser compreendido como algo patológico, e que ao longo do tempo será vencido, e “achamos que perturbá-lo é inapropriado, até mesmo prejudicial” (FREUD, 1917, p. 128).
De acordo com Souza e Pontes (2016), através de seus estudos sobre Freud, durante o estado de melancolia, é percebido um comportamento de repreender-se que pode estar interligado a queda na autoestima caracterizado como o diferencial nesta situação. Isso se dá porque a pessoa não quer repreender a si mesma, mas o objetivo de amor que foi perdido. Então, o “empobrecimento do Eu” pode ser compreendido por uma identificação do sujeito com o objeto perdido, uma vez que o investimento objetal não foi forte o suficiente para deslocar-se para outro objeto, retornando, então, ao próprio sujeito.
O filme mostra que o médico mesmo possuindo muito conhecimento sobre oftalmologia não consegue solucionar certas situações que surgem ao longo do filme. Por exemplo, quando uma das vítimas pela cegueira bate a perna e tem um ferimento na perna que pode evoluir para uma infecção, pelo fato do médico também estar acometido pela doença, ele pede ajuda e orientação à esposa para que juntos possam acompanhar e intervir sobre o ferimento do rapaz. Assim, percebe-se que o médico tem recursos psíquicos e científicos para resolução de problemas, e nessa situação, controle emocional para tomada de decisão diante de um fator delicado.
Fonte: encurtador.com.br/xyBLM
Simbologia no Filme
A maneira como o filme conta a história levanta questionamentos acerca da origem da cegueira que assola a população daquela cidade. Na obra original Saramago (1995) e o diretor Fernando Meirelles em sua adaptação trazem ao público uma doença de causas misteriosas e de sintomática bastante simbólica. A cegueira é chamada no universo do filme de “mal branco” e em sua essência atinge os indivíduos cegando-os como uma luz que excede os limites da visão humana.
Numa visão simbólica, a cegueira poderia ser uma analogia ao excesso de informações e pela rotina aos quais somos expostos, o que inibiria a psique do acesso a subjetividade e a formas de pensamento mais complexas. Saramago é brasileiro, e é interessante as minúcias na sua obra quando este demonstra a primeira pessoa a ser acometida com a cegueira a um indivíduo no trânsito. O ato de dirigir em grandes metrópoles, estar preso em uma caixa de metal, alheio aos rostos dos pedestres e dos motoristas ao seu redor, é tudo muito significativo ao estado final de cegueira proposto.
“Por isso, supomos, a cegueira branca indica não uma cegueira, mas um excesso de visão. Encontramos um homem que perde seu anteparo criado pelo recalque e que se desorienta quando passa a ver demais, jogando por terra todos os construtos que mantêm sua estrutura social de pé. Ele vislumbra as consequências do fim do recalque e a explicitação desordenada das pulsões. Saramago não cegou o homem; ele o fez ver algo insuportável, abriu seus olhos e o fez ver demais: fez o homem ver a si mesmo.” (CAMARGOS, 2008, p.132).
No livro, o médico explica a cegueira para um personagem, e esclarece que é como se as vias que levam as imagens dos olhos para o cérebro tivessem ficado congestionadas. Para a psicanálise são essenciais para a sobrevivência da espécie as funções que produzem os sonhos, através da digestão das nossas emoções e do conteúdo sensorial enviado para nosso cérebro, como fica claro em texto de Freud (1914, p. 145-157).
Fonte: encurtador.com.br/bOW78
O indivíduo deve ser capaz de fazer a elaboração adequada para digerir adequadamente conteúdos psíquicos, e as imagens e a capacidade visual são parte fundamental desse processo. Ou seja, os indivíduos ali estariam sujeitos a uma distorcida representação da realidade, onde sem a função da visão estes teriam de rearranjar a maneira como abstraem o mundo a sua volta, com diversas funções psíquicas prejudicadas devido a situação atípica.
A cegueira pode também ser uma maneira de se observar a natureza do ser humano para além do véu da civilização. O filme propõe essa reflexão à medida que te põe em companhia de uma personagem que de maneira misteriosa não é afetada pelo mal em questão, e ela, como um último bastião de qualquer noção de civilização, observa toda a jornada a sua volta, sendo muitas vezes obrigada a ceder a barbárie.
“Desde Sófocles e a cegueira de Édipo, o olho foi simbolizado como órgão máximo para o deslocamento da castração genital concreta. Talvez não apenas porque, diante da consumação real do drama edípico, o Tyrannos de Tebas tenha furado seus olhos como punição pela culpa por ter concretamente satisfeito o desejo incestuoso. A cegueira também é mais que uma metáfora da prévia incapacidade de Édipo de ver sua origem e a causa de seus atos.” (LOPES, 2019, p. 25-46)
Mesmo desejando não ser capaz de ver muitas coisas nesses momentos, a personagem esposa do médico (Julianne Moore) embarca em uma jornada desagradável em um mundo incapaz de ver a razão do mal que o atinge, ou mesmo uma solução para este problema.
Fonte: encurtador.com.br/hpqOT
Conclusão
É notável que a personagem principal passa por uma mudança significativa na vida e, na metáfora do filme, ela precisa se adaptar a um contexto totalmente diferente, onde sua condição de pessoa capaz de enxergar a obriga a buscar maneiras de se incluir nessa nova configuração social.
O grande ponto da obra é a perda da visão generalizada, então esta perda gera um estado de luto coletivo, a personagem de Moore observa os indivíduos em sua jornada em estado de negação, enraivecidos, barganhando com o mundo, depressivos com tudo aquilo e por fim, se reorganizando num estado social primitivo, regido pelas pulsões do ser humano e por líderes déspotas, enquanto a esposa do médico assiste a tudo embasbacada.
Tudo é muito simbólico no filme, José Saramago põe nas páginas do livro muitos significados e Fernando Meirelles adapta com primazia para a mídia audiovisual; a perda da visão se dando como um “mal branco”, onde a visão não escurece mas sim é tomada a uma situação análoga a uma luz muito forte, que cega.
Os indivíduos afetados pela cegueira serem isoladas em um manicômio é uma prévia dos horrores que viriam a seguir, as pessoas se rendendo a suas pulsões primitivas enquanto organizam de maneira rudimentar, a personagem de Moore assiste, como uma mera testemunha de um mundo civilizado acompanhando a morte da civilização.
O esforço que a personagem faz para se incluir nesse mundo novo acaba por custar muito a ela. E no final da obra, os personagens mesmo voltando a enxergar, ficam com um gosto amargo após toda a experiência vivida, como o homem que Platão tira da caverna, a visão retorna de repente para que tudo aquilo seja ressignificado.
Conclui-se que, na analogia proposta, o luto mal elaborado pela perda de algo tão precioso no dia-a-dia somado a incapacidade de enxergar e ressignificar os processos, aliados a toda a simbologia por trás do mal branco culminam na ruína daquela sociedade, um provável alerta de Saramago a quem quer que se aventure por sua obra original.
FICHA TÉCNICA
Ensaio sobre a cegueira
Título original: Blindness
País:EUA
Ano:2008
Gênero: Thriller/Ficção científica
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga
REFERÊNCIAS
CAMARGOS, Liliane. A psicanálise do olhar: do ver ao perder de vista nos sonhos, na pulsão escópica e na técnica psicanalítica. 2008.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad., introdução e notas /Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. Obras completas, v. 12, 1914.
KUBLER-ROSS, Elisabeth, 1926. Sobre a morte e o morrer; o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos seus próprios parentes. 7ª ed.- São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LOPES, Anchyses Jobim. Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan-sobre pintura e psicanálise. Estudos de Psicanálise, n. 51, 2019.
MESQUITA, Raquel. Inclusão na impossibilidade da educação: Uma proposta de intervenção psicanalítica. UFMG, 2017.
NAZARÉ, Bárbara; FONSECA, Ana; PEDROSA, Anabela Araújo. CANAVARRO, Maria Cristina. Avaliação e Intervenção Psicológica na Perda Gestacional. Peritia | Edição Especial: Psicologia e Perda Gestacional 2010.
Na Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung define como uma função psíquica existente e necessária o pensamento irracional no ser humano. A partir do seu teorizado Inconsciente Coletivo, ele define algumas tendências instintivas que se organizam na sociedade, marcando impulsos comuns no comportamento humano social. “O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem em colônias”. (JUNG C. G. 1964, p. 83)
Esses impulsos, vestem-se em roupagens que, ao longo da história, vão sendo substituídos por novas representações, todavia, sempre mantém os mesmos traços. O inconsciente coletivo, sendo “uma figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG C. G. 1971, p. 104), ao longo do tempo foi sendo segmentado em diferentes traços, estes são os denominados Arquétipos.
Este texto irá se debruçar sobre o específico arquétipo da Mãe Devoradora, teorizando os diferentes locais dos mitos e folclores onde aparecem, e explicando onde a influência dele aparece no cotidiano das relações sociais.
Fonte: encurtador.com.br/xzEN4
O Grande Peixe que engole Jonas
Na passagem bíblica sobre Jonas, quando ele recebe uma tarefa profética do Deus hebraico, foge a navio para o caminho contrário. A divindade então castiga seu navio com uma terrível tempestade. Jonas, envolto de culpa, confessa aos ocupantes do barco ser responsável por aquela tormenta e é atirado ao mar. Aqui, segundo Jung em seu livro “Símbolos da Transformação” (JUNG, 1952), se dá a representação do momento em que o indivíduo, fugindo de seus anseios internos (inconscientes), se afasta e se alheia cada vez mais da vida, e lentamente, submerge no abismo das recordações passadas.
Ao fazer isso, a energia psíquica atinge certa intensidade, que nesse ponto o aparelho psíquico pode encarar como perigosa. Na analogia de Jonas, a proximidade do divino representa isso com clareza. O mergulho na profundeza do mar e o homem ser engolido, pode vir a ser uma metáfora para encontrar “o vaso materno do renascimento, o lugar de germinação, onde a vida pode renovar-se” (JUNG, 1952, p.397). Nessa fuga do mundo atual, Jonas então é engolido pelo Peixe Monstro, representante do arquétipo da mãe devoradora. Ali, como diz Paracelso citado por Jung, viu “enormes mistérios”, conseguimos através do animal ser novamente levados até a costa.
Neste conto, a mãe devoradora internalizada no inconsciente, através da regressão da energia psíquica (voltar-se a si mesmo), mergulha o indivíduo que sofre dentro de uma reintegração com o mundo dos instintos naturais. “Se esta pode ser captada pelo consciente, ela determinará uma reanimação e reordenação” psíquica, representada pela saída de Jonas do corpo da baleia. Mas se o consciente for incapaz de assimilar os conteúdos vindo do inconsciente, cria-se uma situação perigosa na qual os novos conteúdos conservam sua forma original, caótica e arcaica, e com isto rompem a unidade do consciente. O distúrbio mental daí resultante chama-se por isto, caracteristicamente, esquizofrenia, “loucura por cisão”.”
Jonas então volta para terra (mundo da consciência), e assim se reconecta com o Senhor (conexão com a essência interior), cumprindo sua missão requisitada, representando isso como o retorno para a vida atual e seus compromissos.
Fonte: encurtador.com.br/fnozR
O Arquétipo da Mãe Devoradora na função maternal
O arquétipo da mãe devoradora representa aquelas características maternas que anulam a liberdade do filho. Quando as suas necessidades são impostas acima das necessidades dele. Assim, o desenvolvimento da personalidade do filho é desafiada pelo arquétipo, correndo perigo de ainda ser engolido pelas suas vontades.
Pode ser considerada uma identificação com esse arquétipo, as mães superprotetoras, que inevitavelmente, suplantam a liberdade que o filho aos poucos deveria adquirir. O nome “devoradora”, se dá justamente pelo fato alegórico da mãe que considera o filho como uma propriedade sua, portanto parte dela própria, engolindo sua personalidade, instaurando desde muito cedo nele o medo, pelo fato de ser muito dominadora, brava ou mesmo agressiva. Tal comportamento materno demonstra um comportamento egoísta, onde a mãe pensa apenas nela mesma, e faz do filho uma espécie de extensão narcísica dela própria, como se fosse apenas um pertence anexo à ela.
Junto dessas características, vem também a sua característica dramática, que é mais uma forma de manipulação, criando um clima de angústia e culpa na casa, a fim de se tornar o centro das atenções. Ela tende a ter características negativistas, dando sempre críticas negativas ao filho, suplantando a personalidade dele em nome da sua. As conquistas do filho, vem assim a ser colocadas como advindas da mãe, duvidando sempre das capacidades dele. Tal característica vem a mostrar uma competitividade da mãe para com os filhos, não querendo jamais perder o controle sobre eles.
Ela também tem características dissimuladoras, mais um mecanismo manipulativo; e chantagens emocionais, a fim de gerar culpa no filho, prendendo-o a uma maior dependência. Tal comportamento cria nele a internalização dessa mãe mítica em sua personalidade, podendo mesmo quando distante dela, se sentir rondado pela mãe devoradora, instaurando a culpa em seu dia a dia. Quando se comporta estritamente e radicalmente má, essa mãe acaba também, se identificando com o arquétipo da bruxa, já bem conhecida na história de João e Maria.
Fonte: encurtador.com.br/pwJS2
A representação da Mãe Devoradora é identificável em diversas culturas ao longo da história. Voltando às lendas romanas antigas, é possível atestar o caso do herói mitológico Hércules; este que de acordo com o mito, sofreu alguns males devido a natureza de sua relação com a esposa de seu pai divino, a deusa Juno.
(…) como Juno não era sempre hostil aos filhos do marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o nascimento do menino. A deusa enviou duas serpentes para matá-lo quando estava no berço, mas apareceu as crianças estrangulou as cobras com as próprias mãos (Bulfinch, 2013, p.227).
Esta relação conflituosa resultou em Juno conspirando contra o herói, fazendo com que Hércules fosse submetido a figura de Euristeu, rei de Tirinto e de Micenas. A intenção da deusa era de que o herói encontrasse o seu fim na medida em que realizasse os 12 trabalhos propostos pelo rei. Este fato na verdade resulta no fortalecimento de Hércules; este passa de maneira eficaz por cada uma das 12 provações, que envolviam desde roubar itens místicos até enfrentar criaturas de com sobrenatural e de poderes colossais.
Por fim, Hércules retorna de sua jornada com sabedoria adquirida; dessa maneira Juno, a mãe devoradora neste caso, se frustra em sua tentativa de destruição do herói e acaba por fortalecê-lo em sua jornada devido às suas atitudes. Esse é um exemplo cultural greco-romano da ação do arquétipo, e esse paralelo pode ser feito em mitos de outras culturas de maneira semelhante.
Fonte: encurtador.com.br/acvwJ
Na cultura brasileira, nos relatos de seu folclore, encontramos a figura mítica da Cuca. Milanez (2011) descreve esta que seria uma mulher velha, com características reptilianas e sempre associada a prática de bruxaria, seria responsável por raptar crianças que não cumprissem as regras estabelecidas no lar pelos pais, principalmente quanto ao horário de dormir.
Quando a mãe devoradora se torna estritamente má, esta passa a se identificar com o arquétipo da bruxa, baseado nessa associação é que se afirma que a Cuca é um representante desse arquétipo no folclore brasileiro. O caráter punitivo de sua relação com a criança, sua aparência reptiliana e a mística envolvendo sua lenda.
Ao se buscar sobre a origem do mito da Cuca, chegamos ao cerne deste em Portugal. Cordeiro (1886) aponta que nas terras lusitanas, conta-se que um Santo, certa vez lutou contra um dragão que afligia um povo. Este santo era conhecido por São Jorge, o dragão era conhecido como Coca. Os portugueses, junto a colonização, trouxeram relatos e histórias, Coca, se transformou em Cuca; o dragão muda sua representação para um Jacaré, pois para os moradores das terras sul americanas, existem poucas representações de animais reptilianos de grande porte.
REFERÊNCIAS
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.
CORDEIRO, A. X. R. & LEAL, J. S. M. Almanach de lembranc̜as Luso-Brazileiro para o anno de 1867. 38. º anno da collecção. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1887.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras completas de CG Jung, v. 11, 1971.
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação vol. 5. 1952.
MILANEZ, Nilton. A Cuca vai pegar! Medidas do corpo no caldeirão discursivo do medo. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 33, n. 2, p. 251-258, 2011.
Compartilhe este conteúdo:
Batman v Superman: os heróis lidando com o trauma e a melancolia
Em 2014, quando foi anunciado pela primeira vez o título oficial do filme Batman v Superman: A Origemda Justiça, previa-se um sucesso impactante na indústria de adaptações das histórias em quadrinhos. O filme é dirigido por Zack Snyder (de 300, Watchman e de seu antecessor Man of Steel) e chegou às telas do cinema mundial em março de 2016, tendo um elenco de peso com nomes como Ben Affleck, Henry Cavill, Gal Gadot e uma responsabilidade gigantesca quanto aos fãs de histórias em quadrinhos: retratar a Trindade Sagrada da DC Comics de um modo inovador e avassalador, além de apresentar a trama de toda uma sequência de filmes que se seguira até 2020.
No longa, Batman questiona a índole de Superman, e vê o Homem de Aço como uma ameaça a toda humanidade devido a seu poder demasiado grande; no meio do conflito dos dois heróis, o antagonista Lex Luthor manipula as peças para que tudo ocorra a seu favor e vontade. Com aproximadamente 151 minutos de duração em sua versão para as telonas, o filme ainda está em cartaz, por isso, se ainda não viu, corra para os cinemas, pois o texto contém Spoilers de alguns pontos cruciais para a trama.
A película foi um sucesso para muitos fãs e gerou polêmica nas mídias. A crítica ficou extremamente dividida entre ódio e amor profundo, notas boas ou extremamente ruins, mas esse texto não se trata de uma crítica e, sim, uma espécie de análise dos muitos pontos viáveis às mesmas que estão presentes no filme.
Superman
Ao analisar separadamente os protagonistas, destacar primeiramente o caso de Superman se faz necessário, levando-se em consideração o fato de Batman v Superman dar sequência a Man of Steel, filme que como mencionado antes também tem como diretor Snyder e busca nos recontar as origens do Homem de Aço. Para o entendimento completo da trama contada em Batman v Superman se faz necessário assistir Man of Steel.
Grande parte da humanidade admira Superman
Superman (Henry Cavill), ou para os mais fanáticos Kal-El, está a dezoito meses agindo como super-herói e vivendo sua vida dupla humana, usando a identidade do repórter Clark Kent, logo após a tentativa de invasão ao planeta Terra no filme anterior (Man of Steel). Ele voa por aí salvando vidas, apagando incêndios e tirando gatos de cima das árvores enquanto lá embaixo, em terra firme, o mundo lida com as consequências do salvamento do mundo, que com toda a certeza foi no mínimo conturbado – afinal, a cidade de Metrópoles foi praticamente dizimada por inteiro na luta entre Superman e Zod (o vilão de Man of Steel).
O Homem de Aço é uma figura controversa, em alguns momentos do filme ouvimos a frase: “Realmente precisamos do Superman? ”; A humanidade teme os poderes de Clark, teme sua capacidade e é aí que os conflitos se iniciam em sua mente. Ele se vê sozinho no universo, pois foi forçado a dizimar o que restava de sua espécie em detrimento do bem para a humanidade. Agora, sendo membro de uma raça em extinção, Clark se encontra em meio a um dilema entre seus poderes, a responsabilidade (ou a não responsabilidade) de usá-los para fazer o bem, a discordância quanto à ação do misterioso Morcego de Gotham e as pessoas que o rejeitam por medo dos ocorridos em Metrópoles – realmente não é todo dia que alguém destrói uma cidade com as próprias mãos.
Batman
As cenas iniciais de Batman v Superman nos mostram um velório, logo após isso vemos que uma criança está assistindo ao enterro dos pais – nesse momento decorre uma cena interessantíssima onde essa mesma criança cai em um buraco cheio de morcegos, guarde essa informação; em sequência há um salto no tempo e o espectador é lavado há alguns meses (dezoito meses) antes do tempo presente no filme, ali é possível observar a batalha ocorrida em Metrópoles por outra ótica.
Dessa vez o evento é mostrado pelos olhos das pessoas que estavam na cidade durante o embate, assistindo de perto a destruição causada pela luta entre Superman e Zod, e é nesse instante – cena que de certa forma chega a ser assustadora, pois da perspectiva de quem está nas ruas, os destruidores o fazem sem piedade – que nos é apresentado de fato o outro protagonista do filme, Bruce Wayne, o Batman (Ben Affleck). Bruce estava na cidade indo para uma das sedes de sua companhia, viu toda a destruição e o impacto negativo da salvação que o Homem de Aço estava trazendo.
Bruce durante a Batalha de Metrópoles
Bruce Wayne agiu em segredo por quase duas décadas como vigilante em Gotham no passado e para ele, mesmo Clark salvando o mundo, ele é o “miserável que trouxe a guerra a nós”. Bruce simplesmente não consegue confiar em Superman, pois para ele seu poder imensurável é instável e em sua mente ele tem o dever de combater esse ser que pode vir a se tornar uma ameaça. É nesse ponto que o filme se fundamenta, se enganando quem pensa que é uma luta injustificada, com muita computação gráfica e ação. Não, com toda certeza não: Batman v Superman retrata um conflito de ideais entre os protagonistas, conflito que visa colocar em xeque a opinião de quem está assistindo e percorre o filme de ponta a ponta.
Trauma e Melancolia
Para falar de fatos que marcariam a vida do Cavaleiro das Trevas é interessante analisar não só as cenas do filme, mas também olhar para a fonte de inspiração delas: as histórias em quadrinhos. Dependendo do autor ou no caso de filmes, o roteirista, existem diferenças tênues quanto ao passado de Bruce e a sua gênese como Batman. Porém, um fato é sempre recorrente: os pais dele morrem quando o mesmo era uma criança; Bruce a partir desse ponto passa a ser criado por seu mordomo Alfred, este que ocupa a função de mentor, guiando-o à medida que se desenvolve.
Bruce e Alfred
Após a morte de seus genitores, ele fica obcecado por vingança. Com a ajuda desse novo mentor, treina durante o resto de sua infância e adolescência para poder combater o crime no futuro. Quando se torna adulto, começa então a agir como Batman, adota o símbolo do morcego, este se tratando de outro trauma – como dito anteriormente ele cai em uma espécie de buraco quando ainda era criança, lá é atacado por morcegos e esse episódio marca o jovem Bruce profundamente, fazendo-o levar esse medo consigo daí em diante.
Sigmund Freud, ao escrever sobre a melancolia, explica que ela
se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. (Freud, 1917)
Bruce Wayne do filme atuou como Batman secretamente por muitos anos e nos é mostrado como um sujeito melancólico e perturbado por todo o passado e as marcas em sua personalidade. Ele sofre de pesadelos com o túmulo dos pais, morcegos carnívoros gigantes, possíveis futuros apocalípticos como consequência da realização de suas paranoias, entre outras coisas que algumas vezes o fazem titubear na hora de pensar com clareza. Somando isso ao fato de ele rememorar constantemente a cena de seus pais morrendo – guarde essa informação também – tem-se como resultado um indivíduo que sofre psicologicamente com toda essa carga de conteúdos traumáticos em sua mente.
Um dos sonhos de Batman durante o filme, esse porém, tem um tom profético aos fãs
Agora tratando do Superman, em um panorama geral das mídias (quadrinhos e filmes), pode ser até uma surpresa para alguns, mas a história de Kal-El é tão pesarosa quanto a de Batman. Clark é o último filho de seu planeta, Krypton, que foi dizimado devido a um desastre natural. Antes de o planeta entrar em colapso seus pais o colocaram em uma espécie de espaçonave feita para viajar milhares de anos-luz, com o objetivo de chegar a Terra, onde foi achado por Jonathan e Martha Kent e batizado como Clark Kent. Aqui o jovem Clark cresceu, descobriu seus poderes e começa a agir como super-herói. Ele perde os pais terráqueos alguns anos depois; na versão mais recente das HQs em um acidente de carro e no filme Man of Steel, o Sr. Kent morre durante um tornado.
Momento da morte de Jonathan Kent, pai de Clark. Cena de “Man of Steel”
Em Bartman v Superman a origem dessa carga traumática na mente de Clark vem do filme anterior, pois ele foi forçado a dizimar os membros remanescentes de sua raça, em vista de que eles desejavam dominar o planeta e escravizar os humanos. A partir dali, quando a trama do filme atual se desenrola, ele se viu sozinho no Universo, mas ainda assim com um planeta inteiro de pessoas para ajudar, pessoas que passaram a depositar adoração messiânica nele, outras também que questionaram seus atos de boa-fé e o atacaram com palavras, chegando a despreza-lo e tentar o expulsar do planeta. O Superman desse filme é com toda a certeza o mais humano já retratado: ele sente angústia por ser injustiçado, sente raiva por falaram mal dele, sente amor por sua companheira Lois e por sua mãe de modo descomunal – e o que mais revoltou algumas pessoas – ele está sim sujeito a ser manipulado.
Clark e o vilão Zod, ao fim da Batalha de Metrópolis. Cena de Man of Steel
“Martha? Porque disse esse nome!?”
Bum, clímax do filme. O vilão Lex Luthor – não anteriormente citado, porém parte crucial da trama – capturou Martha Kent (Diane Lane) e atraiu Superman para sua armadilha, usando a vida de sua mãe como barganha. Lex força Clark a escolher entre a vida dela e a de Bruce Wayne. O tempo começa a correr para Clark, que só tem uma hora para resolver seu problema; em uma cena deletada do filme, que estará presente no Blu-ray estendido do mesmo, ele parte a procura de sua mãe antes do confronto e ouve todo o clamor, os gritos desesperados e qualquer possível sinal de crime ocorrendo na cidade naquele exato momento, porém o lado egoísta e humano pesa em sua escolha, o lado que faz com que decisões difíceis sejam tomadas e ele escolhe por confrontar Batman para assim salvar sua mãe.
Lex Luthor, subjugando Superman
Após uma tentativa de diálogo e os primeiros golpes desferidos por Batman, a luta se inicia e sem muita descrição sobre a mesma, Clark se contém durante a luta. Para não matar seu adversário que é um humano, Batman se utiliza de gás feito com Kryptonita, um mineral Kryptoniano nocivo para os seres do mundo de Clark e derrota seu adversário se aproveitando desta fraqueza. Do mesmo pedaço de mineral que usou para fazer o gás Bruce fez uma lança, único objeto capaz de matar Superman naquele momento.
Eis que nesse instante surge a frase que dividiu a opinião dos espectadores: “Salve a Martha”. Nesse momento Bruce hesita e começa a questionar sobre o que Clark queria dizer e o porquê de ter dito aquele nome. Lois chega e explica tudo a Bruce que em um lampejo de consciência entende a loucura que era essa briga entre os dois; entende que o real inimigo está lá fora. Eles unem forças para combater o verdadeiro mal por trás de tudo.
“Salve a Martha…”
Então o espectador se pergunta: é isso? Um diz o nome da mãe do outro e fica tudo na paz? – Bom, na verdade as coisas vão um pouco além disso. Se voltarmos na história de Batman, veremos que há algo em comum nos dois heróis, pois o nome da mãe de Bruce também é Martha – (Risos) Ah, melhor ainda? As mães deles têm o mesmo nome e a coisa se resolve assim, fácil? – Não exatamente, de novo.
Tente pensar como Bruce Wayne por um instante: Você é um homem que cresceu assombrado pelos fantasmas de seu passado, vive completamente atormentado pela morte de seus pais, e um estranho de repente fala um nome familiar, que você tem evitado por anos, um nome que relembra todo o seu sofrimento, te faz reviver toda a dor e o trauma de ver seus pais morrerem em sua frente. Até o mais sombrio dos heróis hesitou nessa hora e com uma solução aparentemente simples, mas com uma profundidade e um apelo sentimental tão grandes é que o antagonismo dos dois heróis tem seu desfecho.
Após outros diálogos e a aparição da Mulher Maravilha (Gal Gadot), um dos protagonistas tem sua trama concluída de certa forma ali. E baseado no famoso arco de histórias, “A Morte do Superman”, a terceira e última parte do filme se inicia. Após uma luta exaustiva entre a Trindade e o monstro Doomsday, o fim chega para Superman, que como nas HQs se sacrifica para derrotar o vilão indestrutível – mais uma pequena referência a toda a coisa messiânica que envolve o Homem de Aço.
O sacrifício final. Cena retirada de “A Morte do Superman”, por Dan Jurgens
Em conclusão, para Superman, o conceito de melancolia que melhor se aplicaria é o da filósofa brasileira Marcia Tiburi. Ela que trata da Melancolia como sinônimo de criação. A partir de um episódio melancólico desencadeado por todos os acontecimentos de sua vida até aquele momento, Clark vê iniciar-se um processo de destruição para que depois haja a criação. O filme se encaminha para o fim com Superman se entregando a destruição, após todo o desenrolar de fatos da película. É possível ver o ser inseguro, frágil e indócil, partir em direção a criatura que seria seu fim, para que um novo começo pudesse existir e no lugar dele, o Superman que todos conhecem – o estereótipo de herói, bondoso, certo de si e imparável – pudesse nascer das cinzas de um antigo eu.
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund, 1917. Luto e Melancolia. p.172-173.
TIBURI, Marcia, 2008. Saber e Sofrer. Disponível em <http://www.marciatiburi.com.br/textos/saberesofrer.htm>